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Educadores na pandemia: “solitários e impotentes”.

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Laboratório Ciranda de Conversa- CIEN-PR – Bárbara S. F. Campos[1] e Renata P. Soares[2]
Simbolo-de-rede-sem-fio-wifi-abstrato. In: br.freepik.com/vetores-gratis/

A pandemia que tomou conta do mundo no ano de 2020 exigiu de todos um difícil isolamento social. A educação foi profundamente afetada. Alunos, educadores, funcionários e famílias sofreram os impactos do ensino remoto em seu dia a dia e ninguém saiu ileso do fechamento das portas das escolas. A angústia invadiu a todos, acompanhada pelo desconhecimento e pela urgência na busca de soluções, que em sua maioria se mostravam desajeitadas e antiquadas diante dos desafios da época.

O Laboratório Ciranda de Conversa[3] se ocupa da inter-disciplinaridade entre a psicanálise e a educação. Busca sustentar o hífen entre o inter e o disciplinar, como nos aponta Lacadée: marca de um pequeno espaço que não quer dizer nada, “um vazio que pode indicar o lugar de uma ausência vibrante, viva, como um coração que bate, pulsante[4]. O hífen é marca da união e também do vazio que aponta para o real em jogo, capaz de furar o saber prévio e acolher o imprevisível. É o que pode permitir que uma rajada de ar circule e produza um enigma que, talvez, dê lugar ao novo: “um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte”.[5]

Uma das principais características do Laboratório é o deslocamento, o “ir” até aonde os impasses o convoca. Sendo assim, foi preciso uma reinvenção, assim como para as escolas, no período do isolamento. Quando uma das participantes do Laboratório trouxe a angústia de algumas educadoras com as aulas on-line, um impasse surgiu: como fazer? O mês era junho de 2020 e não havia familiaridade com as plataformas de reuniões remotas e ou qualquer prática prévia de conversação nesse modo. A decisão de propor uma conversação entre os participantes do Laboratório e as professoras foi uma aposta, uma aposta na circulação da palavra. Se a educação estava no modo on-line, talvez o Laboratório pudesse se aproximar das escolas por esta via.

A primeira Conversação foi entre alguns professores de escolas públicas e privadas da cidade de Curitiba e os participantes do Laboratório Ciranda de Conversa. De início foi possível perceber que não era um encontro com a “Escola” e todo seu contexto: cenário, agitação, trocas, barulho, alunos e professores em interação. Foi um encontro com professores fora de lugar e seu sufocamento diante de um espaço ainda não construído social e psiquicamente. Logo no início, uma professora expôs sua angústia trazendo as seguintes palavras ao grupo: “Não pensaram em nós, não pensaram neles (alunos). Há um descrédito no professor. Como a escola no Brasil está mais preocupada com o conteúdo, quando estamos num momento excepcional? Estamos servindo a um protocolo, que não é para nós e não sabemos para quem é”. Foi a partir desse ponto que a Conversação girou nesse primeiro momento. As professoras se diziam desamarradas dos laços que cultivaram na escola, com os alunos e entre seus pares. Estavam impotentes diante do isolamento e da forma como a educação vinha sendo conduzida. Nas escolas públicas, os professores não eram os responsáveis por ministrar aulas remotas para suas turmas, mas, um professor escolhido pela Secretaria de Educação gravava as aulas do período e essa aula ficava disponível, via aplicativo ou televisão, para todos os alunos matriculados no período no ano letivo. Cabia ao professor responsável por cada turma acompanhar as notas e frequências, assim como tirar dúvidas quando necessário. Elas diziam: “não estamos sabendo de nada.” Ou seja, além do não saber frente ao real da pandemia, elas desconheciam o processo de aprendizagem dos seus alunos. Não eram elas que preparavam as aulas, tampouco acompanhavam seus alunos porque eles raramente apareciam no horário que elas estavam disponíveis para dúvidas. Elas nem mesmo sabiam onde e como seus alunos estavam. “Tenho 400 alunos e estou acompanhando por aplicativo WhatsApp, mas só vejo 3 ou 4. É uma farsa!, diz uma professora, que em seguida se lembra de um pesadelo: “a pedagoga entra na sala de aula e diz: você é uma fraude! eu respondo: mas eu não sei o que fazer! Ela me diz: faz qualquer coisa só para entregar.” Os significantes fraude e farsa aparecem constantemente para nomear o lugar dessas professoras naquele momento. São professoras fora de lugar, que não ensinam, sem laços.

Messy-pencils. Photo by Matthew Henry from Burst

É possível captar a impotência e o sufocamento das professoras ao se ouvir a frase: “desconhecemos totalmente o que acontece com o outro. Para fazer algo com o outro é preciso saber um pouco dele. Estamos no escuro.” São sujeitos paralisados frente a um Outro todo poderoso, mortífero. Porém, a psicanálise, como êxtimo na conversação, “recolhe seus efeitos exatamente por destruir a crença na solução universal, nos imperativos da tradição, no pensamento único, diluindo as identificações em massa e sustentando a vitalidade de um furo operante. É tarefa dos analistas fazer falar os impasses da civilização e, no ponto em que vigora a fórmula “para todos”, realizar a subversão necessária para dar lugar à solução de cada um.”[6] Aos poucos, de forma muito sutil, pequenas rajadas de ar passaram a circular nas conversações. As professoras trouxeram uma pequena reflexão sobre o que é ser educador, e sobre a educação. Cada uma pôde trazer algo de si, de seu sujeito educador. De alguma forma, começaram a se deslocar da pergunta sobre que o Outro quer de mim, esse Outro mortífero, que mal podiam nomear, para uma reflexão sobre si mesmas como sujeitos educadores. Começaram a pensar nas trocas entre seus pares, realizadas em seus grupos de WhatsApp. Uma contou que perguntava sobre seus alunos para as famílias quando as encontrava no mercado. Outra contava que dançava em frente ao computador para motivar seus alunos, sem medo de pagar mico. A professora de arte pôde nos contar sobre como a arte e o Laboratório a transformava enquanto sujeito.

Como nos aponta Juan Carlos Indart, o CIEN, “ao entrar com essa extimidade, efetivando um não-todo, esse amor e esse gozo furam o discurso do mestre, o discurso universitário, os semblantes de Outro do Outro, sejam estes de um imperativo “a secas” ou de um imperativo de saber; e de um modo não muito calculado mas, com consequências precisas, em diferentes corpos podem advir acontecimentos novos, que furam cada um, dando-lhes vida nova, um gosto de fazer algo que não seja obedecer a ninguém, e que os colegas do CIEN declinam muito bem de diferentes formas: uma posição de sujeito, a dignidade dessa singularidade, um ideal pelo qual dê gosto viver, ou manejar o mesmo sintoma que levava a matar e a morrer como recurso para tecer uma vida com alguns vínculos sociais”[7]. Por fim, a conversação se encerrou com uma das professoras podendo dizer: “é momento de fazer do jeito que dá, de servir desse momento para refletir onde estão os furos na educação. Fazer o que é possível.


[1] Psicanalista praticante. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR, animadora da Conversação online com os professores.

[2] Psicanalista praticante. Responsável pelo Laboratório Ciranda de Conversa CIEN-PR.

[3] O Laboratório Ciranda de Conversa-CIEN Paraná realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Bárbara Snizek Ferraz de Campos (animadora da conversação online com os professores), Eugênia C. Souza, Idavir Trebien, Karina Veiga, Niura Kiame, Paula Butture, Stephanie Gorte, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Tânia Verona, Willie Anne Provin (animadora da conversação online com os professores).

[4] MILLER, J. “O que é o CIEN.” In. BRISSET, F., SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! E têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 24.

[5] RÊGO BARROS, M.R.C.. “A prática interdisciplinar do CIEN.” In BROWN, N., MACÊDO, L. LYRA, R. (Orgs.) Trauma, Solidão e Laço na infância e na adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.

[6] OTONI-BRISSET, F. “Crianças falam! e têm o que dizer.” In: BRISSET, F. SANTIAGO, A. L., MILLER, J. (Orgs.) Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p. 12.

[7] INDART, J. C. “Del síntoma as CIEN y del CIEN al síntoma.” In: El niño [CIEN]. Publicación del Instituto del Campo Freudiano. Revista Periódica – número -15. Abril de 2020. Olivos: Grama Ediciones, p. 12. Tradução Livre.

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