ISSN 2178-499X
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Editorial

by cien_digital in Cien digital #21, Editorial

Imagem: Olga Ziemska

Paola Salinas – Editora

Permutação não sem história

Este Cien-Digital inicia uma nova série. A partir da orientação da Comissão Cien Brasil (2014/2016), introduzimos a permutação em nosso trabalho. Assim, a edição foi assumida por Siglia Leão e por mim, contando com o comitê editorial composto por Ana Martha Maia, Margarete Miranda e Vania Gomes, e com as consultoras Maria do Rosário Collier do Rego Barros, Cristiana Pitella de Mattos e Fernanda Otoni-Brisset. Essa equipe trabalhará por um tempo definido e se renovará em parte a cada escansão de tempo.

O Cien-Digital objetiva transmitir a experiência do CIEN em sua singularidade, especificidade, que embora sustentada em um percurso de trabalho desde sua fundação, em 1998, se refaz a cada surgimento de um novo laboratório.

Desse modo, o Cien-Digital é um espaço para a precisão teórica de uma prática e para o vivo desta, a qual implica um não saber em seu funcionamento. Um trabalho feito por diferentes, visando possibilitar a introdução de um saber novo, que possa ser construído nas conversações.

É nosso intuito recolher aqui tais produções, bem como as reflexões suscitadas por elas. Assim, o trabalho dos laboratórios, seus questionamentos e avanços que se encontram na rubrica LABOR(a)tórios, são presença fundamental nessa e em cada edição, transmitindo os impasses vividos e, com eles, o fazer do CIEN.

Temos uma breve apresentação do livro Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência – Experiências do CIEN no Brasil, que compõe um registro do trabalho no CIEN.

Do mesmo modo, temos como parte do Cien-Digital contribuições e articulações decorrentes do percurso do CIEN como um todo no campo freudiano, bem como elaborações realizadas que nos servem de orientação. Trata-se da invenção cotidiana na prática das conversações e da presença do interdisciplinar não sem o percurso teórico já feito a esse respeito. A novidade, o furo no saber como causa, e a orientação. Nesse sentido, a rubrica Hifen traz um precioso e preciso texto de Eric Laurent, na localização do (não) saber psicanalítico no âmbito inter-disciplinar. Os princípios também se recolocam na articulação entre o singular e o laço, belamente descrita na ENTREvista concedida por Beatriz Udenio, que nos traz balizas para o trabalho em Buenos Aires na Conversação Internacional do CIEN Americano.

Ainda temos no Ponto de Vista e Contribuições textos que trazem uma reflexão sobre o trabalho e o percurso traçado, em articulação ao trabalho no CIEN. Em Órbita, temos uma interessante discussão sobre o autismo, o ensino e as consequências de se deixar ensinar por cada experiência.

Neste Cien-Digital 21 em especial, que tem a marca de uma novidade, introduzimos uma rubrica nova, História do CIEN Brasil. Aqui pretendemos retomar textos, articulações do trabalho desses anos do CIEN no Brasil que não foram publicadas até então. É interessante notar questões e elaborações feitas em determinados momentos que podem nos servir ainda de orientação, bem como impasses próximos aos do trabalho de hoje.

Estreando essa rubrica temos o laboratório a-Palavrar, que tinha como responsável Maria Rita Guimarães, com o comentário do querido Célio Garcia. Vocês poderão ver que essa rubrica terá antes um Contexto, nos dizendo do trabalho ali apresentado e do momento a que se refere.

Ainda, nossa gratidão a Maria Rita Guimarães e toda sua equipe que esteve à frente do Cien-Digital, alguns ainda estão!

Maria Rita, que soube fazer com um boletim, com um cuidado ímpar. Ainda contamos com ela nesse percurso, e entusiasmadas para seguir adiante, numa novidade sustentada no trabalho de longa data.

Sintam-se convidados a escrever para o Cien-Digital, lê-lo e fazê-lo circular em diferentes e variados lugares, onde a lógica do inter e do hífen do trabalho no CIEN pode ser sustentada.

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CONVERSAÇÃO INTERNACIONAL DO CIEN-Americano “Os laços sociais e suas transformações” 12 de setembro de 2017

by cien_digital in Cien digital #21, Eventos

Argumento

“O porvir dos laços sociais” foi explorado pelo CIEN há mais de uma década, em 2003, dada a dificuldade em construir pontes, laços de suporte e intercâmbio entre adultos, jovens e crianças em um mundo desagregado, disperso, múltiplo. A aposta do CIEN foi então: apontar àquilo que pudesse permanecer como função Outro, a partir da qual a criança pudesse se servir de seus próprios esforços e na companhia de alguns outros que encontrasse no caminho.

A preocupação pelo efeito segregativo e diruptivo que os discursos normatizantes produzem, habita o seio do CIEN desde a sua fundação, há pouco mais de 20 anos, em Buenos Aires, a partir de uma iniciativa de Jacques-Alain Miller. A primeira Jornada Internacional do CIEN, em 1998, em Barcelona, dedicou-se d´ “A Clínica frente à segregação”. A segunda em Buenos Aires em 2000, ao abordar “Por trás das Normas – o detalhe”, abriu espaço para ver de que modo as crianças, os adolescentes e os diferentes profissionais se arranjam com os impasses destes saberes que, de mãos dadas com a ciência e a técnica –e empurrados pela exigência oferecida pelo mercado de que tudo é possível–, frequentmente contribuem para arrasar aquilo que se apresenta como original ou diferente, esmagando o desejo.

Em jornadas posteriores, houve precisões sobre a incidência da cultura do instantâneo nos laços, e a resposta dos jovens que se fecham para…

Isso nos leva a postular se, atualmente, aquilo que em dado momento explorávamos sob a idéia de agrupamentos a partir de modos de gozo compartilhados, foi substituído hoje por uma modalidade de laço que se apoia em grande medida nas diversas redes sociais, onde é difícil desprender-se da idéia de que ali impera a mais paradoxal solidão – por exemplo, o snapchat.
Esses laços, então, estão tomando novas formas, sobretudo com a hiperconectividade e a realidade aumentada, cada vez mais incorporada à vida cotidiana. Que tipo de ligação é a hiperligação [hyperlink]? Isto se apresenta como aporia, pois onde poderiamos supor uma ligação mais estreita, acaba se traduzindo em uma crescente dispersão e multiplicação.

Na comunicação, o mal-entendido da linguagem se contrapõe ao afã de uma “perfeita” literalidade –cuja impossibilidade mergulha os sujeitos em uma angústia cada vez maior.

Desvela-se, portanto, um efeito sinistro que advém da realidade virtual, que faz naufragar o amparo que provem do campo da realidade propria de cada um, a ficção que chamamos de fantasia.
Existe, por um lado, um empuxo a manter-se conectado o tempo todo a esta realidade virtual. Isto se verifica em todos os âmbitos da vida cotidiana, onde blackmirrors tornam-se companheiros inseparáveis. A linguagem se transforma à luz destes novos objetos, que ganham “vida” com sua insistência em fazer-se “ouvir”, “olhar”, “ler”. É incessante, quer dizer, isso não cessa. Existe ali o efeito de um sem corte nessas comunicações, onde a implicação do corpo fica em suspenso.

Como se imiscui tudo isso nos diversos campos institucionais? Tomemos por exemplo o campo do Direito, onde o empuxo midiático faz oposição à mediação simbólica buscada nas mãos da lei.
A ciência da saúde também está cada vez mais infiltrada pelo uso das telas –nos estudos por imagens– e nas “consultas” que prescindem da presença do “corpo” do paciente, pela foto digital enviada por um familiar ao celular do médico que diagnostica e indica tratamento pela mesma via.

E, o que podemos dizer do campo pedagógico? Trata-se de um terreno com ambiguidades. Por quê? Porque, por um lado, há um “uso” legítimo que as crianças e os jovens podem fazer das redes e telas ao serem incorporadas como meios para a relação com o saber.

Por outro lado, nesse mesmo ponto encontramos que essa sujeição incesante a esse modo de laço subtrai a necessidade do corpo para encarnar uma relação com o saber. Isto se torna complexo de tratar e de situar no âmbito escolar, onde ainda se convoca à participação de um sujeito desejante, de carne e osso, para a aprendizagem, que envolve as crianças e os adolescentes, mas também aos profissionais que os recebem.

Isto reabre questões nos diversos praticantes que alimentam os laboratórios do CIEN, dispostos a interrogar o que não sabemos, o que não entendemos, o que se apresenta como reflexões paradoxais, que requerem a abordagem e a elucidação daquilo que enlaça as crianças e os jovens, justamente ali onde em diversas ocasiões constatamos que o corpo –não só a dimensão da palavra– é afetado por essas novas formas.

Assim, propomos conversar sobre as invenções das crianças e dos adolescentes não tanto contra os efeitos do novo, mas sim com o uso que estes dão ao novo: novas formas de “dizer”, de “fazer”, de gozar, de viver. Qual novidade implica o uso da palavra nas redes? Como o corpo participa disso?

Tradução: Vania Gomes
Revisão: Nohemí Brown

 


Argumento da Jornada Internacional do CIEN “ O futuro dos laços sociais”, realizada em Buenos Aires em 20 de setembro de 2003. Publicado no Caderno 5 do CIEN, novembro de 2004.
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Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência – Experiências do CEIN no Brasil

by cien_digital in Apresentação, Cien digital #21

“Crianças e adolescentes brasileiros, este livro lhes faz saber que vocês tem ao seu lado mulheres e homens, vindos de todos os meios e de todas as culturas de seu país múltiplo; por terem eles próprios se confrontado com essas tensões irredutíveis da infância e da adolescência dos pequenos homens, estão prontos a lhes acompanhar para que vocês encontrem aí as respostas que lhes convenham, com ferramentas que vocês receberam ou que vocês irão forjar, tecer, modelar, bricolar… com eles.

Esta obra demonstra que isso é possível, que nenhuma adesão a uma doutrina ou a um ideal qualquer é demandado na entrada, que você pagará o preço que seja justo, e que podemos aprender muitas coisas que nós ainda não sabemos…”

                                                            Daniel Roy, no prefácio.

Sumário

Prefácio

9 As crianças e os adolescentes brasileiros têm mulheres e homens ao seu lado: a experiência do CIEN Brasil
Daniel Roy

Apresentação

13 A invenção do CIEN
Heloisa Prado Rodrigues da Silva Telles

Capítulo 1

O CIEN e a Orientação Lacaniana
21 A reconquista do Campo Freudiano
Judith Miller
37 Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual.
Éric Laurent
49 Trauma e Real, o que as crianças inventam
Miquel Bassols                                                                                                            
81 A singularidade da criança
Miquel Bassols

Capítulo 2

O CIEN e seus dispositivos
93 A vinheta pratica tal como ela se elabora no Laboratório do CIEN
Philippe Lacadée
99 A dimensão clínica na apresentação do caso e na prática do CIEN
Nohemí Ibáñez Brown
109 A pratica interdisciplinar do CIEN
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
113 Falando sobre o CIEN com seus participantes!
Nohemí Brown, Lucíola Macêdo, Rodrigo Lyra, Fernanda Otoni-Brisset, Síglia Leão, Ana Martha Wilson Maia e Miguel Antunes.

Capítulo 3

Trauma, invenção e juventude: o que dizem os analistas
127 “O caso Ernesto”: trauma e invenção. A propósito de As crianças, de Marguerite Duras.
Miquel Bassols
141 O impossível, guia. A alegria da criança
Anna Aromí
153 Apresentação do texto “Em direção à adolescência”, de Jacques- Alain Miller
Ana Lydia Santiago
165 Juventude e trauma: a experiência de desenraizamento
Lucíola Macêdo

Capítulo 4

Conversações: experiências dos Laboratórios do CIEN no Brasil
183 TRAUMA E REAL: O QUE AS CRIANÇAS INENTAM?
189 Da surpresa do impasse à surpresa da invenção: as novas leituras das equipes interdisciplinares
Conversa: Ana Lucia Lutterbach
233 Do impossível do impasse à contingência da invenção: as invenções das crianças e dos adolescentes
Conversa: Fátima Sarmento e Cristiana Pitella
279 Da normatização à invenção: os impasses contemporâneos.
Conversa: Cristina Drummond
311 SOLIDÃO E LAÇO NA ADOLESCÊNCIA
313 Inter-disciplinaridade como o CEIN a escreve: por que não se trata de uma clínica?
Conversa: Marcelo Veras
353 Por que a conversação é diferente de uma aula?
Conversa: Fernanda Otoni-Brisset
383 O Laboratório e as instituições: cadê o impasse?
Conversa: Marcus André Vieira

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As vias do CIEN

by cien_digital in Cien digital #21, Hífen

Imagem: Micaela Lattanzio

Éric Laurent
Barcelona, novembro de 1997.

Graças ao trabalho do CIEN, confirmado na sua brochura número 1, sabemos o sentido que começa a ter a palavra interdisciplinar e podemos começar a dar uma melhor forma às vias que ela vai tomando para alcançar seus objetivos.

1. O que é disciplina e o que é interdisciplinar.

Existem as diversas disciplinas ou práticas que tomam à criança como objeto. Podemos enumerar várias delas, sem pretender a exaustão, e propor uma primeira lista: a pedagogia, a pediatria, a neonatologia, a psiquiatria infanto-juvenil, as ciências sociais, a gestão das instituições especializadas, etc. Neste nível, os saberes ou as práticas não circulam, ou circulam pouco, entre elas. Nascem e se desenvolvem em compartimentos estanques. Por um lado, há um nível interdisciplinar que existe desde o início na cidade que é o direito. Este assegura a linguagem interdisciplinar necessária para que seus saberes não produzam incoerência política nas encruzilhadas e interseções de suas consequências práticas. Seja qual for a disciplina, ela é responsável pelos efeitos produzidos pelo seu saber frente ao direito, pois nossa civilização se define sobre a base dos direitos do homem. Um centro interdisciplinar sobre a criança interessa-se, então, ao mesmo tempo, por cada disciplina e pela linguagem formalizada que coloca uma em relação com a outra. Interessa-se pelas dificuldades, problemas, incoerências, disfunções e escândalos que se apresentam na aplicação dos direitos do homem ao sujeito qualificado como criança. Estas rupturas se apresentam tanto na prática como na teoria do direito. O que não é interdisciplinar é pensar que é suficiente acrescentar a verdade psicanalítica a cada disciplina para estar à altura da nossa tarefa.

2. Os limites de acrescentar a verdade edípica.

Não é suficiente simplesmente recordar que a avaliação correta das dificuldades da criança deve levar em conta as dificuldades familiares, não só na realidade, mais também no nível da verdade fantasmática edípica.

A verdade é, neste registro, irmã da impotência. Na gravidez quando estranhas demandas de adopção são propostas, na constatação dos maus tratos ou nos abusos sexuais, o contexto familiar está no limite do que pode se chamar de família – pelo menos na definição tomista habitualmente considerada como natural.

A perspectiva tomista, reduzida a seu aspecto mecânico, volta a considerar a família como a instituição mediadora que pode educar uma criança de acordo as normas de uma época. Esta instituição reduz-se cada vez mais a uma propriedade da classe média. Seja qual for a configuração da família, da tradicional à multidivorciada, passando pela monoparental, todas elas encontram apoios e suportes psicológicos e sociais para cumprir sua função. As disfunções que tem lugar dentro destas configurações, podem se apoiar mais facilmente em uma abordagem terapêutica inspirada pela psicanálise.

Porém, esta abordagem deixa fora do caminho os grupos humanos nos quais o tratamento social se apoia na segregação e não na mediação. Os fenômenos de violência que se apresentam não se sustentam mais no cuidado psicológico individual ou na vontade de fazer acreditar na existência de uma família ali onde ela não existe. Como se orientar diante destes fenômenos de gozo mau (mauvaise jouissance) que surgem nestas margens?

3. A ética da psicanálise

Ao querer regulamentar tudo nos limites da razão familiar ou edípica, corremos o risco de ficar submersos no familiarismo delirante. Isto não nos alivia do fato de que devemos nos orientar pelas questões do gozo, por piores que sejam, a partir da ética da nossa prática.

O ponto de vista moral sobre as questões do “mal-gozar” que implicam à criança não nos satisfaz, como nos maus-tratos que ela pode sofrer ou as violências que ela pode infringir aos outros. Por outro lado, isto não implica irresponsabilidade. Podemos lembrar que isso se manifesta sob a máscara da permissividade ou da repressão cega. O supereu também se apresenta sob essas duas vertentes e empuxa o sujeito a uma ou outra via em direção à catástrofe. Precisamos favorecer o despertar à responsabilidade do gozo que retorna a cada um, das proibições universais que outros enunciam.

O estado moderno busca instituições as quais delegar as responsabilidades e para aliviar os custos institucionais. Não se trata de dar crédito às tentativas de restauração das figuras de autoridade que se consideram mais ou menos dignas de serem seus depositários. Também não vemos porquê nos opor às reflexões contemporâneas sobre os limites da permissividade. Então, nada de universais aí, trata-se de uma ação que cuide das velhas luas e dos novos ídolos. Uma vontade de uma pesquisa precisa, para além dos preconceitos, e especialmente necessária nos espaços onde as questões do gozo estão em primeiro plano.

Nossa ação jamais é uma ação em massa, e não se localiza no nível sociológico. Isso não quer dizer simplesmente que a nós nos corresponde o caso a caso, pois chegamos a enunciar princípios. Pelo contrário, isso quer dizer que é necessário fazer obstáculo a uma vontade de aplicação mecânica da norma e poder levar em conta a dimensão subjetiva na qual ela faz exceção, que ela ultrapassa a norma, mesmo que seja a do direito. Devemos encontrar a maneira de traduzir o saber clínico no nível da norma.

Para concluir, o CIEN pode ajudar a produzir as ficções do direito concernentes à criança e que melhor convenham aos terríveis problemas que enfrentam. O CIEN não pode produzi-las. Deve se informar dos lugares de gozo (assim como há lugares de memória), se aproximando a outros que precisam desta invenção.

As mudanças das populações, que implica o regime segregativo na nossa civilização, nos forçam a saber que sempre serão necessárias invenções e ficções. A psicanálise pode ajudar a escolhê-las melhor e a inventá-las, se desembaraçando dos preconceitos do velho e, ao mesmo tempo, sabendo que o novo seguramente não se confunde com o possível. É necessário saber antecipar o impossível para evitar os golpes.

Tradução do espanhol: Nohemí Brown
Revisão: Paola Salinas

NT: Da expressão em francês, traduzida literalmente ao espanhol: “Vieilles lunes”. Significa ideias antiquadas, o que junto a expressão “novos ídolos” sugere tratar-se de ideais antigas disfarçadas de novas opções.
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Entrevista com Beatriz Udenio Cien Digital, Julho de 2017

by cien_digital in Cien digital #21, ENTREvista

Imagem: Mehmet Ali Uysal

por Síglia Leão

Cien Digital: “Os laços sociais e suas transformações” é o tema da próxima Jornada Internacional do CIEN. Você poderia nos contar um pouco sobre a escolha desse tema?

Beatriz Udenio: Claro que sim. Voltamos à questão dos laços sociais uma década depois de ter tratado do tema em uma jornada do CIEN sobre “O porvir dos laços sociais”. Desde então, até os dias de hoje, as novas formas de comunicação, os meios, os jogos virtuais, os dispositivos móveis e as redes, merecem uma nova e profícua conversação acerca das consequências de tudo isso sobre a palavra, os corpos e a situação atual das crianças e adolescentes.

É o que tentamos apresentar como questões a serem compartilhadas na Conversação de setembro, a partir do Argumento elaborado para a jornada.

Cien Digital: Em relação ao formato dessa Jornada, há algo de novo quando se pensa em uma “Conversação Internacional Americana”?

Beatriz Udenio: Há algo novo ao colocar diretamente no título da jornada a palavra Conversação. Isto implica que o dispositivo da conversação é o que sustenta toda a jornada de intercâmbio. É dar legitimidade aquilo que vem sendo feito há muitos anos no CIEN.

Vocês no Brasil tem sustentado várias conversações do CIEN. O que chamamos Conversação? Qual é o seu segredo? No Campo Freudiano, as conversações propõem um debate sobre questões centrais e candentes do campo da experiência. Isto se realiza durante um tempo delimitado, o tempo que dura a conversação, sem ideias pré-concebidas, deixando-se ser surpreendidos pelo novo que pode surgir desse intercâmbio, e concluindo com a possibilidade de recolher alguns pontos discretos de saber que emergem do trabalho entre vários.

Além disso, o título enfatiza que se trata da comunidade ligada ao CIEN fundamentalmente na América Latina.

Cien Digital: Considerando que você está no CIEN desde a sua fundação, o que poderia nos dizer sobre a trajetória do CIEN e sobre sua importância para o Campo Freudiano hoje?

Beatriz Udenio: É uma pergunta muito oportuna essa que vocês formulam, considerando os movimentos mais recentes propostos por Jacques-Alain Miller ao conjunto do Campo Freudiano, sob a ideia da “movida” – me refiro à “A movida Zadig”.

Atrevo-me a dizer que, no enquadre do CIEN – criado por Miller em Buenos Aires, em julho de 1996- a orientação de abrir a intervenção da psicanálise nas questões sociais, sobretudo as referidas à situação das crianças e adolescentes nos diferentes discursos que os atravessam, representou e continua representando uma movida para a extensão, assim a psicanálise tem se engajado e se engaja em questões das políticas que sustentam as mais variadas instituições públicas e privadas, as quais recebem crianças e adolescentes cotidianamente.

Como dizia Juan Carlos Indart nas pontuações e perspectivas, por ocasião do encerramento da Jornada de 2013 “Me inclui fora dessa”: “no CIEN não se trata somente de expressar nossas ideias sobre o mal estar na cultura, publicá-las e difundi-las, mas também incluir-se nos discursos da época, de uma certa maneira”.

Essa certa maneira é a que Miller chamou em determinado momento de “extimidade”. É esta extimidade, que consegue esburacar, quando consegue, o modo discursivo mais atual, burocrático, aquele das etiquetas e avaliações.

E é a partir disso, que os trabalhos do CIEN se transformam em caixas de surpresa: ao incluir-se, a partir de fora, nesses discursos dominantes, dando lugar à surpresa.

Cien Digital: Em alguns momentos, aparecem casos clínicos nas conversações dos laboratórios do CIEN. Há um lugar para eles nesse contexto? Quando e de que modo poderiam, esses casos, trazer contribuições?

Beatriz Udenio: Este é um tema que convém elucidar. Desde o início, as experiências do CIEN se orientaram em trabalhar sobre o que acontecia com profissionais que recebiam as crianças e adolescentes e que não eram psicanalistas. A prática analítica –Judith Miller insistiu sempre nisso- é deixada ao lado em nossas investigações. A rigor, a bem da verdade, isso não se modificou.
É certo que, em algumas ocasiões, em alguns laboratórios, foi abordado o efeito do trabalho interdisciplinar a partir da localização da leitura feita das vicissitudes de uma criança ou jovem por algum psicólogo em formação, mas só quando envolvia outros profissionais que se ocupavam da criança. Se ocorreu dessa forma é porque nesse trabalho de laboratório, tal psicólogo ou psicóloga pôde ser mais sensível à singularidade dessa ou daquela criança, ou seja, ao que é próprio a cada um –como assinalou Éric Laurent em sua intervenção durante a Jornada do CIEN “Me inclui fora dessa”. Alguém que soube fazer com essa ou aquela criança ou adolescente, para além do seu saber disciplinar. Mas, certamente são razões inconscientes que fazem com que seja esta pessoa, e não qualquer uma, a que consegue fazer com que um sujeito se sinta, como alguém único, ou seja, como um caso de exceção. Assim – dizia Éric Laurent – no CIEN passamos do regime da proibição ao regime da exceção: cada um como exceção.

Mas, volto a sublinhar que o fundamento dos laboratórios do CIEN se constitui a partir do efeito que se constata nos profissionais de outras disciplinas, que se servem daquilo que a psicanálise pode aportar para proteger, estar atentos e sustentar o lugar, não avaliável de cada sujeito e suas soluções, como único e incomparável.

Cien Digital: Como AE, você poderia nos dizer sobre o lugar que teve e tem o CIEN na sua permanente formação analítica?

Beatriz Udenio: Fiz um desdobramento de algo disto na apresentação que realizei durante a Jornada do CIEN “Crianças saturadas”, que ocorreu em São Paulo, em setembro de 2015. Falei ali sobre “encontrar meu traço de exceção”. Trata-se de uma dialética: como encontrei o CIEN no ano de 1996 e como desde então, o CIEN foi acompanhando não somente minha formação, mas também os avanços e meus achados na própria análise.

Refiro-me ao modo como fui captando cada vez mais claramente o porquê do meu gosto pelo trabalho inter-disciplinar, em relação com a montagem da minha solução sinthomática.
Também sublinhei que quando escolhemos a psicanálise para transitá-la como analisantes, como também para fazer dela uma prática, esse traço próprio, único, está ali para ser despojado dos sentidos neuróticos para que se torne útil, uma ferramenta de vida.

Para mim foi assim. Para isto contribuíram minha chegada ao mundo em um “inter-línguas”, de línguas diversas, onde foi preciso tramitar aquilo que experimentava como um “fora de lugar” até fazer-me um lugar com esse “inter” mesmo. Assim foi tomando forma meu gosto por andar daqui para lá, entre diferentes grupos. E quando encontrei o CIEN, tudo aquilo ressoava em mim, repercutindo no que eu mesma havia experimentado e que a análise havia me permitido construir como modo instrumental de fazer com isso, dialogando com outros, com aqueles mais outros que os da própria paróquia.

Trata-se de um modo de fazer com o êxtimo. Por isso, “Me incluo fora dessa”, a frase daquele adolescente que participou de um laboratório de Belo Horizonte, ao qual Fernanda Otoni se referiu em 2013, me capturou desde o princípio, até o ponto de propô-la como título para a Jornada daquele ano.

Permite dar lugar ao modo que cada um –profissional, criança, adolescente- pode encontrar um lugar para situar-se nas bordas daquilo que, em ocasiões, se vive como algo insuportável.
Este traço (des)localizador, afinado na análise, define meu modo de localizar-me naquilo que Lacan denominou como nó entre a extensão e a intensão da psicanálise, espécie de localização topológica, êxtima, que determina minhas escolhas de experiência institucional e como isso se inscreve em meu sinthoma.

Tradução: Paola Salinas
Revisão: Glacy Gorski

 


Nota: Os textos mencionados de Juan Carlos Indart e Éric Laurent estão publicados em espanhol no “Cuadernos del CIEN N° 7”, Buenos Aires, 2014. O texto “Encontrar mi rasgo de excepción”, está publicado na revista EL NIÑO 14, Grama ediciones, Buenos Aires, 2016.
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As Instituições de Acolhimento e o singular da criança e do adolescente

by cien_digital in Cien digital #21, LABOR|a|tórios

Imagem: Lake Dissapointment 2007 – Clifford Brooks

“As instituições de acolhimento de crianças e adolescentes” é o tema que anima a Conversação do laboratório O saber da Criança em Campinas. O tema surgiu a partir dos vários questionamentos trazidos por profissionais que trabalham com crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. Em um dos encontros, chegou-se ao seguinte impasse: Depois da destituição familiar, o que vem? A instituição de acolhimento é família ou não é?

As instituições e os direitos da criança: um pequeno histórico

Nas primeiras décadas do Brasil império a legislação que fazia menção a infância girava em torno da preocupação com o recolhimento de crianças órfãs e abandonadas, estando amplamente ligada à ideologia cristã de caráter assistencial, amparando tais crianças. Isso revela que desde a “roda dos Expostos” colocada nos conventos para receber crianças abandonadas, a administração das instituições asilares estava a cargo da Igreja com o aval do Estado.

Na passagem do Império à República, os juristas sinalizaram a necessidade de criar uma legislação especial voltada para os menores de idade. Era uma das marcas da República: a urgência de intervir, educando ou corrigindo “os menores”, para que estes se transformassem em indivíduos úteis e produtivos para o país, assegurando a organização moral da sociedade.

Até a consolidação do Código de Menores, em 1927, muito se debateu sobre a infância abandonada, a infância criminosa, crianças vadias, ociosas e perdidas que prejudicavam o futuro da sociedade. Em seu artigo primeiro, o código de menores estabelecia que: “O menor de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código”. O Código, extremamente minucioso, tinha como objetivo a resolução dos problemas dos menores através dos mecanismos de tutela, guarda, vigilância, educação, preservação e reforma.

Só podemos falar de fato de garantia de direitos na Constituição de 1988, sob a forma do Artigo 227 que manda assegurar, com absoluta prioridade, os direitos das crianças e adolescentes, incumbindo desse dever a família, a sociedade e o Estado, aos quais cabe igualmente protegê-las contra qualquer forma de abuso. Foi com a promulgação do ECA que crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos de direito, em peculiar condição de desenvolvimento e o encaminhamento para serviços de acolhimento passou a ser concebido como medida protetiva, de caráter excepcional e provisório (art.101). O Eca assegura, ainda, o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, prioritariamente na família de origem e, excepcionalmente, em família substituta.

Nesta direção, também é previsto que o serviço de acolhimento de crianças e adolescentes deva ter aspecto semelhante ao de uma residência, estar inserido na comunidade em áreas residenciais, oferecendo ambiente acolhedor e condições institucionais para o atendimento com padrões de dignidade. Deve ainda ofertar atendimento personalizado e em pequenos grupos e favorecer o convívio familiar e comunitário das crianças e adolescentes atendidos, bem como a utilização dos equipamentos e serviços disponíveis na comunidade local.

Uma pergunta surge no laboratório: o que significa garantia de direitos?

Entre o direito da criança acolhida e sua instituição de cuidado, há o que se estabelece pelo judiciário, que de alguma forma normatiza o que é estar o mais próximo possível da vida social e comunitária. Para garantir os direitos da criança, uma hierarquia é estabelecida, e a própria instituição – “a casa” – isto é, as pessoas que nela habitam (trabalhadores e moradores), precisam responder àquilo que o Estado pede, financeira e judicialmente, e ao que a organização gestora preconiza. Para tanto, faz-se necessário estabelecer formas e métodos de trabalho que muitas vezes pedem uma padronização do cotidiano devido ao número de crianças e às rotinas de cada uma delas. Desse modo, a regra aparece como “norteadora” de um bom funcionamento da instituição. Segue-se ali o conceito de igualdade, ou seja, a regra é a mesma e não pode depender da situação, pois a não aplicação da regra para um sujeito resulta em um sentimento de injustiça para os outros, logo: a desordem, a injustiça, a instabilidade e insegurança poderiam ameaçar o grupo. Mas o que fazer com o que escapa? Pois as crianças e os adolescentes apresentam suas singularidades e muitas vezes elas aparecem como transgressoras das regras. E se acolhêssemos a singularidade? O diferente de cada um? Seria isso possível em uma instituição?
Incluir a singularidade de uma criança ou adolescente ainda é um tema delicado nas instituições de acolhimento, pois pode significar não apenas abrir a diferença no grupo de acolhidos, como emperrar o tempo institucional. Aprendemos com as instituições que há um tempo no cotidiano a ser vencido e cumprido.

Garantir o acesso a baladinhas, aniversários, “rolezinhos” com a turma sem que isso seja uma questão que esbarre no viés da proteção ainda é difícil. Quais garantias para a adolescência acontecer o mais próximo da vida social e comunitária?

Vale lembrar que se algo errado ocorre “não se cumpriu o papel da instituição”, e aceitar a diferença, primeiro passo para a inclusão do singular, significa aceitar riscos, incluindo os que a criança e o adolescente podem correr.

Durante uma conversação, foi apontado que em alguns Serviços de Acolhimento Institucional são utilizados termos como “pais e mães sociais”. Instigantes nomeações, pois abrem perguntas: o que é ser uma mãe social e um pai social? Os profissionais que nas instituições trabalham precisam ter algo de materno e/ou paterno para cuidar das crianças? A conversação no laboratório girou até o ponto de localizarmos que seria necessário a presença de um afeto, um interesse afetuoso de um adulto por aquela criança, nas palavras que surgiram das disciplinas presentes no laboratório.
Para refletirmos sobre essas questões, recorremos a um trecho do argumento do VIII ENAPOL que esquentou a conversa: “Tendo em vista os encontros e desencontros causados pelos deslizamentos do desejo humano, o laço social encontra na família um referente necessário a partir do qual homens e mulheres se tornam mães, pais e filhos – com suas desinências – para fixar, baseados nele e em seus corpos, as versões singulares do mal-entendido entre os sexos, pautados nas respostas de suas fantasias inconscientes” .

Como isto se dá em uma instituição? Questão que surge, à medida em que existem tanto os bebês que crescem institucionalizados como crianças que chegam em diferentes idades e já com um percurso na vida. Como levar em conta o que a criança traz de sua vivência familiar antes da destituição e o que fazer quando esta precisa re-significar toda sua história, agora em uma instituição?
É na família que a criança constrói seu modo de estar no mundo e é pela fala dos adultos sobre ela que esta construção acontece. Ser acolhido torna a criança filho do Estado e, portanto, sujeito às normas protetivas reguladas pelo judiciário, proteção esta que a família, quando da destituição de seu poder, não garante mais.

Lacan, em “Nota sobre a Criança” , coloca que a família é responsável por uma transmissão “que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”. Seria esse desejo que não é anônimo então o interesse genuíno – como colocado no laboratório, um interesse afetuoso – de um adulto por um traço singular que determinada criança apresenta na instituição? E também, que “entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Embora as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio sejam com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na educação precoce, na repressão dos instintos e na aquisição da língua, legitimamente chamada materna. Através disso, ela rege os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico […]” 

E, como essa transmissão ocorre, se ocorre, na instituição? O que os adultos que nela trabalham falam sobre e para as crianças acolhidas? É preciso estar atento ao fato que a marca colocada socialmente nas crianças institucionalizadas, principalmente naquelas que estão destituídas do poder familiar e já não encontram perspectivas de serem adotadas, pode recair sempre sobre suas faltas e “aquilo que a família não deu”, o que dá corpo à massa de crianças e adolescentes sem família ou fora da norma, contribuindo para a exclusão e derrisão de possibilidades.

 


Roda dos Expostos: Cilindro de madeira colocado nos Conventos e Casas de Misericórdia para receber crianças abandonadas pela família.

Trecho do Argumento do VIII ENAPOL in: http://asuntosdefamilia.com.ar/pt/template.php?file=Argumento.html

Lacan, J. (1969). “Nota sobre a criança”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. P.369

Lacan, J. (1969). “Os complexos familiares na formação do indivíduo”. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003. P.30.
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Conversação Inter-disciplinar/CIEN-Bahia: “As (Trans) Formações no Laço Social: A Inquietante Estranheza do Gênero”

by cien_digital in Cien digital #21, LABOR|a|tórios

Imagem: Babel – Miguel Gontijo

Mônica Hage Pereira e Wilker França

Por ocasião do forte debate na cidade sobre as questões de gênero e instigados em nos deixar aprender pelos diversos discursos que giram em torno dessa temática, no dia 04 de Maio de 2017, o CIEN-Bahia, em parceria com o Núcleo de Psicanálise e Audiovisual, promoveu uma conversação inter-disciplinar sobre “As (trans) formações no laço social: a inquietante estranheza do gênero”, com a presença da médica endocrinologista Márcia Sampaio, e a psicanalista Marcela Antelo (AME/Membro AMP/EBP). Uma conversação calorosa foi composta por vários profissionais psicólogos, psicanalistas, médicos, estudantes de diversas áreas das Ciências Humanas e um grande contingente de pessoas interessadas pessoalmente no tema.

O CIEN decidido em participar dos debates de temas candentes e que tocam diretamente a população de jovens da nossa atualidade, adota como dispositivo da sua prática, a Conversação, que deverá sempre estar orientada pelo real em jogo que emerge como ponto limite do saber. O espaço vazio, como pontua Judith Miller (2007), marcado pelo traço de união do interdisciplinar, sustenta um espaço que não é de elaboração clínica, mas que se guia pelas formulações freudianas e lacanianas e dos diferentes discursos como modalidade de laço social que Lacan esclareceu em seu Seminário O Avesso da psicanálise (LACAN, 1969- 1970). Lacadée (2007) nos faz lembrar que o “O CIEN tem uma prática, deduzida dos diferentes testemunhos, que faz valer como ele trata os pontos dolorosos da vida cotidiana que o discurso corrente agrava mediante suas queixas e mesmo por seus protestos” (p. 8).

Desta vez, o tema pulsante escolhido girou em torno da questão de “gênero”, e as implicações dessa questão nas “transformações no laço social” – tema norteador do debate do CIEN em 2017. Dentre os diversos discursos, seja o do determinismo biológico ou daqueles que veem no gênero uma norma alienante que levaria o sujeito sempre à sujeição, a psicanálise vem questionar o que é ser homem e o que é ser mulher, descompletando assim, os outros discursos. Para a psicanálise, trata-se, de algo “da ordem de uma posição subjetiva, dando conta de uma certa relação com o corpo e com o Outro” (LEGUIL, 2016, p.40).

Se o gênero nos confronta com certa estranheza, é porque nos remete a uma parte íntima, impossível de dizer em termos de estereótipos, ou em termos biológicos.

A Conversação e um corpo que se transforma

Na conversação discutiu-se que o corpo biológico, herança do jogo de uma genética, não define o gênero do ponto de vista subjetivo. Contudo, no senso comum convencionou-se chamar de homem, o indivíduo que possui um pênis; e de mulher, aquele que possui uma vagina. Aliados a esses órgãos sexuais, este “homem”, ou “mulher”, apresenta-se com toda uma carga hormonal, que o ajuda a definir-se como tal, do ponto de vista da biologia.

A médica Marcia Sampaio nos apresentou vários recursos físico-químicos que a Medicina se utiliza para tentar diminuir o sofrimento daqueles indivíduos que não se “encaixam” no corpo que se tem. Discorreu sobre como se dá o processo de encaminhamento para uma cirurgia de mudança de sexo, destacando que se faz necessário um diagnóstico preciso de um profissional da saúde mental, levando em conta toda a “psicopatologia do paciente”. Destacou, ainda, a necessidade de preencher um protocolo, no qual “se exige de 6 meses a 2 anos de psicoterapia, antes que o paciente inicie o processo de mudança de sexo”.

O discurso médico-científico suscitou várias críticas dos que ali estavam, e foi acusado de ser patologizante “por colocar o sujeito em um lugar de objeto de estudo científico e tentar enquadrá-lo em etiquetas classificatórias”. O argumento utilizado foi o de que “a sexualidade humana não deve se patologizada”.

Descompletando alguns discursos que apareceram durante a Conversação, a psicanalista Marcela Antelo, enfatizou que, para a Psicanálise, corpo e organismo não se confundem e destacou que se a anatomia não é o destino, ela só nos interessa enquanto marcada pela linguagem. Em outras palavras, esse corpo biológico que temos, o nosso organismo, se tornará corpo quando for tocado pelo significante. Por sermos seres falantes, “o único lugar onde se pode ter certezas identitárias é a loucura”, nos disse Marcela. Dessa forma, ela questionou as certezas identitárias dos gêneros e afirmou que as diferenças só existem nos discursos, por isso mesmo, para o discurso psicanalítico, gênero é um fenômeno de linguagem.

Como exemplo disso, temos no Facebook americano 56 maneiras diferentes de se ter uma identidade de gênero e na rede social brasileira são 17 nomes diferentes. “Toda essa proliferação de nomes são tentativas de dar conta daquilo que já é traumático, já é um “transtorno”, para todos nós, que é a sexualidade”, diz ela. A psicanálise revela que a sexualidade humana repousa sobre uma ausência estrutural e traumática (FUENTES e ANTELO, 2017).

Na Conversação pôde-se perceber também a presença de uma forte abordagem social e política sobre a questão de gênero. Em algumas falas, foi possível perceber que o incurável impossível se apresenta como impotência principalmente quando é endereçada para o Outro.

Advertidos desse impossível sempre presente na interdisciplinaridade, os impasses vivenciados por vários indivíduos e profissionais diante dessas transformações ficaram em evidência na Conversação. Um sujeito nos relatou uma de suas vivências: Pedro (nome fictício) que se denomina transexual masculino, ao ir a uma consulta de rotina foi questionado pela secretária: “Como assim Pedro? O que um homem vem fazer em uma ginecologista?”

Nesse sentido, Leguil (2016) nos esclarece quando coloca que o gênero para a psicanálise excede toda norma comportamental e afirma que:

“O gênero lacaniano é, portanto, inicialmente, um modo de ser que excede toda norma comportamental. Ele remete a uma certa maneira de assumir, como sujeito, o significante homem ou o significante mulher, e até mesmo ser ultrapassado por aquilo ao qual remete a esse significante, decorrendo de uma outra cena que não a da consciência. Mesmo que haja jogo de gênero, esse jogo não se reduz a uma mascarada. Para além da mascarada, há um endereçamento ao Outro. E um modo singular de responder à angustia, a partir dos efeitos das palavras sobre o próprio corpo. O gênero que se tem, no que diz respeito ao Outro, ou o gênero que se é, se assentam numa interpretação ligada a uma história íntima constituída de bons e maus encontros, de desejo e de repetição, de avanços e retornos ao mesmo. Portanto, esse gênero não remete a uma natureza ou a uma convenção. (…) Trata-se de um desejo de ser ou de não ser, mas também de um gozo que põe em jogo o corpo” (p.112).

A Conversação é uma aposta

As Conversações do Cien são sempre uma aposta, incluindo o corpo, em deixar-se marcar pela diferença. Só podemos dizer que houve uma Conversação quando algo se deslocou. Ou seja, quando as palavras de um, tocaram o outro, e algo se modificou.

A partir disso, uma questão se colocou para nós do Cien: como fazer um bom uso do dispositivo da Conversação quando um impasse não está localizado previamente? Se o não saber é o que faz falar, como se dá uma Conversação quando diferentes saberes são convidados a expor, sustentando-se no discurso de mestre? Como disse Marcus André Vieira, na V Manhã de Trabalhos do Cien/Brasil, “A gente precisa se desafetar um pouquinho para poder perguntar o que está acontecendo… Quando ficamos afetados, já sabemos o que aconteceu.” Quando esses saberes encontram-se apenas para defender seu ponto de vista, a vista do ponto não permite que apareça o seu ponto de opacidade.

Os efeitos de uma Conversação, para cada um, só saberemos à posteriori.

 


Referências:
BROWN, N., MACÊDO, L. e LYRA, R. Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência. Experiências do Cien no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
FUENTES, M. J. e ANTELO, M. A Semiologia da Sexualidade. A Psicopatologia Lacaniana. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
MILLER, J. Apresentação. In.: CIEN Digital. N. 2. 2007.
LACADDE. P. A vinheta prática tal como ela se elabora no laboratório do CIEN. In.: CIEN Digital. N. 2. 2007.
LEGUIL, C. O ser e o gênero: homem/ mulher depois de Lacan. Belo Horizonte: EBP Editora, 2016.
LACAN, Jacques. Seminário 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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CIEN SANTA CATARINA Resenha – Noite do Cien de 31/05/17

by cien_digital in Cien digital #21, LABOR|a|tórios

Imagem: Cistina Sá

Jussara Jovita Souza da Rosa

Esta Noite, contou com a presença da Psicanalista e Doutora em Psicologia Adriana Rodrigues, que nos brindou com um recorte feito de sua tese de Doutorado, intitulada “A psicanálise e a política de assistência social brasileira: um diálogo possível?”

No trabalho de consolidação do Cien em Santa Catarina, o recorte em torno da psicanálise aplicada foi o que nos moveu para a realização dessa atividade, orientada pelo título: Entre o “ouro puro da análise” e o “cobre da sugestão direta”: algumas considerações sobre a psicanálise aplicada, em Freud e Lacan. Advertidos de que é para além das paredes dos consultórios que os impasses se presentificam, a conversa nos deu oportunidade de pensar ainda mais acerca da relação da psicanálise com outras disciplinas, no âmbito de Instituições, bem como os impasses que daí podem advir.

Um impasse que se apresentou às atividades do Cien em Santa Catarina se relaciona com a compreensão do que é um laboratório. Nosso laboratório em formação, o Encontro de saberes em inter-disciplinaridade com a educação, iniciou com a demanda de um Núcleo de Educação Infantil da rede municipal, no ano de 2013. No ano de 2015 a demanda de uma ONG que atende crianças e adolescentes no contra turno escolar nos levou a considerar a formação de outro laboratório, em conversa com a coordenação nacional e recebemos a orientação de trabalharmos mantendo as conversações ligadas ao laboratório já inscrito. No final do ano de 2016 e agora no ano 2017, temos recebido demandas de outras unidades escolares, que tem resultado em conversações, cujas queixas giram em torno da agitação dos corpos infantis e adolescentes das dificuldades das instituições com as famílias. Esse impasse continua em tratamento no laboratório em formação, estamos ainda no tempo de compreender o que é um laboratório, e essa resposta não será encontrada em manuais, mas com trabalho. Trabalho que tem se feito com as conversações, com as atividades abertas do Cien, com o Cine Cien, na pesquisa da interdisciplinaridade entre psicanálise-educação. Trata-se de algo a ser inventado.

A metáfora freudiana: Entre o ouro… e o cobre, é utilizada para pensar a diferença entre a psicanálise praticada no consultório, e a que se lança para fora dele, mas a rigor trata-se de uma única psicanálise com suas aplicações. No caso do Cien, há um saber que se impõe que não tem uma causalidade, nem uma exatidão, mas que como bem marcou Ana Lúcia Lutterbach Holck (2016), baseada em Miller, pode ser transmitido num esforço de poesia, pois a pesquisa do Cien precisa reverberar também na Escola, e não só nos espaços onde se fazem as conversações.

Adriana Rodrigues ressalta que Freud pensando na aplicação da psicanálise nas instituições, (FREUD, 1925), demarcou o que denominou de “pedras de espera no canteiro de obras psicanalítico”, o que estava relacionado aos seguintes aspectos: o “interesse vivo” do praticante da psicanálise; a formação do analista; a psicanálise como um discurso auxiliar; a definição de situação analítica ou da sua impossibilidade; e na impossibilidade, a criação algo diferente da análise, mas com a mesma intensão. (FREUD, 1925).

No “Ato de Fundação” ([1964] 2003), Lacan descreve a organização da sua Escola fazendo uma divisão, para fins práticos, entre três seções: Seção de Psicanálise Pura, Seção de Psicanálise Aplicada e Seção de Recenseamento do Campo Freudiano. Na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, Lacan destaca que à psicanálise em extensão cumpre a função de presentificar a psicanálise no mundo.

O Cien condensa esses aspectos, é uma “pedra de espera” e cumpre essa função de presentificar a psicanálise no mundo.

Essa presença no mundo deve ser operada de forma distinta das psicoterapias, ou seja, pela […] orientação ao real, e não à realidade – real que, […] tende a se desvelar com mais intensidade longe do divã.” (RODRIGUES, 2016)

Real que porta o impossível, mas também a invenção. Sobre o impossível e a invenção, Adriana Rodrigues nos apresenta uma consideração de Eric Laurent:

“Precisamos nos introduzir em uma tolerância com relação ao impossível, sem ceder nem à resignação, nem ao cansaço, diante de uma carreira que concerne ao impossível. Isso implica uma modéstia ativa [grifo nosso] dos políticos, dos terapeutas, dos psicanalistas, psiquiatras e de todos os que estão envolvidos nessa carreira multidisciplinar, a modéstia de como abordar este impossível em todas as suas facetas.” (LAURENT, 2011, p.61).

Uma modéstia ativa para abordar o impossível, essa elaboração de Eric Laurent, nos trouxe uma orientação significativa para a nossa interlocução com os espaços institucionais representados em nosso laboratório, nos convocando a inventos, também no que se refere ao que nos é possível em torno da formação do nosso laboratório, com a singularidade do que há construído em torno do campo freudiano em nosso espaço de presença em Santa Catarina. Não há roteiro, mas há orientação. Não há roteiro, mas há possibilidade de invenções, e nossa prática em torno do Cien, tem permitido ver que um laboratório não se constitui de forma efêmera. O importante é poder estreitar a conversa com os que se encarregam da infância e da adolescência, o que é de muito efeito para a psicanálise.

“A pergunta que o praticante da psicanálise precisa responder num trabalho em instituição é se a psicanálise pode servir para orientar os demais discursos em seus pontos de impasse, ali onde as tentativas fracassam, mas demandas se repetem e o trabalho não avança. Se for possível, não é necessário que sejam muitos os praticantes da psicanálise, mas que sejam “trabalhadores decididos”” (LACAN [1964] 2003, p.239.

Por nos trazer essa elaboração em torno da psicanálise aplicada e da psicanálise em extensão, temas que atravessam nossa prática e que precisamos trabalhar visando a consolidação do Cien em Santa Catarina, essa pesquisa trouxe no recorte levado para a conversa, grande contribuição para os “trabalhadores decididos” do Cien em Santa Catarina, num tempo em que temos sido convocados a pensar as “transformações no laço social”.
Por nos trazer essa elaboração em torno da psicanálise aplicada e da psicanálise em extensão, temas que atravessam nossa prática, se aproximam e se distanciam do trabalho nas conversações de um laboratório, e que pretendemos trabalhar visando a consolidação do Cien em Santa Catarina, essa pesquisa trouxe no recorte levado para a conversa, grande contribuição para os “trabalhadores decididos” do Cien em Santa Catarina, num tempo em que temos sido convocados a pensar as “transformações no laço social”.

 


Referências:
COTTET, Serge. Otimismo institucional. (2003). In: MILLER, Jacques-Alain. (2002-2003). Um esforço de poesia. Curso da Orientação lacaniana, aula 09, 29/jan./2003. Inédito.
HOLK, Ana Lúcia Lutterbach. Abertura da V Manhã de trabalho do Cien-Brasil. Solidão e laço na adolescência. São Paulo, 25/11/2016.
LACAN, Jacques. Ato de fundação [1964]. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LAURENT, Éric. Loucuras, sintomas e fantasias da vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.
RODRIGUES, Adriana. A psicanálise e a política de assistência social brasileira: um diálogo possível? Universidade Federal de Santa Catarina, 2016. Tese.
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O furo como um traço de união?

by cien_digital in Cien digital #21, Contribuições

Imagem: The Restless de Francis Alys E David Zwirner

Sílvia Sato

A prática do Cien

A prática do Cien – Centro Inter-disciplinar de Estudos sobre a Criança e Adolescente – nasce de uma função que Lacan propõe para sua Escola, de manter uma relação entre a psicanálise e os psicanalistas com outras disciplinas. Judith Miller localiza que o Cien se situa no Campo Freudiano, espaço que a psicanálise tem de reconquista dela mesma, assegurando sua práxis no mundo contemporâneo. E para isso, é indispensável que os psicanalistas sejam formados numa Escola de Psicanálise, tendo a intenção de se instruírem por meio das outras disciplinas e ao mesmo tempo, de educar as inteligências que se especializam nessas diversas disciplinas.

Essa dupla via encontraria na hiância entre as disciplinas, o vazio como motor necessário que opera como causa dessa prática, um não saber em torno da criança e do adolescente. É como efeito da formação como analista ao sustentar algo do discurso analítico, que um praticante da psicanálise acolhe nos laboratórios do Cien, o vazio de sentido presente na apresentação dos impasses levados para cada conversação. Como enfatiza Judith Miller , cabe ao analista sustentar no Cien “Um vazio que pode indicar o lugar de uma ausência vibrante, viva, como um coração que bate, pulsante.”

Impasse, conversação e extração

aFinarte acolhe profissionais de disciplinas e instituições diferentes, vindos de cidades distintas, numa região do interior paulista. Com essas orientações e como responsável por esse laboratóriotrago uma elaboração desses 5 anos de experiência a partir de uma situação apresentada em um dos encontros.

Raquel, professora de uma escola municipal, apresenta um impasse experimentado em sua prática educacional. Ela se inquieta diante de Renan, um menino de 6 anos, que se mostra desafiador, “não obedece aos comandos”. Diferente das outras crianças costuma chegar atrasado, não participando do momento de acolhimento na escola. Ao longo das atividades xinga, grita e chora, se opõe, negando-se a participar, dificultando o trabalho com o grupo de crianças. Numa tentativa de resolver o impasse, a professora demanda a intervenção da direção, mas entende que a direção age de maneira autoritária com o menino e a leva a concluir que seria preciso se haver sozinha com ele e com o grupo de crianças, já que não seria à essa lei autoritária que ele responderia. Com essa resposta da direção da escola, a tentativa de recorrer ao Pai da Lei não operou para tratar o impasse, o que demandou à Raquel, colocar seu próprio corpo, mantendo sua presença e inventando um fazer, para tratar a situação. Ao conversar com a mãe, conhece o contexto familiar de Renan e aponta para a realidade dele ficar um passo atrás, na medida em que está frequentemente atrasado e não é acolhido ao chegar.

Em sala, apesar de sua oposição em participar das atividades, percebe que Renan se incomoda ao ficar de fora, o que a faz separá-lo numa outra mesa na hora do lanche, de onde ele pode ver do quê fica de fora. A intervenção produz incerteza em Raquel, teme por favorecer uma exclusão, o que não a impede de manter o que Beatriz Udenio nomeou como um ato. Entendo que esse ato em alguma medida faz operar a função do Pai, enquanto lei que barra um gozo, tendo como efeito que localizasse seu desejo de estar com os colegas.

Um fato novo mas comum chama a atenção na Conversação, que é o modo desafiador que surge na oposição das crianças dessa idade. Freud, ao falar do caso do Homem dos Lobos, conta de um menino que se irrita e se mostra ansioso aos 4 anos e meio, momento em que ele já é capaz de pesquisar, querer saber sobre a sexualidade no laço com os outros e que afeta seu próprio corpo.
A oposição de crianças muito pequenas, que desafiam como adolescentes, a entrada na vida escolar no início da infância que as colocam diante da diferença desde muito cedo e com uma demanda de que se insiram numa rotina coletiva diária. Com o caso do Homem dos Lobos, Freud nos permite ler a oposição que aparece nessa idade, quando a própria criança experimenta modificações nos laços afetivos e por apresentar recurso simbólico e de pensamento, o afeto amoroso não é mais o único que pode ser endereçado, vindo acompanhado pela objeção e pela crítica. O que não acontece sem os efeitos da sexualidade infantil.

Nessa conversação, algo da surpresa diante do novo, “uma criança que não obedece aos comandos da professora” causa o impasse, que ao acolher o que fica fora da norma, ao acolher suas manifestações, a professora permite à criança se ver na cena escolar. Assim, ao separar ao invés de excluir, dá lugar ao modo de gozo implicado no atuação do menino, que ao se ver de fora pode se perguntar onde quer ficar, o que deseja. Do lado da professora, ela se questiona a respeito do laço, sobre o modo como ele se enlaça a ela e ao grupo de crianças, o que a faz pensar sobre seu fazer.

Resíduos de uma Manhã e um novo giro

Numa conversação partimos dos impasses, mas onde chegamos? Judith Miller nos orienta que cabe ao analista sustentar um lugar vazio, de ausência vibrante, mas em torno de que objeto a conversação acontece? Ao falar na Manhã do Cien, Marcus André propôs uma conversa a partir do corpo como “Um de base”, incluindo o objeto “não coisa” ou o “objeto furo”, que parte da noção de objeto a elaborada por Lacan no Seminário 10, de um objeto extraído, como efeito do laço simbólico que permite a constituição de um sujeito desejante. Numa conversação, podemos considerar que a “não coisa” dê forma a um vazio, e num giro a mais ao furo, noção que Lacan trabalhou no Seminário 23? O vazio estaria relacionado à noção do objeto perdido, que viria em substituição a outro objeto. No caso da conversação, um saber prévio que viria solucionar o impasse na medida em que fosse descoberto contando que o saber de uma das disciplinas preencheria esse vazio. Já o furo, ele dá consistência à inexistência de algo a priori, nessa medida coloca os participantes da conversação em torno de um mistério, não para ser descoberto, mas frente a uma solução que possa ser inventada, incluindo na conversação um objeto que está sempre mais além, que o conjunto dos saberes das disciplinas não abarca. O objeto furo faria assim, a superfície em torno do que se conversa, partindo do impasse. Objeto que numa conversação presentifica o vão na inter-disciplinaridade e dá ao analista a função de sustentar essa hiância, pressupondo uma diferença entre uma Conversação e outro encontro entre profissionais.

O ponto cego de cada um na conversação

Voltando à Conversação no aFinarte, podemos separar essa “não coisa” do lado de Renan e do lado de Raquel. Entre as normas e antigas tentativas de solução que fez recorrer à direção da escola, a falha no saber prévio faz um vão, entre o recurso às normas e inventar uma nova solução. A contingência da falha colocou Raquel diante da decisão sobre o que fazer diante dos gritos, choros e xingamentos de Renan, que resulta no ato de separá-lo dos demais.  Do lado de Renan, ao se ver de fora, o efeito do ato de Raquel, permite apontar para a “não-coisa” ligada ao que lhe incomodava, afetando seu corpo e se manifestando como oposição.

Nesse caso a Conversação girou em torno do ponto cego que, mesmo após a intervenção, sustentava uma incerteza em Raquel: por um lado se não estaria favorecendo uma exclusão, ao colocá-lo em outra mesa separando-o dos colegas, por outro lado, um não saber sobre a causa da oposição de Renan. Pode-se verificar que não saber sobre a causa em questão para Renan, não impediu seu ato em torno do que entendo, foi o objeto furo. Seu ato permite a Renan poder dizer de seu desejo, não sem a presença de Raquel que lhe pergunta se quer entrar no grupo de crianças.
O que nos leva à noção de infans, como aquele que não fala, que “não tem seu objeto construído de entrara”, como menciona Bassols e diante de um corte, efeito do ato de Raquel coloca-o diante de uma alteridade que presentifica o objeto olhar. Ele pode se olhar de fora do grupo de crianças. Nesse tempo, já não se trata do furo, mas do objeto a enquanto véu do vazio, já inscrito numa operação simbólica, faltosa. É o que permite a Renan, diante da pergunta de Raquel, falar de seu desejo, não mais pela atuação, mas como falasser.

O objeto furo na conversação

O ato de falar sobre seu impasse, com os comentários dos outros participantes do laboratório, permite clarear o objeto em torno do que a situação com Renan produziu seu impasse. Ao girar em torno do objeto furo, mantém ao final algo do impasse ainda como um mistério, algo por saber, Raquel se pergunta como ficará Renan, já que vai mudar de escola?

Essa conversação nos ensinou que não se trata de saber de tudo para poder operar e nem sempre é possível nomear o que causa, mas sim, um objeto em torno do qual ela acontece. Por outro lado, a “não coisa” localiza o que do humano não funciona, aquilo que nos termos psicanalíticos, falha e faz sintoma, e não somente a falta que seria suprida pelo Outro. É nessa medida que aponta para o furo em relação a um possível saber prévio que se possa ter diante de um impasse. Talvez possamos dizer que uma Conversação acontece em torno do impossível da relação, apontando para a hiância, onde é na contingência de cada encontro, com a inter-disciplinaridade, a diversidade de saberes, que com o que se apresenta na fala de cada participante, por vezes, pode se inventar uma solução.

Nessa medida, é considerando a psicanalise como avesso à norma e sustentando esse modo de conversa em torno do objeto furo, que me pergunto se um furo pode se fazer um traço de união, que particulariza uma Conversação do Cien?

Responsável pelo aFinarte, laboratório do Cien/SP, membro da EBP/AMP, junto com Cláudia Reis, associada do Clin-a. Participam do laboratório: Denise Gasparotti, Ana Celeste Pitiá, Sabrina Marioto, Dayana Coelho, Raquel Astragalli e Silmara Bastos Dias.

idem

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Udenio, B.: comentário feito na Atividade do Cien/SP: “Novas configurações familiares: respostas das crianças e dos adolescentes”, 17/05/2017.

Vieria, MA: fala realizada na conversação da V Manhã do Cien –Solidão e Laço na Adolescência, SP, 25 de novembro de 2016, publicado in: Brown. N.; Macedo, L.; Lira, R (org.) Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do Cien no Brasil, Belo Horizonte, EBP Ed., 2017. 398 e 409

Bassols, M: Trauma e Real, o que as crianças inventam, in Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência, experiência do Cien no Brasil, org.: Brown,N; Macêdo, L.; Lyra, R., BH Ed. 2017.
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Uma prática na escola – Efeitos do encontro com o CIEN

by cien_digital in Cien digital #21, Ponto de Vista

Imagem: Alighiero Boetti

Mirta Fernandes

O encontro com o CIEN permitiu situar e nomear uma questão que rondava um trabalho de psicanalise aplicada, que vem sendo desenvolvido há alguns anos em uma instituição de ensino, Escola Alfa, a partir de demandas de palestras e grupos de conversa com alunos, professores, coordenadores e pessoal de apoio.

O ponto estrutural dessa prática com a equipe escolar orientou-se, desde o início, pela criação de um espaço de fala, escuta e reflexão acerca das angústias, dos impasses e questões que comparecem no processo de educação, envolvendo as relações entre pais/escola/alunos/professores, coordenadores e todos os outros profissionais que compõem o espaço escolar, incluindo o setor administrativo.

Não se tratava de ensinar psicanalise aos professores, mas evidenciar na prática educacional o processo de constituição de uma subjetividade e a função do professor como elemento fundamental nesse processo. Elemento externo à família, que pode dar lugar a novas formas de vínculos a partir de enlaçamentos diferentes daqueles dos padrões familiares.

Ao participar das reuniões mensais do CIEN e do laboratório “diga aí escola” (2016), o significante “conversação” interroga a analista. Como se distingue uma “conversação” de uma supervisão, de uma interpretação, de uma intervenção orientadora ou de uma transmissão de conceitos de uma disciplina para outra? Qual o lugar do psicanalista nesses encontros?

A escola em questão esperava da psicanalista uma resposta ou a psicanalista se colocava numa posição de saber, de orientadora? De que orientação se tratava? A introdução dos conceitos teóricos da prática da psicanálise na clínica pode ocorrer nesse espaço? Questões que já se formulavam e que encontraram eco e interlocução a partir desse encontro com o CIEN.

A interrogação que o significante “conversação” provocou produziu uma maior atenção nas intervenções, evitando que comparecessem os saberes universais, soluções, e que se sustentasse um ponto de enigma. Um ponto de opacidade, de incógnita, que ao circular permitisse e provocasse, em cada um, questões, dúvidas, podendo dar lugar a invenções singulares.

O recorte a seguir refere-se a um dos encontros onde compareceram queixas a respeito de uma turma do ensino fundamental 2. O que incomodava a todos, professores e coordenadores, era uma separação da turma em pequenos grupos que se segregavam entre si, criando um clima hostil que impedia o convívio e o processo de ensino. Não sabiam o que fazer.

Surge, durante uma reunião com a direção e coordenação pedagógica, a proposta de algumas “reuniões com a turma, nos moldes da reunião da coordenação”, ou seja, de uma conversa livre com a psicanalista e a professora coordenadora do segmento, de forma que escutassem e dessem um lugar à fala desses jovens.

Apresentada a proposta à turma, surgem inicialmente os “porquês” dos encontros, e a resposta vem dos próprios alunos trazendo questões que os incomodavam. Não era o processo de segregação apontado pelos profissionais que os incomodava. Os grupos que se constituíram na turma se comunicavam através de grupos privados no whatsapp.

Queixavam-se de uma menina em particular, Maria, como pivô dos problemas de relacionamento na turma e referiam-se ao fato de Maria mandar cartas e mensagens individuais no whatsapp. Nessas mensagens, Maria se desculpava por sua atitude de acusar os colegas, queixando-se de estar sendo rejeitada e prometia não mandar mais cartas. Essas cartas e bilhetes, no entanto, não cessavam. Interrogados sobre o que os incomodava, cada um responde de uma forma. Na medida em que cada um fala por si, surgem as posições individuais, diferenciando-se dos blocos que constituíam nos grupos de whatsapp.

Da posição que Maria se colocava, excluída e vítima, os colegas interrogam se não seria ela mesma que se excluía com sua atitude. Maria mente, inventando situações como, por exemplo, a de que a mãe está com câncer. Ana Clara diz que ela é um “empecilho”. Rayane a acolhia, era muito amiga, mas um dia Maria mandou uma carta, acusando-a de não ser sua amiga, e Rayane deixou de falar com Maria. Desde então, começaram as cartas de desculpa por seu comportamento agressivo, que não se modificava.

Convocam Maria a falar, já que se mantinha calada todo o tempo. Maria, com dificuldade, fala de sua história de vida, de ter vivido em abrigo, sofrido muito em outra escola, sendo discriminada por sua origem e cor de pele, negra. Faz menção ao incidente que deu início a essas cartas, e diz: “as cartas são uma maneira em que eu me sinto bem. Tenho medo de magoar as pessoas, assim eu escrevo” (…) “Eu não consigo parar de mentir…eu não controlo isso” (…) “Na outra escola eu precisava mentir para ser aceita… sofria bullyng”.

Após a fala de Maria, surgem queixas de Lucas, indicando que ele seria um outro excluído na turma. Sempre que se formavam grupos de trabalho, Lucas e Maria ficavam sem grupo.
A coordenadora que participava do encontro tomou para si, sem combinação prévia, a incumbência de anotar a reunião. A partir de suas anotações, recorto as intervenções da psicanalista:
Em que situação a turma se vê excluindo Maria e Lucas?

Felipe responde: “Maria tenta se enturmar escrevendo cartinhas e Lucas ri de tudo e não fala de seu desconforto. Lucas chamou uma menina de vadia e depois disse que não sabia o isso significava.”

Alguns tomam a posição de defender Maria e outros, Lucas, buscando justificar suas atitudes, apelando para uma verdade sobre as situações, sobre as falas de cada um, sobre os fatos. Também insistem que Maria fica usando sua história pessoal para justificar tudo, e Lucas se faz de bobo, como se não soubesse de nada, fingindo inocência.

“Não há uma história verdadeira… cada um tem sua própria versão sobre o que acontece…”, diz a psicanalista Ana Clara insiste em que Maria o tempo todo fica falando e revivendo sua história no abrigo.

“Todos temos nossas fragilidades…e será que não pensamos todos a partir de nossas histórias?”- nova fala da psicanalista ao final do encontro.

Num segundo encontro, relatam alguma mudança em relação a Maria. Mudaram também os lugares onde se sentavam, misturando-se entre si. Começaram a aparecer queixas em relação a outros colegas e situações em que uns incomodavam aos outros.

Esses encontros sustentaram um espaço de interrogação, um espaço de fala e de escuta de cada um, permitindo que a fragilidade de Maria fosse vista e respeitada como sua diferença e deslocando o “mal” concentrado em um sujeito para todos. Como cada um lida com o seu próprio “mal”? Dessa forma, Maria pode se perguntar sobre sua certeza de ser rejeitada, o que a atormentava, e alguns puderam falar de sentimentos recíprocos.

A posição da analista, orientada pelo dispositivo da conversação, promove uma circulação das falas individuais pelo espaço comum. Mais além do mal entendido da comunicação, a conversação convoca uma associação livre entre vários. Fala que pode ser acolhida como a manifestação de um pensamento singular que pode ou não enlaçar-se a outros. Não se trata de uma identificação de um com um outro semelhante, mas com a incógnita que o outro é para cada um e a própria incógnita que cada um é para si mesmo.

A conversação se distingue de uma intervenção clínica na medida em que não visa interpretar o sujeito. As intervenções comparecem como interrogações, visando um deslocamento das identificações, dos efeitos grupais que aprisionam o sujeito. Tal experiência de trabalho, trouxe-me como questão a posição do analista nas conversações. Poderíamos aproximá-la a do mais-um no dispositivo do cartel? Operar uma possibilidade de trabalho entre vários, a partir de um vazio de saber, permitindo a cada um, no encontro com o outro, conduzir sua questão a partir de sua singularidade.

O dispositivo da conversação evidenciou, como efeito dessa experiência, como cada um pode se localizar a partir de um impasse que se apresentou e dar algum tratamento ao seu mal-estar no convívio com os outros.

Também nas reuniões de coordenação, a dinâmica das reuniões sofre o efeito da experiência no laboratório do CIEN. Os professores passaram a suportar a interrogação de seu lugar de saber, desobrigaram-se de responder e garantir verdades inquestionáveis. Esse imperativo pôde cair e então comparecer o reconhecimento de um saber singular, da criança, do jovem, do professor, dos pais, em cada um dos envolvidos na difícil tarefa de educar. A partir de março de 2017 a Diretora pedagógica e as coordenadoras do fundamental 1 e 2 passaram a participar do laboratório “diga aí escola”.

A transmissão de um ensino se dá ao abrir espaço para um desejo de saber e criação de novos saberes. O “não saber” pode comparecer sem representar uma ameaça à autoridade e ao saber de cada professor e cabe ao psicanalista sustentar com sua presença os desdobramentos e as surpresas que surgem desse encontro.

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