ISSN 2178-499X
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Sobre qual humanidade falamos?

by cien_digital in Cien Digital #25, Cine Cien

Imagem retirada no filme “Meu nome é Ray”.

Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR[1] – Karina Veiga Mottin[2] e Willie Anne Martins da Silva Provin[3]

Diante do impasse que encontramos, do que qualifica o sujeito enquanto humanidade e tendo como horizonte a restituição do lugar do saber autêntico da criança, o Laboratório Ciranda de Conversa (CIEN/PR) propôs a conversação sobre o filme Meu nome é Ray[4] através da realização de uma atividade Cine-CIEN on-line, na noite de 19 de novembro de 2020, tendo como convidada a psicanalista Flavia Cêra[5].

Tendo como base as reflexões levantadas por Daniel Roy em seu texto “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”[6], a conversação possibilitou a reflexão conjunta entre os profissionais das diversas áreas presentes acerca da diferença sexual no espaço escolar. A conversação mostrou a importância de estarmos atentas (os) ao que as crianças sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito e do que podem ou não podem saber. Foi possível identificar as diversas formas com que a escola, enquanto instituição consolidada que é, reproduz e mantém seus valores e como isso influencia e norteia as próprias discussões e reflexões a respeito da diferença sexual dentro de seus muros. Os participantes refletiram sobre a questão de como a escola é um espaço de disputa entre os valores hegemônicos existentes. Algo entre o incômodo de educadores em trazer para o cotidiano escolar a reflexão acerca dos direitos humanos em uma perspectiva ampla, e o saber médico como uma poderosa instituição utilizada para legitimar a violência ou o que se denomina como império do biológico.

A imagem deste artigo é referente à cena que se passa logo no início do filme. Ray, um adolescente trans que vive à espera de que seus pais assinem os papéis que o autorizarão a começar o tratamento hormonal para a transição de gênero, está na escola e entre uma aula e outra, precisa ir ao banheiro. Ele pede aos amigos que avisem a professora de matemática que ele chegará atrasado na aula, sai andando com pressa pelos corredores da escola e no caminho passa em frente ao banheiro. De um lado uma placa com uma mulher desenhada, do outro, o desenho de um homem, e no meio um cartaz mostra o que parece ser a sombra de um casal com uma criança, com a legenda “CONSERVE HUMANITY”. Ray segue seu caminho, sai da escola, atravessa a rua e vai até um café usar o banheiro. O que tem esta imagem e o que ela nos diz? Os símbolos que esta cena evoca foram resgatados no debate deste filme. Além da violência simbólica sofrida por Ray, devido ao fato de não conseguir usar nenhum dos banheiros da escola, o cartaz ali fixado levanta a questão dos supostos riscos que a “humanidade” estaria correndo quando as normas de gênero são questionadas.

A teoria da filósofa Judith Butler[7], que já havia sido debatida em momentos anteriores pelo grupo, também nos serviu como base para refletirmos de que forma as normas de gênero, que são impostas à sociedade como “naturais”, provocam a exclusão de corpos que não se conformam ao sistema heteronormativo. Mais ainda, o próprio estatuto de humanidade é colocado em cheque quando não há identificação ao binômio masculino/feminino. Butler ressalta que a noção de “pessoa” e de “humano” no Ocidente é constituída por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, que por sua vez são construídos discursivamente por relações de poder. Nesse sentido, não se encaixar naquilo que é definido como “homem” ou como “mulher” significaria estar à margem da humanidade ou mesmo destruir as bases daquilo que se acredita ser a sua fundação – a saber, o sistema binário de gênero. Enfatizou-se que a noção de performatividade introduzida por Butler permite trazer diferentes sujeitos e realidades, antes apagados pela matriz heterossexual para o campo do inteligível. Portanto, a questão do enfrentamento da exclusão, como esta retratada na cena citada, é um ponto central na teoria de Butler.

Durante a conversação, discutiu-se como a escola, fechada em si em grande parte de sua existência, quase nunca possibilita espaços de escuta nem de conversa. Isso faz com que a palavra não circule dentro do espaço escolar, resultando num grande sufocamento das emoções. Contra isso, crianças e adolescentes precisam ser percebidos como aqueles que entram no discurso analítico como seres de saber e não somente como seres de gozo. Seus saberes devem ser respeitados como aqueles de sujeitos em pleno exercício, pois eles são sujeitos em pleno exercício e não sujeitos a vir [8], como ocorre aos olhos da pedagogia. Sem considerar isso, ao longo da história, determinados grupos sociais construíram diversos modos de conceber o tempo e o espaço na escola. É possível verificar as marcas da escolarização, inscritas nos corpos dos sujeitos e como elas são feitas por meio de mecanismos discretos e múltiplos, atuantes nas práticas rotineiras e comuns no ambiente escolar. Dessa forma, todos os sentidos são treinados e os corpos são escolarizados, em um processo sutil e continuado.

Para que possa haver o movimento contrário a este é importante observar a construção da diferença no espaço escolar, compreendendo como é poderosa a sua forma de propagação na sociedade, sendo a escola um dos seus alicerces. Perceber os meios pelos quais se constrói essa diferença é reconhecer a existência das relações de poder dentro da escola e os motivos pelos quais os sujeitos e seus corpos são fabricados, por meio de relações de desigualdades. Dessa forma, conscientes desse funcionamento escolar, é possível unir forças e meios para a desconstrução deste modelo vigente, comprometido com a manutenção da divisão social. Só então será possível trabalhar e interferir para a sua transformação e a sua subversão. É nessa brecha do espaço escolar que o Laboratório Ciranda de Conversa busca discutir, junto aos educadores, a singularidade e a dignidade de cada sujeito.


[1] O Laboratório Ciranda de Conversa-CIEN Paraná realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. Souza, Idavir Trebien, Karina Veiga (Animadora do Cine CIEN/ “Meu nome é Ray”), Niura Kiame, Paula Butture, Stephanie Gorte, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Tânia Verona, Willie Anne Provin (animadora do Cine CIEN/ “Meu nome é Ray”).
[2] Professora, doutoranda em Educação pela UFPR. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa/CIENPR. Animadora do Cine CIEN/ Meu nome é Ray.
[3] Arte-educadora na SEEDPR desde 2005; Mestre em Educação, PUCPR (2017). Participante do Laboratório Ciranda de Conversa/CIENPR. Animadora do Cine CIEN/ Meu nome é Ray.
[4] Drama americano dirigido por Gaby Dellal. Elenco Elle Fanning, Naomi Watts, Susan Sarandon e Linda Emond (EUA, 2015).
[5] Psicanalista (EBP/AMP). Atual coordenadora da comissão do CIEN Brasil.
[6] ROY, D. “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”, In: CIEN digital 23. Novembro, 2018. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2019/11/Cien_Digital_23.pdf
[7] BUTLER, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Record, 2003.
[8] MILLER, J-A. “A criança e o saber”, In: CIEN digital 11. Janeiro, 2012. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf
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Zain: uma figura da indignação

by cien_digital in Cien Digital #23, Cine Cien

Autora: Suzy Hazelwood Imagem: gray-wall-with-cracked-blue-paint https://burst.shopify.com/

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Maria Rita Guimarães

O Cine Cien abriu as atividades do Cien–MG, do primeiro semestre de 2019, com o filme Capharnaum, de Nadini Labaki[1], ganhador do Prêmio de Júri no Festival de Cannes de 2018. Sua narrativa contempla a pesquisa e o debate trazidos pela temática orientada pelo último Enapol em seu título: Ódio, cólera e indignação. A atualidade do filme não é apenas cronológica. Interessaram-nos, de forma especial, os problemas ali testemunhados. Estes correm no fio da navalha de um realismo documental e são aqueles que têm presença permanente no universo das experiências do Cien.

O diálogo do filme que nos inspira a trabalhar é aquele que acontece aos sete minutos da narrativa e em torno do qual o filme é organizado estruturalmente.

– Você sabe por que está aqui? pergunta o juiz.

– Sim.

– Por quê?

– Eu quero acusar meus pais.

– Por que você quer acusar seus pais?

– Por me trazer ao mundo.

Trata-se de Zain, com idade – suposta – de 12 anos. Nesse processo, ele é o autor da denúncia aos pais por “trazê-lo ao mundo”. Anteriormente, noutro processo, ele foi condenado à prisão por ter esfaqueado aquele que viria a ser o marido de sua irmã. Salvá-la daquele casamento arranjado, forçado, tendo ela apenas 11 anos, era seu projeto de vida. Figura de uma Antígona moderna, “a dor lhe servia como óculos escuros”[2], Zain comete a passagem ao ato desesperado pela causa fraterna: sua irmã a preço de galinhas. Sua figura exibe o profundo contraste entre o desenvolvimento físico mirrado e seu destemor na posição de sujeito em busca da possibilidade de restauração de uma frase/palavra na qual há um fora de sentido.

Acompanhando-o em sua trajetória, testemunhamos seu trabalho em responder à questão do que seria uma vida como vida digna e a elaboração de algo avesso à violência, à sua violência, mas também à violência do Outro. Podemos ler isso na passagem do tempo e nas mudanças de posições do sujeito entre dois atos por ele praticados, que destaco como relevantes; entre eles, uma travessia:

1º tempo: a passagem ao ato – tentativa de matar o cunhado – quando o sujeito desaparece na cena, nela restando como objeto a.

2º tempo: o ato de indignação conformado à ética das consequências, própria ao desejo, enquanto princípio da dignidade significante.

Adiantemos que sua acusação aos pais perante a lei é em razão de que seus pais não lhe concedem (e aos irmãos, pois o laço fraternal para ele é um valor sem igual) uma vida que seja vida reconhecível como humana. Não examinaremos os meandros teóricos passíveis de serem levantados pelos termos humanidade/desumanidade, sobretudo no mal-estar da civilização contemporânea. Sigamos Nadine Labaki, que nos pega pelas mãos e nos leva à fronteira mais impenetrável da pergunta sobre se aquela vida é vida que concerne à espécie humana. Rapidamente, podemos enumerar os pontos de degradação registrados pela cineasta:

1- Precariedade absoluta: sobrevivência rebatida à necessidade

O real da fome como pulsão de autoconservação – termos freudianos – impõe um aniquilamento da demanda, para dizê-lo de forma curto-circuitada. No entanto, para além da imperiosa busca de subsistência em pequenos e sórdidos “bicos”, Zain nos escancara a precariedade mais extrema: o anonimato do desejo do Outro. Não há Outro familiar, escolar, nenhum Outro social do qual receber a luz de um olhar. O sombrio da vida segue na servidão ao trabalho excessivo para a obtenção do mínimo do mínimo, a fim de não sucumbir à morte, o que exige transgredir, mentir e se envergonhar cotidianamente; tempo estagnado numa repetição sem futuro.

2- O aviltamento da preposição “sem”

Sem pátria (é um imigrante, mesma situação do ator mirim, que o interpreta). Sem papéis (família clandestina submetida ao ilimitado gozo do Outro em troca de míseros metros quadrados para se esconder). Sem nome (a primeira vez em que é chamado por Zain! foi na prisão).

Sem nome (demarca uma diferença essencial: já não se trata da indigência provocada pela exclusão/segregação reinantes na condição de sem papéis, como imigrantes: sem estatuto legal em outro território; portanto, sem trabalho ou acesso aos bens sociais como saúde e educação. Trata-se aqui da demissão de um pai que, embora capaz de uma transmissão, sucumbe ao exercício da paternidade e apenas consegue repetir o insuportável de sua vida tal como o “modo como fui criado”; isto é, “pessoas cuspiam em mim na rua; eles me tratavam como um animal”. Um pai, o qual acreditou que sua condição “homem” adviria com os filhos, que seriam sua “espinha dorsal”. “Mas eles me fuderam, partiram meu coração. Eu amaldiçoo o dia em que me casei”.

3- Insulto

Se Zain não é um nome pronunciado por seus pais, ele é substituído por “bastardo, inútil, pedaço de lixo” e outras injúrias.

Jacques Alain-Miller nos deu o matema do insulto:

(S(a))

–––––––––

(A barrado)

Tal fórmula, Miller nos esclarece, refere-se ao momento do desfalecimento do Outro como lugar dos significantes. Portanto, quando emerge o ser do sujeito como a e surge do fundo da língua um significante que marca o momento do impossível de dizer, “aí onde o próprio ser excede as possibilidades da língua” [3].

Por que excede as possibilidades da língua? Busco entendê-lo pelas palavras de Miller: “O insulto é uma tentativa para dizer a Coisa mesma, para que ela possa ser cernida como objeto α e, dessa forma, captar o Outro, isolá-lo, atravessá-lo em seu ser, em seu Dasein, na merda que é”[4]. Coagulado no insulto, eis a merda que Zain é como dejeto no mundo.

A tragédia Édipo em Colono “De preferência, não ter nascido”.

“Eu os acuso por me trazerem ao mundo” pode ser pensado como equivalente contemporâneo ao mé phunai de Édipo em Colono? Poderemos nos aventurar por este caminho, porque se sabe que o mé phunai se inscreve quando é descoberta a extensão do insuportável da vida:

“A Lacan, a paixão pelo nó borremeano, serviu para chegar a essa zona de existência, a mesma zona de Édipo em Colono, na qual se apresenta a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de qualquer sentimento humano”.[5]

Phunai é um verbo de duplo sentido: significa ser nascido, e mé phunai quer dizer não ter nascido. A tradução de Lacan, segundo versão brasileira dos seminários, varia: “De preferência, não ser”[6], “pudesse eu não ser nascido”[7] e “não ter nascido”[8], mantendo presente não somente a articulação do excesso de sofrimento e a possibilidade de nos maldizermos, mas também a de um caminho próprio, diferente de um destino:

“Desejar ‘não ter nascido’ não é o mesmo que querer morrer e também é diferente de querer cometer suicídio. Significa ter em conta a dificuldade de amar a vida. Freud não era ingênuo a este respeito: falava do ‘dever de viver’, não falava da felicidade de viver”.[9]

Zain, sem palavra e com seu destino de merda, ainda mantém seu sentimento de pertinência à espécie humana e sua recusa à vitimização social – posição de seu pai –, que o levam a apresentar sua indignação ao mundo.

Autor: Brodie Vissers by Burst – Imagem: dancing-house-and-bus-prague - https://burst.shopify.com/sign-language

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A indignação de Zain

No tempo de sua privação de liberdade – não mais que antes, mas agora com grades aparentes, exteriores a seu corpo –, aquelas da instituição prisional do Estado, Zain é arrebatado pela palavra do Outro.

Zain, por que você está ligando?

O que posso fazer para você?”

“Eu quero que os adultos me escutem”, responde.

Palavra inaugural de uma demanda: ser escutado. Em que esse ato de acusação aos pais, feito por Zain, pode ser tomado no campo da ética das consequências[10] e como um ato de indignação?

Éric Laurent definiu a indignação “como um sentimento experimentado como um valor diante de algo que atingiu outro valor. Há um toque de real, porém, sublimado, mais simbólico”[11].

Creio que se aproxima ao que foi assinalado anteriormente em referência ao princípio da dignidade significante. A indignação tomada por essa perspectiva – como princípio – indica uma categoria abstrata, válida para todo ser humano. Diferentemente dos demais termos que compõem o título do último Enapol, não se trata de uma paixão.

Qual a incidência de um sentimento de valor para Zain, um valor soterrado até o momento em que as ondas sonoras do rádio fazem ressoar e repercutir tal valor com as palavras: “Este relatório sobre injustiças contra crianças tocou profundamente nosso público. Você quer comentar sobre o que você acabou de assistir?”.

Para Zain – façamos a hipótese –, o sentimento, o valor de pertinência ao humano foi atingido de forma avassaladora: sua irmã morre por não poder receber cuidados médicos.

Não tinha documentos que lhe permitissem ingressar no mundo “dos direitos humanos”. Como se a dignidade pudesse ser relativizada e sujeita às normas burocráticas. Sabíamos dos infortúnios de Zain desde o início, mas, agora, com seu ato, ele nos mostra que o valor contido no sentimento da indignação não é um dado “ao humano”: é-lhe preliminar; daí, poder classificar-se como princípio o irredutível humano, o sentimento de pessoa em sua particularidade e singularidade.

Parece importante localizarmos a questão da singularidade do sujeito como sentimento requerido por Zain nas cenas em que reprova os pais, – e de forma dura o fez na visita de sua mãe na cadeia! – por trazerem mais um filho ao mundo. Seu pedido de que não mais trouxessem filhos ao mundo foi interpretado por muitos daqueles que escreveram análises críticas do filme como um posicionamento da cineasta totalmente equivocado, já que estaria sendo – também ela – segregacionista, ao afirmar, pela boca de Zain, que pobres não podem ter prole numerosa. Vemos, por tais interpretações, realizadas em nome do politicamente correto, um humanismo sem crítica, o silencioso movimento bem-intencionado, sem dúvidas, que favorece a causa do que, a partir de Lacan, chamamos a forclusão do sujeito.

 


[1] Ficha técnica: Nome: Cafarnaum. Nome original: Capharnaüm. Cor da filmagem: Colorida. Origem: Líbano. Ano de produção: 2018. Gênero: Drama. Duração: 121 min. Classificação: 16 anos. Direção: Nadine Labaki. Elenco: Zain Al Rafeea, Yordanos Shiferaw e Nadine Labaki.
[2] Youcenar, Marguerite. Antígona o la elección. In Fuegos. Tradução Emma Calatayud 1. ed. Buenos Aires: Suma de Letras Argentina, 2005. p. 51-56.
[3] Miller, Jacques-Alain. Seminário El Banquete de los analistas. Curso (1989-1990) Orientação Lacaniana, ensinamento pronunciado no Departamento de psicanálise de Paris VIII. (Inédito). p. 54.
[4] Idem, Ibdem.
[5] Miller, Jacques-Alain. O real no século XXI. In Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 32.
[6] Lacan, Jacques. O seminário Livro 7: A ética da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1988. p.367.
[7] Lacan, Jacques. O seminário Livro 8; A transferência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1992. p. 295.
[8] Lacan, Jacques. O seminário Livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 2016. p. 107.
[9] Huler, Susana. Nous ne comprenons pas les djihadistes lls ne nous comprennent pas non plus. Lacan Quotidien, 464. Disponível em: <www.lacanquotidien.fr>. Acesso em: 30 jun. 2019.
[10] Conforme Miller (2017, p. 98): “Só se pode referir precisamente o ato a suas consequências. […] Por isso, no instante de passar ao ato, na medida em que não é passagem ao ato, leva-se em conta a reação do Outro, o que diz e o que vai fazer” (Miller, Jacques-Alain Política Lacaniana. Compilação Silvia Tendlarz. Buenos Aires: Colección Diva, 2017).
[11] Laurent, Éric. Entrevista concedida a Ana Lydia Santiago (Parte 5). Boletim OCI#7. IX Enapol. Circulação por Veredas em 01/07/2019.
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O encontro entre o Cinema e o CIEN na cidade do Rio de Janeiro.

by cien_digital in Cien Digital #23, Cine Cien

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Giselle Fleury e Jorge Carvalho

A partir da experiência de trabalho na comissão Cine-CIEN no Rio de Janeiro[1], trazemos neste texto algumas reflexões que orientaram a proposta de trabalho da comissão no biênio 2016-2018. Há muitos desafios nesse processo, que vão além dos aspectos de produção e escolha dos filmes exibidos. Uma primeira observação é a de que a escolha dos temas e dos filmes, bem como a escolha dos convidados para a conversação devem estar orientadas pelos princípios que norteiam o CIEN. Como princípios recortamos a interdisciplinaridade no trabalho com crianças e adolescentes e a ênfase na conversação.

A interdisciplinaridade guiou nosso critério de escolha dos convidados para a conversação. Optamos por sempre ter um psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise e um convidado que ora tinha envolvimento com o próprio fazer do filme escolhido, ora era um profissional de outra área de saber, que trabalhasse com a temática tratada no filme.

Nossa proposta era a de levar as atividades do Cine-Cien para espaços fora da sede da EBP-RJ, realizar parcerias com instituições atuantes na cidade e se valer desses eventos para aproximar do CIEN pessoas de diferentes saberes, interesses e formação, que é um aspecto fundamental na proposta de trabalho do CIEN.

Experiência número um: cortes produzem aberturas.

Sensibilizados pela questão das ocupações de escolas secundaristas que ocorreram em diversos estados no Brasil em 2016 e que tiveram ampla cobertura na imprensa nacional, escolhemos o documentário “Acabou a Paz! Isto aqui vai virar o Chile.”[2], do diretor argentino radicado em Salvador, Carlos Pronzato. O documentarista entrevista estudantes, pais, funcionários e professores de escolas públicas de São Paulo ocupadas em 2016.

Para esse encontro, ocupamos um horário de um cinema comercial, o Cine Santa Teresa, um pequeno cinema “de arte” no bairro turístico de Santa Teresa, na zona central do Rio de Janeiro. Convidamos para a conversação, além do próprio diretor do filme, Carlos Pronzato, o psicanalista Marcus André Vieira, membro da EBP/AMP e professor da PUC-RJ. O resultado foi extremamente proveitoso.

Ao lado de um psicanalista e diante de tantos outros na plateia, segundo o depoimento dele próprio, o diretor do filme sentiu-se estimulado a falar de sua história de vida e de seu método de trabalho: abrir a câmera para a livre fala dos entrevistados, interrompendo ocasionalmente a fala com algumas perguntas “condutoras”. Marcus André pontuou as semelhanças que há entre o fazer do analista e o método do diretor: os cortes produzem aberturas onde algo novo pode surgir. Na conversação após a exibição do filme, dentre algumas intervenções, houve a de uma professora da rede pública e moradora de Santa Teresa, com um depoimento sobre as ocupações no Rio de Janeiro, em protesto ao desmonte, em curso, das escolas públicas da cidade. A escola como um lugar em que se apreende o fazer político – temática mais ampla do documentário – colocou no horizonte a perspectiva de que a atuação dos estudantes em forma de coletivo tem a força de produzir movimentos inéditos abrindo brechas nas situações limites vivenciados neste campo.

 Experiência número dois: As escolas e o impossível de realizar.

Com o objetivo de ampliar a participação de outros integrantes do Cien-RJ, convidamos os laboratórios a contribuir com ideias e na organização das exibições e conversações seguintes. Entendemos que o Cine-Cien pode ser uma oportunidade para que os Laboratórios abram outras frentes de trabalho ou até mesmo venham a se servir desse dispositivo para sua atuação em instituições.

Marcia Crivorot, uma participante do laboratório “Digaí Escola” propôs a exibição do filme francês “Entre os Muros da Escola”[3] na Escola de Cinema Darcy Ribeiro (ECDR). Fizemos o evento com a participação de Adriana Armony, professora de português e de literatura do tradicional colégio Pedro II. Neste encontro, foi possível trazer à discussão a relação do aluno com a escola como um lugar de formação, que guarda um impossível de realizar. Adriana pôde ainda nos falar de seu projeto de construção de textos dos alunos que resultaria na produção coletiva de um livro.

Experiência número três: A adolescência, a sexualidade e os tabus.

Ainda na parceria com a ECDR, projetamos o filme “Fala Comigo”[4] com a participação da atriz Karine Teles e da psicanalista, membro da EBP/AMP, Maria do Rosário do Rêgo Barros. A presença da atriz trouxe um colorido todo especial. Pudemos colher detalhes dos bastidores da filmagem e de como foi representar esta mulher que vive um “amor impossível” com um adolescente. Destacamos como a arte é necessária para promover espaços onde um tema “tabu” pode ser debatido sem cair nos clichês que vigoram na sociedade. Foi interessante também a forma como Rosário acolheu os detalhes, apontando as contingências presentes no filme como formas artísticas de tratar a passagem, por vezes tão delicada, da adolescência, da sexualidade e dos tabus. O filme aponta portais com fineza e zelo dignos de nota.

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Novos enlaçamentos:

 Nesta ocasião, ouvimos depoimentos de pessoas de outras formações encantadas com o formato de fala mais livre e a possibilidade aberta para participar da conversação. Vimos o interesse de um estudante de cinema (na ECDR) em conhecer mais de perto o CIEN e eventualmente desenvolver trabalhos com o apoio e orientação de um psicanalista, sua fala: “Eu sei fazer documentário, a abordagem que vocês propõem serviria de uma boa orientação para um filme! Como podemos dirigir esse trabalho às questões que afetam às crianças e adolescentes?” – foi a questão que recolhemos neste dia de exibição.

Um ponto importante que gostaríamos de destacar é que a duração do filme, tão curta quanto possível, é de extrema importância para que a conversação tenha o tempo de acontecer. Em nossa experiência, observamos também que quanto maior é o público, menor é a participação de cada um na conversação. Um público muito grande, como o do primeiro filme, quase inviabilizou a conversação, que é mais produtiva quando ela tem a participação de até 15 ou 20 pessoas. Pensamos também na possibilidade de fazer a conversação após ver um filme em cartaz no circuito aberto da cidade, fazendo parceria com um lugar próximo do local de exibição. Essa ideia não foi colocada em prática.

A experiência de coordenar o Cine-Cien nos marcou, revelando ser possível a produção de bons encontros neste movimento de buscar algo fora das nossas referências de saber. Ou seja, sustentar a inter-disciplinaridade que orienta o CIEN e suas atividades, onde o Cine-Cien se encontra, o que pôde produzir gratas surpresas; uma delas pode ser traduzida na fala de uma participante, assistente social atuante no serviço público, em um dos eventos: “Não sabia que vocês psicanalistas faziam coisas tão legais!” Sem nos esquecer que a psicanálise, como anfitriã do espaço de uma conversação, não deixa de ser afetada pelas outras disciplinas.

 


[1] A Comissão que cuida do Cine-Cien é composta por Giselle Leandro Fleury (psicóloga) e Jorge Carvalho (cientista da computação), ambos integrantes do Laboratório Pipa-voada, desde o início de 2016 até a presente data. Esta comissão trabalha sob a orientação da Coordenação do CIEN-RIO.
[2] “Acabou a paz isso aqui vai virar o Chile – escolas ocupadas em São Paulo”, diretor: Carlos Pronzato, São Paulo, 2016.
[3] “Entre os muros da escola”, filme de: Laurent Cantet, recebeu o Palma de Ouro no festival de Cannes de 2009, foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
[4] “Fala comigo”, filme de: Felipe Sholl, com Tom Karabachini, Denise Fraga e Karine Telles, premiado no festival do Rio, em 2016.
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Saber politicamente definível em estrutura e Kynodontas

by cien_digital in Cien Digital #14, Cine Cien

No seminário Avesso da psicanálise (1969-1970), a partir do estabelecimento de uma “topologia” dos discursos e a articulação de dependência do discurso analítico aos demais -principalmente ao discurso do mestre-, Lacan funda o campo lacaniano e o aproxima ao estatuto de campo de gozo. Dois registros habitam essa concepção de campo: o registro da linguagem, a noção de estrutura que lhe concerne e o registro da experiência do inconsciente, inconsciente tratado por Lacan como campo freudiano. Linguagem e inconsciente desenham o campo do Outro.

Em nome da política da psicanálise, Lacan formaliza o discurso analítico como refratário à Weltanschauung, “visão política do mundo”.

Delimito meu interesse: explorar as possibilidades da afirmação que segue, na qual Lacan se expressa em termos de algo “politicamente definível”:

“É desta maneira que poderíamos ilustrar esse saber que Freud definiu colocando-o no parêntese enigmático do Urverdrängt – o que quer dizer justamente aquilo que não teve que ser recalcado porque já o está desde a origem. Esse saber sem cabeça se posso dizer assim, é um fato politicamente definível, em estrutura”.

LACAN, 1969-1970, p. 84

Um saber decapitado, eis o fato político, correlativo ao nome designado por Freud como recalque originário. Estaria aí a origem da política do inconsciente, sua genealogia? A cabeça subtraída do corpo escravo, desde a origem, indica que o sujeito, – devido ao fato de que é apenas representado –, falta ao simbólico, acéfalo como ser de gozo, cortado em seu ser de gozo. Eis que “o significante-mestre, ao ser emitido na direção dos meios de gozo que são aquilo que se chama saber, não só induz, mas determina a castração” (LACAN, 1969-1970, p. 83).

Um saber de estrutura não é mesmo um saber sobre as relações entre os elementos constitutivos de um conjunto? Na teoria dos discursos sabemos que são quatro elementos que entram em jogo nas relações que um sujeito estabelece, levando em consideração que dois lhe são prévios, resultantes do Outro e diferentes entre si. Tal fato implica uma consequência que chamamos fenda, abertura, subtração, falha, que produzirá um objeto como resto. Um elemento mantém-se irredutível a cada um dos demais e nessa ordem estrutural reconhecemos o que Lacan definiu como a constituição subjetiva.

O significante não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, isto é, à utilização da linguagem como laço, e, assim, diríamos que a política situa-se sobretudo como aquilo que estabelece um laço entre um significante S1 e um outro S2.

Cabe uma nuance. A política não é um saber, qualquer coisa que faça ligação numa relação de razão, um S1 a outro S2, mas se constituindo em discurso é um laço que assegura a coexistência sincrônica dos corpos dos falantes. Estamos no terreno do gozo. Lacan afirma que não há discurso, e não apenas o analítico, que não seja do gozo.

Dan Flavin

Vemos aí o significante em vista de seus efeitos de laço. Contudo, há efeitos que não se conjugam com aqueles professados pela política da psicanálise, pois atuam numa espécie de perspectiva que conduz a atividade humana pelos atalhos do asujeitamento dos laços sociais a uma obediência cega, brutal, em nome do amor, obediência, identificação, por exemplo.

Antes de seguir nessa vertente, trago resumidamente, outro ângulo que a relação dos termos – política e psicanálise – evoca. Trata-se de uma formulação de Miller à própria pergunta sobre a incidência política na qual o psicanalista teria que encontrar seu lugar. De certo modo, diz ele, pode-se defini-la como subversiva aos ideais sociais. Ela não é progressista. Sempre existe uma parte perdida. É uma subversão que não é positiva. Levada a um ponto mais além, a política deve promover efeitos de despertar e, esse despertar, em relação aos ideais, deve incidir no gozo e na repartição do mais de gozar. O psicanalista encontraria seu lugar, portanto, na “desmistificação dos ideais”.

“É uma espécie de sabedoria política, nada mais. Existe uma tese, política, que a sociedade tem por seus semblantes. O que quer dizer que não há sociedade sem recalque, sem identificações e, sobretudo, sem rotina. A rotina é essencial. A tese fundamental que funda a política de Lacan é a disjunção do significante e do significado. Não se saberia o que quer que fosse se não tivesse uma comunidade tendo suas rotinas, para mais ou menos nos mostrar a via.”

MILLER, 1998, p. 19

A língua corrente proporciona uma homonímia fecunda da palavra “mestre”, na dupla possibilidade: figura da educação e da dominação: o que fica como nó, no mesmo significante, são os infinitivos verbais, saber e poder. Não é sem importância pensarmos que, no avesso da política da psicanálise, a ideia do saber totalizante é imanente à política. É da nossa atualidade a paixão do saber total.

Kynodontas ou Canino

Um belo e inquietante filme, Kynodontas 2009, – (Canino em português) –, vindo da terra de Sócrates, (a imprensa o associou à atual crise político/econômica da Grécia) oferece-nos a ocasião de pensar a inumanidade quando o Mestre se proclama Senhor como educador e dominador. Canino é uma alegoria que nos conduz, pelo absurdo, ao encontro de uma família que vive num mundo intramuros, descontaminado do laço social, consequentemente, dos efeitos de subjetivação. À maneira do Éden, antes da intromissão da serpente, ali vivem aqueles que jamais conheceram outra vida senão essa que lhes organiza a lei familiar: apenas com a queda do dente canino-”direito ou esquerdo, não importa”, se estaria autorizado a sair pra além dos muros. O universo desses três filhos que não dispõem de nomes próprios – são infans em corpos de jovens – reduz-se ao espaço idílico em que passam os dias a se anestesiar e a inventar jogos de resistência. Sequer as palavras identificatórias da procedência dos produtos (tipo água engarrafada), adquiridos pelo pai, – esse sim, vai ao “mundo” sendo dono de uma usina –, atravessam os muros. Os aviões que cortam o espaço aéreo da asséptica bolha são elementos para uma farsa pois substituídos por pequenos aviões de brinquedo, jogados desde o alto, no jardim, pela mãe, dão ocasião a momento “educativo”, nos moldes comportamentais da recompensa e castigo. É notável o deslizamento das cenas do adestramento dos cães e dos filhos “aprendendo” a latir para se defenderem de um gato. A criação de um código linguístico que os filhos aprendem através da voz da mãe gravada em fita cassete, sustenta essa “realidade” na qual se evita o choque traumático promovido pela língua no corpo.

Barry Flanagan

Nesse sistema linguageiro, a palavra estrada, por exemplo, é definida como “vento muito violento”, assim como uma carabina é um “belo pássaro branco”. Gato? “uma criatura feroz, capaz de despedaçar um humano”. Zumbi? “uma pequena flor amarela”. Palavra/coisa, impossibilidade de metonímia e metáfora, suprema ignorância do sexual. No entanto, há o ato sexual no Éden. Supervisionado e organizado pelo pai que traz, de olhos vendados, uma jovem empregada de sua empresa, a quem paga pelo trabalho sexual com o filho. Aqui, sexo equivale à necessidade e, de fato, não produz nenhum efeito de experiência para o jovem, no sentido de instaurar a experiência traumática de onde se poderia advir um ponto de apoio necessário a um “despertar” pulsional. Sequer quando o pai designa a irmã como parceira sexual para o filho.

De toda maneira, o trágico surge após a entrada da jovem “êxtima” na casa: tal como a serpente do poema de Paul Valéry, ela introduz o veneno/elemento heterogêneo na pureza do programa educativo familiar. Algo é arrebentado, justamente no real da boca da “mais velha”. Por não cair o dente canino, ela quebra violentamente seus dentes numa ferida inaugural, em busca da subtração necessária a que aceda à subjetividade, ao sintoma, à contingência, à morte.


Referências Bibliográficas:
LACAN, J. O Seminário, Livro 17, Avesso da Psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MILLER, J.A. La Psychanalyse, La Cité, Les Communautés. In: TĂBŬLA. Bulletin de l’acf voie domitienne, abr. 1998.
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A infância sob controle e a Educação

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Marisa Nubile1

Não há como ficar isento diante do documentário “A infância sob controle”, realizado por Marie-Pierre Jaury. Quem o assiste é convocado a tomar uma posição frente aos discursos que nele aparecem.

No meu caso, como trabalhei durante muito tempo na área educacional, uma questão logo se impôs: o documentário foi feito a partir de depoimentos de médicos, psicólogos e neurologistas. O que o educador tem a ver com aqueles discursos? Em que medida a escola é tocada pelas argumentações dos especialistas?

Não é de hoje que a Educação sofre influência de outros saberes; inicialmente da medicina, mas não só dela. A influência foi tamanha que a partir da década de 1970 muitos autores denunciaram a patologização no espaço escolar. Dentre os pesquisadores que fizeram tal denúncia encontramos, aqui no Brasil, nomes que são referências, dentre os quais podemos citar a psicóloga Maria Helena Souza Patto, a educadora Cecília Collares , a pediatra Maria Aparecida Afonso Moyses.

Patologizar é isso: centrar as causas do não – aprender em problemas da criança e da família, isentando as responsabilidades do sistema educacional. (COLLARES, 1994)

Mas, se essa patologização foi alvo de denúncia, percebo que atualmente ela se esvaziou para dar lugar a um discurso tecnicista e biologizante, alimentado pela psicofarmacologia e neuropsiquiatria em alta.

Emma Johnson, 2ème Arrondissement, 2012

Para contextualizar o panorama atual é sempre interessante olhar para trás.

Lembremos, com Ariès (1981), que o sentimento da infância foi uma construção histórica. Na Idade Média, não havia consciência da particularidade da infância distinto do adulto e do jovem. Pessoas nasciam e logo que podiam viver sem os cuidados básicos da mãe eram incorporados na sociedade sem nenhuma distinção.

O que nos interessa recuperar aqui, é que nos primeiros tempos deste longo período que se denomina Modernidade, quando o sentimento da infância estava sendo construído, tal sentimento foi forjado a partir de um projeto de adulto que se queria saudável, letrado e produtivo.

A infância passa a ser entendida como um tempo de preparo e, dentro de seu ideário, preparo significa correção feita através de mecanismos de vigilância, disciplina, segregação e controle. A escola como instituição surge junto com esse novo sentimento de criança com o propósito de controlá-la.

Mas, o que a criança representa para que seja necessário controlá-la?

Vejamos algumas expressões do pensamento desse período:

“Só o tempo pode curar o homem da infância e da juventude, idades da imperfeição sob todos os aspectos”. (Balthazar Gratien em um tratado sobre a Educação de 1646. IN: Ariès, 1981, p. 104)

Kant em Sobre a Pedagogia no século XVIII, descreve quatro objetivos da Educação, sendo que aquele que aparece em primeiro lugar é “disciplinar, domar a selvageria humana”. (KANT, 1999, p.25)

O que podemos abstrair dessas colocações é que a criança denuncia nosso universo pulsional, – aquilo que é singular ao sujeito -, e que a Educação é chamada a ser um dos agentes capazes de regular aquilo que habita de “selvagem” no humano.

Diante disso que é percebido como anticivilizatório, o projeto da Modernidade se calcou em uma lógica vertical baseada em ideais coletivos tendo como pano de fundo o “dever absoluto, a ética do sacrifício”(Lipovetsky, 2004,p 26 ). Isso significa que a Modernidade foi pensada a partir do referencial de que o individual e o coletivo deveriam se corresponder perfeitamente. E, isto só é possível se a razão se impuser contra as paixões, se leis severas punirem os que lucram e se a Educação ensinar as crianças a dominar suas pulsões e seus vícios e se formarem graças a disciplinas estritas (TOURAINE, 1998, p 30-31).

Dentro desse ideário, a Educação foi permeada pelo saber de outras ciências que se organizaram para tentar entender a criança oferecendo referências de cuidado e moralização. É desta maneira que o saber médico auxiliou a produzir um projeto de educação e saúde, influenciou propostas pedagógicas dirigidas a moralizar e ordenar a relação entre adultos e crianças e foi usado para explicar o fracasso escolar.

Jarbas Lopes e Laura Lima, Padedeu

Mas, não apenas a medicina influenciou a Educação. Dando um salto no tempo, no início do século XX, entra em cena a Psicologia com as escalas de inteligência. É criado um aparato científico de segregação tornando possível separar os que podiam desenvolver certa intelectualidade daqueles para quem eram indicados os serviços profissionalizantes ou especiais.

Um século depois, temos a impressão de que as premissas continuam as mesmas, como vimos no documentário A infância sob controle. O que dizer da psicóloga que, muito naturalmente, pontuava o comportamento de uma criança que colocava a mão na cabeça ou se agitava na cadeira diante da frustração no jogo, cena registrada nesse documentário?

Mas, se há um continuísmo ideológico diante daquilo que a criança representa, também observamos que novos determinantes se impõem. Em primeiro lugar, a diferença entre normal e anormal está cada vez mais estreita. Aquilo que antes era suportado pela sociedade hoje é considerado patologia. Além disso, se tempos atrás a solução encontrada para o comportamento “desviante” era a disciplina moral, hoje a solução apresentada é o uso de medicamento. Solução alardeada pelo marketing de uma indústria farmacêutica em alta.

Como esse cenário se apresenta hoje em dia no ambiente escolar?

A dissertação de mestrado da pesquisadora Renata Guarrido (2008) analisou a produção de 20 anos da revista “Nova escola”, destinada a professores. Seu objetivo foi observar como determinados temas eram abordados pela revista, dividindo a análise em dois períodos: as produções da revista de 1986 a 1996 e as de 1996 a 2006.

Uma das constatações foi a de que as informações oferecidas ao professor, especialmente no segundo período, continham fortemente uma consideração biológica como fundamento para o entendimento, tanto de certos comportamentos dos alunos, quanto para explicar o processo de aprendizagem.

Isso se refletia, por exemplo, em artigos baseados nos pressupostos da neurociência que “revelavam” como o aprendizado ocorre. Em um dos artigos destacados observamos a seguinte chamada:

Nesta reportagem, buscamos uma explicação científica para o processo de aprendizagem. A neurociência, área da medicina que estuda o sistema nervoso, está contribuindo muito para esclarecer o que acontece com o cérebro humano, desde a sua formação até o envelhecimento. Com isso, ajuda os educadores a entender o que ocorre no cérebro da criança quando ela está em contato com novas informações, como ela processa essas novidades e de que forma o aprendizado se torna conhecimento para toda a vida. (GUARRIDO, 2008, p. 87).

Rosana Ricalde, Mares do mundo

Como podemos observar, o funcionamento neurológico passa a ser fundamento do aprendizado e o conhecimento neurológico um subsídio necessário para o professor, comenta a pesquisadora.

Em outro artigo, o cérebro é tratado como sujeito do aprendizado: “hoje se sabe o que acontece quando ele (o cérebro) está captando, analisando e transformando estímulos em conhecimento e o que ocorre nas células nervosas…” (GUARRIDO, 2008,p. 89)

As publicações sobre TDA ou TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) são exemplos de como os comportamentos dos alunos são lidos através da lente do discurso médico. A pesquisadora conclui que comportamentos como agitação, agressividade, dispersividade, abordados muitas vezes do ponto de vista psicológico até os anos 1990, sofreram uma tradução e passaram a ser tratados, no segundo período, como sintomas de uma doença. Vejamos o artigo que faz a seguinte ressalva:

Apesar da medicina ainda não contar com dados conclusivos sobre formas de tratamento, o TDA é considerado um distúrbio psiquiátrico, portanto uma doença. (…) Uma série de tratamentos vêm sendo pesquisados, mas nada se mostrou superior à associação de remédios com acompanhamento psicológico. (GUARRIDO, 2008, p. 83).

Outro retrato da influência da visão médica e instrumental permeando o cotidiano escolar é a divulgação na Revista de um “teste de diagnóstico para déficit de atenção”, que reproduz os critérios diagnósticos presentes no DSM –IV. A ideia é a de que os professores possam detectar os sinais e, dependendo da pontuação, encaminhar o aluno para um especialista.

Quais são os efeitos desse discurso no espaço escolar?

Como nos alerta a pesquisadora, se a estimulação cerebral for transformada em técnica, “o lugar do sujeito que ensina e do sujeito que aprende fica muito próximo do maquinal” (GUARRIDO, 2008, p. 100). O papel do professor pode ser reduzido a um estimulador do cérebro!

Tal constatação nos convoca a pensar no objetivo da Educação que, para mim, longe de buscar uma apreensão asséptica e funcional daquilo que acontece no cérebro dos alunos, passa pela transmissão de certa relação com o saber. E, tal transmissão é da ordem do encontro humano onde existe sempre um ponto de impossível que escapa a toda e qualquer tentativa de previsão, até porque estamos diante de uma relação entre sujeitos e, portanto, uma relação onde algo da ordem do inconsciente escapa e escapará sempre. Isso não deixa de ser desconcertante, daí que a solução da medicalização pode se tornar mais atraente do que o tortuoso e incerto caminho do laço com o outro.

Disso resulta que, quando o não-aprendizado se vê traduzido em termos biológicos, passível de correção pelo uso de medicação, corremos o risco de uma desresponsabilização por aquilo que cabe à Educação. Ou seja, se partimos do pressuposto de que o aprendizado depende fundamentalmente de fatores neuroquímicos aquele que trabalha com a criança pode se furtar de fazer intervenções potencialmente transformadoras.

Além dessas considerações, lembremo-nos de que a patologização que esse discurso promove é fruto de classificações, como vimos no citado documentário. E, quando se classifica há nomeação: “Ele é TDA, ele é Disléxico…”. Do lado do professor, corre-se o risco dele não se relacionar com o sujeito na sua singularidade, mas com a doença. Do lado da pessoa nomeada, ela pode assumir os atributos que lhe conferem a classificação ou consagrar uma vida inteira provando, para si mesma, que tais atributos não lhe pertencem. De toda maneira, há efeitos que podem ocasionar prejuízos grandes à trajetória escolar e pessoal do sujeito.

Para concluir, é preciso ponderar que não se trata de desvalorizar os avanços científicos que contribuem, de maneira inegável, no tratamento dos sofrimentos psíquicos, nem é o caso de propalar o abandono das pesquisas biológicas. O importante é ter uma visão crítica dos efeitos de um discurso que é difundido como uma visão hegemônica daquilo que se passa no terreno da subjetividade humana. Terreno nebuloso e difícil, sempre propenso a tentativas de controle.

Como vimos, dentro do projeto da Modernidade histórica, a escola nasceu com o propósito de ajudar a regimentar aquilo que de anticivilizatório existe no humano. Para isso, ela se pautou por uma ética do controle moral usando e sendo usada pelos ideais médico-higienistas e da psicometria.

Marilá Dardot, Avant et après la lettre, 2011

Hoje estamos vivendo uma crise de paradigmas. É fato inquestionável que as antigas balizas que forneciam um referencial para os sujeitos estão implodindo. E a vivência disso não é nada tranquila porque expõe todos a uma encruzilhada ética.

O que fazer? Reviver antigas formas de controle revestidas pela lógica do discurso capitalista? Não nos enganemos, a segregação e medicalização do espaço escolar respondem ao marketing da indústria farmacêutica em franca expansão. Mas ela só está respondendo de maneira tão “positiva” porque encontrou terreno propício para florescer. Em um momento em que as antigas amarras estão se decompondo, o cientificismo promete explicar o inexplicável e curar o incurável da experiência humana.

Diante da encruzilhada ética há aqueles que experimentam novos laços. Em Educação há experiências interessantíssimas que fazem contraponto ao universalismo do discurso que vimos no documentário. São escolas, comunidades ou pessoas que inventam diferentes e inovadoras maneiras de se relacionar com os desafios de um mundo em transformação. E eu aposto nelas!

 


Referências Bibliográficas:
ARIÈS, P. História Social da Criança e da família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981.
COLLARES, C. A. L. O Cotidiano escolar patologizado: espaços de preconceitos e práticas cristalizadas. 1994. Tese (Livre-Docência) – Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas.
GUARRIDO, R. L. O que não tem remédio remediado está: medicalização da vida e algumas implicações do saber médico na educação. 2008. Dissertação de mestrado – Faculdade de Educação da USP, São Paulo.
KANT, I. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Editora Unimep, 1999.
LIPOVETSKY, G. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Porto Alegre: Sulina, 2004.
TOURAINE, A. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis (RJ): Vozes, 1998.

1 Mestre e doutora em psicologia e Educação
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Morte e vida na escola ou a crisálida vira borboleta

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Philippe Falardeau, Monsieur Lazhar, 2013

O filme Monsieur Lazhar traz boas novas ao Cien Minas
Margarete Parreira Miranda

O filme canadense de Philippe Falardeau (2012) trata do suicídio de uma professora na escola em que dava aulas e de suas conseqüências. Impacta-nos com a morte, de início. Ao se despencar para fora da cena, se enforcando em seu cachecol azul, o ato da professora Martine deixa resto nefasto.  “Martine decerto estava desanimada com a vida. A última coisa que ela fez foi empurrar a cadeira para que ela caísse”, diz Alice, sua aluna de 12 anos, expressando tristeza e incertezas. Assim Lacan (2005) nos esclarece sobre o sujeito que se apaga, ao se precipitar da cena: “Ele vira fumaça”. O suicídio da professora forma um rastro e impregna os espaços daquela escola.

No momento de passagem ao ato, nos ensina Lacan ( LACAN,2005, p.129), o sujeito é tomado por embaraço maior e age, impelido ao largar de mão“com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio de comportamento”. Surpreendentemente, o desenrolar da história que o filme apresenta caminha da morte para a vida, fazendo percurso inverso ao que naturalmente se espera do enredo humano, com o inevitável traumático da morte ao final.

Para Eric Laurent (2014) o trauma não pode ser tomado sem se considerar a estrutura do sujeito. “Esse ponto pode ser especialmente verificado nos traumatismos de massa. Com efeito, mesmo as contingências sofridas por um grande número de pessoas ressoam de modo único para cada um”, defende. Diversas situações do filme vão trazendo arranjos peculiares, como diferentes respostas ao trauma. Frente ao real, aquilo que a insuficiência simbólica emudece, as palavras escasseiam produzindo uma angústia que não se engana. Cada um se apresenta com o seu sintoma revelando as singularidades.  Pais, professores, diretora e alunos lidam com o que resta como mortífero na escola, tomado inicialmente em sua radicalidade: a professora Martine não mais se encontra ali para historicizar seu ato. Outros buscam, então, tratar o impossível, o inominável, aquilo que angústia causa. “Martine não estava bem há muito tempo. Ela tinha crises de angústia”, relata a professora Claire, sua amiga. Resposta imediata da diretora foi buscar desaparecer o acontecimento, no branco das paredes da sala de aula que ela manda repintar: “Não quero insubordinação a respeito”, declara. Pelos corredores e ambientes da escola, o adolescente Simon é tomado por sucessivos atos de agressividade, sem deixar de usar sua máquina fotográfica, presente da professora Martine. No importante momento em que é confrontado, traduz em palavras sua angústia: “A culpa é minha?”.  Os alunos conversam entre eles: “Por que ela fez aquilo?”

O professor Lazhar veio substituir a professora Martine. Seu nome significa em árabe “aquele que traz boas novas”, e seu personagem define outro jeito de transitar pela instituição, pelas circunstâncias de ensino e pela relação professor aluno. Outra novidade, entretanto: Alice, em sua travessia adolescente, como uma crisálida que sobrevive aos incêndios e vendavais, visita diversos espaços também anunciando “boas novas”. Se deixa surpreender e interroga: “Bachir Lazhar? Qual é a origem?” Ela insere o professor na cena da sala de aula. Expressa-se com sua verdade e percorre os próprios vazios se permitindo formular enigmas. Às vezes silencia, mas o olhar expressa. Ao enfrentar a angústia buscando palavras para emprestar nomes ao real, Alice diz: “Eu fiquei triste de verdade […] Às vezes me pergunto se ela não quis passar uma mensagem de violência. Nós quando somos violentos somos presos, mas não podemos prender Martine Lachance porque ela está morta”. Assim segue Alice apostando no dizer e se opondo à crueldade, à violência e à injustiça.

Alice reconhece em Bachir o mestre, a quem se liga pela firmeza e pelo consentimento ao seu desejo de saber. Mais que isso, Mr Lazhar distingue cada aluno com seus sintomas e se posiciona como mestre cuidadoso. Estrangeiro, fugitivo ou exilado ele nunca havia sido professor até então, e esse era seu segredo. Por isso, talvez, estranhe as condições petrificadas e faz da posição de mestre um lugar vivificado. Entende o desejo daqueles adolescentes “de falar da morte juntos”. E aposta: “Se alguém quiser falar fique à vontade”. Mas está também atento a regular o gozodo a mais da palavra: “Quero que seja feito com respeito”, ele diz, no tenso momento em que Simon é interpelado por Alice, sobre sua difícil situação com a professora Martine.  São ainda do professor as palavras esclarecedoras endereçadas aos seus alunos:

Não se deve buscar um sentido na morte de Martine Lachance. Porque não tem. A sala de aula é um lugar… um lugar de amizade, de… trabalho, de comportamento. Sim, de comportamento. Um lugar onde tem vida. Onde a gente consagra a vida. Onde a gente dá a nossa vida. Um lugar onde se deixa de lado nosso desespero.

Émilien Néron como Simon, Monsieur Lazhar, 2013

Como não lembrar Freud, ao tratar o tema do suicídio nas escolas secundárias em 1910? Para ele a escola “toma o lugar dos traumas com que outros adolescentes se defrontam em outras condições de vida” (FREUD, 1910, p. 217). E deixa claro em suas argumentações, os elementos que devem sustentar o seu movimento:

A escola nunca deve se esquecer que ela tem que lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis. A escola não pode adjudicar-se o caráter de vida: ela não deve pretender ser mais do que uma maneira de vida (Freud, 1910, p.218)

Entendemos que essa maneira de vida ganha curso na escola do Monsieur.

A professora Martine deixa também na escola o Livro de Fábulas, ponto de vida que Monsieur Lazhar não deixa escapar. A fábula oferece recursos pela narrativa, para que os adolescentes inventem saídas, dando outros destinos para o mal-estar que aquela perda provocou.  Da fábula se apropriam como solução, ao trazerem o tema da injustiça emerso em sala de aula. Desse recurso também se serve o professor Bachir, para se despedir de seus alunos, já que seu segredo revelado o impelira para fora dali. Ele sabe da importância das histórias no que toca as subjetividades. E assim fala da luta morte/vida e suas contradições, em seu conto lido para os discípulos e que registramos a seguir.

A árvore a crisálida

Bachir Lazhar

Nada há a dizer sobre uma morte injusta. Nada mesmo. Nós vamos mostrar daqui a pouco.

Sobre um galho de uma oliveira estava suspensa uma pequena crisálida de cor esmeralda. Amanhã ela se tornaria uma bela borboleta, liberada de seu casulo. A árvore exultava em liberar sua crisálida. Mas em segredo ela adoraria guardá-la ainda uns anos. “Para que ela se lembrasse de mim”. Ela a tinha protegido do vento. Ela a tinha salvo das formigas. E amanhã ela a deixaria enfrentar sozinha… Os predadores e os intempéries. Naquela noite… Um grande incêndio devastou a floresta, e a crisálida nunca se tornou borboleta. De manhã, o fogo apagado, a árvore ainda estava de pé, mas seu coração estava em cinzas, roído pelo fogo, roído pelo luto. Depois disso, quando um pássaro pousava na oliveira, a árvore contava sobre a crisálida que nunca acordou. Ela a imaginava com as asas abertas, ondulando no azul de um azul do céu azul, bêbada de néctar e liberdade. Testemunha privilegiada de nossas histórias de amor.

O filme termina com um gesto translúcido de nossa pequena Alice, em seu despertar: abraça silenciosamente seu professor, demonstrando a proeza da vida em um ato de amor. Aquele aceno é acolhido por Monsieur Lazhar, testemunho de um bom encontro na escola: a crisálida vira borboleta.

 


Referências Bibliográficas:
FALARDEAU, P. Monsieur Lazhar: o que traz boas novas. Canadá:Telefilm Canadá, 2012.
FREUD, S. (1910). Breves Escritos. Contribuições para uma Discussão acerca do Suicídio. In: ESBOPC. Rio de Janeiro: Imago, 1970. .
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005.
LAURENT, E. Trauma generalizado e singular. In: Boletim do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Trauma nos corpos e violência nas cidades. Belo Horizonte, 14/02/2014. Acesso: www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/02o trauma-generalizado-e-singular_9241.html. Acessado em: 11/07/2014.
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Comentário do filme Monsieur Lazhar – O que traz Boas Novas

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Sophie Nélisse como Alice L’Écuyer em Monsieur Lazhar, 2013

Margaret Pires do Couto

O filme retrata o cotidiano de uma escola canadense e nos permite acompanhar como a instituição trata um acontecimento trágico que ocorre em seu interior: uma professora se enforca dentro da sala de aula. O corpo da professora é encontrado por um dos alunos Simon (Émilien Néron) e logo em seguida por Alice (Sophie Nélisse), sua colega de classe. A diretora da escola, vivida por Danielle Proulx reúne todos os pais e diz que com ajuda da psicóloga todos irão superar este trauma. A escola tem dificuldades para encontrar alguém que substitua a professora. Bachir Lazhar, interpretado por Mohamed Fellag, um imigrante argelino, apresenta-se para o cargo e assume o comando das aulas. Esse encontro com os alunos e com a escola se revelará surpreendente.

Dos diferentes e interessantes elementos apresentados pelo filme, destacarei dois pontos que considero essenciais:
1.   O modo como a escola trata o que considera “eventos traumáticos” e seu recurso à Psicologia do Trauma para dar significação ao mesmo;
2.   O efeito do encontro das crianças com esse estrangeiro, o único a estranhar o discurso educativo e a maquinaria escolar produzida em torno do evento.

Primeiro ponto
Estamos na civilização do trauma. Como lembra-nos Eric Laurent(LAURENT, p.1)essa civilização do trauma é efeito da própria tentativa da ciência de fazer existir uma causalidade programada e uma determinação objetiva para todos os comportamentos humanos de modo que tudo que escape a essa programação torna-se portanto traumático.  Tudo que não é programável, previsível, torna-se trauma. Por isso, o escândalo do trauma é que ele sempre escapa a toda programação. Sua irrupção produz então, o grupo dos traumatizados – vítimas de bullyng, abusados sexualmente, hiperativos, portadores de estresse pós-traumático etc.- e o empuxo à produção de sentido, ao excesso de sentido. Nessa direção, os especialistas,  na maioria das vezes o psicólogo, são convocados para dar sentido àquilo que escapou ao sentido. Ele é convocado à explicar com suas matrizes interpretativas o acontecimento traumático e reconciliar o sujeito com a desordem do mundo.
Tudo isso fica evidente em várias passagens do filme tanto na insistência em convocar um especialista para tratar o trauma das crianças, ao mesmo tempo, que elas nada podem dizer sobre seu sofrimento com a morte da professora. Elas são autorizadas a falar sobre o acontecido somente nas sessões com a psicóloga. Fora dessas sessões, as marcas do acontecimento devem ser apagadas com os adultos fazendo silêncio para o que aconteceu. A fala de uma das crianças é, nesse sentido, exemplar: “os adultos acham que nós estamos traumatizados, mas eles que estão”.

Tudo isso me fez lembrar o episódio que ocorreu próximo de nós do Massacre de Realengo. O Massacre de Realengo refere-se ao assassinato em massa ocorrido em 07 de abril de 2011 na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, na cidade do RJ. Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola armado com dois revólveres e começou a disparar contra os alunos presentes, matando doze deles, com idade entre 13 e 16 anos.  Foi interceptado por policiais, cometendo suicídio ou morto depois. A televisão noticiou por vários dias e muitos especialistas psi foram convocados para explicar a motivação do crime. Explicações desde bullying sofrido na infância, distúrbio de comportamento, problemas familiares foram utilizados para dar sentido ao acontecimento.  Um ano depois no Caderno Cotidiano da Folha de São Paulo sai a seguinte matéria sobre o ocorrido: “Alunos de Realengo tentam superar o trauma um ano após o massacre”.Um trecho da reportagem afirma que três psicólogos, dois assistentes sociais e dois professores investem em projetos lúdicos para tentar apagar as marcas deixadas pelo massacre.
Trata-se, portanto, da lógica de silenciar o inesperado. É o que nossa civilização tende a fazer com essa  proliferação do sentido e generalização do trauma.

 

Philippe Falardeau, Monsieur Lazhar, 2013

Segundo ponto

A chegada de Bachir Lazhar na escola, “o que traz boas novas”,  pode ser considerada um bom encontro. Trata-se de um estrangeiro, um imigrante argelino que enfrenta problemas para regularizar sua situação como refugiado no Canadá.
Aquele que por não ser professor de profissão, porque em sua terra natal exercia outro ofício, estranho ao universo e ao discurso escolar pôde estranhar e causar estranhamento nesse espaço. Com sua presença e indagações interrogou tanto o silêncio imposto diante do trágico evento ocorrido, quanto as regras do politicamente correto que, como sabemos, na maioria das vezes servem para encobrir a ausência de regras universais que regulam as relações. É diante dessa ausência que a escola, na contemporaneidade, produz uma proliferação de regras e orientações de conduta, tais como:  não pode tocar nos alunos, não se pode utilizar alguns termos, não se deve educar, apenas ensinar, alguns temas não devem ser discutidos em sala de aula etc. Portanto, o politicamente correto é fruto daquilo que declinou e que antes regulavam essas relações: a transferência e posição do professor eticamente orientado por seu desejo de ensinar.
Exatamente esse estrangeiro, marcado também pela dor de ter perdido sua família em um ataque terrorista, pode escapar a tendência de dar sentido àquilo que escapa ao sentido e à representação: a morte.  É sua posição que o orienta no acolhimento do sofrimento das crianças dando espaço para que uma a uma, a seu modo e à seu tempo, encontre um jeito para alojar seu saber ou sua falta de saber sobre a morte. Suas inquietações, dúvidas, medos, angústias surgem e encontram um lugar onde podem ser ditas sem a necessidade de psicologizá-las no novelo do sentido. Ao mesmo tempo, ele não faz de sua história pessoal e de seu sofrimento enquanto sujeito elemento de identificação. Afirma que o espaço da escola é um lugar de trabalho e não um lugar de colocar nosso desespero, o que nos faz lembrar da indicação freudiana da escola como um lugar possível de tratar a tendência a destruição por meio do enlaçamento com a pulsão de vida via o saber.
Pareceu-me que Bachir Lazhar, próximo à posição de um analista, recorro novamente ao texto de Eric Laurent, nos ensina que se o analista pode ajudar um sujeito a reencontrar a palavra depois de um traumatismo, é porque ele consegue estar ele próprio no lugar do trauma. Ele pode ocupar esse lugar do insensato, de um parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o outro discurso, o do inconsciente. Desse modo, conduz o sujeito não a proliferar sentidos que gerariam mais impotência, mas o conduz a acalmar-se ao deparar-se com o impossível.

 


Referências Bibliográficas:
Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano do dia 07 de abril de 2012
FREUD, S. Contribuições para uma discussão acerca do suicídio, volume XI.
LAURENT, E. O trauma ao Avesso.
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Conversação enlaçando a arte do cinema e da argila

by cien_digital in Cien Digital #17, Cine Cien

Cindy Sherman, Untitled, # 316, 1995, Edition 3/6

Laboratório Guarnicê • São Luis (MA)
Thaïs Moraes Correia (coord.), May Guimarães, Carmem Damous,
Maria de Lourdes Maia, Débora Lima Baese, Cláudia, Kassiane, Márcia Assunção

O laboratório Guarnicê (ef.)- março de 2010 a junho de 2013 – teve início com a leitura dos textos gentilmente cedidos por Rosário do Rego Barros e os que fomos ao longo desse tempo recolhendo dos boletins da EBP, das revistas “Arteira” bem como alguns textos iniciais sobre a História do CIEN, que aconteceu pela primeira vez na Delegação Geral MA de 1998 a 1999.

Nesse momento, em março de 2015, em que somos novamente chamados a voltar para esse lugar, nos perguntamos: O que de fato aconteceu ali, onde a presença do CIEN volta a ser demandada?

É comum aqui ouvirmos: afinal, o que é o CIEN? Não se trata de um ‘espaço terapêutico’, nos diz Judith Miller, por ocasião da V Jornada Internacional do CIEN, em 2011. As conversações que o CIEN provoca têm o objetivo de fazer emergir um saber não sabido, a partir do qual se produz um deslocamento das perguntas/certezas trazidas pelos profissionais, que insistem muitas vezes em reclamar de sua impotência. O laboratório provoca um descolamento dessa impotência.

No primeiro semestre de 2010, pensávamos em desenvolver uma atividade nas escolas da comunidade, mas a experiência acabou sendo outra – dirigida ao ICE onde chegamos a convite de Deborah Baese, que fazia parte do encontro de estudo de textos sobre o CIEN, que realizávamos na sala da DG-MA. Ela foi uma das fundadoras do ICE e também participou da formação deste laboratório do CIEN. Foi nos ofertado, a partir de agosto de 2011 até junho de 2013, o espaço de um enorme galpão, onde funciona o “Centro Comunitário Elita Pinheiro” (atualmente Fórum do desenvolvimento sustentável do Jaracati). Lá são desenvolvidas diversas atividades dirigidas à comunidade do Jaracati, que é carente em vários aspectos. Nesse bairro, havia um lixão que fornecia, para famílias daquele local e redondezas, uma fonte de renda. Porém, por ser um bairro bem localizado, que abriga vários órgãos públicos, atraiu para lá a construção do Shopping São Luís, de modo que muitas pessoas que habitavam a área se deslocaram para outras regiões e, das que ficaram, várias tiveram que buscar outras fontes de renda, como por exemplo, o tráfico acirrado de drogas. O bairro possui o estereótipo de ser violento, mas alguns membros pertencentes a essa comunidade, através dos diversos trabalhos sociais desenvolvidos ali, visam transformar essa imagem. Uma das pessoas envolvidas e empenhadas nesse objetivo é a moradora da comunidade e diretora do C.C.E.P., Márcia Assunção, que participou das oficinas durante esse período. Nesse espaço, também funcionava o telecentro/informática; brinquedoteca/espaço lúdico, oficinas de judô e o projeto leitura encena/teatro e leitura.

Após algumas conversações em torno dos impasses que ali se colocavam, surgiu a ideia de iniciarmos um trabalho envolvendo cinema e cerâmica. Essa proposta foi aceita por todos e, no ano seguinte, em 2012, foram montadas as oficinas de cinema, seguidas pelas de cerâmica, onde as crianças, após assistirem filmes e comentarem o que lhes chamou a atenção em cada película, faziam a cerâmica baseada no filme assistido. Essas oficinas foram sugeridas e coordenadas por Thaïs Moraes Correia e por May Ferreira, contando com a participação dos oficineiros, alternadamente.

Keisuke Yamada, “Darth Vader”, Banana Sculpture, 2011

Os oficineiros e educadores trabalhavam diariamente com as crianças e, em vários momentos, fomos convocadas para intervir em impasses, discutindo acerca dos problemas mais marcantes do grupo, onde a violência (dentro e fora de casa) sempre esteve muito presente. Frequentaram esses encontros em média 15 crianças e jovens na faixa etária de 8 a 14 anos, moradores do Jaracati.

Observamos um grande entusiasmo das crianças com o fato de poderem ser escutadas e também de terem direito a opinar – o que significava ter, enfim, voz ativa. Ao falar do que viam nos filmes, podiam articular algumas passagens com suas vidas, identificando-se com este ou aquele personagem. Algumas crianças tinham imensa dificuldade em falar e aquele foi um momento mais de ouvi-las do que falar. As brigas e roubos eram constantes entre as crianças e muitas eram as demandas, até de papel higiênico, por exemplo.

Também fizemos atividades com as mães das crianças. A primeira delas foi um café da manhã com o tema: “Violência dentro e fora de casa”. A presença das mães e avós foi grande. Além da violência física, havia uma indiferença generalizada e desinteresse para com as crianças, que eram vistas como um estorvo. As mães se apresentaram uma a uma, falando de seus filhos e fazendo algumas perguntas acerca de “como educar” e como dar “limites a seus filhos”. Como fazer, afinal, para envolver essas mães que deixam seus filhos com as avós, na escola ou na instituição, para fazerem uso de drogas?

Agora, no “só – depois”, revendo o que realizamos neste laboratório, percebemos que não poderíamos ter-nos deixado levar pelas demandas – tanto da coordenadora do Centro como dos pais/mães/avós das crianças – realizando um trabalho no corpo a corpo com as crianças e jovens como fizemos; e sim ter insistido em apenas escutar e/ou intervir junto aos profissionais que “cuidam” das crianças e jovens. As dificuldades e impasses giraram em torno de como controlar a inquietação e violência presentes nesse universo. Percebemos que a fixidez dos significantes – violência – roubo – estupro – crimes e drogas – acabavam por nomear essas crianças, que respondiam com angústia àquilo que seus corpos denunciavam. Sabemos que a palavra tem efeitos no corpo e que é possível uma mudança nesses corpos quando se deixa penetrar por um discurso que não é analítico, mas que busca orientar para um desejo que não seja anônimo.

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“17 Filles”

by cien_digital in Cien Digital #17, Cine Cien

Delphine & Muriel Coulin, 17 Filles, 2011

Sobre o filme de Delphine & Muriel Coulin, 2011
Cristina Drummond

Somos avisados de que a história que vamos assistir é baseada em fatos reais (que ocorreram em 2008, nos Estados Unidos, na Gloucester High School). O fato de o filme ser contextualizado na França nos indica que a questão que ele quer levantar não é local, e sim está presente por todos os lados em nossa contemporaneidade. Sabemos que a adolescência é o tempo em que o sujeito busca se separar de seu Outro e isso implica em que ele encontre novas respostas e que seu corpo seja colocado em questão de uma nova maneira. Se podemos tomar essa afirmação como um universal, como ele é tratado interrogado a partir de um acontecimento?

O filme se inicia com uma exibição dos corpos de várias adolescentes que estão indo para uma avaliação médica de rotina na escola. Tatuagens, corpos magros, risos, brincadeiras. Esse clima de rotina, no qual se pesa e se mede o corpo, é quebrado com a declaração de uma jovem à enfermeira, de que ela pensa estar grávida.

Dentro de sua mochila, um teste de gravidez e o gadget preferido pelas adolescentes: celular com fone para ouvir música. Na aula de educação física ela e as amigas se escondem no meio da corrida para enrolar a professora e fumar. Atitude típica e comum por todas as escolas do mundo. Nesse momento, ela conta da gravidez às amigas que tomam o fato como um desastre e pensam que ela deve abortar para não ficar gorda e ter que deixar a escola, nem tampouco ficar presa com uma criança e um trabalho de merda. Ela ainda não contou nada à mãe porque quer decidir sozinha. Ela diz às amigas que se sente diferente e que elas não podem saber nada do que ela experimenta.

Neste momento ela já se apresenta como aquela que sabe algo que as outras não sabem. É dessa posição que vamos acompanhar essa adolescente. Ela se coloca como uma exceção que tem acesso a um saber que as outras não têm.

Quanto ao pai da criança, ela diz que isso não tem nenhuma importância e que tudo foi um acidente de uma noite em que a camisinha rompeu. As amigas dizem que continuarão inseparáveis e ficarão ao lado dela. Aqui também a jovem se coloca como aquela que quer dar conta de sua experiência sozinha, dispensando a opinião da mãe, das amigas e do pai da criança. Ela busca se afirmar como responsável por seu ato.

A jovem vive num prédio popular, cozinha e come sozinha, já que o irmão não aparece e a mãe tem que ir trabalhar. É uma rápida visão da vida familiar. Não há pai, não se sabe o que aconteceu, e a mãe funciona como arrimo de família e se ocupa em sustentar a casa, sem tempo para cuidar de mais do que isso. Com as amigas ela come no refeitório e elas excluem uma colega da mesa. Essa colega tem nome: Florence, porque até agora todas as demais que formam um grupo de cinco, não são sujeitos nomeados nem separados.  Fala dos enjoos com a comida que vão passar depois dos 3 meses e as amigas compreendem que ela vai dar sequencia à gravidez. Sua intenção é continuar na escola e ter uma vida que valha por duas: uma com o bebê e outra na escola, uma contabilidade que indica um plus de vida. Ela terá alguém que a amará por toda a sua vida. Ao mesmo tempo em que ela discute isso com as amigas, ela quer convencê-las, como também a si mesma, de que esse acaso é uma escolha por uma vida mais interessante e melhor.

O nome da jovem aparece na boca de Florence quando a enfermeira lhe diz que terá menstruação durante muitos anos, a menos que resolva ter dez filhos. Ela pergunta-lhe se Camille Fourrier está grávida. A notícia se espalha pela escola e Florence, que era rejeitada pelas colegas, buscando ser aceita no grupo, diz a Camille que também está grávida.

Ao conversar com sua mãe, esta fica furiosa com a notícia e julga a filha incapaz de cuidar de sua própria vida e até mesmo de seus peixinhos. Camille diz que se sente capaz de cuidar de um filho melhor do que a mãe. A mãe diz que teve que deixá-la sozinha porque tinha que trabalhar para sustentar os filhos e que ela havia crescido apesar de tudo. A mãe diz que ela pensa que é esperta, mas que ela é na verdade uma idiota e que desta maneira ela vai ter que deixar a escola. Camille diz que tem certeza de que não vai falar dessa maneira com seu filho, que vai cuidar dele e não o deixará sozinho. Ela supõe que vai ser uma mãe diferente da que teve e que desta maneira poderá ter uma família. A mãe diz que não quer se ocupar dessa criança, que quer viver. Camille diz que ela também quer viver, mas que essa é a última das preocupações da mãe.

Nesse sentido essas jovens nos apresentam as novas manifestações da impossibilidade do encontro entre os sexos, são falasseres que se defrontam com o furo do real, furo que deixa o Um sem o Outro. O modo de gozar na atualidade encontra seu fundamento na impossibilidade de escrever a relação sexual entre os seres que não se ligam pelo laço pai-mãe, mas apenas pela linguagem e pela fala. A ausência de relação sexual se apresenta, mais do que nunca, sem as vestimentas do pai e das exigências familiares.

A fala de Camille nos permite pensar que ter um filho se apresenta para ela como uma chance de ter uma família construída num molde distinto dos tradicionais e ao cuidar do bebê, cuidar de si mesma, ter uma vida separada do abandono que sente. O bebê vem como um objeto que supriria sua falta e resolveria as consequências de sua experiência de abandono e devastação. Entretanto, é interessante percebermos que esse bebê não se inscreve numa solução edípica, ele não é tomado como a metáfora do falo que poderia ser dado pelo pai, tal como Freud nos propõe. Ele é imaginado como um objeto que permitiria a ruptura da relação mãe-filha, sem uma mediação fálica.

Candido Portinari, Circo, 1941

Florence se oferece para ser a parceira de Camille no cuidado com as crianças e Camille aceita sua aproximação e que ela lhe pague uma coca-cola. As relações podem ser inscritas num mercantilismo ainda que de custo baixo.

Camille ainda não contou ao irmão e diante dessa questão de ter que enfrentar os representantes do sexo masculino, ela propõe às amigas de ficarem grávidas juntas. “Vamos ser livres, felizes, responsáveis”. Desta maneira elas permanecerão sempre juntas. Ela, na posição de exceção poderia fundar o grupo das novas mulheres, numa espécie de sociedade protetora do falo feminino.

Todas decidem que vão tentar engravidar numa festa. Ali Camille encontra o pai da criança. Quando ele lhe pergunta se ele tinha alguma coisa a ver com sua gravidez, ela responde que não. Sua tentativa é a de inscrever esse filho apenas no campo do feminino, uma decisão que dispensa a mãe e o pai, a repartição sexual. Quando a amiga pergunta se pode transar com ele, Camille responde que isso não tem nenhuma importância para ela, o que importa é que a amiga o faça. O mais importante para ela é que seu lugar de exceção, de A Mulher, seja reconhecido e sustentado pelas amigas. É essa a mascarada histérica que ela pretende bancar. A maternidade não se apresenta como uma consequência da contingencia do encontro amoroso, nem como um tratamento para o gozo feminino.

Na reunião dos professores, eles comentam o fato de várias alunas estarem engravidando. Um diz que isso é uma atitude típica das adolescentes que buscam se apropriar de seus corpos. Umas se tatuam, outras se mutilam, outras param de comer. Essa seria uma atitude de desafiar os pais que não concordam com essa decisão. Se esse ponto de vista tem seu fundamento de verdade, a adolescência realmente é um tempo no qual o falasser busca se relacionar de uma nova maneira de seu corpo, isso está longe de ser uma pura relação de apropriação. Se encontramos com frequência nesse momento da vida a presença de cortes, de automutilações ou de distúrbios alimentares, esses sintomas são índices de uma dificuldade e de uma angústia de difícil tratamento.

Perante a lei os pais não podem forçar as filhas a abortar e essa é uma situação em que as adolescentes são tomadas como responsáveis juridicamente.

Uma professora diz que é um progresso que as jovens possam dispor de seus corpos. Outra diz que isso é um passo para trás, já que essas adolescentes só terão como perspectiva de vida futura serem mães. Outro professor diz que é preciso compreender politicamente o gesto das adolescentes. Alguns querem convencer as adolescentes a tomar pílula e a enfermeira diz que elas estão muito certas do que estão fazendo. A pergunta é de se aos 16-17 anos podemos fazer uma escolha de tal ordem, se se é capaz de fazer uma escolha.

Essa é uma pergunta de difícil resposta, mas que deve ser colocada em cada caso particular, pois não há como responder pela condição de cada falasser poder se responsabilizar por seu ato. Na situação do filme é difícil determinar se o que cada uma delas escolhe é verdadeiramente ser mãe.

As adolescentes verificam o dinheiro que podem receber do governo e pensam que com ele elas podem se organizar e, sobretudo, ficarem livres das ordens maternas. O projeto é o de serem diferentes de suas próprias mães, já que por serem jovens serão mais próximas dos filhos. Não haverá choque de gerações e elas serão como irmãs dos filhos, uma grande família. Uma comunidade só de mulheres com seus filhos, ou ainda uma comunidade de irmãos.

De qualquer maneira, o saber dos professores parece insuficiente para orientá-los a intervir e a se posicionar na situação. O diretor passa um filme onde uma mulher está tendo um filho de parto natural e os alunos riem de certa maneira constrangidos. Podemos pensar que ele buscava mostrar a realidade da situação que elas teriam que enfrentar, mas o faz de maneira pouco clara como se ter um filho, ser mãe, fosse passar por um parto. Além disso, em nenhum momento a palavra é dada às autoras da decisão. As jovens, sem chance de fala, entendem que o que o diretor quer é assustá-las. A posição da escola é muito mais a de querer coibir a ação das adolescentes do que a de promover uma oportunidade de discutir o que se passa com elas, se perguntar sobre o que estaria em questão naquela situação, no lugar de incluir o que estava se passando num saber já pronto. Quanto às adolescentes, elas não sabem como usar um teste de gravidez e nem muito bem o que terão que enfrentar. Só sabem que juntarão suas moedas e que seguirão em frente em sua decisão. E que o saber oferecido pela escola não lhes serve para tratar do que acontece com elas.

Uma das adolescentes, que não consegue encontrar um parceiro, porque é mais jovem que as outras, oferece dinheiro para um colega e este aceita. Novamente o fato se inscreve de modo mercantilista, o que parece reduzir a situação a uma situação de compra. Nesse comércio, ninguém precisa saber exatamente o que compra nem o que vende e as personagens não têm ainda nome.

Camille faz um ultrassom e pode ver o bebê mexendo em seu ventre. Ela não quis saber o sexo da criança e essa visão é diferente do que ela e as amigas podem ver no livro. Ela conta à enfermeira que anteriormente ela não podia imaginar o bebê e no ultrassom foi esquisito porque ela o viu, e agora ela está morrendo de medo. Aqui podemos claramente ver como o discurso da ciência que antecipa as imagens da criança pode perturbar a estabilidade da jovem angustiando-a ao apresentar o bebê como um corpo real. Essa imagem tem um efeito muito diferente daquele provocado pelas imagens do filme projetado pelo diretor. A imagem do ultrassom concerne ao corpo de Camille, e lhe apresenta algo vivo e real de que ela ainda não tinha querido saber e que a angustia. A enfermeira diz que não tem outro jeito senão seguir em frente.

Mariana Palma, Untitled, 2013

Na comemoração de natal a mãe não a deixa beber e ela tem que contar ao irmão que está grávida. Ele pergunta brincando se eles terão um soldado ou uma desempregada, isto é, se a criança será como eles. O irmão oferece seu quarto para o bebê, mas a mãe diz que Camille tem a intenção de ir para um pequeno apartamento e isso será melhor para todos. Não fica muito claro de quem é a decisão, já que nada é muito discutido. O irmão lhe dá de presente um urso do Afeganistão onde ele luta na guerra e a mãe lhe dá um curso de direção. O irmão e a mãe lhe ensinam um pouco a dirigir para que ela não tenha que pagar tantas aulas. Dirigir um carro não a habilita a dirigir sua vida, ainda que pareça que irmão e mãe reconhecem que ela já pode dar um passo.

Os pais de Clementine, a jovem que paga para engravidar, estão furiosos com ela que ainda é muito jovem e infantil. O pai lhe diz que ela é influenciada por Camille e lhe pergunta se elas querem mudar o mundo. Clementine diz que quer tentar e que não quer ficar como seus pais, idiotas. O pai diz que não vai tolerar aquilo e que vai levá-la ao hospital para que ela faça um aborto, mas ela responde que a lei está do seu lado. E ela foge de casa. Ela quer ficar com Camille. Apesar de Clementine ser uma adolescente que conta com um casal de pais, seu pai se apresenta impositivo e sem nenhuma condição para orientá-la ou fazê-la refletir a respeito da gravidade de sua decisão. Ele quer decidir por ela como se ela ainda fosse uma criança, coisa que ela recusa.

A ideia das meninas é que seus pais, assim como o diretor da escola, querem lhes causar medo, para que elas continuem na mesma vida de merda deles. Esse medo provocado seria apenas o reflexo do medo que eles próprios teriam de mudar de vida. No lugar de se intimidarem, elas querem demonstrar que podem sustentar sua decisão e resolvem encontrar um lugar para ficarem juntas e decidirem sobre suas vidas. E invadem uma casa abandonada na praia. Clementine gosta de ver seus pais preocupados com ela, mas Camille diz que elas têm que se virar sozinhas, dispensar os pais.

O ultrassom de uma das meninas parece apresentar alguma alteração. Isso ameaça a todas, uma pequena diferença que, além disso, é mais um problema a ser encarado por um grupo tão imaturo e que enfrenta tão mal o desigual. Aqui o medo é real e sua causa não pode ser imputada a um adulto ignorante e de mal com a vida. É no corpo de uma delas que as coisas acontecem.

Clementine, com medo de enfrentar uma chuva de vento naquela casa precária, chama seus pais. Quando chega ali, Camille vê que a casa está abandonada e sai de carro com o irmão. Esse lhe diz que isso era só o começo do que iria acontecer, que elas não iriam conseguir manter o projeto de criarem seus filhos juntas. Ele lhe diz que o projeto dele também era o de sair daquela vida e que se viu atirando em pessoas que não haviam feito nada contra ele. E que ele se encontrou sozinho, sem ninguém para ajudá-lo.

O que o irmão de Camille aponta é a solidão dos uns que de alguma maneira está na base dessa solução sintomática de uma gravidez em grupo. Apesar de elas buscarem uma solução comum, temos no fundo uma solução que indica a pluralização dos sintomas que concernem à maternidade na contemporaneidade, e a consequência do fato de que a existência, que anteriormente era sustentada pela função paterna, se deslocar da exceção para as múltiplas soluções. Os sintomas da maternidade são múltiplos. A existência se encontra para além dos ideais e dos modelos de família preconizados como adequados e bem orientados para a procriação. É como se não havendo a exceção paterna, todas as existências se apresentassem como exceções. O Um se apresenta como o cada um sozinho.

Por isso o irmão de Camille é descrente na possibilidade de mudança, o que ele encontrou foi decepção e solidão.

Também assistimos atualmente às tentativas do direito de construir novas ficções jurídicas que busquem dar lugar a essas existências na lei, a essas soluções particulares que não se universalizam. O fato de essas adolescentes serem responsáveis juridicamente por suas decisões e contarem com o amparo financeiro do Estado, não garante que elas possam se responsabilizar por sua decisão.

Na televisão um jornalista interroga se o fato de 14 adolescentes estarem grávidas seria a consequência de uma crise econômica, do fato de a atividade pesqueira e industrial terem entrado em crise na cidade. É uma leitura que diz que essa decisão não está separada da falta de ideais e perspectiva de vida nos tempos atuais. A falta de oportunidades é também o que aparece no caminho que o irmão de Camille encontra ainda tão jovem e brincando de Amelie Poulin no meio de uma guerra fervilhante de mortes.

O diretor convoca os pais para falarem do assunto e diz que agora são 15 adolescentes grávidas. Diante da acusação de um pai de que ele é responsável, o diretor diz que ele não é responsável pela vida privada dessas alunas, em todo caso não mais que os pais. O fato de ele não ser responsável pela vida privada das meninas, e de não ser o pai delas, não o isenta da responsabilidade de tratar dessa situação. A enfermeira diz que quer instalar uma máquina de preservativos na escola, mas que o uso de pílula é de responsabilidade dos pais. O diretor quer que os professores aumentem o controle e obriguem os alunos a trabalhar. Ele também pretende excluir a jovem que é a cabeça do grupo pensando que isso pode ser uma maneira de provocar medo nas outras. Vemos aqui a dificuldade da escola e dos pais dimensionarem suas responsabilidades e o alcance da tarefa impossível de educar. O que a escola quer é que isso acabe e que o real fique de fora de seus muros.

Thais Beltrame, ninho – detalhe
(série ‘qualquer tempo que já passou pertence à morte’), 2010

A enfermeira pergunta a Camille porque ela levou as outras pelo mesmo caminho, se era porque ela se sentia só ou tinha medo. Ela diz que isso não tem importância. Que no início teve medo e que estava feliz por suas amigas. Ela diz que foi apenas a primeira e a enfermeira diz que algumas não vão conseguir sair dessa experiência, Clementine por exemplo. Camille pergunta se os adultos tiveram melhores ideias. A enfermeira que confessa não ter filhos, diz que lhes era oferecida a possibilidade de estudar e viver melhor. Camille diz que há nos adultos uma mentira de não perceber que a vida deles é uma merda. O que ela denuncia é uma repetição da falta de perspectiva e de desejo e um saber que não leva em conta um furo, um saber que tudo sabe e que não dá lugar para a subjetividade e as singularidades. Ela tem certeza de que elas têm que tentar outro caminho. Camille diz que essa conversa com a enfermeira acabou com as dúvidas que ela tinha a respeito de sua decisão.

Com certeza Camille não tinha nenhuma condição de saber a respeito de sua posição de bancar A Mulher, de ser a exceção e a conversa com a enfermeira que não tem filhos a desautoriza, assim como aos outros adultos a estarem na posição de serem modelos para uma identificação. A enfermeira não sabe nada sobre maternidade, já que ela não é mãe. E por ter não vivido isso em seu corpo, ela é desautorizada por Camille. É essa destituição da posição de ideal da enfermeira assim como sua experiência que fazem Camille ter certeza de sua decisão.

Júlia acusa Camille de estar com ciúmes porque Tom está apaixonado por ela. Elas levantam a blusa de Florence e descobrem finalmente que ela mentiu o tempo todo que estava grávida.  Elas vão buscar Clementine para libertá-la. Cantam: viva o chocolate, a heroína e a vodca. Nem há lugar para o amor nem para o sentido. É como se nesse momento a autoridade e a lei estivessem diluídas e ausentes do mundo.

Agora os acontecimentos vão ser desencadeados para mostrar que a solução idealizada não pode ser realizada. Elas vão para a praia onde encontram os rapazes e ali continuam brincando com o fogo. Clementine perde o fôlego e Camille a leva de carro para sua casa. Mas depois Clementine lhe manda uma mensagem dizendo que seus pais não estão em casa e que ela perde sangue. Camille dá meia volta, mas tem um acidente. Ela avisa Clementine e tenta falar com as amigas, em vão. O carro não liga e ela avisa Clementine onde está. A ambulância chega. Camille teve um descolamento de placenta. Tom fica no quarto com ela. Mas não há retorno possível, o que foi decidido arrasta suas consequências.

Essa sequencia de fatos vem nos trazer o real que sempre irrompe ali onde não é esperado. A precariedade das adolescentes se apresenta, mas isso não invalida a decisão que elas tomaram.

Ninguém soube o que aconteceu com Camille depois que ela perdeu o bebê. Ela deixou tanto a cidade como sua mãe. Junto com o bebê ela perdeu seu lugar de exceção e fica impossível para ela permanecer no grupo. Ela continuou a fazer as amigas sonharem com uma outra vida, mas nunca voltou ao colégio. As adolescentes não criaram seus filhos juntos, mas continuaram a frequentar a escola. Tudo foi um sonho da adolescência, fruto de uma energia que ninguém pode conter. Afinal, mudar o que foi herdado é tarefa de difícil execução, sobretudo em tempos tão precários e com tão pouca esperança.

Nenhum happy end e o que encontramos no final também não é nada desastroso. As adolescentes continuam na escola, os bebês são cuidados e pouca coisa muda na vida daquela cidade. Um filme que poderia estar discutindo um fato único, nos mostra que todas as soluções são únicas, são tentativas de dar conta da precariedade do simbólico em nosso mundo. A maternidade é uma aposta, o grupo de mulheres que dispensam o homem é outra mais, o apoio no grupo dos iguais, encarnar a exceção ali onde não há ideal, o bebê como objeto tampão, a exclusão da vida, da escola e do saber, todas essas saídas são efeitos desse impasse dos falasseres encontrarem o como fazer sem o suporte de modelos que os orientem e, sobretudo, sem um lugar para a sua palavra.

Em nosso mundo, o falo se tornou um instrumento particular que serve simplesmente para marcar o fracasso, o ratear da relação. A única possibilidade é a de que as relações se façam pela fala e pela linguagem. Essa é a chance e a aposta da psicanálise.

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Gravidez na adolescência: sair da vida de merda?

by cien_digital in Cien Digital #17, Cine Cien

Delphine & Muriel Coulin, 17 Filles, 2011g

Teresa Mendonça e Simone Pinheiro

As mudanças que a ciência moderna nos impõe, não desvinculadas dos interesses capitalistas, dão origem a novos modos de se experimentar a sexualidade. O controle da natalidade e as drogas que garantem a potência sexual, diferentes formas de procriação, seleção genética e os exames de DNA, entre outros, vão fazendo desaparecer gradualmente a ligação entre a reprodução, o ato sexual e a parceria amorosa. Defrontamo-nos com novos modos de gozo.

O filme “17 filles” retrata um episódio verídico, acontecido em 2008, numa escola de Massachusetts – EUA: Dezessete alunas engravidaram-se ao mesmo tempo.  A realização do filme, entretanto, se passa na França, no fim do verão. Nesta época acontece uma invasão de joaninhas que vêm à praia, para morrer. As adolescentes trocavam suas confidências na praia e, brincando com as joaninhas, uma delas comenta: “Joaninhas gostam de merda”. Ao longo do filme, em vários diálogos, as meninas qualificam a vida dos adultos como “vida de merda” ou seja: séria, sem diversão, sem tempo para os filhos e com pouca realização no trabalho. A escolha pela gravidez, ao mesmo tempo, em um momento da vida de transição, desafia-nos a pensar a posição dessas jovens. A gravidez seria uma solução para não cair na vida de merda?

A primeira a engravidar, Camille, conta às amigas que ficou com um rapaz qualquer, só por uma noite, cujo nome não importa, e a “camisinha estourou”. Diz: “Eu não preciso dele”. Destaca-se das demais pela novidade e excepcionalidade da situação que passa a viver.  Além de demonstrar orgulho diante da gravidez não planejada, sua tristeza, angústia e medo são evidentes. Diz que “não se sente a mesma”, mas terá “uma vida a 200%” junto ao filho, que a “amará para sempre e sem condições”. O amor do filho seria uma garantia para não cair na vida de merda?

À sua mãe Camille fala que “pelo menos terá a impressão de ter uma família” e que “será melhor mãe que ela”.

Delphine & Muriel Coulin, 17 Filles, 2011

Florence é também aluna da escola e não faz parte desse grupo de amigas, mas deseja muito ser incluída nele e ter um lugar junto a elas. Para isso, simula que também está grávida. Camille se alegra e sente-se apoiada pelo fato de Florence fazer, agora, par com ela. Fazem até planos de se ajudarem no futuro e, juntas, criarem os filhos.

Identificadas com Camille, que, “pelo menos está vivendo algo diferente”, expressão das jovens no filme, as outras adolescentes fazem, então, o pacto de se engravidarem ao mesmo tempo. Pensam que, como mães, passariam a ser livres, felizes e responsáveis, e mudariam sua realidade de vida.

Freud (1996 [1905], p.214) já anuncia que “uma das realizações psíquicas mais significativas e dolorosas da adolescência” é o desligamento das figuras paternas que institui a oposição entre a nova e a velha geração. Os dizeres das adolescentes no filme revelam o desejo de que esse desligamento se concretize e possam ter um destino diferente daquele de seus pais.

Estar grávida parece possibilitar às adolescentes uma nova nomeação: MÃE. Significante forte, impregnado do sentido idealizado do amor e compromisso. De acordo com Mendonça (2012) ser mãe seria então uma maneira da adolescente ascender ao mundo adulto e identificar-se socialmente buscando uma afirmação no mundo.

Jana Brike, Dreaming Soldier, 2013

Qual o estatuto da gravidez dessas jovens do filme? Uma resposta sintomática à irrupção do real da puberdade que perturba seus corpos? Estariam elas, com este ato, protegendo-se da angústia, não desejando saber da verdade do inconsciente? Essa gravidez está endereçada ao Outro? Aos pais, à mãe, à escola (na figura dos professores, do diretor, profissional de saúde) aos rapazes?

Pierre Naveau (2001, p.139) afirma: “A mãe é uma mulher se o filho não é tudo para ela. Se seu desejo se divide entre a criança e o homem”. Para ter um filho do desejo, a mulher tem que consentir com a castração. Só a partir dessa posição admitida do não–toda, posição feminina, a mulher pode consentir em ser desejada por um homem.

Ao contrário, as jovens, em uma posição fálica, com semblante de completude, propõem aos meninos que as engravidem e, sem a mediação do afeto, não há um consentimento de que o homem limite seu gozo. Os rapazes foram dispensados no que se refere a seu nome e a paternidade. Seus corpos foram usados como objeto, num “embalo de sábado à noite”. No filme eles se relacionam com as meninas mantendo a proximidade demandada por elas, “ficam” com as grávidas, mas fazem uma presença secundária.

Acidental ou planejada, a gravidez impacta a vida dessas adolescentes que fazem laço libidinal pela identificação imaginária e sintoma com o corpo para “não ter uma vida de merda”, como a da geração que as antecede. Poderíamos então considerar a gravidez na adolescência uma das respostas diante do irrepresentável da condição feminina?


Referências Bibliográficas:
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Ed. Imago, v. VII, 1996.
MENDONÇA, T.C.P. Aspectos subjetivos determinantes da gravidez reincidente na adolescência: Uma abordagem a partir da Psicanálise. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde da UFMG. Belo Horizonte, 2012.
NAUVEAU, P. A Criança entre a Mãe e a Mulher. Belo Horizonte: In: Curinga-Escola Brasileira de Psicanálise, 2001.
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