Skip to content

Morte e vida na escola ou a crisálida vira borboleta

image_print
Philippe Falardeau, Monsieur Lazhar, 2013
O filme Monsieur Lazhar traz boas novas ao Cien Minas
Margarete Parreira Miranda

O filme canadense de Philippe Falardeau (2012) trata do suicídio de uma professora na escola em que dava aulas e de suas conseqüências. Impacta-nos com a morte, de início. Ao se despencar para fora da cena, se enforcando em seu cachecol azul, o ato da professora Martine deixa resto nefasto.  “Martine decerto estava desanimada com a vida. A última coisa que ela fez foi empurrar a cadeira para que ela caísse”, diz Alice, sua aluna de 12 anos, expressando tristeza e incertezas. Assim Lacan (2005) nos esclarece sobre o sujeito que se apaga, ao se precipitar da cena: “Ele vira fumaça”. O suicídio da professora forma um rastro e impregna os espaços daquela escola.

No momento de passagem ao ato, nos ensina Lacan ( LACAN,2005, p.129), o sujeito é tomado por embaraço maior e age, impelido ao largar de mão“com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio de comportamento”. Surpreendentemente, o desenrolar da história que o filme apresenta caminha da morte para a vida, fazendo percurso inverso ao que naturalmente se espera do enredo humano, com o inevitável traumático da morte ao final.

Para Eric Laurent (2014) o trauma não pode ser tomado sem se considerar a estrutura do sujeito. “Esse ponto pode ser especialmente verificado nos traumatismos de massa. Com efeito, mesmo as contingências sofridas por um grande número de pessoas ressoam de modo único para cada um”, defende. Diversas situações do filme vão trazendo arranjos peculiares, como diferentes respostas ao trauma. Frente ao real, aquilo que a insuficiência simbólica emudece, as palavras escasseiam produzindo uma angústia que não se engana. Cada um se apresenta com o seu sintoma revelando as singularidades.  Pais, professores, diretora e alunos lidam com o que resta como mortífero na escola, tomado inicialmente em sua radicalidade: a professora Martine não mais se encontra ali para historicizar seu ato. Outros buscam, então, tratar o impossível, o inominável, aquilo que angústia causa. “Martine não estava bem há muito tempo. Ela tinha crises de angústia”, relata a professora Claire, sua amiga. Resposta imediata da diretora foi buscar desaparecer o acontecimento, no branco das paredes da sala de aula que ela manda repintar: “Não quero insubordinação a respeito”, declara. Pelos corredores e ambientes da escola, o adolescente Simon é tomado por sucessivos atos de agressividade, sem deixar de usar sua máquina fotográfica, presente da professora Martine. No importante momento em que é confrontado, traduz em palavras sua angústia: “A culpa é minha?”.  Os alunos conversam entre eles: “Por que ela fez aquilo?”

O professor Lazhar veio substituir a professora Martine. Seu nome significa em árabe “aquele que traz boas novas”, e seu personagem define outro jeito de transitar pela instituição, pelas circunstâncias de ensino e pela relação professor aluno. Outra novidade, entretanto: Alice, em sua travessia adolescente, como uma crisálida que sobrevive aos incêndios e vendavais, visita diversos espaços também anunciando “boas novas”. Se deixa surpreender e interroga: “Bachir Lazhar? Qual é a origem?” Ela insere o professor na cena da sala de aula. Expressa-se com sua verdade e percorre os próprios vazios se permitindo formular enigmas. Às vezes silencia, mas o olhar expressa. Ao enfrentar a angústia buscando palavras para emprestar nomes ao real, Alice diz: “Eu fiquei triste de verdade […] Às vezes me pergunto se ela não quis passar uma mensagem de violência. Nós quando somos violentos somos presos, mas não podemos prender Martine Lachance porque ela está morta”. Assim segue Alice apostando no dizer e se opondo à crueldade, à violência e à injustiça.

Alice reconhece em Bachir o mestre, a quem se liga pela firmeza e pelo consentimento ao seu desejo de saber. Mais que isso, Mr Lazhar distingue cada aluno com seus sintomas e se posiciona como mestre cuidadoso. Estrangeiro, fugitivo ou exilado ele nunca havia sido professor até então, e esse era seu segredo. Por isso, talvez, estranhe as condições petrificadas e faz da posição de mestre um lugar vivificado. Entende o desejo daqueles adolescentes “de falar da morte juntos”. E aposta: “Se alguém quiser falar fique à vontade”. Mas está também atento a regular o gozodo a mais da palavra: “Quero que seja feito com respeito”, ele diz, no tenso momento em que Simon é interpelado por Alice, sobre sua difícil situação com a professora Martine.  São ainda do professor as palavras esclarecedoras endereçadas aos seus alunos:

Não se deve buscar um sentido na morte de Martine Lachance. Porque não tem. A sala de aula é um lugar… um lugar de amizade, de… trabalho, de comportamento. Sim, de comportamento. Um lugar onde tem vida. Onde a gente consagra a vida. Onde a gente dá a nossa vida. Um lugar onde se deixa de lado nosso desespero.

Émilien Néron como Simon, Monsieur Lazhar, 2013

Como não lembrar Freud, ao tratar o tema do suicídio nas escolas secundárias em 1910? Para ele a escola “toma o lugar dos traumas com que outros adolescentes se defrontam em outras condições de vida” (FREUD, 1910, p. 217). E deixa claro em suas argumentações, os elementos que devem sustentar o seu movimento:

A escola nunca deve se esquecer que ela tem que lidar com indivíduos imaturos a quem não pode ser negado o direito de se demorarem em certos estágios do desenvolvimento e mesmo em alguns um pouco desagradáveis. A escola não pode adjudicar-se o caráter de vida: ela não deve pretender ser mais do que uma maneira de vida (Freud, 1910, p.218)

Entendemos que essa maneira de vida ganha curso na escola do Monsieur.

A professora Martine deixa também na escola o Livro de Fábulas, ponto de vida que Monsieur Lazhar não deixa escapar. A fábula oferece recursos pela narrativa, para que os adolescentes inventem saídas, dando outros destinos para o mal-estar que aquela perda provocou.  Da fábula se apropriam como solução, ao trazerem o tema da injustiça emerso em sala de aula. Desse recurso também se serve o professor Bachir, para se despedir de seus alunos, já que seu segredo revelado o impelira para fora dali. Ele sabe da importância das histórias no que toca as subjetividades. E assim fala da luta morte/vida e suas contradições, em seu conto lido para os discípulos e que registramos a seguir.

A árvore a crisálida

Bachir Lazhar

Nada há a dizer sobre uma morte injusta. Nada mesmo. Nós vamos mostrar daqui a pouco.

Sobre um galho de uma oliveira estava suspensa uma pequena crisálida de cor esmeralda. Amanhã ela se tornaria uma bela borboleta, liberada de seu casulo. A árvore exultava em liberar sua crisálida. Mas em segredo ela adoraria guardá-la ainda uns anos. “Para que ela se lembrasse de mim”. Ela a tinha protegido do vento. Ela a tinha salvo das formigas. E amanhã ela a deixaria enfrentar sozinha… Os predadores e os intempéries. Naquela noite… Um grande incêndio devastou a floresta, e a crisálida nunca se tornou borboleta. De manhã, o fogo apagado, a árvore ainda estava de pé, mas seu coração estava em cinzas, roído pelo fogo, roído pelo luto. Depois disso, quando um pássaro pousava na oliveira, a árvore contava sobre a crisálida que nunca acordou. Ela a imaginava com as asas abertas, ondulando no azul de um azul do céu azul, bêbada de néctar e liberdade. Testemunha privilegiada de nossas histórias de amor.

O filme termina com um gesto translúcido de nossa pequena Alice, em seu despertar: abraça silenciosamente seu professor, demonstrando a proeza da vida em um ato de amor. Aquele aceno é acolhido por Monsieur Lazhar, testemunho de um bom encontro na escola: a crisálida vira borboleta.

 


Referências Bibliográficas:
FALARDEAU, P. Monsieur Lazhar: o que traz boas novas. Canadá:Telefilm Canadá, 2012.
FREUD, S. (1910). Breves Escritos. Contribuições para uma Discussão acerca do Suicídio. In: ESBOPC. Rio de Janeiro: Imago, 1970. .
LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005.
LAURENT, E. Trauma generalizado e singular. In: Boletim do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: Trauma nos corpos e violência nas cidades. Belo Horizonte, 14/02/2014. Acesso: www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/02o trauma-generalizado-e-singular_9241.html. Acessado em: 11/07/2014.
Back To Top