
A família em questão![1]
by cien_digital in Cien Digital #25, Contribuições
Flavia Cêra

Concrete spiral in monochrome. Photo by Adrien Olichon from Burst
A família em questão! tema que reúne duas Redes sobre a Infância do Campo Freudiano, Cien e NR Cereda, chegou até aqui como um desdobramento do tema “Pais exasperados-Crianças terríveis”. Esse desdobramento se deu a partir das reuniões que mantivemos com o Bureau do Instituto da Criança – Ève Miller-Rose, Anne Ganivet, Daniel Roy -, com os colegas coordenadores das Redes na América e com as conversas entre mim e Nohemí Brown, que sempre estiveram atravessadas pelos trabalhos que acontecem nos Núcleos da NRCereda e dos Laboratórios do Cien. As redes Cien e NRCereda trazem, assim, o frescor do saber das crianças e dos adolescentes e recolhem um real que orienta a leitura do nosso tempo e do porvir. Como redes, ambas contam com a feitura, o desejo e a sustentação de muitas pessoas, de muitas mãos, muitas vozes, ouvidos, escritas.
Colocar a família em questão e, sobretudo, como uma questão para a psicanálise, é um exercício constante. As mudanças na cultura, nas leis, nas parcerias amorosas incidem diretamente sobre ela. Freud e, radicalmente, Lacan, acompanharam essas incidências da cultura ao lado dos romances, das ficções, das marcas contadas por cada um. Aí o horizonte da família se transforma e se amplia desde muito cedo para a psicanálise. Se com Freud tínhamos a ênfase nas tramas edípicas, com Lacan aprendemos a pensar a família além do Édipo, a partir de suas funções, de suas incógnitas e enigmas, de seus ditos e não-ditos, do desejo e do gozo.
Podemos acompanhar sua impressionante atualidade no texto de orientação de Daniel Roy[2] onde nos adverte que já não há mais universal para a família, que ela se inscreve em uma lógica do não-todo em que a criança tem um papel fundamental. A partir deste ponto perguntamos: entre os pais exasperados e as crianças terríveis, neste hífen, como a instituição família se articula hoje ou ainda, o que ela articula hoje? O que ela separa e o que ela reúne? O que ela transmite? Em quais mal-entendidos ela se funda? O que, quem, constitui uma família? Foi o que pretendemos recolher das Redes da Infância tanto no discurso analítico quanto no discurso inter-disciplinar; na clínica, nas instituições, na cidade.
Falar da família, no entanto, está longe de ser um assunto privado. A língua particular de cada uma delas se articula com a língua da cultura, enfrentando ou corroborando paixões políticas. Quanto menos consenso sobre a família, quanto menos universal, mais recrudescimento para restituí-la aos moldes patriarcais. No Brasil, vimos muito de perto – e veremos por bom tempo – como essa instituição pode ser capturada e manipulada politicamente para que exista em uma única forma, para que exista em uma única língua, em um único sentido. Cabe a nós, então, essa responsabilidade, que não deixa de ter sua inscrição política, de fazer ressoar as inúmeras formas de família que a clínica e as conversações nos ensinam, de aprender e depreender de cada uma delas o que faz família para cada ser falante.
As famílias e a experiência do Cien:
De modo que, para o discurso analítico, os assuntos de família são também assuntos do inconsciente[3]. Mas como se opera com isso (ou com o Isso) em uma conversação do Cien? Essa pergunta está sempre aberta. E é importante lembrar, como lembra Laurent, dos limites de uma conversação[4]. Talvez possamos nos orientar no Cien pelas mutações do laço e da própria ideia de família sobre as quais as conversações dão notícias, nos impasses sobre os quais os laboratórios são chamados para o trabalho. Dois lugares aparecem neste dispositivo: um de leitura, da interpretação que as instituições e outros saberes fazem da criança a partir dos significantes-mestres que regem os discursos, e das modalidades de crença que operam a partir deles. Mas, para isso, precisamos das conversações, do que elas podem produzir como localização e saídas. Às vezes, como produto, se decantam os S1 aos quais profissionais ou crianças estão submetidos, localizando assim o impasse, colocando o saber sobre ele em circulação para que cada um possa lê-lo reenviando, ao mesmo tempo, cada sujeito “aos seus assuntos”, para que se abra o caminho em direção a novas veredas quando se toma distância das identificações, das classificações e determinações pedagógicas, tecno-científicas, jurídicas, etc. O saber analítico não entra aí interpretando, nem mesmo como saber privilegiado, mas advertido de que tomar a palavra é colocar coisas em jogo, que o dom da palavra pode ser oferecido ali onde Isso não fala, e que temos o corte como instrumento para operar podendo dar sentido e ao mesmo tempo desconfiando da máquina de produzir sentido, operando por certa opacidade da língua. O Cien, portanto, não promove uma saída coletiva, um para todos, mas ele pode incidir em um coletivo “especulando sobre o sentido para obter efeitos de verdade”[5]. Para tanto, porém, precisamos de um consentimento, consentir com as surpresas da fala que perfuram os ideais de funcionamento, consentir com a equivocidade que a língua opera. Esse é um desafio constante para as conversações.
[1] Parte deste texto foi apresentada na abertura da atividade conjunta das redes Cien e da NRCereda no Brasil, A família em questão!, em novembro de 2022.
[2] ROY, D. Pais exasperados-Crianças terríveis. Publicado nesta revista.
[3] MILLER, J.-A. Assuntos de família no inconsciente. Revista aSEPHallus, n.4. Maio a setembro de 2007. Disponível em http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/asephallus04.pdf
[4] LAURENT, É. Las partidas del Cien. Cuadernos del CIEN, n.5. Buenos Aires, 2004.
[5] LARENT, É. Retomar a definição do projeto do Cien e examinar sua situação atual. Brown, N.; Macêdo, L; Lyra, R. (Orgs.). Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência – Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
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A originalidade da interdisciplinaridade do CIEN*
by cien_digital in Cien Digital #25, Contribuições
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

Cabaças, obra de Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem data
Agradeço a Paola e à comissão CIEN-Brasil o convite para participar desta manhã de trabalho, nesta mesa dedicada a fazer uma homenagem a Judith Miller relembrando os princípios do CIEN. Parabenizo a comissão por essa iniciativa. É sempre importante lembrar os princípios que orientam a prática do CIEN.
Minha fala hoje aqui foi inspirada não só pela leitura dos textos de Judith Miller que circularam nos laboratórios do Rio, mas também pelas conversas que lá tivemos no encontro mensal dos laboratórios. Nessas conversas senti a vivacidade da transmissão desses princípios pelos coordenadores do CIEN e o interesse entusiasmado dos participantes por sua orientação ao se darem conta de que se trata de uma prática inédita da interdisciplinaridade, que nem sempre é fácil de sustentar. Manter viva a originalidade da invenção do CIEN é uma boa homenagem que podemos fazer a Judith Miller.
Havia muito entusiasmo na conversa, mas também a apreensão de como é fácil resvalar na direção de uma prática convencional da interdisciplinaridade, onde o laboratório arrisca ser absorvido pelas reuniões institucionais e o que muita vezes nelas se instalam de soma ou competição de saberes, de controle, etc. São os riscos de quando o laboratório funciona, ou se reúne dentro da instituição. Outro risco é o da exterioridade persecutória, quando se reúne fora e se incluem profissionais com práticas diversas dentro e fora de instituições e que pode, às vezes, se reduzir a uma reunião entre psis. O cuidado da coordenação do CIEN, me pareceu seguir a orientação de Judith, quando diz que é preciso temperar o entusiasmo sem o apagar. Como fazer isso quando enfrentamos esses riscos, senão lembrando a dimensão da extimidade para poder buscar formas de fazê-la operar tanto em um caso como no outro. Temperar o entusiasmo é não se deixar cegar por ele e buscar inventar formas para lidar com as dificuldades sem deixá-las se instalarem, poder lidar com momentos de fracasso, acolhê-los para fazer deles a mola da invenção. Fazer operar a extimidade é uma das funções da presença indispensável de pelo menos um psicanalista no laboratório. Ou, melhor dizendo, de alguém que passou pela experiência da psicanálise como analisante e foi levado a lidar com o estranho íntimo que desacomoda e acossa, e por isso mesmo convoca à invenção que permite sair do convencional, do protocolar.
Ao dizer isso aqui a vocês fica passando pela minha cabeça minha experiência em laboratórios dentro e fora de instituições e todo o difícil manejo para garantir a extimidade necessária a realização da conversação.
Já podemos ver o que faz o inédito dessa prática pela sua marca de origem no Campo Freudiano, que foi muito bem indicada pelo hífen colocado por Lacadée entre o inter e o disciplinar, sempre lembrado por Judith. Podemos dizer que ele constitui um dos princípios do CIEN. Judith se refere a ele várias vezes como o traço de união, que convida à conversação. Mas essa sua função de ligação entre as disciplinas só acontece quando faz valer um intervalo e permite uma suspensão no saber para favorecer “um saber não saber” e poder acolher o novo, o diferente. Nas conversas do CIEN nos referimos a ele como um espaço vazio, o que pode ficar abstrato se não o articulamos às brechas que podem se abrir no saber pré-estabelecido, no saber comum que se alastra como uma praga sem poder ser interrogado. O vazio se realiza muitas vezes como tempo de espera, que não é passivo. Sustentar intervalo, permitir o vazio, escutar o que se diz sem saber, poder transformar isso em perguntas, é conectar cada um com os pontos de opacidade no seu desejo, em suas repetições sintomáticas.
Em nossa conversa no Rio, quando esse vazio foi interrogado, fomos levados a uma questão interessante e bem prática: como abordar outros profissionais com os quais desejamos estabelecer um trabalho interdisciplinar? Ou seja, como criar condições para a formação de um laboratório? Como se dá, ou como deve se dar esse trabalho preliminar à formação de um laboratório nas situações mais diversas em que isso acontece? Aí podemos apreender a importância deste hífen na maneira como nos dirigimos aos outros profissionais, trazendo nossas próprias perguntas e não respostas prêt-à-porter, o que permite que as dificuldades enfrentadas por eles se transformem em perguntas, em enigmas a serem trabalhado por todos. Com as perguntas colocadas na mesa se pode iniciar o jogo de trocas, onde cada um vai buscar o que construiu para responder a elas e o que restou opaco, difícil de entender e de lidar. O que vai acontecer a partir daí faz do não saber um ponto de abertura, e não de impotência ou desistência. A interdisciplinaridade que opera com a soma, o acúmulo de saber fecha as portas, tampona as brechas, os intervalos, não deixa aparecer o vazio criativo.
Vimos como esse hífen opera no trabalho para a constituição de um laboratório. Podemos nos perguntar como ele opera em seu funcionamento. É então que entra na originalidade da prática do CIEN o uso do corte e da dimensão temporal do a-posteriori. Autorizar-se a operar com o corte na conversação com os profissionais e também com as crianças e os adolescentes nos ensina muito sobre o que falar quer dizer. A fala corre o risco de se perder num blablablá, numa queixa, num desabafo sem consequências. O corte tem uma função decisiva para que cada um possa se escutar e escutar o outro, não a partir do que já estava cristalizado como saber sobre si e sobre o outro. O corte é um instrumento para se tirar consequências da fala e poder extrair dos ditos, que surgem muitas vezes como uma verdadeira avalanche, um dizer, que surpreende os outros, mas também àquele mesmo que fala. O corte faz intervalo e convoca o posicionamento de cada um no trabalho com uma questão que surge no coletivo, como sendo de vários, embora vivida de forma diferente por cada um. O corte é necessário sempre que nos abrimos para a contingência do encontro e queremos fazer dela não um atrapalho, um acidente pernicioso, mas o que tem chance de suspender a obrigatoriedade das respostas e dos caminhos já traçados.
A dimensão do corte traz consigo a do a-posteriori. Judith dava muita importância ao a-posteriori no qual se dá o tempo da escrita e da transmissão, mas também o tempo necessário para recolher os efeitos do que foi falado. Na minha experiência de laboratório em uma escola pública do Rio de Janeiro, onde fizemos conversação com os adolescentes e a participação de professores, se tornou indispensável, entre uma conversação e outra, um tempo para nos debruçarmos sobre o que tinha ocorrido em cada uma delas. Essa elaboração a-posteriori com os professores e participantes do laboratório era decisiva na forma de presença que tínhamos na conversação seguinte.
O tempo do a-posteriori é importante também para ficarmos atentos aos efeitos nos participantes da conversação: por exemplo, para estarmos disponíveis para escutá-los individualmente quando se dirigem aos coordenadores, ou para que os próprios coordenadores possam fazer essa oferta quando acharem necessário.
O manejo do corte traz também a questão de até onde ir nesse dispositivo de elaboração coletiva, para não se tornar um mostrar obsceno da dor de cada um que convoca um voyeurismo também obsceno. Trata-se de um manejo delicado e atento por parte dos coordenadores para poder extrair da forma como cada um se mostra em palavras, e muitas vezes em ato, o que faz sintoma. Trata-se de dar dignidade ao sintoma como uma forma de lidar com o que é opaco para cada um, com o que o ultrapassa no momento mesmo da conversação. Dar a chance de ser lido como sintoma e não como déficit, ou como degeneração devida às coordenadas de sua história, como, por exemplo, ser pobre, viver numa favela, ser negro, pertencer a tal família. A leitura baseada nesses fatores é o que infelizmente cerca as criança e adolescentes de hoje nas instituições onde circulam. Dar lugar ao sintoma como forma de tratamento do resto, daquilo que ultrapassa, que excede de forma totalmente sem sentido, e poder acolher esse resto como fator de divisão subjetiva, e não como um elemento a ser segregado é o trabalho civilizatório e anti-segregativo do CIEN, que Judith tanto prezava.
Por fim, queria trazer para nossa discussão a relação do CIEN com a Escola e com os Institutos que, aqui no Brasil, abrigam o CIEN. Usei a palavra abrigo. Mas não é só disso que se trata. O funcionamento dos laboratórios precisa de pelo menos um analista, ou melhor dizendo um analisante em formação. Não é à toa que em seus textos Judith não cessa de situar o CIEN em relação à Escola, que é o lugar onde se formam os analistas. Ela sabia o quanto a prática do CIEN fica difícil sem a Escola, e também o quanto as Escolas precisam do CIEN. Ambos situados no Campo Freudiano, como Lacan designou “o espaço conceitual e a nova prática que Freud inaugurou ao inventar a psicanálise. Nesse campo se encontram as Escolas de formação dos psicanalistas e as diversas instâncias responsáveis por tornar a psicanálise presente no mundo, atualizando-a para que esteja à altura das mudanças e dos novos desafios que essas mudanças trazem para a prática da psicanálise. Lacan criou, desde a fundação de sua Escola, as condições para que ela não fosse uma comunidade fechada. O CIEN, como dizia Judith, tem a função de ser um dos pontos de abertura para a reconquista do Campo Freudiano. Essa reconquista, como dizia Lacan, deve se dar primeiro em relação a cada um, na abertura de cada analista para aprender e se desacomodar no encontro com as outras disciplinas. A presença de um analista, indispensável no laboratório, também não visa nem a formação dos seus participantes, nem sua própria formação, embora seja uma prática que certamente tem efeitos de formação, que precisamos poder recolher. Achei importante o que disse Judith sobre a importância da presença encarnada do psicanalista, na medida em que ela abre para um além, para uma transferência com a psicanálise e sua aposta na enunciação, no dizer que surpreende e que favorece a invenção.
Surge um outro tipo de cuidado que temos que ter na prática dos laboratórios do CIEN: acolher o dizer e a enunciação sem fazer disso uma prática terapêutica. Aqui ganha toda importância o manejo do corte na prática da conversação e nas reuniões dos laboratórios.
Concluo com um dito da professora e diretora da escola pública onde o laboratório “Causar para não segregar” fez a conversação com os jovens adolescentes. Ela disse, em nossa reunião de conclusão, que aprendeu a fazer o corte primeiro em si mesma para não responder aos alunos com a mesma violência que sentia dirigida a ela. A partir desse corte sobre ela mesma é que conseguia escutá-los, descobri-los de outra forma e intervir de maneira a causar e não segregar. Daí o nome de nosso laboratório.
*Texto apresentado na VI Manhã de trabalhos CIEN-Brasil, O que falar quer dizer? Singularidade e diferença, hoje. Rio Janeiro, 23 de novembro de 2018
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O que falar quer dizer?[1]
by cien_digital in Cien Digital #25, Contribuições
Ana Lydia Santiago
“Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve.”
Jacques Lacan

Foto de pixabay (pexels-pixabay-414579)
O que falar quer dizer? Com esse título, o poeta Jean Tardieu[2] faz cintilar os recursos da língua, o sociólogo Pierre Bourdieu[3] situa questões da interlocução em função dos lugares simbólicos de poder, e o educador Joseph Rouzel[4] estabelece uma prática de entrevista para o trabalho social. A filósofa Barbara Cassin[5], por sua fez, explora o falar como fazer, partindo da linguagem performativa proposta por John L. Austin[6], primeiro a teorizar que se pode fazer coisas com as palavras. E para os psicanalistas que atuam no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN)? O que falar quer dizer? O que fazem, ao propor a circulação da fala entre pares de uma instituição, para abordar impasses e dificuldades surgidos no trato com crianças e adolescentes?
Uma resposta para esta questão apenas se extrai da experiência de cada laboratório do CIEN, ou, mais precisamente, se apreende da fala daqueles que participam das atividades dos laboratórios, quando o encontro com a proposta do CIEN constitui, uma oportunidade de dizer algo que jamais tinha sido possível dizer, antes. Um “ponto doloroso”[7]– sinaliza Judith Miller –, recrudescido pelos discursos do momento atual, silenciado pelo clamor das ideologias.
Fazer chamejar os fundamentos do CIEN transmitidos por Judith Miller em seus textos – iniciativa de Paola Salinas, atual coordenadora do CIEN Brasil –, comporta um duplo propósito: homenagear Judith, que esteve à frente desse Centro, em uma ação engajada, desde sua criação em 1996, e, ao mesmo tempo, reavivar o CIEN. Em 2017, nas homenagens rendidas a ela, por seu decesso, tive oportunidade de expressar o mais sincero reconhecimento a Judith por tudo que ela fez como Presidente da Fundação do Campo Freudiano e, de modo especial, por tudo que ela nos ensinou a fazer com vistas a priorizar, em atividades coletivas, a investigação clínica e o avanço da psicanálise. Nesse momento, em que se trata de fazer uma leitura do CIEN através dos textos de Judith, isolei quatro princípios, a meu ver, norteadores para o trabalho dos laboratórios, lembrando, contudo, que a “bússola fiável” para qualquer ação do CIEN, “é o ensino de Lacan e o desejo que este testemunha, e que supõe que cada um coloque algo aí de seu”[8].
Primeiro princípio:
O CIEN não existe sem as Escolas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)[9].
Escola é o termo de Jacques Lacan para designar o organismo de trabalho dos psicanalistas, visando cuidar de sua formação e garantir a presença da psicanálise no mundo. Lacan definiu três funções para assegurar tal finalidade, sendo a terceira delas a ampliação do campo analítico por meio da interlocução com outros campos de saber. A interdisciplinaridade, assim posta, deve contribuir para os psicanalistas se manterem à altura da subjetividade da época em que vivem[10], condição fundamental da qual depende a própria sobrevivência da psicanálise.
Judith Miller propagou pelos quatro cantos do mundo, onde existe o movimento das Escolas da AMP, o interesse da interdisciplinaridade para a formação do analista. Não era novidade o trabalho clínico que o psicanalista conseguia realizar no espaço institucional, fazendo a oferta da palavra ao sujeito, intervindo com a interpretação e colhendo os eventuais e consequentes efeitos de seu ato, sobre os sintomas. O inédito da proposta do CIEN consistiu no convite para estes profissionais tentarem apreender o ponto de contato do discurso analítico com o discurso do mestre, ou seja, o ponto de real ao qual se está confrontado, na instituição, diante do esforço de normatização. Trata-se, portanto, para o psicanalista, no CIEN, de conhecer os problemas enfrentados pelos profissionais de outras disciplinas e saber como respondem às questões da criança e do adolescente, guardando sempre a relação com o inconsciente[11].
Segundo princípio:
A interdisciplinaridade, no CIEN, se escreve com um hífen, que designa um vazio[12].
Esse vazio é primeiramente o saber não saber, ou seja, o princípio socrático que o psicanalista assume diante de um paciente e também deve assumir na interlocução com especialistas das áreas do direito, assistência social, saúde e educação, entre outras, para aprender sobre as dificuldades que estes profissionais encontram atuando junto a crianças e adolescentes. Lacan nos ensina que “A questão do saber do psicanalista não é, em absoluto de saber se isso se articula ou não, mas de saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo.”[13] A posição de saber não saber, no CIEN, fundamenta a dimensão da pesquisa interdisciplinar, para o psicanalista aprender com o outro, colher o novo e o resto produzidos pelas outras disciplinas como resposta ao real e às mudanças do mundo – a globalização, a homogeneização galopante e os problemas de segregação fustigados pelo termo racismo. Esses produtos questionam e desafiam a psicanálise a se introduzir no espaço institucional, renovada. Assim, o hífen do inter-disciplinar é “o frescor permanente da práxis analítica, da qual o psicanalista é operador”[14], independentemente de estar em seu consultório ou em uma instituição.
Terceiro princípio:
O estilo de trabalho do CIEN é a pesquisa em laboratórios.[15]
Judith Miller nomeou os grupos de trabalho do CIEN de laboratórios, uma expressão, segundo ela, “pouco conhecida no Campo Freudiano, mas muito utilizada por outras disciplinas que, enquanto científicas, fazem pesquisa.”[16] O trabalho em Laboratório[17], pareceu-lhe a melhor maneira de se dirigir às outras disciplinas e escutá-las. A constituição de um laboratório decide-se a partir de um impasse.
Um laboratório se constitui apenas em razão de um encontro, o encontro de um real contra o qual se chocam os profissionais de diferentes disciplinas, confirmando que a chave não estaria em um saber já estabelecido, mas na invenção, da qual testemunharão estes profissionais para desenhar o cume do qual essa chave aparece. Eles não a detêm de saída; detêm apenas aquilo contra o qual se chocam.[18]
A chave para o impasse sobressai do próprio impasse, de sua abordagem pela fala, a partir da qual, contingencialmente, uma solução pode advir para cada um. Eis a visada da operação com a fala praticada pelos laboratórios do CIEN, nas instituições. O CIEN conta, portanto, com as fontes inventivas e poéticas da contingência, do equívoco, do encontro.
Para alguém participar de um laboratório, não é necessária a condição de analisante; o trabalho do laboratório não visa provocar a entrada em análise das pessoas envolvidas; mas é preciso ao menos “um não saber ao redor do saber analítico, o que singulariza o desejo do analista.”[19]

Barriguda e cabaças, Silvio Jessé
Segundo Judith Miller, o registro do trabalho dos laboratórios cumpre uma função essencial. O CIEN valida “o bem fundado da cultura do escrito”, incentiva os laboratórios a prestar contas de sua trajetória, percalços, avanços e consequências, em um relatório anual, que, divulgado pelo CIEN nacional, permite aos outros laboratórios e à comunidade analítica:
Ler e interpretar a importância de um momento, às vezes percebido só-depois, pela maioria das pessoas. Que o testemunho de uma experiência – redigido por um ou por vários de seus participantes – se constitua em material de leitura e interpretação.
Colher o efeito de transmissão que comportam os testemunhos das experiências.
Orientar o CIEN na medida em que, por meio dos testemunhos, se pode apreender as condições em que foi possível “traduzir os impasses em palavras” e, com isso, operar uma mutação, fazer surgir “uma perspectiva de subjetivação”.[20]
Quarto princípio:
A Conversação é a prática da palavra, do CIEN, para a tradução dos impasses.
A prática da conversação foi inventada por Jacques-Alain Miller como um dispositivo ativo para a realização de encontros do Campo Freudiano, um modo de tratar aspectos controversos ou insucessos que provocam questionamentos e, quando se formulam perguntas, há um chamado à conversa, à troca com os outros. Em sua proposta, a conversação é uma ficção operativa a serviço da produção de um passo a mais, de algo novo no saber já estabelecido.[21]
O CIEN apostou nesse dispositivo como uma prática inédita da palavra para tratar os impasses que os discursos universalistas e as políticas, surdos à particularidade do ser falante, agravam ao reduzir o cidadão a consumidor-produto, o corpo ao organismo ou um sintoma ao déficit[22]. No CIEN, a prática da conversação leva em conta a maneira como o discurso analítico e a orientação lacaniana subverte o laço social, sensível à subversão do sujeito, ou seja, aos efeitos do sem sentido da linguagem. Assim, o CIEN visa atingir o singular de cada sujeito por meio da circulação da palavra entre muitos, estando engajado em preservar o que é novo e revolucionário na criança e no adolescente, segundo a clínica do detalhe[23].
O desafio da conversação própria ao CIEN, nos diz Judith Miller, é operar um deslocamento que resulta em tocar a dimensão da pulsão e seus destinos. Desfazer as identificações e permitir um jogo de vida advindo de uma outra relação com o Outro.
Portanto, para o CIEN, falar quer dizer acionar as engrenagens do Grafo do desejo, para que as relações ao Outro se articulem e o sujeito possa apresentar suas respostas, emanantes do furo, do vazio, que também é causa e se mostra ausência vibrante, onde, antes, o silêncio, de mãos dadas com a pulsão de morte, impelia “a passagem ao ato cega ou o caminho da repetição sintomática.”[24]
[1] Texto apresentado na VI Manhã de trabalhos CIEN-Brasil, O que falar quer dizer? Singularidade e diferença, hoje. Rio Janeiro, 23 de novembro de 2018.
[2] TARDIEU, J. [1903-1995]. Ce que parler veut dire ou le patois des familles. Paris: Folio Junior, 2013.
[3] BOURDIEU, P. [1930-2003] Ce que parler veut dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris Fayard, 1982. Neste ensaio sobre a função social da linguagem, Bourdieu considera que o discurso não é apenas uma mensagem a ser decifrada, mas também um produto que entregamos à apreciação dos outros e cujo valor se define na sua relação com outros mais raros ou mais comuns. Instrumento de comunicação, a língua é também um sinal exterior de riqueza e um instrumento de poder. “Quando falamos, dizemos o que dizemos, mas dizemos também, pelo modo de dizer, o valor do que dizemos. Para dizer alguma coisa, podemos escolher usar gírias, a língua clássica, a linguagem popular, entre outras maneiras, mas desde o momento em que escolhemos um modo de expressão, nos classificamos, e, logo, ficamos expostos a ser avaliados, a receber um prêmio, no mercado escolar” in: “Pierre BOURDIEU présente son livre Ce que parler veut dire”, Émission Apostrophes, Antenne 2, Présentateur Bernard Pivot, réalisateur Jean Luc Leridon. Vídeo de 29/10/1982, disponível em INA.fr
[4] ROUZEL, J. Cause toujours… de la parole dans le travail social. Le sociographe, Champ social, 2012/1, nº 37. p. 53-62.
[5] CASSIN, B. Quand dire, c’est vraiment faire. Paris: Fayard, 2018. O locutor se transforma ao falar, ele transforma aquele que o escuta, e transforma um pouco o mundo. É esta dimensão que, segundo a filósofa, o performativo põe em destaque.
[6] AUSTIN, J. L. [1911-1960]. Quand dire, c’est faire. Paris: Seuil, 1970. Austin, filósofo de linguagem britânico, desenvolveu uma grande parte da atual teoria dos atos de discurso. Seu livro tornou-se um dos clássicos da filosofia analítica anglo-saxônica. Apresenta a ideia de que alguns enunciados são em si mesmos o ato que designam. Assim, quando o pároco pronuncia a fórmula ritual “Eu vos declaro marido e mulher”, o casamento é consumado apenas pela enunciação dessa frase. O mesmo acontece quando uma criança ou um navio é batizado, quando se faz uma promessa, etc. São estes enunciados particulares que aos serem proferidos constituem o que designam, que Austin nomeou performativos.
[7] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, out. 2007, p. 4-5. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[8] Cf. MILLER, J. A reconquista do Campo Freudiano. In: BROWN, N.; MACEDO, L.; LYRA, R. (org.). Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do CIEN no Brasil. 2017. p. 35.
[9] MILLER, J. O que é o CIEN? In BRISSET, F.; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. (org.). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p.24.
[10] LACAN, J., Ato de fundação (21 de junho de 1994). In Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, p. 235-239.
[11] C.f. MILLER, J. Entrevista concedida ao Jornal O Tempo, caderno Magazine, por Wir Caetano, em 24/04/1999, p. 10.
[12] MILLER, J. O que é o CIEN? In Op. Cit. p. 24. O hífen, na escrita do interdisciplinar, foi uma proposição de Philipe Lacadée, comentada em diversas ocasiões por Judith Miller.
[13] LACAN, J. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. p. 36.
[14] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, p. 4-5. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[15] MILLER, J. Apresentação do CIEN no Brasil [19/04/1998]. In: Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança: brochura da 1ª Jornada do CIEN. Instituto do Campo Freudiano, Belo Horizonte, abril de 1999. p. 2-5. (impresso)
[16] Idem. p. 4.
[17] Em Cuadenos del CIEN 2, p. 4, encontra-se uma definição do Laboratório de investigação do CIEN, nos seguintes termos: “Um laboratório de investigação é um pequeno grupo estruturado em torno de uma disciplina ou de um tema preciso que concerne à criança. Sua condição é a de ser interdisciplinar, o que impõe a necessidade de que haja ao menos profissionais de duas disciplinas e que a modalidade de trabalho seja a de sustentar um intercambio regular com eles. O Laboratório tem um responsável que zela pelo prosseguimento do trabalho.”
[18] MILLER, J. Éditorial. In Terre du CIEN, Journal du Centre Interdisciplinaire sur l’ENfant, nº5, déc, 2000. p. 1.
[19] MILLER, J. Principios de orientácion. In Cuadernos del CIEN 3. Instituto del Campo Freudiano. p. 57-58.
[20] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, out. 2007, p. 4. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[21] SANTIAGO, A. L. Conversação de orientação psicanalítica: metodologia de pesquisa/intervenção sobre impasses na educação. In: Santiago, Ana Lydia; Assis, Raquel Martins. O que esse menino tem? Sobre alunos que não aprendem e a intervenção da psicanálise na escola. Belo Horizonte: Relicário, 2a edição, 2018. p. 9-22.
[22] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? Op. Cit. p. 4.
[23] LACADÉE. P. Le pari de la conversation. Brochura do CIEN, 1999/2000.
[24] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? Op. Cit. p. 5.
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O infamiliar e o êxtimo nas conversações inter-disciplinares do CIEN
by cien_digital in Cien Digital #23, Contribuições

Autor: Anni Roenkae – Imagem:
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Ana Martha Wilson Maia
“É numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas de dentro. Em um parque, há pássaros, gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. Em um parque a gente não está sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde.”
Marguerite Duras, Escrever.
Para escrever “livros desconhecidos” por ela mesma, diferentes dos que havia escrito até então, Marguerite Duras conta que permaneceu dez anos em casa, numa solidão feita por ela e para ela. Foi assim que escreveu Le ravissement de Lol V. Stein, um de seus mais belos romances cinematográficos, Le Vice-cônsul e muitos outros. E entre tantas coisas, Duras nos ensina poeticamente sobre estar só, “dentro” da casa.
Recentemente publicada pela Editora Autêntica, uma nova tradução bilíngue de um pequeno texto de Sigmund Freud transmite a grandiosidade de sua obra e a importância da palavra para o ser falante. Exímio clínico e pesquisador, Freud faz referência a diversos campos de saber – como à ciência, filologia, estética, linguística, filosofia e à literatura fantástica -, recolhe uma palavra alemã da vida cotidiana e a transforma em conceito, depois de tê-la dissecado até o osso. Até o que do real, esta palavra recorta.
Em seu centésimo aniversário, Das Unheimliche (1919) recebe uma tradução brasileira que ressalta a construção de um conceito-neologismo: “O infamiliar”, seja por sua forma ou uso inauditos.
O estranho, O inquietante, O estranho-familiar, O infamiliar – nas traduções para a língua portuguesa, Unheimliche apresenta variações em torno do intraduzível, no sentido do que Cassin descreve como “o que não cessa de (não) traduzir” (p.17).
Se o intraduzível é “o sintoma por excelência da diversidade das línguas” (Santoro, p.158), o infamiliar expressa a impossibilidade de sobreposição de uma palavra na tradução de uma língua a outra e mostra que “o muro entre as línguas não é intransponível, mas também que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (Iannini e Tavares, p.9).
Podemos dizer que a impossibilidade da tradução perfeita coloca em evidência o muro da linguagem, o impossível da relação sexual na expressão de Lacan, que separa o que é de cada um em seu dizer e na solidão do seu gozo, como ilustra Duras.
Das Unheimliche trata do que o ser falante encontra como estrangeiro em si mesmo, em seu “infinito particular”, diria Marisa Monte, com sua linda voz.
Nas palavras de Freud:
“[…] o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo. […] Quanto mais uma pessoa se orienta por aquilo que se encontra a sua volta, menos é atingida pela impressão de infamiliaridade quanto às coisas ou aos acontecimentos” (Freud, 2018 [1919], p.33).
O encontro com o infamiliar causa angústia. E quanto mais um profissional se queixa do sintoma da criança e insiste numa solução protocolar que coloca etiquetas, menos inventivo ele pode ser no trabalho com a criança e a partir de seu lugar na instituição. O que o sintoma da criança diz sobre o seu próprio sintoma? – é uma questão que se coloca e circunscreve que na aposta do CIEN na conversação não se trata de uma “psicoterapia generalizada” (Laurent, p.41), embora vise reintroduzir a causalidade psíquica.
No dispositivo fundamentado na proposta de Miller (2005) de uma associação livre coletiva, a conversação inter-disciplinar visa abrir um espaço para a invenção por meio de soluções singulares de cada um: da criança e dos profissionais que lidam com ela nas instituições.
Disso resulta os efeitos possíveis da enunciação para aquele que fala, ao tomar uma posição subjetiva diante de seu dizer. Efeitos que podem alcançar todos que estão de algum modo implicados no impasse apresentado na conversação, a saber: aquele que tomou a palavra, os que estão presentes na cena da conversação e os que dela fazem parte indiretamente, como outros profissionais da instituição, as crianças e seus pais.
Freud enfatiza que o “infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona.” (p.45) Algo que é tanto íntimo e conhecido, como estranho, desconhecido, inquietante, infamiliar. É justamente por ser intraduzível que o infamiliar traz uma contribuição para o trabalho que os laboratórios do CIEN realizam, pois de que se trata nas conversações inter-disciplinares senão de seres falantes com suas próprias línguas, em torno de um real que lhes concerne?
Aberta a conversação e colocado o impasse, cada um que deseja “fala”. E para não tornar a oferta da palavra um blábláblá que infinitiza a produção de sentido, “a aposta na conversação é uma aposta sobre o corte” (Laurent, p.43) em que se opera um traumatismo, uma interrupção na fala, cujo objetivo é manter o desejo de saber em torno de “um vazio pulsante”, (Maia, 2012).
Como não há um saber prévio e exterior, mas possíveis e diferentes respostas, a demanda de saber é decepcionada de uma boa maneira e pode se tornar um motor de trabalho (Udenio, 2011). Deste modo, o vazio pulsante desaloja o ser falante do lugar de mestre e promove invenções. Mas como manter vazio este lugar do saber?
Para que se preserve um vazio pulsante na conversação e, consequentemente o trabalho dos participantes, é fundamental a presença de ao menos um analisante esclarecido – na precisa expressão cunhada, há muitos anos, por Beatriz Udenio -, que possa sustentar uma posição de não-saber. “Trata-se muito mais de despojar-se de toda expectativa de tornar-se célebre” (Udenio, 2018, p.59) como um mestre que traria alguma “verdadeira” solução para o impasse, ao invés de estar numa posição de dentro-fora, visando o vazio pulsante. Assim, a posição do analisante esclarecido numa conversação do CIEN está diretamente relacionada a uma posição de êxtimo.
Como o infamiliar de Freud, o êxtimo é um neologismo criado por Lacan para indicar paradoxalmente aquilo que sendo o mais íntimo, interior e singular, é algo que está fora, no exterior.

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Lacan esclarece a estrutura topológica do êxtimo em seu ensino. Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, ele aborda o inconsciente freudiano e pergunta: “O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu?” (1957, p.527). E, apontando “uma excentricidade radical de si em si mesmo com que o homem é confrontado” (p.528), indaga: “Qual é pois esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (p. 528).
No Seminário 7, Lacan se refere à extimidade primordial: “a esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (1959-1960, p. 173) e alguns anos depois, no Seminário 16, localiza o objeto a dizendo que este “está num lugar que podemos designar pelo termo ‘êxtimo’, conjugando o íntimo com a exterioridade radical” (p. 241).
Por meio do objeto e do Outro, pois na época em que descreve o inconsciente como o discurso do Outro ele apresenta o Outro como êxtimo do sujeito, Lacan se refere ao ponto vazio da estrutura que inclui o dentro e o fora, o mais íntimo e o êxtimo.
A formulação lacaniana da extimidade trata do ser falante com o seu gozo. Extimidade é o tema de um curso inteiro de Miller (2010) em que ele ressalta, na estrutura do êxtimo, o íntimo como um corpo estranho, dizendo que a extimidade é “uma fratura constitutiva da intimidade” (p.17).
Em referência ao que diz Lacan sobre o hiato central da identidade consigo mesmo, Miller considera que “Este Outro que me agita no seio de mim mesmo é uma formulação adequada para toda loucura”. (p.26)
A loucura da educação para todos e da patologização da infância cria um cenário que compromete os laços sociais. Alguém será apontado como o estranho, o diferente. A angústia do profissional diante da criança incontrolável aponta para algo nele que não é reconhecido como próprio, mas como do outro, estranho, estrangeiro. “O estatuto estrangeiro do sujeito é de se sentir estrangeiro consigo mesmo”. (Laurent, 2018) É a criança, então, que será etiquetada e segregada.
Se “O drama do sujeito […] é não conseguir estar plenamente em sua casa” (p.25), como diz Miller (2010), ou estar tão só que às vezes nela ele se perde, nas palavras de Duras, a aposta do CIEN é que as conversações inter-disciplinares constituam um lugar aberto às invenções visando aos laços e a um lugar menos estrangeiro para que cada um possa estar com os outros e consigo mesmo, no encontro com seu sintoma infamiliar, êxtimo.
Bibliografia
Cassin, B. (Coord.) Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias. Volume um: Línguas. Fernando Santoro e Luisa Buarque (Org.). Belo Horizonte: Autêntica. 2018.
Duras, M. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco.1994.
Freud, S. (1919) “O infamiliar”. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Iannini, G. e Tavares, P.H. “Freud e o infamiliar”. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Lacan, J. (1957) “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998.
Lacan, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 1991.
Lacan, J. (1968-1969). O Seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar. 2008.
Laurent, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Brown, N.; Macêdo, L. e Lyra, R. (Orgs.) Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora. 2017.
Laurent, É. “L’étranger extime (1)”. In: Lacan Quotidien, n.770. 22/03/2018.
Maia, A.M.W. “Um vazio pulsante”. In: CIEN Digital, n. 11. Janeiro, 2012.
Miller, J-A. [et al] La pareja y el amor: conversciones clinicas con Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós. 2005.
Miller, J-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós. 2010.
Santoro, F. Introdução. In: Cassin, B. (Coord.). Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias. Volume um: Línguas. Fernando Santoro e Luisa Buarque (Org.). Belo Horizonte: Autêntica. 2018.
Udenio, B. “A modo de orientación”. In: Boletim Preparatório à V Jornada Internacional do CIEN, n.4, abril/2011.
Udenio, B. Indart, JC. Conversação Internacional do Cien 2017. In: Cien Digital n 22. Revista do Cien Brasil. http://ciendigital.com.br/
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O Cien Digital e o impossível da transmissão. O Cien Digital transmite?
by cien_digital in Cien Digital #23, Contribuições

Autor: Jp Valery
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Margarete Parreira Miranda
Laboratório “Trocando em Miúdos” Compõe o comitê editorial do Cien Digital
O Cien Digital – instrumento escrito do CIEN –contribui para a orientação prática dos profissionais que participam, cada um com sua quota, do trabalho interdisciplinar nas instituições por onde crianças e adolescentes circulam. É uma revista ligada ao Campo Freudiano cujos marcadores encontram-se estabelecidos no Ato de Fundação, por Lacan em 1971[1] e outros escritos. A seção de recenseamento do Ato de Fundação aporta ali três subseções: O comentário contínuo do movimento psicanalítico, sua articulação com as ciências afins e a condição ética da práxis de sua teoria. O trabalho do CIEN Brasil e as publicações do Cien Digital constituem os dois lados de uma mesma moeda, consistindo o enodamento desses três pontos em forte viga de sustentação.
Ao serem publicadas as vinhetas práticas, diferente das vinhetas clínicas que se deduzem da cura analítica, recolhem a importância de um momento em que algo se deslocou pela palavra ou ganhou, até uma perspectiva de subjetivação como efeito de uma conversação. Uma lógica se mantém, entretanto, entre as duas vinhetas: Fazer o contraponto às identificações que levam crianças, adolescentes e adultos que com eles convivem, à submissão a políticas segregativas. Ali, “preto no branco”, as publicações do Cien Digital dão a conhecer os efeitos sobre o que o falar do mal-estar contemporâneo nas Conversações produz.
O Cien Digital tem por finalidade fazer laço, promovendo a troca de saberes entre os laboratórios, além de corroborar “o bem fundado da cultura do escrito, que é a do CIEN, onde ele exista”, como assinala Judith Miller (Miller, 2007, p.4). Para a autora, ao darem testemunhos de sua experiência redigida por um ou por vários, os participantes do CIEN encontram-se articulados a um segundo momento da transmissão. Em um a posteriori freudiano, as vinhetas práticas dos diversos participantes do CIEN permitem formulações a partir das conversações, do que opera como transformação de situações vividas anteriormente como impasses, ou como atos impulsivos.
Daremos destaque aqui, aos efeitos de transmissão possíveis que o Cien Digital comporta.
As vinhetas práticas do Cien Digital e os efeitos de transmissão
Ao abordarmos o conceito de transmissão de um instrumento escrito, trazemos a importância de sua circulação pelos espaços. A palavra transmitir nos permite o desdobramento do prefixo “trans” que já indica o caráter de deslocar, transportar. Exploraremos, a seguir, o recorte de uma vinheta do laboratório “Entre as Fronteiras das Práticas Socioeducativas”, relato de Joanna Ângelo Ladeira, no Cien Digital número 11.
“A experiência fala. Crianças e adolescentes que participam dos encontros dão mostras, a seu modo, como o discurso do mestre as aprisiona, mesmo se estão na rua. […] É o que deixa aparecer o depoimento de uma das jovens que participa das conversações:
– Nós não é fácil, se nós fosse fácil nós tava em casa! Vou falar a verdade com vocês, porque a gente tá conversando aqui e não precisa mentir[…] Nós temos um montão de problemas, nós mora na rua, tá ligado? Aí chega no lugar e a pessoa vem descontar os problemas dela ni nóis?!! Aí não.
Diz do abuso das normas que não deixam caber o sujeito – irregular por excelência – na instituição que se propõe a acolhê-lo:
– Vocês iam querer ficar num lugar que é igual uma prisão? – Interroga.
E em meio à sua crítica, localiza possibilidades para o bom funcionamento de instituições que se ocupam de crianças e adolescentes. Isso animou a conversação e permitiu que cada um introduzisse aí um ponto, em busca de novas saídas, sema pretensão de uma fórmula[…]” (LADEIRA, 2012, p. 23-27).
No prosseguimento de seu relato, Joanna revela os efeitos de transmissão que a prática do CIEN promove para os adolescentes e trabalhadores das instituições, susceptíveis a essa experiência: “Em muitas conversações os jovens revelam projetos pessoais e coisas novas para suas vidas e isso faz com que a instituição que abriga a conversação perceba de um modo novo aquele jovem que já conhece” (LADEIRA, 2012, p. 27). Antes, porém, Joanna indica uma orientação de Eric Laurent ao CIEN, para que este se detivesse nos impasses provocados pelo discurso do mestre na tentativa de normatizar o real. E vai além em seu relato, trazendo ainda, como referência, o trabalho escrito de Cristiana Pitella, no Cien Digital número 10. Joanna diz: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”.
Os dizeres de Joanna Ladeira (2012) ilustram os efeitos de uma transmissão, no que ousaríamos considerar, neste trabalho, cinco tempos: 1- A demanda institucional do trabalho do CIEN. 2- O instante das Conversações para os jovens e profissionais de áreas afins, com possibilidade de transformações. 3- Tempo de concluir a intervenção do CIEN na instituição, recolhendo consequências do trabalho. 4- Momento do a posteriori e a formulação escrita do laboratório. 5- Transmissão do Cien Digital, tempo em que consideramos os efeitos de transposição entre as publicações, permitindo novas formulações teórico-práticas.
A escrita e o leitor: transmissão de leitura?
Ao apresentar o Boletim número 1 do Cien Digital Brasil, Maria Rita Guimarães, sua editora geral, dá lugar às aspirações dessa ferramenta de comunicação virtual e sua característica basilar: “ele está agora por toda parte e em nenhuma parte” (2007, p.2). Chama de “utopia” o desejo de que seu alcance e enlaçamento no um a um possa se operar.
Onze anos depois, o Cien Digital ganha estatuto de revista on line. Insistimos, entretanto, em uma questão: Que efeitos de transmissão os CDs alcançam? Para além de uma publicação virtual, cujo abarcamento é somente uma aposta, contamos com o comparecimento de cada um causado pela escrita e pela leitura, no enfrentamento do real que gera impasses no duro dia-a-dia das instituições.
Sabedores da importância do registro no que concerne ao propósito do Cien Digital, nos referenciamos em Jacques Alain-Miller (2011), em seu testemunho de entrada no ensino de Lacan, via a leitura de seus textos. Nesse artigo, Miller delimita como transferência de leitura esta vinculação dizendo que “é por intermédio do texto, por um trabalho de leitura que se realiza uma transmissão do seu pensamento e do seu trabalho” (MILLER, 2011, p. 24). Destaca ainda, nessa entrevista, o valor da leitura e os fundamentos da transmissão escrita que levam em conta “o retorno de certas palavras e certas conexões”.
Seria essa a posição esperada do leitor do Cien Digital, em contato com os achados da experiência do outro? Que encontre ali a chance da transmissão da palavra, o toque especial da letra, que reverbera a força de uma causa, o brilho de um desejo?
A linguagem invertida na transmissão em psicanálise
Ao lidarmos com o aporte escrito da linguagem nos parece importante delimitar alguns orientadores, no que concerne a psicanálise. Nas “ciências conjecturais”, disse Lacan (2003), prevalece a racionalidade, o saber ancorado em realidade objetiva, submetida à condição replicante, à redundância e à repetição. Em psicanálise, lidamos com a ineficácia da réplica, mas com a constância da surpresa e do inesperado do dizer de cada um.
O sujeito da psicanálise é um ser que se divide, pois, as palavras como recursos de linguagem são tomadas a partir de um corte, de uma barra colocada entre o significante e o significado. Esses cortes do inconsciente inscrevem uma falha, um indecifrável, um ponto de não saber, onde se inaugura que “nenhuma significação, doravante, será tida como evidente […] É preciso tempo para fazer traço daquilo que falhou [défailli] em se revelar de saída”, sustenta Lacan no texto Radiofonia (2003, p. 401-427). Uma estrutura de vários cortes, como o cristal, que se submetem ao eixo da linguagem. Um significante não aprisiona significados, pois o “efeito do que se propaga não é de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso” (Lacan, 2003, p. 405).
Para a psicanálise, o sujeito responde à marca unária de maneira inédita, com o que nela falta ou ao que dela resta sem mediação simbólica. Essa resposta sintomática, em firme peculiaridade, furta-se aos números. É uma tentativa de suturar a falta de modo próprio. Faz sintoma, e é com essa cicatriz no ser que as subjetividades reverberam, em ressonância, na comunicação. Eis a inversão que se dá: No uso da linguagem, Lacan afirma no artigo Problemas Cruciais da Psicanálise que “a mensagem só é emitida nela no nível daquele que a recebe” (LACAN, 1996, p. 208)[2]. A mensagem emitida é sempre um risco desviante, pois, estará susceptível às multideterminações do sujeito do significante, ou ao que dele não se inscreve no opaco da letra.
O psicanalista praticante dos laboratórios do CIEN, lida, consequentemente, com o mal-entendido da língua que gera perturbações. Em sua posição analisante vislumbra o incerto, ao mesmo tempo o feliz-acaso dos encontros possíveis. Leva consigo sua experiência de sujeito barrado, sabedor de uma posição “rebotalha”, mas, entusiasmada, porém. Desloca-se da verdade acabada e, aproximando-se do saber incompleto, poderá recolher os efeitos da psicanálise que se inaugurou freudiana. Desta posição se abre para a troca entre os saberes que a interdisciplinaridade do CIEN propõe.
Quando escutamos a enunciação da praticante do CIEN, cujo relato exploramos acima: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”, uma questão reverbera em nós: Como se dá o processo de transferência de um texto com a imprevisibilidade de seu alcance?

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A transferência de trabalho que se transmite no um a um
Os praticantes do CIEN são chamados a lidar com o mal-estar da civilização que desestabiliza as instituições. Responder a essas demandas é “por em jogo a transferência e o que nela se interpreta não exige nenhum standard, tampouco um setting. Implica em pôr em jogo um corpo através da fala interpretante, através desse artifício singular que se assemelha ao amor”. (MILLER e MATET, 2007, p. 3-4). Miller e Matet asseguram, ainda, que os efeitos de uma prática institucional se instalam mais pelo ato sustentado pela transferência, do que pela função que o analista, e entendemos que outro profissional do CIEN, pode ocupar ali. Pensamos que o princípio do trabalho no CIEN é a conversação inter-disciplinar que aposta que o furo circule entre as disciplinas.
Em Freud, a transferência é mola mestra da prática psicanalítica, o que permitiu a Lacan enunciar: “No começo da psicanálise está a transferência” (LACAN, 2003, p. 252). Destaca ainda, por consequência, que a existência do analisante institui o laço transferencial. Freud elegeu como objeto da transferência o amor, ao operar tal conceito como reedição de vivências familiares infantis. Lacan enfatiza a participação do sujeito na construção de sua verdade subjetiva e elucida acerca do sintagma “sujeito suposto saber”, constituindo-se o saber como objeto da transferência. Em 1971, no Ato de Fundação, Lacan declara: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se pela transferência de trabalho” (LACAN, 2003, p.242). Refere-se aos “seminários” e afirma que eles nada fundarão senão por meio dessa transferência. Inaugura, assim, como objeto da transferência o trabalho.
Um aspecto fundamental para a prática e os princípios do CIEN é interrogar, portanto, a partir da obra de Miller (2018), em que momento distinguimos o trabalho de transferência, no tratamento analítico, da transferência de trabalho em outras práticas da psicanálise?
Para Miller (2018), a transferência de trabalho, quando nos ocupamos dos fenômenos sociais com perspectiva analítica, não se inscreve do um a todos: “Concerne, pelo contrário, como a psicanálise mesma, como a experiência analítica em todos os seus aspectos (terapêutico, didático) o laço do um com um ou com outro e não do um com todos” (MILLER, 2018, p. 181). Ao considerarmos os efeitos de transmissão de um instrumento virtual, o Cien Digital, contamos com o “despertar” que a transferência de trabalho induz em cada um, do que ali se escreve e se endereça a muitos, e a outros de disciplinas diversas. A experiência interdisciplinar cria a chance de que o incompleto em cada campo de saber sobre problemas comuns suscite o desejo de participar de maneira genuína. Um laço se faz pelo não todo que convida a uma aposta no novo.
De que laço se trata, então?
Miller nos esclarece, nesse artigo, sobre a indução como importante elemento da transferência de trabalho, firmando a ligação de induzir com “conduzir a”, “conduzir adentro”, no sentido aberto e não fechado de fazer um chamado ao outro. E deduz que “para induzir ao trabalho é necessário que fique alguma coisa por fazer”. (MILLER, 2018, p.182). Esse inacabado do trabalho, esse ponto de falta gera impasses, que induzem a transferência.
Não seriam os impasses ponto central da demanda de trabalho ao CIEN? Em sua versão conflitante, as portas das instituições se entreabrem aos analisantes quando os outros profissionais experimentam a divisão e o fracasso de um ideal. Brota, nessas circunstâncias, o endereçamento ao “saber trabalhar dos psicanalistas”, cuja transferência os analisantes acolhem, em ato, com a posição de saber faltante.
As experiências interdisciplinares do CIEN a partir daí ganham vida e, por meio do testemunho escrito dessa práxis, chegam às linhas do Cien Digital “estando em todos os lugares e em lugar nenhum”, com a firme aposta em um desejo de que as palavras escritas ressoem no íntimo do ser do leitor. Que ele possa reverberar ali, se inserir para fazer parte e contribuir, com o que o seu pedaço de real induz.
Referências Bibliográficas
GUIMARÃES, Maria Rita. Cien Digital nº 1, Apresentação, 1997.
LACAN, J. Ato de Fundação, in Outros Escritos. RJ, Jorge Zahar Ed, 2003.
________ Problemas Cruciais da Psicanálise, in Outros Escritos. RJ, Jorge Zahar Ed, 2003.
________ Televisão, in Outros Escritos, RJ, Jorge Zahar, 2003.
_________ LACAN, Jacques. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
MILLER, Judith. Cien Digital nº 1, Apresentação, 1997.
MILLER, Judith; MATET, Jean-Daniel. Apresentação. In: Pertinências da psicanálise aplicada: trabalhos da Escola da Causa Freudiana reunidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 1-5.
MILLER, Jacques-Alain. El Banquete de los analistas, Buenos Aires, Paidós, 2000.
_________ Entrevista sobre “O Seminário” com François Ansermet. In: Opção Lacaniana online nova série. Ano 2, Número 6, novembro 2011.
[1] Lacan, Jacques. Ato de Fundação, in Outros Escritos. RJ, Jorge Zahar Ed, 2003.
[2] Lacan, Jacques. Problemas Cruciais da Psicanálise, in Outros Escritos. RJ, Jorge Zahar Ed, 2003.
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Na era do tecnopoder: Hello Barbie!
by cien_digital in Cien Digital #18, Contribuições

Danielle Carcav, A cage is a cage?, 2009
Maria Rita Guimarães
Uma recente novidade irrompida no devassado reino das crianças, cada vez mais visado pela indústria tecnológica no segmento dos brinquedos , está gerando uma interessante e bem vinda polêmica.
Em fevereiro ( 2015) a fabricante Mattel, dona da Barbie, apresentou na anual feira novaiorquina de brinquedos a nova versão da célebre boneca. Barbie, desde sua criação “marcou uma ruptura nas práticas sociais e na socialização das meninas”1.
Não é de agora, portanto, que sua presença perturba. Desde o pós-guerra Barbie traduz, de forma fulgurante, os ares dos tempos que avançam, desesperados, rumo ao máximo do consumismo. Em 2015 não é diferente: Barbie conecta-se à internet via wifi e, através da tecnologia de reconhecimento de voz, conversa. Com quem?
Aqui, tocamos no ponto ético que provoca a polêmica pois, sob a aparente inocência de um jogo de criança com sua boneca, quase despudoradamente mostra-se o princípio que rege nossa contemporaneidade: transformar o que até o momento conhecemos como mundo, em uma espetacular plataforma planetária, com finalidades inquietantes.
Perguntaríamos : “Até tu, Barbie?” se de nada suspeitássemos de seu poder emblemático, exercido sobre as crianças de todo o mundo. No entanto, a nova Barbie veio alinhada à ruptura da fronteira público / privado que aconteceu a partir da colossal coleta de dados que se verifica através desses gadgets conectados para usos diversos. A Hello Barbie seria mais um desses objetos e conversaria, sobretudo, com os integrantes da Toy Talk, a parceira de tecnologia da Mattel.

John Chamberlain, The Devil and the Deep Blue Sea, 1983
Zigmund Bauman apóia-se na definição da Wikipédia2 inglesa do conceito privacidade para desenvolver as diferenças entre os conceitos de “público” e “privado” e nos fala de sua interface.
Esses dois campos semânticos, antagônicos, conduz à formulações que remetem à interface – iniliminável até então -, entre as fronteiras, os limites e o tráfego entre eles. Na atualidade, devido às inovações tecnológicas, como ficam tais fronteiras? Não é fácil percebê-las. Não obstante, facilmente identificamos o incalculável tráfego de dados que alimentam a hiper-tecnologia e que, das “nuvens”, recobre todo o universo como uma sombra que horroriza e fascina ao mesmo tempo.
Tal como afirma Eric Sadin:3
Entramos em uma nova era na história da digitalização, que vê uma proliferação de sensores e de objetos conectados registrarem a maior parte de nossos gestos e ações. É o nosso smartphone, que nos localiza geograficamente; o relógio conectado da Apple que registra os nossos ritmos; a balança transformada em personal digital ou os garfos que analisam a nossa alimentação e avisam de um ritmo dabsorção demasiado rápido. O resultado é que permanentemente disseminamos fluxos exponenciais de dados que são tratados por algoritmos cada vez mais sofisticados, encarregados de nos sugerir ofertas e serviços personalizados. Esta “inteligência da técnica” pretende otimizar, fluidificar e proteger o nosso cotidiano individual e coletivo, um pouco como um mordomo digital que ficasse cada vez mais e mais diretivo.4

Antônio Lee, Tricicla
Nesse contexto de “tecnopoder” estaria a nova Barbie, segundo as críticas que sua apresentação sofreu e vem sofrendo. O microfone embutido em seu corpo é capaz de captar tudo o que é dito por aquele que estiver em sua proximidade. Caberá à Toy Talk interpretar e armazenar as frases ouvidas: serão usadas na formulação de uma resposta pré-gravada dita pela boneca à criança que a tem, simulando uma conversa.
A Mattel afirma que o maior desejo das crianças seria falar com a Barbie e que, agora, não se sentirão sozinhas. A fabricante aprenderá tudo sobre elas: o que gostam, aquilo de que não gostam e lhes dará retorno disso via o alto falante embutido.
Tal próposito evidencia o quão exatas são as palavras de Eric Sadin quando afirma que a meta consiste justamente em buscar a otimização de nossos gestos e ações, tal como se alguém, ao passar perto de uma loja de calçados já encontrasse ali uma oferta que corresponderia a seu perfil. Esse seria o aspecto mais perturbador da relação que podemos manter com as tecnologias contemporâneas, já que o poder que lhes damos é o de, cada vez com mais liberdade, orientar a nossa vida.

Heike-Karin Föll
Hello Barbie!
Uma rápida recuperação do curriculum vitae de Barbie nos esclarece porque a repercussão à chegada de sua versão tecnológica está produzindo profundo mal estar nos meios sociais e de defesa dos interesse da privacidade, especialmente aqueles relacionados às crianças.
Do belo ensaio de Marianne Debouzy5 – A Boneca Barbie – destacamos alguns pontos que marcam sua particularidade no mundo da infância.
- Ela faz a substituição do modelo “boneca criança” ao “boneca /mulher”. Tem uma idade indeterminada, pretendidamente adolescente, mais em realidade uma mulher. Estilo “sexy”e pin up. Apesar da vasta família que habilmente se vai constituindo em seu entorno, pai e/ou mãe estão ausentes.
- Os anos 50 – quando “nasce” Barbie – , são aqueles nos quais se descobre a importância da adolescência, ao mesmo tempo em que avança uma exploracão comercial sem precedentes do estilo de vida adotado pelos jovens. Barbie vai fazer as típicas atividades daqueles: dançar rock, trabalhar de baby sitter, etc
- Nos anos 70 Barbie estuda para, na década dos 80, ser uma mulher realizada profissionalmente, conservando, no entanto, os emblemas do ideal feminino de que se fêz portadora.
- Apesar da impressão de uma multiplicidade de Barbies, são apenas pequenas modificações sobre uma boneca de base, em fidelidade com uma silhueta que afirmam ser improvável existir. De fato, podemos nos dar conta de como o noticiário se ocupa da infelicidade em que mergulham alguns jovens com a finalidade de incarnarem tal “improvável perfeição “representada por Barbie e/ou Ken. De boneca/mulher a mulher/boneca.De qualquer maneira as mudanças operadas nos modelos Barbie, se pequenas, acompanham, inversamente proporcional, o tamanho de seu valor comercial, movimentando astronômicas cifras com seus acessórios, com a moda e, igualmente com as parcerias empresariais como Disney, Benneton etc.
- Simplificando muitíssimo as estatísticas do valor merchandise de Barbie, basta que nos lembremos que ela é vendida em mais de cem países e, segundo consta pela imprensa, cada criança americana teria em torno de 7 bonecas Barbie; a francesa, de 3 a 11 anos – 2; a italiana 3; a alemã, 3. A distribuição entre as crianças “que não têm nenhuma Barbie” fica assim: 14% na França; 2% na Alemanha; 3% nos EUA; 4% na Itália.

Takashi Murakami, sculpture of miss
Hello Barbie, uma espiã?
Porque a imprensa alemã comparou a Hello Barbie que será lançada já em novembro, com venda prevista inicialmente nos EUA, com um informante da Stasi?
Segundo Susan Linn que é diretora executiva da Campanha por uma Infância Livre de Comerciais (Campaign for a Commercial-free Childhood), o fato de Mattel e Toy Talk estarem se envolvendo no que resulta em vigilância corporativa de como as crianças brincam com suas bonecas, deixa crianças e famílias vulneráveis a violações potenciais como quebra de segurança, publicidade insidiosa e outras.6
Mattel fala de sua política de privacidade em relação às conversas ouvidas pela Barbie, comprometendo-se a enviar emails aos pais dando a eles a oportunidade de conhecê-las. Susan Linn diz não poder imaginar o que seria uma boa política nesse aspecto quando o fato é que há uma corporação ouvindo crianças brincarem. Ela salienta que “são atividades mais íntimas das crianças, além de conversas privadas da família. “Como serão interpretadas as encenações de violência ou sexuais, presentes nas atividades lúdicas das crianças?”
Vislumbra-se um grande desdobramento ético a ser discutido no horizonte das conversas entre Hello Barbie e suas futuras donas.
Notas:
1 LINN, Susan. – O ESTADO DE S. PAULO – 21 Março 2015 | Acessado em 10/07/2015. http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,agente-barbie,1655077
2 BAUMAN, Zygmunt. Estranha Aventura da privacidade in 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, RJ, Jorge Zahar Editor, 2011.
“Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar–se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado a esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há nela algo que se considera inerentemente especial ou pessoal…A privacidade pode entendida como um aspecto da segurança- pelo qual se torna clara, em geral, a equivalência entre os interesses de um grupo e os de outro grupo.”
3 Escritor, ensaista e filosofo francês. Especialista na questão digital. Tradução nossa. Acessível em http://www.liberation.fr/economie/2015/03/22/il-est-imperatif-de-contenir-la-puissance-du-technopouvoir_1226071
4 Eric Sadin. Entrevista à Carta Maior. Acessível em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-duplicacao-digital-do-mundo-e-os-seus-riscos/6/29513
5 Marianne DEBOUZY é professora de história americana na Universidadede Paris 8, Vincenne-Saint-Denis. Entre outros livros da autora, encontra-se Le Capitalisme “sauvage” aux Etats-Unis (1860-1900)
6 LINN, Susan. – Obra citada.

Crianças Amos: Resenha e considerações a partir do texto de Adela Fryd
by cien_digital in Cien Digital #18, Contribuições

Balthus, Les enfants blanchard, 1937
Margarete Parreira Miranda
“Crianças Saturadas” é o tema inquietante estabelecido como eixo da VII jornada internacional do Cien, que acontecerá em setembro na cidade de São Paulo. Momentos importantes antecipam o evento e nos convocam a problematizar o “adensamento” das crianças de nossos tempos, que pelo excesso de substância gozosa insistem em deixar o Outro de fora. Testemunhamos adultos queixosos que se dizem perturbados com a “falta de limites das crianças, sua agitação e desrespeito”. Pais, professores e educadores fazem parceria com esse sintoma contemporâneo sem se implicarem, muitas vezes, na construção desses atos.
Nessas circunstâncias, tivemos acesso ao texto de Adela Fryd, “Crianças amos”. Pela precisão e clareza teóricas, associadas à pertinência junto ao tema que ora privilegiamos, compete-nos dele extrair e destacar algumas incursões favoráveis à transmissão aos participantes do CIEN. Propomos nos servir dos princípios psicanalíticos e relatos clínicos que Adela distingue em seu artigo, buscando ligá-los à extensão da psicanálise, orientados pelos ensinamentos de Miller. Este defende que embora a psicanálise aplicada não seja a psicanálise, ela é psicanálise. Adela Fryd oferta elementos para uma leitura que alcança outros espaços por onde crianças circulam sob o olhar e a voz dos adultos – escolas, abrigos, instituições jurídicas e/ou outros. A presença do psicanalista em uma relação interdisciplinar pode, muitas vezes, via uma palavra esclarecedora, um gesto ou um ato, promover deslocamentos produtores do novo, no enfrentamento das gerações.
Adela chama atenção, inicialmente, para as “crianças que são mais amos que seus pais”, ou seja, que com eles fazem paridade: Seguem autônomas e sós, fazem o que querem sem que nada as possa deter. Interroga como chegarão essas crianças à adolescência. Seu modo de não resposta tem especificidades, pois demandam ser reconhecidas pelo Outro, mas a ninguém escutam de modo particular. Crianças com um querer caprichoso, em que se impõe, segundo a autora, um gozo narcisista livre, a despeito das disposições do Outro. Mostram-se blindadas ao Outro do ensino, esquivando-se dos significantes que por ele lhes são ofertados. Afirma, também, que há uma dificuldade de alienação significante, o que termina por fazer operar uma “falsa separação” para o sujeito. Se há um embuste, a precariedade simbólica não transforma os destinos da pulsão, e o sujeito responde à pergunta pelo desejo do Outro se fazendo objeto. Presas ao falo imaginário e identificadas à fantasmática do Outro materno objetam com o corpo, já que a ausência da falta não lhes deu margem a construção de outros recursos. A autora observa que na formação do par parental, a mãe toma o filho como objeto precioso e o pai opera somente como parceiro da criança.

Dan Cole, Untitled, 2008, a ‘painting’ made with chewing gum
Os sintomas clínicos contemporâneos ganham, então, nomes como abulia, hiperatividade, inapetência e suas variantes, se instalando em vários ambientes. A freqüência desses casos os inscreve como fenômenos subjetivos de uma época. Nesse ponto de seu artigo a autora interroga: “Então, como se produz a constituição subjetiva nessas crianças?”
Abalizada em Freud e Lacan, Adela trabalha a alienação/separação do sujeito, cuja teorização permitirá maior entendimento e manejo analítico. No narcisimo freudiano, ela diz que se pode pensar na precariedade das marcas do Ideal do Eu, de onde viriam as identificações com o Outro. Liga o narcisismo freudiano ao estudo do imaginário em Lacan. Na montagem da pulsão freudiana e a organização do objeto pulsional haveria um ponto de entrecruzamento entre ambas as séries: narcisismo-autoerotismo-relação de objeto e a série da pulsão oral-anal-fálica. Para Lacan, dois objetos se agregam na organização da demanda e desejo, o olhar e a voz.
Nos argumentos de Fryd, as fantasias imaginárias das “crianças amo” persistiriam em uma especularização decidida, fazendo prevalecer a agressividade e o entrave ao trabalho entre o objeto e o ideal. O excesso de gozo pulsional, desse modo, sobressairia pela ausência do véu articulado a partir do Outro. Para a autora, Lacan trabalha duas importantes operações constitutivas da subjetividade: a alienação e a separação. Se na alienação há a fundação do Sujeito, na separação se organizaria o desejo. O recorte da pulsão somente se dá na medida em que passa pelas baterias significantes do Outro. Se há um intervalo em que o Outro não diz, é nessa fenda que poderá emergir algo do desejo do Sujeito, que interroga o desejo do Outro. E é nessa intermitência que se produz a extração do objeto a, que como resto da operação subjetiva arma a função desejante. A busca desse objeto impulsiona o deslocamento da libido, fazendo notar que a separação procedeu. A “falsa separação” a que se refere Adela, no entanto, em alusão às “crianças amos”, faz verificar uma inteligência dessas crianças em manejar os significantes do Outro, mas uma estagnação no campo do desejo, estando mais ligadas à pulsão que à fantasia.
Adela demarca importantes considerações concernentes à presença do analista, no ponto onde a separação é o problema. Sustenta que esta presença se abre para a contingência de um encontro com o Outro, onde a criança poderá localizar algo do seu estilo e de sua maneira de alojá-lo, que permitirá relançar a pulsão em direção ao novo. O desejo do analista confiado à transferência atualiza o objeto olhar e o objeto voz, com efeitos de separação sobre o excesso de gozo, que implica saturação.

Marcia Moraes, O Subsolo, 2012
Nesse momento do texto, a autora relata fragmentos clínicos do tratamento de duas crianças, colocando em evidência sua intervenção. Destaca, em ambos relatos, a importância do jogo do fort-da freudiano, como matriz da fantasia, com o qual a criança se relaciona na ausência da mãe. Toma esse jogo como orientador nos referidos casos, a partir da delimitação do real para cada sujeito. Fazer instalar a falta, a separação e aguardar que algo de cada um emirja, é ponto decisivo para Adela. Distingue ainda, que por se tratar de crianças que monologam, deve-se considerar o seu saber para que elas escutem o Outro.
A leitura do texto de Adele Fryd nos aviva reflexões. Se considerarmos os diversos espaços institucionais por onde transitam as “crianças amos”, assim, “saturadas de gozo”, podemos pensar também o conceito de transferência que se aplica aos encontros contingentes com esses Outros. Não poderia o olhar, a voz do Outro fazer presença de maneira menos ruidosa, em que se oferta o consentimento ao estilo de cada um sem, contudo, abrir mão de um dizer consequente às crianças? Estarmos atentos ao que venha despertá-las da fixidez dos sintomas, na aposta em uma posição que proteja as diferenças, poderá desembaraçá-las de seus excessos e fazer fluir a libido no campo do desejo. Essa talvez seja a essência da transmissão aos participantes do CIEN, concernidos em uma prática interdisciplinar.
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Apresentação do texto “Em direção à adolescência” de Jacques-Alain Miller
by cien_digital in Cien Digital #19, Contribuições

Cayce Zavaglia, Sophie, bordado a mão, 2013
Ana Lydia Santiago
Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança
O texto que me cabe apresentar hoje -̶ Em direção à adolescência, de Jacques-Alain Miller – é, em resumo, uma proposta de orientação para os trabalhos preparatórios para a 4ª Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança, prevista para acontecer em Paris, em abril de 2017. Consiste, pois, numa indicação de pontos cardeais para um estudo da adolescência.
A leitura desse texto permite-me dividi-lo em duas grandes partes, que designo Aspectos clínicos da adolescência e, mais especificamente, A adolescência na clínica do parlêtre.
I – Aspectos clínicos da adolescência
Pode-se considerar a tendência a se definir a adolescência como uma construção, independentemente de várias outras perspectivas de estudo possíveis ̶ a biológica, a psicológica e outras ̶ , como o aspecto epistêmico mais geral desse texto de Miller. Dizer que a adolescência é “uma construção” incorpora o espírito da presente época ̶ ou seja, uma vertente pós-moderna, segundo a qual tudo é construído, tudo é artifício significante.
A tese de Miller é a de que esta época nega o real, por representar um período muito incerto quanto ao real, que prefere conferir importância preponderante a signos. Que são signos? São semblantes, um misto de simbólico e imaginário. Sobre esse ponto, a originalidade de Lacan e da psicanálise resume-se a articular o semblante com o real. Levar em conta o real, o real da pulsão, esse é o ponto que se deve priorizar em qualquer pesquisa psicanalítica sobre a adolescência.
Na maior parte das pesquisas psicológicas, considera-se que, por se tratar de uma construção, a adolescência pode ser descontruída. Miller cita, a propósito, a obra Contra a adolescência: redescobrindo o adulto em cada adolescente, livro de Robert Epstein, psicólogo e jornalista americano, cujo título, ressalta ele, propõe um slogan simpático. Nessa obra, o autor defende a tese de que, na atualidade, são os adultos que criam a experiência adolescente e, assim, impedem os jovens de agir como adultos. Se, antes, os adolescentes conviviam com os adultos e os tomavam como modelo, hoje, os adultos levam os jovens a viver entre pares, segundo uma cultura que lhes é própria e susceptível a variações de moda e às mais diversas manifestações socioemocionais. Essa é a construção dos adultos para a adolescência, afirma Epstein. Resolver o problema consiste, então, em desconstruí-la.

Egon Schiele, Zwei sich umarmende Frauen, 1911
I.1 – O que é a adolescência para a psicanálise?
Tanto para Freud quanto para Lacan, a puberdade representa uma escansão sexual, um corte no desenvolvimento da personalidade. O tema central do terceiro ensaio, de Freud, antes referido, é este: quando a sexualidade tem início no período púbere, há uma supressão da diferença entre os sexos, a abolição das predisposições à posição feminina ou à posição masculina, o que implica consequências significativas para a sexualidade, que passa a incluir o outro sexo.
Essa supressão é um fato plenamente observável nas meninas. Elas, que, desde muito cedo, bancam a mulher e, para tanto, adotam uma posição adulta, demonstrando precocidade em relação à posição sexual, apresentam, no período púbere, atributos essencialmente masculinos. Toda a preparação presente no seu jogo lúdico – cuidar de bonecas, fazer “comidinha”, ir ao shopping, resolver problemas pelo celular, levar o cachorro ao pet shop e outros –, que constitui um exercício da posição feminina, desaparece, na puberdade, por trás de uma reivindicação viril.
No que concerne aos rapazes, em sua condição de meninos, sempre “às voltas com os mais inflamados tormentos da infância”, o adulto intromete-se marcando a puberdade. A propósito, considere-se o exemplo, reportado por Lacan, do teenager André Gide: aos 13 anos de idade, ele prometeu a si mesmo proteger sua prima Madeleine, de 15 anos, portanto dois anos mais velha que ele. Esse acontecido expressa a imiscuição do adulto na criança, a antecipação da posição adulta no menino.
Ainda na perspectiva da eliminação da diversidade entre os sexos na puberdade, deve-se atentar ao fato de que, nessa fase, o narcisismo se reconfigura. É importante, pois, verificar os modos de articulação do Eu Ideal e do Ideal do Eu no desenvolvimento da personalidade, tal como elaborado por Freud, em “Introdução ao narcisismo”, e por Lacan, tanto no esquema R quanto ao longo de O Seminário, Livro 3, As Psicoses.

Bojan Jevtić, Kiss, 2015
Miller convida, então, seu leitor a precisar toda a mutação que ocorre na puberdade ̶ ou seja, a supressão da diferença entre os sexos, pela antecipação da posição adulta e pela reconfiguração do narcisismo.
I.2 – A contemporaneidade da adolescência
O que há de novo sobre a adolescência? O novo pode ser lido em função dos impasses dos adolescentes diante do individualismo democrático resultante da derrocada de ideologias e do enfraquecimento do Nome do Pai. Como se sabe, esse enfraquecimento tem como efeito uma desorientação, antes garantida pela ordem simbólica. No texto em discussão, Miller extrai de estudos clínicos sobre a adolescência produzidos recentemente por integrantes da AMP, os principais sintomas da adolescência no momento atual, de que trato a seguir.
- A procrastinação
A procrastinação da adolescência não é um sintoma novo. No século passado, mais precisamente em 1923, Siegfried Bernfeld já a sinaliza e, neste século, Robert Epstein, já referido, bem como Philippe La Sagna, nosso colega da AMP, retomam esse tema. Este último afirma que, na adolescência, há “um sujeito, que está diante de várias opções possíveis e que as coloca um pouco à prova”.
Miller relaciona tal conduta dos adolescentes à incidência dos aparelhos e instrumentos digitais, que se traduz numa singular extensão do universo dos possíveis. Há uma multiplicação do elemento do possível, das escolhas possíveis de objetos, que devem ser aferidos para se saber qual o melhor. Tal aferição pode, no entanto, se tornar uma indecisão infinita, cujo efeito implica o adiamento de qualquer opção para o mais tarde possível. Assim, conclui ele, a própria adolescência é uma procrastinação em relação à escolha de objetos.
- A autoerótica do saber
A incidência do mundo digital curto-circuita a mediação do adulto no que diz respeito a acesso ao saber, que não está mais no professor ou nos pais, mas no celular que os adolescentes trazem no bolso ou em outros instrumentos digitais que eles têm à sua disposição. O saber não é mais do Outro nem relativo a desejos dele. Assim, não mais é preciso seduzir, ser obediente ou ceder à exigência do Outro e o saber passa a incluir alguma atividade, de preferência autoerótica.
- Uma realidade imoral
Em outros tempos, os ritos de iniciação enquadravam o acesso à adolescência num registro sagrado, místico. Hoje, porém, os progressos da cogitação pubertária; o uso do pensamento abstrato, que, em linhas gerais, é a capacidade de pensar sobre coisas não concretas – como o amor, o futuro e as regras morais – e de estabelecer hipóteses sobre fatos imaginários, permite aos adolescentes avaliar diferentes alternativas e optar por aquela que mais lhes convém. Segundo Piaget, essa é uma característica dos jovens a partir dos 12 anos de idade.
Marco Focchi, nosso colega da AMP, em um estudo sobre a adolescência, observa que, presentemente, os pensamentos abstratos conduzem à desidealização oriunda da queda do grande Outro do saber. A propósito, recomendo a todos assistir ao vídeo Aspirational – Kirsten Dunst Selfie Short Film Called Aspirational, de Matthew Frost, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rwDbOmPQNx0, que é um exemplo desta desidealização, na atualidade.
Consequentemente, não há sublimação, investimento da libido no saber valorizado pela cultura; em vez disso, observa-se uma “realidade degradada e imoral”. Como afirma Miller, esse aspecto encontra-se na origem das teorias do complô, que, por sua vez, incitam ampla adesão de estudantes e universitários. Tal adesão é indicativa do Outro com que os adolescentes têm que se haver ̶ um Outro degradado e nocivo, um Outro mau. A realidade imoral, portanto, concerne ao Outro do complô ̶ ou seja, a uma desconfiança paranoica em relação ao outro, visto como aquele que tem intenção de destruir o sujeito.
- Socialização sintomática
Hélène Deltombe, também nossa colega da AMP, em O inconsciente da criança, obra recentemente publicada, ao estudar os sintomas que se articulam ao laço social ̶ entre eles, o alcoolismo, a anorexia/bulimia, a delinquência, o suicídio ̶, demonstra que tais sintomas podem se tornar, na adolescência, fenômenos de massa. Essa socialização do sintoma indica que a socialização dos adolescentes pode acontecer de forma sintomática, marcada pela pulsão de morte.
- O “Outro tirânico” ou quando as demandas do Outro são tomadas como exploração, como ordens superegoicas
Daniel Roy destaca duas formas de presença do Outro tirânico na vida dos adolescentes: de um lado, a demanda do Outro familiar ou escolar é recebida por eles como um imperativo tirânico; do outro, durante momentos de crise provocadas por adições, os pais e os educadores, na tentativa de protegê-los, instauram regras tirânicas. O autor enfatiza que a interpretação do desejo do Outro familiar ou escolar e o entendimento do desejo da sociedade de tiranizá-los impõem uma autoridade brutal aos adolescentes.
Miller destaca, a propósito, os trabalhos de dois outros colegas nossos da AMP, que estudam a ocorrência na adolescência de fenômenos sintomáticos decorrentes de mutações da ordem simbólica e do declínio do Lugar do Pai.
- A destituição da “tradição”, que afeta, também, os pais
Vilma Coccoz, de Madri, estuda casos em que os pais se fazem amigos de seus filhos, apenas porque já não sabem mais como ser pais, como exercer a função do Outro que orienta.
- Déficit de respeito
Lacadée, de Bordeaux, destaca a “demanda de respeito” dos adolescentes como uma busca desarticulada do Outro. Ninguém sabe quem pode satisfazer tal carência, pois não há suposição no Outro. Miller traduz essa demanda dos adolescentes nesta frase interjetiva: “Como seria bom ser respeitado por alguém que respeitássemos!” E observa que esse lugar – o de quem merece respeito – está vazio.
II – A adolescência na clínica do parlêtre
As mutações da ordem simbólica – tema de estudo dos últimos congressos do Campo Freudiano –, o declínio do patriarcado ou a perda de potência da voz do Pai associam-se à quebra dos constrangimentos naturais promovida pela ciência, à medida que esta passa a manipular a procriação, a transmissão de saberes e o saber fazer.
Essa interferência da ciência no campo do saber acarreta, por via de consequência, a perda dos registros tradicionais, que ensinavam o que convinha fazer para ser homem ou mulher. Tais registros advêm tanto de religiões quanto do common decency – ou seja, a decência que, comum a todas as classes sociais, orientava as pessoas no sentido de como ser “uma boa moça” ou “um bom rapaz”.

Katsushika Hokusai. One Hundred Tales (Hyaku monogatari), 1830
Segundo Miller, a “tradição”, no ensino de Lacan, designa a religião judaico-cristã. As mutações da ordem simbólica pelo discurso da ciência vêm destruindo, portanto, as tradições dessa religião, deixando um vazio no lugar. É nesse vazio que, bruscamente, se inscreve outra “tradição”: a do Islã, que, então disponível no “mercado”, permanece intocada diante das mutações na ordem simbólica que ocorrem no Ocidente e chega ao mundo ocidental, tornando-se acessível a todos por meio da divulgação e da globalização promovidas pelos diversos canais de comunicação contemporâneos.
O que Miller assinala é que o Islã, por não se deixar intimidar pelo discurso da ciência, estabelece um meio de controlar a relação sexual e, assim, organiza o laço social sobre a não relação. Dessa forma, estatui o que é preciso fazer para “ser homem, para ser mulher, para ser pai, para ser mãe digna desse nome” . Enfim, a “tradição” islâmica não vacila em instruir, em propor normas que ordenam os sexos separadamente e de maneira altamente diferenciada. Cito Miller:
Ele [o Islã] faz da não relação um imperativo que proscreve, que proíbe as relações sexuais fora do casamento e de uma maneira muito mais absoluta que nas famílias, que são criadas com referência a outros discursos, em que, hoje, tudo é laxista, permissivo.
Na tradição do Islã, Alá não é um pai, é o Um absoluto, sem dialética e sem compromisso; é o Deus Um e único, que não “dá brecha” para historietas de romance familiar.
Em face da desorientação promovida como efeito do saber da ciência, o Islã desponta para os adolescentes como uma “boia de salvação” com vistas à organização do laço social com a não relação. Miller enfatiza que a “tradição” islâmica poderia, inclusive, ser vislumbrada como uma solução para o problema do corpo do Outro, não fosse o desvio a que deu origem: o Estado Islâmico. Eis o empecilho levantado por ele quanto a essa “tradição”: o Estado Islâmico é um discurso do Mestre que se apoia no Islã, mas implica consequências altamente destrutivas.
II.1 – A questão fundamental do corpo do Outro
Neste ponto, Miller retoma o terceiro ensaio de Freud sobre as transformações da puberdade e ressalta o problema da transição do gozo na adolescência. E aponta que, para Freud, no momento da puberdade, há uma mudança de estatuto do modo de gozo, que passa da satisfação autoerótica para a satisfação copulatória.
De acordo com Lacan, porém, isso não acontece. Considerando a proposta freudiana de que, nessa fase, todas as pulsões parciais ligadas às zonas erógenas se unificam em direção a um único objeto exterior, ele adverte que tal posicionamento é uma ilusão, que se conecta com toda uma ”mitologia do par perfeito”, em que os gozos se correspondem, juntamente com o amor e outras manifestações sentimentais. Por isso, o gozo é essencialmente autoerótico: goza-se da fantasia. Não há gozo do corpo do Outro, só o do próprio corpo. Mas a ilusão imaginária de se gozar do corpo do Outro embala o império das imagens.
Esse esclarecimento permite a Miller introduzir uma questão fundamental e, a meu ver, de grande atualidade: Pode o corpo do Outro se encarnar no grupo? O grupo, a seita, não dá certo acesso a algo do tipo “Eu gozo do corpo do Outro, logo faço parte”?

Keith Haring, sem título, 1984
Cantar junto não cria certa harmonia, não eleva o espírito, não é da ordem da sublimação? Assiste-se, no momento atual, a significativa proliferação de grupos: os chamados de “células religiosas”, em que se pretende cultivar o espírito; os de mulheres, mães que desistem da vida matrimonial e dizem preferir o casamento com Deus para sustentar o cuidado com a prole; os de jovens que se reúnem, também em células, para orar, mas em que prevalece a prática da exclusão do diferente com base em critérios socioeconômicos. Há sublimação nesses grupos? A sublimação, informa Miller, não satisfaz diretamente a pulsão. Trata-se, então, de uma nova aliança entre a identificação e a pulsão? Essa questão parece-me central e concorde com a proposição de Lacan de que o desejo do Outro determina identificações entre sujeitos. Resta, assim, a pulsão que não se satisfaz por essa via.
Seguindo esse raciocínio, Miller interpreta as cenas de decapitação que o Estado Islâmico divulga pelo do mundo. Como ele esclarece, tais cenas se tornaram um bom marketing para a adesão de novos seguidores, como uma forma de aliança entre a identificação e a pulsão agressiva. Não se trata, de forma alguma, de sublimação. Nesse caso, está-se diante do discurso do Mestre:
Em S1, o sujeito identificado como servidor do desejo de Alá se faz agente da vontade. […] S1 é o carrasco; S2, a vítima ajoelhada; a flecha de S1 em direção a S2, a decapitação. Eu satisfaço essa vontade de morte.
No Cristianismo, impõe-se a “vontade de castração inscrita no Outro”, pois a relação é a de pai e filho. O processo resultante leva à castração do próprio sujeito, ao que Lacan descreve como o narcisismo supremo da causa perdida: “Eu me mortifico, eu me privo, eu me castro e eu sou grande porque sou devotado à causa perdida”.
No Estado Islâmico, não há pai nem filho. Trata-se, essencialmente, de vontade de morte inscrita no Outro. A relação está, portanto, a serviço da pulsão de morte do outro: “Eu corto a cabeça do outro e eu estou no narcisismo da causa triunfante”.
Nesse contexto, a proposta da desradicalização dos sujeitos submetidos ao discurso do Mestre revela-se uma ilusão. Não é possível descontruir essa construção, porque não se trata de semblante. Essa construção está ligada ao real do gozo.
Concluindo, afirma Miller: “Como eu acho que estamos lidando com o real, a conclusão política a tirar dessa consideração psicanalítica é que, face ao discurso do Estado Islâmico, a única maneira de acabar com ele é vencê-lo”.
Cien Digital agradece a autora por seu acolhimento ao nosso pedido de publicação.

he Case against adolescence de Epstein
by cien_digital in Cien Digital #19, Contribuições

Lisa Sminorva, bordado, 2015
Alexandre Stevens[1]
ADOMANIA, ADOBASHING, WHAT ELSE ?
Depois de terem desconfiado dos adolescentes, eis que hoje os adultos os invejam. O movimento americano nomeado « Mortified » incita os adultos que sofrem de reconciliação consigo mesmos, a lerem em público passagens embaraçosas de seus diários íntimos de adolescente a fim de « expurgar o teen deles […] e até mesmo reivindicá-lo»[2]. Mas será que por causa disso o opróbio desapareceu? Robert Epstein, descoberto para nós por Jacques-Alain Miller, propõe sobre esse ponto uma tese decidida que não é sem consequências políticas. Alexandre Stevens retifica.
Na terceira jornada do Institut de l’Enfant[3], Jacques-Alain Miller apresentou o adolescente como uma construção a partir de perspectivas que não se recobrem – cronológica, biológica, comportamental, cognitiva, sociológica ou, mais ainda, artística. Uma construção sempre pode ser desfeita e ele observa o dinamismo com que Robert Epstein desconstrói o conceito mesmo de adolescência. É o que expressa precisamente o subtítulo da obra: « Rediscovering the Adult in Every Teen »[4].
Epstein afirma sua tese desde o primeiro capítulo « O Caos e a Causa ». Só depois do fim dos anos 1800 é que esse tempo da vida foi isolado do mundo dos adultos com o objetivo de tratar a suposta dificuldade da adolescência e a desordem desses jovens. Ora, ele sustenta, é o contrário que se produz: essa discrepância, longe de tratar os problemas dos adolescentes, os produz. A « crise » da adolescência, que podemos observar, é a consequência imprevista dessa prolongação da infância. Nunca, com efeito, no curso da história, houve tantas leis ou regulamentos que restringissem as escolhas dos teenagers – segundo o termo inglês que ele prefere visivelmente ao de adolescente. É que, efetivamente, ele critica nossa sociedade ocidental, sobretudo a americana, por considerar os adolescentes a partir apenas da cronologia, da idade.
Essas restrições que tocam os teens trazem às vezes paradoxos insensatos, tais como o seguinte: em alguns estados americanos, alguns políticos querem proibir o ato de fumar aos menores de 21 anos sob o pretexto de que antes dessa idade não se tem um juízo suficientemente claro sobre as condições de saúde. Mas ao mesmo tempo, dezenas de milhares de jovens americanos de 18 anos são enviados à guerra no Iraque sem que se pense que o juízo deles seria insuficiente para medir que isso poderia lhes ser nefasto.

Kati Horna, Invierno en el patio [Winter in the Courtyard], 1939
Ele examina em detalhe a série de « distúrbios » dos adolescentes e os limites que lhes são impostos. O amor e a sexualidade seriam assumidos de modo mais sensato pelos adultos? Por que pensar que uma jovem de 13 anos seria inapta a decidir livremente ter relações sexuais com um rapaz de 25, se ela sustenta isso? R. Epstein vai longe em sua perspectiva e sabe disso, pois toma a precaução de dizer que ele não pode simplesmente responder a essa questão dentro do que é a sociedade americana hoje. Ele responde, no entanto, que mesmo se se lhe recusa o direito, uma jovem de 13 anos é bastante capaz de fazer suas escolhas nesse plano. Da mesma forma para o casamento. Ele acredita nos sentimentos recíprocos, quer dizer, ele acredita na relação sexual.
E depois, por que os teens não poderiam decidir fumar, beber, dirigir, se eles demonstraram que podem fazê-lo? Dirão que eles não são ainda suficientemente sensatos? Mas quantos adultos não dirigem depois de ter bebido? Acontece a mesma coisa em relação ao exército e ao risco corrido se engajando nele. Aliás, a história da França não seria o que ela é se Joana d’Arc não tivesse podido usar armas.
Nenhuma razão de biologia cerebral, nem de medida cognitiva (teste de QI) permite pensar que os adolescentes seriam insuficientemente desenvolvidos. E as leis religiosas estão no mesmo sentido: Maria teve Jesus na idade de 13 anos, Jesus ensinava no templo aos 12 e para os judeus o Bar Mitzvah acontece pouco depois da puberdade. Aliás, se os teens dos USA são os mais atormentados do mundo, nada disso existia nos aborígenes australianos onde a passagem da infância ao estado adulto se fazia por um simples rito que ocorria pouco depois da puberdade.

Etam Cru, Moonshine, 2013
Para R. Epstein, todos os distúrbios dos adolescentes têm a ver com a infantilização deles. A prova disso lhe é dada duas vezes por Freud: primeiro Sigmund não considerou verdadeiramente o conceito de adolescência, mas insistiu apenas sobre a vida adulta e infantil; em seguida, Anna, que recebeu de seu pai uma instrução muito estrita durante sua adolescência, descreve os distúrbios dos teens e os seus próprios! Eis a prova: Freud não acredita na adolescência, mas produziu os distúrbios dela em sua filha, infantilizando-a.
Essa desconstrução da adolescência, que R. Epstein opera dessa maneira, atrai uma certa simpatia. E pode-se mesmo encontrar nela certas posições próximas das nossas nas cinco ideias de base que ele propõe: cada um é único; as competências individuais valem mais do que os a priori que se possa ter; cada um tem um potencial irrealizado; as etiquetas diagnósticas do tipo DSM são perigosas.
Além disso, quando ele descreve o desenvolvimento e os dramas da adolescência como não sendo determinados apenas pela transformação hormonal, nós não podemos senão estar de acordo com ele. Entretanto, não pela mesma razão! Ele denuncia a infantilização dos adolescentes que ele coloca na origem dos fenômenos da adolescência, enquanto, com Lacan, nós consideramos a adolescência como um sintoma da puberdade, já que tudo isso não se produziria « sem o despertar de seus sonhos »[5].
Em R. Epstein, não há nenhum real encontrado pelo sujeito. A puberdade é aí principalmente um momento simbólico particular. Para o resto, tudo é calculável por testes, que ele, aliás, nos propõe, teste de infantilização e, sobretudo, testes de competências. Não se trata certamente de dar todas as liberdades aos adolescentes. Pelo contrário, trata-se de avaliar as competências de cada um dentre eles. Tal como ele diz muito simplesmente: « agora nós devemos tomar um novo ponto de vista sobre os teens avaliando-os sobre a base de suas competências individuais »[6]. O teste de competências se tornaria assim o novo rito de passagem em nossas sociedades ocidentais?
Com certeza a sociedade vai resistir em segui-lo nessa via, diz ele, especialmente por razões econômicas porque a invenção do termo « adolescente » deu lugar ao desenvolvimento de todo um mercado voltado para ele.
Mas, enfim, não é difícil captar que se tantos adultos são finalmente tão infantis e tão pouco responsáveis quanto alguns teens, seria melhor avaliar todo mundo. O projeto simpático de um pouco de liberdade calculada para os jovens poderia bem se transformar numa obscena avaliação generalizada.
Cien Digital agradece a pronta e amável autorização do autor para a publicação deste artigo.
Tradução: Cristina Drummond
Notas:
[1] ELLE de 22 de maio de 2015.
[2] In: Hebdo-blog n. 46, 24 de junho de 2015.
[3] 21 de março de 2015.
[4] Epstein R., The Case Against Adolescence: Rediscovering the Adult in Every Teen, Quill Driver Books, 2007.
[5] Lacan J., « Prefácio a O despertar da primavera », Outros Escritos, RJ: Jorge Zahar, 2003, p. 557.
[6] « now we need to take a fresh look at teens, evaluating them based on their individual abilities ».
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Robert Epstein e a construção da adolescência
by cien_digital in Cien Digital #19, Contribuições

Audrey Kawasaki, Just the Two of Us, 2013
Ana Martha Wilson Maia
Permanentemente conectado com os acontecimentos no mundo e vislumbrando as contribuições que a psicanálise pode oferecer às questões que atravessam a civilização, Miller tem sido “certeiro”, a cada vez que uma Jornada do Instituto da Criança chega ao final e ele anuncia o tema que orientará o trabalho, durante os dois anos seguintes.
Sua proposta foi especialmente impactante em 2015: na intervenção de encerramento da III Jornada, propôs ao Instituto e aos que participam de suas pesquisas que se dedicassem “a pensar em direção à adolescência”[1].
Com o declínio do patriarcado, entre as mutações da ordem simbólica, está a destruição da tradição. Uma nova tradição surge. Que efeitos podem ser apreendidos na forma dos adolescentes de lidarem, atualmente, com a inexistência da relação sexual, quando o Outro não mais existe[2]? Se o gozo do próprio corpo é solitário, a ilusão de se gozar do corpo do Outro não levaria os adolescentes desorientados a encarnar o corpo do Outro no grupo? Miller pontuou e desdobrou questões fundamentais e o trabalho de pesquisa se iniciou ali.
O que é a adolescência? Como vivem hoje os jovens que há pouco mais de um século se inserem no que chamamos de adolescência? São muitas as definições, tantas quantas forem as referências buscadas. Na antropologia, por exemplo, Le Breton a descreve como uma “época de ruptura, de metamorfose, de confusão, momento de uma entrada delicada em uma idade adulta cujos contornos ainda estão longe de se anunciar com precisão”[3] Seu estudo é dedicado às condutas de risco – tentativas de suicídio, toxicomanias, fugas, errâncias, distúrbios alimentares, adesão a alguma seita, entre outras – tão frequentes no que chamamos de passagem ao ato, na clínica com adolescentes. Para a psicanálise, “a adolescência é uma passagem lógica na escolha de uma posição na partilha entre os sexos, uma delicada transição em que o encontro com o real do sexo comumente suscita angústia e solidão. A queda dos ideais, o abandono das identificações parentais e o gozo indizível se presentificam na estranheza com o próprio corpo”[4]

Albert Oehlen, Untitled, 1992
Para Miller, as definições são controversas e não se sobrepõem porque a adolescência é uma construção, ponto em que sua intervenção introduziu a tese do psicólogo americano Robert Epstein (“que não é nada boba”, ressalta Miller) de que a adolescência é uma criação da cultura que impede que os teenagers, de treze a dezenove anos, sejam como os adultos, isolando-os em uma cultura que lhes é própria
Epstein é pesquisador visitante da University of California, em San Diego, e Fundador e Diretor Emérito da Cambridge Center for Behavioral Studies, em Massachusetts. Editor-colaborador da revista Scientific American Mind, foi editor-chefe da Psychology Today. Publicou diversos artigos em revistas, entre as quais, a Science e a Nature, cujos temas são relacionados à adolescência, sexualidade, criatividade, relações amorosas e motivação.
Em uma entrevista para a revista Época, Epstein[5] sustenta que a adolescência é uma invenção industrial de algumas culturas, uma vez que anteriormente os jovens aprendiam a se tornar adultos convivendo com eles. “Há mais de cem países em que não há qualquer vestígio desse tipo de mau comportamento juvenil – na maioria dos países muçulmanos e no Japão, por exemplo. Onde há vínculo com o mundo dos adultos, não existe esse tipo de problema”. Para ele, o comportamento problemático dos adolescentes não se deve ao divórcio dos pais, hipótese conservadorista, nem à ideia do cérebro imaturo, mito que ele derruba: “Eles passam 70 horas por semana com amigos da mesma idade. Não porque eles não queiram ficar com os adultos, mas porque os adultos não permitem que eles participem da vida adulta. Eles caem na armadilha da escola secundária e ficam isolados”.
Epstein critica a forma como são separados em classes, por idade, onde recebem os conteúdos das mesmas matérias, no mesmo ritmo. Considera que cada criança tem um modo de aprender e que a escola não é um lugar para todos. “Thomas Edson, o maior inventor que conhecemos, foi educado em casa”.
Assim, o título da matéria: “Abaixo a adolescência!” é sua forma de dizer que a adolescência não deveria existir e que devemos encarar os jovens de outra maneira, inclusive possibilitando aos adolescentes a escolha de se tornarem adultos quando queiram, a partir de suas habilidades. Epstein exemplifica com o número de negócios, milhares, que adolescentes já abriram na internet. Sobre o envolvimento com drogas, acredita que as abandonam se tiverem a oportunidade de trabalhar em uma atividade de responsabilidade, que de fato seja de interesse deles, pois na prática só conseguem atividades como varrer o chão ou trabalhar como caixa de lachonete.

Rirkrit Tiravanija, Untitled, 2015
O tema da responsabilidade é levantado por Epstein quanto trabalho, ao sexo e ao crime. Sobre a redução da maioridade penal no Brasil, tema polêmico que divide opiniões, sua posição é a mesma: “a lei deve proteger pessoas que são incapazes e não porque são jovens. Não é possível um jovem de 13 anos cometer um crime e ter total capacidade de entender o que fez? É claro que é.”
Estudos sobre anatomia e atividade cerebral, assim como pesquisas baseadas em técnicas de formação de imagens, justificam que um cérebro não desenvolvido completamente é a causa de problemas emocionais e comportamento irresponsável dos adolescentes. Para Epstein, “não existe um só estudo que demosntre a existência de um cérebro adolescente que seja responsável pelos problemas causados pelos jovens. […] é claro que o cérebro dos adolescentes tem um aspecto um pouco diferente do cérebro de alguns adultos. Isso não explica o comportamento”.
Epstein[6] refuta estas hipóteses, comentando que imagens de determinadas zonas do cérebro não possuem informações sobre as causas do pensamento, sentimentos e comportamento. “Existem claros indícios de que qualquer característica específica que possa ter os cérebro dos adolescentes – supondo que exista alguma – é o resultado das influências sociais, e não a causa da crise”.
Depressão, consumo de drogas e de medicamentos, suicídio, abandono escolar, etc, são considerados por Epstein uma criação da cultura moderna ocidental. E a “crise da adolescência”, o resultado de um prolongamento artificial da infância, reforçado pela infantilização pela qual tem sido submetidos pelos adultos.
É neste sentido de uma construção relativa a uma época que Miller nos apontou uma contribuição de Epstein, no debate sobre a adolescência. No tempo de incerteza quanto ao real, que Lacan articulou com o semblante, disse Miller, em sua intervenção, e uma vez que a adolescência é uma construção, “nada mais fácil que desconstruí-la”.