
Editorial – Novembro de 2019
by cien_digital in Cien Digital #23, Editorial

Autor: Ilya Mirnyy
Imagem: 9building windows
Paola Salinas e Síglia Leão
O Cien Digital 23 está no ar!
Neste número, os diferentes trabalhos do Cien Brasil e do Campo Freudiano transitam num tempo lógico.
Logo no início, Daniel Roy e Marie-Hèléne Brousse orientam, em seus textos, o trabalho das Redes da Infância do Campo Freudiano para os próximos dois anos. A partir desta publicação, o CIEN poderá debruçar-se sobre eles, trabalhá-los em português, para extrair dali sua especificidade no fazer dos laboratórios e pensar o tema da Diferença Sexual, desenvolvê-lo, questioná-lo a partir da experiência inter-disciplinar e dos impasses dele advindos.
Em seguida, o texto de Claire Brisson nos traz a discussão sobre o assédio na adolescência, e a entrevista de Damasia Freda nos fala sobre a adolescência no contemporâneo. Ambos apontam para perguntas constantemente presentes na prática do Cien. Prática esta que pode ser lida na rubrica laboratórios.
Ali, temos outro tempo lógico. Recolhemos algumas contribuições levadas para a VI Manhã de trabalhos do Cien Brasil, em novembro de 2018, onde a pergunta sobre “o que falar quer dizer” nos orientava como um modo de pensar a dignidade do sujeito e a violência no que se refere às crianças e aos adolescentes. Desta conversação, extraímos os fundamentos do trabalho como tema que novamente se alojou na ordem do dia e permitiu revisitar cada experiência relatada.
Há ainda um terceiro tempo neste número, de reflexão, de decantar efeitos. Ana Martha Maia nos traz uma pontuação sobre a prática no Cien, o que dela se extrai, sua orientação e o que podemos almejar obter de uma boa maneira, tocando em pontos de dificuldade e de invenção neste trabalho tão caro. Margarete Miranda, por sua vez, aborda a própria revista, nos falando do que se espera de sua transmissão e de sua posição ética.
O ponto de vista de Aline Mendes Aguiar descreve um percurso no Cien Minas, tomando-o a partir de impasses, furos e dificuldades, que puderam se tornar avanços. Tece, no trabalho de coordenação do Cien em seu estado, um fazer de cada laboratório, no ir e vir da articulação da lógica à prática das conversações inter-disciplinares.
Ainda recolhendo efeitos, o Cine Cien se faz presente. “No fio da navalha de um realismo documental”, o filme Capharnaum nos faz testemunhar “problemas de presença permanente no universo das experiências do Cien”. Com o texto de Maria Rita Guimarães, colhemos os frutos da conversação em torno deste filme, de um modo belo e decidido. Esta atividade do Cien tem sua expressão tanto nesta produção textual, como naquilo que carrega de especificidade em sua práxis, para além do debate das diferentes obras cinematográficas. Nesta direção, Giselle Fleury busca mostrar a sutil diferença entre provocar uma conversação e discutir ou debater, ainda que de modo interessante, um filme. Busca cernir o que seria a proposta do Cine Cien, e quais suas consequências por se tratar justamente de uma atividade dentro do Cien.
Por fim, a rubrica História do Cien Brasil, traz um belo texto-homenagem, que apresenta um percurso em sua vivacidade e interesse, realizado por Ana Martha Maia e o professor de teatro Duda Ribeiro, de onde podemos extrair um saber-fazer em um momento delicado de vida.
Cremos que o leitor encontrará, neste Cien Digital, balizas para conhecer, localizar, e se interessar por essa rede de trabalho que se faz a cada encontro, mas que só se sustenta numa transferência de trabalho decidida para além da psicanálise pura, colocando-nos diretamente no meio das diversas disciplinas que se ocupam da infância e adolescência. Neste ponto, seguimos somente com uma ferramenta, o não saber. Que quando bem usada, permite que invenções possam surgir nos diferentes contextos onde os laboratórios se encontram.
Assim, lançamos o convite à leitura e também à pesquisa que atravessará, nos próximos dois anos o Cien Brasil, o Cien América o Instituto da Criança e as Redes do Campo Freudiano sobre a Infância.
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Quatro perspectivas sobre a diferença sexual
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Steve Johnson – Imagem: crystal-glass-on-a-colorful-background – https://www.pexels.com/
Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant
Daniel Roy
A cada dois anos, o Comitê de iniciativa do Instituto da Criança submete a Jacques-Alain Miller propostas de tema para a próxima Jornada. Em 2021, apenas uma proposta – “A diferença sexual” – foi unânime. J.-A. Miller aprovou e confiou a Marie-Hélène Brousse e a mim, a apresentação. Se o texto de orientação que esperávamos, como de costume, vai nos fazer falta, de minha parte vejo nisso um convite feito a cada um de nós, bem como aos grupos e redes do Campo freudiano, para produzir um saber de peso frente às desordens rápidas da clínica. Essas últimas, especialmente sensíveis no campo da infância, testemunham a deriva ocorrida nos continentes de nossas convicções – os semblantes que nos mantêm – e de nossos hábitos – os gozos que nos convêm –, deriva que produz linhas de falha e zonas de fratura. A diferença sexual é o nome de uma dessas zonas privilegiadas.
O psicanalista, nem guardião do templo nem libertador moral
Entrando no mundo que a precede, cada criança é a primeira a ser confrontada com essa falha; ela vai carregar doravante a marca de origem, inscrita na língua sob os nomes diferentes de “menino” e de “menina”, “homem” e “mulher”. Mas essa zona sexo e gênero tornou-se incerta e objeto de aposta entre correntes antinômicas. Esta aposta está especialmente representada hoje, na mídia e na clínica, pela angústia e pelo discurso das crianças ditas “transgênero”. Elas não se reconhecem no sexo que lhes é atribuído e afirmam muito cedo a convicção de terem nascido em um “corpo ruim” ou em um “falso corpo”. Teremos que aprender com o fato de que essas crianças formulam como primeira demanda uma mudança do nome próprio para um outro, que elas mesmas escolheram. Nos interrogamos sobre essa solicitação endereçada à família, ao corpo social, depois ao jurídico, de lhes fornecer uma identidade sexual que seja estável e nova, introduzindo assim um regime derrogatório à lei comum, que refere a partilha do sexo, bem como o nome e a filiação, ao efeito de um dizer, de uma declaração, da parte de quem se assume responsável pela chegada de um novo ser falante ao mundo.
Esse fato, clinicamente demonstrado, de que um sujeito possa não querer passar por essa via comum nos convida a reconsiderá-la e a interrogar as identificações sexuais. De um lado, elas parecem deduzir-se “naturalmente” da diferença entre os sexos e, de outro, parecem vir em seu apoio, acomodá-la e inscrevê-la no mármore da ordem simbólica. Os psicanalistas são frequentemente interpelados por esta questão, seja como guardiões do templo edípico, seja como propagadores do liberalismo moral mais desenfreado.
Nossa via, no Instituto da Criança e no Campo Freudiano, consiste em confrontar nossa prática, nossa clínica, às pistas abertas por Freud e por Lacan. Estas pistas ainda são atuais? Elas apresentam respostas ainda válidas diante dos impedimentos, dos embaraços e das inquietações encontradas pelas crianças, por seus pais e seus educadores? Propomos quatro perspectivas sobre a “diferença sexual”, extraídas das obras de Freud e de Lacan, nos referindo à leitura de Jacques-Alain Miller, particularmente ao seu texto “Os seis paradigmas do gozo”[1].
Novo e singular: o sexual faz a diferença!
A primeira perspectiva é aquela indicada por Freud no prefácio aos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1910. Ele exprime ser “seu firme desejo que este livro envelheça rapidamente, pela aceitação geral daquilo que trouxe de novo e pela substituição de suas imperfeições por teses mais corretas”[2]. Porém, nos dois prefácios seguintes, em 1914 e 1920, ele constata que esse desejo não foi atendido e que a recepção de sua teoria sexual estava distribuída entre acusações de pansexualismo e resistência assumida a essa parte de sua descoberta. O fator sexual, tal como ele o introduz no discurso universal, é de fato uma novidade que não pode ser “universalmente admitida”. Novo e singular, tal é o caráter do sexual como ele se apresenta no tratamento analítico. A posição que o sujeito, desde a infância, assume em relação a esse elemento de novidade e a esse elemento de singularidade, introduz para ele o germe de sua diferença absoluta. Isso é fundamental no tratamento, mas igualmente no plano da civilização, pois significa que há uma diferença que não tem sua origem em uma segregação, contrariamente a todas as outras diferenças produzidas pelo social.
Isto introduz uma dificuldade particular: nenhum código permite ao sujeito decifrar o que lhe acontece e, portanto, ele não sabe por que aquilo lhe acontece, nem o que quer dizer. Contudo, está a seu cargo. E é diante dessa falha que vão se construir as teorias sexuais infantis e se edificar as diversas identificações da infância. Assim, com Freud, o sexual faz a diferença e essa posição radical confere estilo à ação do psicanalista: preservar essa singularidade, bordejar essa novidade quando ela se torna violenta demais.
O falo: um órgão bem particular
A segunda perspectiva abre-se em 1923, com o texto intitulado “A organização genital infantil”[3] e continua em 1925 com “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos”[4]. O novo ator introduzido é um órgão muito particular, o falo, que nos termos de Freud exerce uma “primazia” sobre a vida sexual infantil para os dois sexos. Ele é particular porque sua eficácia só se sustenta em ser possivelmente perdido. É o que Freud chama de “castração”, e a fase fálica é o momento em que cada uma e cada um é convocado a tomar posição em relação ao valor de uso desse órgão para eles. Um século de psicologia enfraqueceu esse argumento decisivo. É uma área de turbulências na qual entram meninos e menina:
– Os meninos entram com angústia e sob a ameaça, por serem portadores do que deve ser perdido para fundar a diferença. Que valor atribuir, então, ao que eles creem ter? As satisfações pulsionais presentes não vêm desmentir as promessas futuras?
– Para as meninas, como o valor que elas atribuem ao seu “não ter” vai determinar a posição delas? Aceitação tingida de inferioridade e tendendo à renúncia? Ou então abrindo para um uso da falta que vai da espera até a preferência absoluta dada a esta falta? Ou ainda uma posição de revolta que a conduz, como ao menino, a um mundo de ameaça?
Não é por acaso que essa perspectiva culmina com os textos de Freud que tratam da feminilidade[5] e de numerosos textos de suas alunas mulheres[6], pois ela mostra um ponto de fuga: não ter o que é preciso para aferir a diferença coloca a menina na posição de estar sob o impacto da diferença, sem dispor dos meios para limitá-la em seu próprio corpo. Lacan designará esse momento “a querela do falo”[7]. Não é de surpreender, um só falo para os dois sexos, é guerra garantida! Ela estaria ainda tendo continuidade, de acordo com os jornais e os gender studies…, mas nós devemos acreditar neles?
Diante da prova do desejo do Outro
A terceira perspectiva foi elaborada por Lacan entre 1956 e 1959 nos seus Seminários A relação de objeto, As formações do inconsciente e O desejo e sua interpretação[8], e em seu texto de 1958 “A significação do falo”, no qual propõe uma solução superior à querela do falo. Ele faz deste último um terceiro termo, que vai ser o eixo em torno do qual pode se operar uma repartição dialética entre homem e mulher. Mas que falo é esse do qual se pode dizer, respondendo a Freud, que os fatos clínicos “demonstram uma relação do sujeito ao falo que se estabelece sem considerar a diferença anatômica entre os sexos”[9]? Este terceiro termo é o falo como significante, significante do desejo do Outro. Segundo Lacan, a posição estrutural inicial da criança é a de querer ser o falo para satisfazer o desejo da mãe, e não que ela queira tê-lo ou que consinta ou não em tê-lo ou não tê-lo. É isso que ele chama de “a prova do desejo do Outro”, a respeito da qual dirá que “a clínica nos mostra que ela é decisiva, não porque o sujeito aprende se ele tem ou não o falo real, mas porque ele aprende que a mãe não o tem”[10]. Essa “prova” se apresenta, portanto, como a via de construção de um objeto inexistente, da presença de uma ausência. O encontro com o “falo da mãe” designa um momento essencial do tratamento da criança, em que se repete na transferência esse enigma do O que ele quer de mim? que será o motor do tratamento. Ele também designa o momento em que “o sujeito descobre que o Outro não sabe”[11].
Mas se esse falo assume possivelmente toda a responsabilidade do que há de sexual na diferença, e se, para responder “a esse falo, o que a criança tem não vale mais do que o que ela não tem”[12], então o que ela tem para oferecer? E como fica a pulsão sexual, seus objetos e os acontecimentos do corpo que deixam traços de seu impacto, todas essas coisas que escapam ao Outro e que estão no fundamento da solidão e da diferença?
Como se inscrever no discurso sexual?
A quarta perspectiva toma forma no ensino de Lacan dos anos 1970-1972 – Seminários 18 e 19 [13]– no curso dos quais ele reformula as coordenadas da inscrição de cada ser falante no que ele chama nesta oportunidade de “o discurso sexual”. Todas as perspectivas precedentes estão presentes e, no entanto, nada é igual. O que mudou?

Autor: Brien Scott
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Distribuição e distinção
Lacan parte de uma constatação: “de modo algum precisamos esperar pela fase fálica para distinguir uma menina de um menino; já muito antes eles não são iguais, em absoluto. E aí nos deslumbramos”[14]. Há certamente uma diferença, mas esta não é “sexual”, pois se houvesse diferença sexual, ela estabeleceria com efeito uma relação entre os dois sexos, uma relação de diferença. Essa dita “diferença” responde ao fato real de que “na idade adulta é próprio do destino de seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres”[15]. É uma distribuição, não anatômica, mas de puro semblante: “o que define o homem é sua relação à mulher, e vice-versa”[16]. Enquanto nomeados “homem” ou “mulher”, eles não têm outra existência, que significante. Estes são os semblantes por excelência. E é assim que eles se abordam, como os sites de encontro exploram tão bem.
Fundando-se sobre essa “distribuição” entre homem e mulher, é que meninos e meninas se distinguem e, mais precisamente, que “são distinguidos” no discurso, desde que chegam ao mundo. É isso que faz com que “essa diferença que se impõe como inata é, com efeito, muito natural”[17], dirá Lacan. O que é gravado como diferença é, em sua essência, uma distinção, como um título de nobreza ou uma citação insuportável: existem as “eminentes mulheres” e os “eminentes homens”. De onde vem, então, que essa distinção de puro semblante adquira para o sujeito valor real de gozo sexual?
Solidariedade dos semblantes
J.-A. Miller destacou em seu texto “Em direção à adolescência” a expressão de Lacan “a imiscuição do adulto na criança” para destacar “Há uma espécie de antecipação da posição adulta na criança”[18]. Nós a aplicamos aqui a esta distinção menino/menina, que se opera a partir da repartição no andar superior homem/mulher.
Um primeiro aspecto dessa imiscuição é que as identificações sexuais são sempre dependentes de semblantes: tudo o que vai tentar dar consistência a uma identidade sexual, viril ou feminina, se verá inevitavelmente desdobrada na dimensão da mostração ou da mascarada. Eis a dimensão chamada, hoje em dia, de “gênero”.
A outra dimensão, mais fundamental, repousa sobre o fato de que, do lado do adulto, o gozo dito sexual se encontra “solidário de um semblante”. Assim, numa “situação real”, isto é, cada vez que o sujeito é convocado como homem ou mulher, esses semblantes têm uma eficácia real, que se produz como obstáculo entre os dois.
Há uma forte tese de Lacan: no encontro dos corpos sexuados, “o real do gozo sexual enquanto destacado como tal, é o falo”[19]. O falo é aqui o “obstáculo” feito à relação entre os sexos e, portanto, “à bipolaridade sexual”[20]. Ele não é o nome do gozo sexual na relação de um sexo a outro – essa é a promessa da pornografia, que substituiu a fantasia –, mas de preferência o index do gozo sexual enquanto ele se interpõe entre um sexo e o outro. O falo aqui perde seu estatuto de significante da presença do sexual, mas ganha sua função de significado do gozo: é o efeito surpresa do tratamento analítico, segundo Lacan.
A imiscuição do adulto na criança é o fato de a criança ser conduzida para receber uma distinção e a se distinguir menina ou menino em função deste semblante constituído na idade adulta segundo uma outra lógica e outra economia de gozo, distinta daquela que prevalece na infância. Como ela vai levar isso em consideração, se ainda não lhe é pedido para acertar o “preço que terá adquirido, na continuação, a pequena diferença”?[21] Fica estabelecida aqui uma solidariedade de semblante entre as gerações, solidariedade que indica e encobre ao mesmo tempo o real do gozo em jogo e que confere consistência à estrutura familiar, sob suas modalidades tão diversas. A família aparece, assim, tanto como o lugar onde se transmite a falha do sexual, como o lugar em que ela se mascara, sem a mediação do Édipo, mas não sem a castração, aqui castração do gozo.
Nosso acolhimento e nosso trabalho junto às famílias atuais poderão esclarecer sobre o que se elabora neste lugar. Indica-se a constância da dimensão de “religião privada”, que pode fornecer uma consistência a cada uma: ao mesmo tempo, mostração do gozo e ritos que o sacrificam com o propósito de lhe perpetuar a existência. Mas é também a possibilidade ofertada aos homens e às mulheres do século para não se apagar ou se esconder atrás das figuras da paternidade, da maternidade ou da parentalidade. Unicamente isso pode abrir caminho à novas maneiras de ser pai e de ser mãe, standard prévio, o que não acontece sem angustiar aqueles e aquelas que aí se engajam.
A crise do falo
Meninos e meninas são distinguidos a partir de uma escolha de gozo, que determina as posições homem e mulher, e que faz passar por uma repartição significante: é o que Lacan chama de “o erro comum”[22]. Este erro introduz a todo momento na subjetividade uma situação de “crise”, isto é, de escolha. Lacan, nesse ponto, retoma as coordenadas freudianas de fase fálica para extrair a lógica. “A verdade com a qual não há um desses jovens seres falantes que não tenha de se confrontar é que existe quem não tenha falo. É uma dupla intrusão na falta, porque existe quem o tenha, e ainda por cima, essa verdade faltava até então”[23]. O que há de novo deve ser situado na dimensão de acontecimento no campo da verdade: “É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata. Ela exige que nos mexamos”[24]. Nessa perspectiva, a dita crise não é cronológica, mas lógica, no sentido de que é sempre atual. Não nos habituamos, não há idade para ela. Esta dupla intrusão da falta é ativada a cada vez que o sujeito tem que tomar lugar em uma “situação real” em que seu desejo e seu gozo estão implicados, em que ele é confrontado com o enigma do desejo do Outro ou com a insistência de sua demanda, com o seu amor ou seu ódio, ou com a presença de seu gozo, que esta situação real o concerne, direta ou indiretamente, por identificação a um terceiro.
A crise da fase fálica pode então ser considerada como uma crise do próprio falo, que no momento em que ele passa a semblante, torna-se instrumento da função castração para o ser falante cada vez que sobressai o ganho de sua identificação sexual, adulto ou criança.
Identificações e sintomas
Uma identificação sexual, quer seja a de “menina” ou a de “menino”, “homem” ou “mulher”, não é sempre uma identificação de crise? Três razões para isso:
– ela é instável, pois projeta o corpo falante no universo dos semblantes, o que não se opera sem perda, uma perda sem garantia, que se nomeia “castração”;
– ela é sempre atual, no sentido de se operar a partir de uma escolha hic et nunc;
– ela é sempre sintomática, na medida em que os semblantes convocados fracassam em inscrever o gozo em jogo, gozo sexual sempre em excesso na economia de gozo do corpo próprio; ela destaca a discordância entre os semblantes e o gozo.
Não seria nesse momento de crise que a psicanálise ou o praticante são solicitados por um desses distúrbios da criança que proliferam hoje sob denominações que são a roupagem dos experts? Nós não teríamos que fazer ressoar o valor da inibição, do sintoma ou da angústia para a criança? Estes diversos distúrbios não seriam com efeito respostas e defesas face a este momento de crise, em que se vê abalada a identificação fálica que sustentava até então esta criança? Devemos considerar que esta identificação fálica – sempre disponível no tempo da infância e atualmente privilegiada no seio da família e no discurso corrente – permite realmente a uma criança se manter à distância das questões da identificação sexual? Não deveríamos considerar de preferência a crise do falo como o momento fundamental em que se sintomatiza a vida da criança, em que ela começa a aprender o regime sinthomático de sua inscrição no discurso sexual? “A identificação sexual não consiste em alguém se acreditar homem ou mulher, mas em levar em conta que existem mulheres, para o menino, e que existem homens, para a menina”[25]. Manifestamente há muitas maneiras de levar isso em conta e o fato de que não são de nenhuma forma normatizados.
Eis o novo deal, no qual estão engajados meninos e meninas, doravante mais diretamente confrontados com os embaraços da castração, tais que encarnam para os homens e para as mulheres que vivem no entorno e os acolhem. Esta falha adquire nome na língua que é falada à criança e na qual ela é falada – o nome de “diferença sexual” –, correndo o risco de todos os mal-entendidos e erros. Nós não os denunciamos como sendo ficções, bem ao contrário, e acolhemos como tal as ficções da criança que nos fala, ficções que carregam a marca da diferença absoluta que elas contêm, sempre sexual.
No texto “A criança e o saber”, J.-A. Miller nos apresenta o vetor que guia nossa ação: “Pertence ao Instituto da Criança restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças sabem”[26]. Para os dois próximos anos iremos, portanto, nos informar sobre o que as crianças, meninas ou meninos, sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito, e do que podem ou não podem saber.
Texto estabelecido por Hervé Damase e Frédérique Bouvet, relido pelo autor.
Tradução e revisão: Cristina Vidigal, Ana Lydia Santiago e Ana Helena Souza.
[1] Miller, J. A. (2000). Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, 26/27, 87-105. São Paulo: Eolia.
[2] Freud, S.(2016 [1901-1905]). Obras completas, volume 6: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 14.
[3] Freud, S.(2011 [1923-1925]). A organização genital infantil. In: Obras completas, volume 16: O eu o id, “Autobiografia” e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 168.
[4] Freud, S.(2011 [1923-1925]). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: Obras completas, volume 16: O eu o id, “Autobiografia” e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 283.
[5] Freud, S. (2010 [1930-1936]). A feminilidade & Sobre a sexualidade feminina. In: Obras completas, volume 18: O mal estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, p. 283 e p. 371.
[6] Cf. Hamon M.-C. (1992). Pourquoi les femmes aiment-elles les hommes?, Paris: Seuil & Feminité Mascarade, études psychanalytiques reunies par M.-C. Hamon, Paris, Seuil, 1994. Tradução Livre.
[7] Lacan, J.(1998). A significação do falo. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 693. (Sobre isso, ler os dois artigos de referência de Pierre Naveau: “La querelle du phallus”, La cause freudienne no 24, janvier 1993, p. 12-16, e “La comédie du phallus”, La cause du désir no 95, avril 2017, p. 25-32).
[8] Lacan, J. (1995[1956-57]) O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; Lacan, J. (1999[1957-58]) O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Lacan, J. (2013[1958-1959]) O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[9] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 693.
[10] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 701.
[11] Miller, J.A. (2016). “Interpretar a criança”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (72). São Paulo: Eolia, p.18.
[12] Lacan, J.(1998). A significação do falo, op. cit., p. 701.
[13] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor & Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19:…ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[14] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 30.
[15] Ibid., p. 30.
[16] Ibid., p.30.
[17] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 15.
[18] Miller, J.A. (2016). “Em direção a adolescência”. In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (72), março de 2006. São Paulo: Eolia, p.23.
[19] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor , p. 33.
[20] Ibid., p. 62.
[21] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 16.
[22] Lacan, J. (2012[1971-72]) O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 17.
[23] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 33.
[24] Lacan, J.(1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 525.
[25] Lacan, J. (2009[1971]) O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 33.
[26] Miller, J.A (2011). “A criança e o saber”. Disponível em http://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital11.pdf p. 8
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O buraco negro da diferença sexual
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Brett Sayles
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Intervenção na 5ªJournnée d´étude de l´Institute psychanalytique de l´Enfant
Marie-Hélène Brousse
Daniel Roy realizou com afinco o ordenamento dos avanços sucessivos, desde Freud até Lacan, sobre este tema “A diferença sexual”. Construiu o quadro tal como ele se desdobra hoje na Orientação lacaniana implementada por Jacques-Alain Miller com a ajuda de uma bússola, o gozo, conceito delicado. Ele o fez introduzindo em sua abordagem as mudanças importantes que tiveram lugar no discurso do mestre e seu avesso, o discurso analítico. Ele nos mostrou como Lacan, tão sensível às mudanças na modernidade, chega a antecipar movimentos no discurso do mestre antes mesmo deles aparecerem, demonstrando com isso a força preditiva da psicanálise quando a clínica se alia à lógica e à topologia. Diante disso, encontrei-me livre para introduzir algumas pistas de pesquisa suplementares para os próximos dois anos.
A diferença: potência do binário
Sexual ou não, pequena ou grande, a diferença é um dos fundamentos da ordem linguística. Ela opera, pois antes de tudo é uma operação de separar e ligar, ao mesmo tempo. Constitui pares que permitem, seja de maneira metonímica, seja metafórica, um ordenamento dos significantes, das palavras, dos conceitos, das imagens, dos sons. Basta ler J.-A. Miller[1] e se dar conta da potência da diferença e, logo, dos binários, para colocar ordem no simbólico. É assim que o laço social opera e todos os negócios humanos podem se reduzir a ele.
O discurso estende, de fato, a operacionalidade da diferença inicialmente à ordem social, à família, mas de forma mais geral a todas as estruturas institucionais: os vivos/os mortos, os ricos/os pobres, os oprimidos/os opressores, os bons/os maus, e, last but not least, os homens/as mulheres.
Mas a diferença é também um modo de satisfação que produz gozo, tanto se afirmando – pois cada falasser goza de sua diferença –, quanto se apagando. É então o gozo da mesmice, aquele do “nós” contra os outros, fraternidade que Lacan mostrou estar no fundamento do racismo[2]. A mesmice está também no fundamento do machismo. Da ordem diferencial, resvala-se para a ordem segregativa. Não há segregação que não se prenda a uma diferença atribuída aos modos de gozo. A diferença, que funda a ordem simbólica e alimenta as satisfações imaginárias, tem efeitos de real.
A diferença sexual, classicamente binária, passa por uma desordem inédita. Um certo número de movimentos de opinião tenta arrancá-la do binário S1 – S2 para pluralizá-la – LGBT – ou apagá-la: recusa do gênero ou exigência do neutro. Uma das tendências da época consiste em privilegiar o ou inclusivo – ou a, ou b, ou os dois – em detrimento do ou excludente – ou a, ou b, mas não os dois. Contudo, “gênero obriga”[3], correlativamente a esses movimentos emancipatórios, se desdobra também, em reação, um movimento conservador que se afirma contra na vida política mundial: Bolsonaro, Trump, a ascensão de religiões e de seitas. Viu-se, na França, esse movimento se manifestar contra o chamado “matrimônio para todos”[4], retornando às representações da diferença sexual tradicionais do patriarcado.
Todo o ensino de Lacan aborda a questão da diferença sexual nos seres falantes, não a partir da natureza, mas da linguagem e do sujeito. Essa mudança radical de ponto de vista diferencia o falo do pênis, logo, o significante do órgão, e culmina no Seminário 20, mais, ainda. Passagem do sujeito ao corpo falante, a diferença cessa de ser organizada pela ordem binária e cede lugar a uma oposição não binária entre o Todo, incluindo todos os seres falantes de qualquer gênero que sejam, e o não-todo, que precisamente não permite mais à diferença binária consistir.
Mas não tão rápido! Partamos da clínica com crianças, que ainda nasce com frequência na estrutura familiar tradicional. D. Roy termina seu texto com esta indicação dada por J.-A. Miller em sua intervenção pronunciada por ocasião da primeira Jornada do Instituto da Criança: “Cabe ao Instituto da Criança restituir o lugar do saber da criança, disso que as crianças sabem”[5]. Oriento-me por essa recomendação, que confere aqui ao genitivo seu sentido revolucionário, seu sentido próprio, e, por consequência, confere ao Instituto da Criança seu poder. Não o que nós – psicanalistas, adultos – sabemos das crianças, mas o que aprendemos da boca das crianças. Eis a revolução psicanalítica operada por Freud com as histéricas. Lacan aplicou essa fórmula da extração do saber pela clínica analítica ao pé da letra, ao longo de toda sua trajetória.
Mutação das estruturas de parentesco ou a segunda morte de Laio
Um analisante relata em sessão o que acabara de lhe acontecer. Em uma manhã de domingo, estando na cama com sua esposa, na intimidade de seu quarto, conversando de maneira descontraída, chega o filho caçula e, colocando-se ao pé da cama, lhe lança: “Você, você vai ter uma surpresa”, e retorna para seu próprio quarto. Volta depois com sua espada de plástico e, sem dizer uma palavra, assenta o golpe mais forte que pode sobre o edredom perto dos genitais de seu pai. Versão moderna do Édipo, fundamento da estrutura psíquica freudiana e da psicanálise. Surpresa de Laio, todavia em análise!
Acrescentemos um outro elemento: no início dos anos 1980, trabalhando com aquelas que ainda não eram chamadas de professoras de escolas, que haviam trazido desenhos de seus alunos da escola materna como documentos de trabalho, elas se questionam observando que “homem” e “mulher” não eram palavras utilizadas pelas crianças da escola materna para designar a diferença dos sexos – hoje diríamos de gêneros –, porque a língua, se prestarmos a devida atenção que ela requer na prática da psicanálise, é o saber não sabido. A diferença que aparecia era entre “pai” e “mãe”: havia os papais e as mamães e não os homens e as mulheres.
Estas duas vinhetas clínicas me levam a considerar que o discurso do mestre mudou. Por um lado, o gênero suplantou o sexo, por outro, como Lacan destaca em várias ocasiões, o pai e o patriarcado sofreram declínio evidente nas sociedades uniforme e globalmente organizadas no presente pela economia capitalista, avassalando o nome ao objeto. No nível jurídico, por exemplo, o direito substituiu “pai” e “mãe” por “pais” e a noção de “parentalidade” modificou a repartição da autoridade na família. Sem esquecer os “direitos da criança”.
A “parentalidade” assim como o matrimônio dito “para todos”, manifesta uma mutação das estruturas de parentesco e, por conseguinte, dos laços familiares. Passamos a um universal que pode se enunciar pela fórmula “para todo pai”, qualquer que seja seu sexo e seu gênero. Que saber novo surge na criança que está confrontada com essas mutações?

Autor: Matthew Henry
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No tempo da ordem de ferro do social, onde se aninha a diferença sexual?
Em 1973, em Televisão, Lacan afirmava que “a ordem familiar só faz traduzir que o Pai não é o genitor e que a Mãe permanece contaminando a mulher para o filhote do homem”[6]. Ainda é o caso? As crianças de 2021 recobrirão ainda o homem com o Pai e a mulher com a Mãe? Como Lacan antecipa no Seminário 21, “Les non dupes errent”, usando “o nó borromeano como um algoritmo”, “a ordem de ferro no social” substituiu a ordem patriarcal familiar[7]. Adeus pai e mãe, saudações parentalidade: a castração foi deslocada. A função fálica está paradoxalmente submetida, do lado das identificações, seja ao órgão – identificação imaginária –, seja ao gênero – novas versões da nomeação, que se tornaram autonomeação. A única coisa que permanece estável é a própria diferença como função engendrada pela linguagem e, portanto, o real da escolha que é a definição mínima da castração.
Resta à criança, que se tornar o fundamento e não mais o efeito da família, escolher seu lugar em uma diferença que se pluralizou. Qual escolher? Como a criança faz essa escolha? Sou um homem? Uma mulher? Um ou uma bi? Um ou uma trans ou um cis? Uma ou um hétero, homo? etc.
Duas observações. A primeira sobre esse ponto de linguagem, pois, finalmente, apenas esta não está submetida à escolha: hoje, a formulação aceita não é mais transexual, mas transgênero. Isso marca que “trans” toca o ser de discurso e não a falta-a-ser, que é a consequência da dominação da linguagem sobre o corpo na medida em que ele fala. Segunda observação: é válida a tese de Lacan segundo a qual as minorias têm a seu cargo as mutações dos modos de gozar dos seres falantes. O termo heterossexualidade surge na língua depois de homossexualidade e o cisgênero depois do transgênero. A criança como um “perverso polimorfo” é, portanto, totalmente designada como inventora.
Os engodos do falo e as satisfações singulares
A partir de então, não cabe utilizar o termo “função fálica”. A diferença sexual, desde Freud, de maneira mais ou menos feliz, foi abordada a partir do termo falo, quando não era simplesmente reduzida à anatomia do macho, isto é, ao pênis. Neste caso, ela repousa sobre uma foraclusão da anatomia da fêmea. Ernest Jones e outros se debateram a partir dessas premissas[8]. Pierre Naveau dedicou um estudo considerável a esse período da teoria analítica[9].
Em seu curso de 2008-2009, intitulado “Coisas de fineza em psicanálise”, J.-A. Miller afina os pontos com rigor[10]. Ele concretiza a expressão de Lacan nos Escritos[11]: “o heteróclito do complexo de castração”, termo que prefere, neste período de seu ensino, ao clássico termo de complexo de Édipo. O falo é um “metassignificante” que reenvia desordenadamente ao “fluido vital”, a um “significante imaginário”, a um “significante simbólico”, um significado, uma significação, um sacrifício, um símbolo, um signo, um órgão, e outras coisas mais. Como assinala J.-A. Miller, “o mundo libidinal que Lacan criou, ele o fez girar em torno de um significante: o falo. Isso foi expressivo para todo mundo. E como! Tão expressivo que esse significante é imaginário”[12]. O falo diz muito para todo mundo e agita os psicanalistas. Do ponto de vista do trabalho clínico, é no melhor dos casos a exploração do princípio do mal-entendido, fundador da palavra, e no pior dos casos um véu de ignorância. É por isso que J.-A. Miller reduz o heteróclito deste metassignificante a um valor: o valor “menos” que faz limite ao gozo e, portanto, torna possível o desejo. Depreende-se claramente a razão pela qual Lacan optou por “complexo de castração” de preferência a “complexo de Édipo”.
Os chamados complexos e o falo em sua definição heteróclita foram e são razão de deslizes e prejulgamentos que intervêm em certas posições antiquadas e mesmo reacionárias da psicanálise freudiana, depois pós-freudiana e até lacaniana. Lacan sempre se absteve de tais deslizes no discurso do mestre, ao contrário de alguns de seus alunos, como Françoise Dolto. Deste modo, ele sempre diferenciou o sujeito do indivíduo e do eu. Ele desumanizou o pai reduzindo-o ao nome – o Nome do Pai – e assimilando-o à função metafórica, e a mãe, reduzindo-a ao desejo. Nunca deixou de lembrar que essa operação, que tocava as bases do simbólico em psicanálise, era uma das razões de sua excomunhão do mundo analítico da época, e a razão pela qual ele nunca retomou o Seminário intitulado “Os Nomes do Pai”, que foi interrompido pela SAMCDA e seu “ar patrimonialista”[13].
Se, como faz J.-A. Miller, reduzimos o falo ao signo menos, a esse valor comum que permite aos corpos falantes entrar no comércio e no intercâmbio, como abordar a diferença sexual, a não ser pela singularidade dos modos de gozar? Em uma época em que o estatuto da criança na família mudou, em que, de produto, ela se tornou fundamento, como a criança aborda a falta, esse “menos”, inevitável, consequência da linguagem sobre o corpo e o laço de discurso? A escolha de seu modo de gozo singular, como a criança fala disso?
Mutante ou híbrido? As teorias sexuais infantis
Duas outras vinhetas clínicas mostram a potência do saber que as crianças inventam.
Uma menina que, desde seus dois anos de idade, havia impressionado seus familiares próximos pelo fato de que, para afirmar sua feminilidade, exigia vestir vários vestidos uns sobre os outros, na lógica de fazer de si mesma o fetiche, e que ganhara de presente de seis anos um pequeno caderno com um cadeado – Diário de uma Princesa –, rentabilidade capitalista do conto de fadas. Um ano ou dois mais tarde, o objeto, abandonado, cai nas mãos de um adulto curioso. Alguns desenhos, mas, escrita em páginas e páginas, a seguinte frase: “O príncipe encantado é um idiota”. Droga! Eu não sabia, mas deveria. É óbvio. Ele serve apenas para acordar a Bela Adormecida. Isso lembra o filme Kill Bill de Tarantino, no qual o nome da heroína é enredado na trilha sonora: estando adormecida em um coma profundo, devido a uma bala alojada na cabeça por um tiro dado pelo homem que ela ama, seus “favores” são negociados pelos cuidadores. Um dia, a bela adormecida acorda subitamente e está na pele dessa versão capitalista do Príncipe encantado, um idiota como apreendi tardiamente. Esses contos, mitos portanto, a quais estruturas reenviam?
No Seminário 18, Lacan começa seu desenvolvimento das fórmulas da sexuação, e, no capítulo VII, que J.-A. Miller intitulou “A parceira desvanecida”, afirma, ao falar de suas trocas, ou melhor, da sua recusa em intercambiar com Simone de Beauvoir o título que ela escolhera – O Segundo sexo –, dizendo que “não há segundo sexo”[14]. Ele define a sexualidade como uma função: “A função que é chamada de sexualidade se define, até onde sabemos alguma coisa sobre ela – e realmente sabemos um pouco, nem que seja por experiência –, pelo fato de os sexos serem dois […]. Não existe segundo sexo, a partir do momento em que entra em funcionamento a linguagem. Ou, para dizer as coisas de outra maneira, no que concerne ao que é chamado de heterossexualidade, o heteros, palavra que serve para dizer “outro” em grego, está na posição de esvaziar-se como ser para a relação sexual. É precisamente esse vazio que ele oferece à fala que eu chamo de lugar do Outro, ou seja, aquele em que se inscrevem os efeitos da referida fala”.[15] Pois então, dois ou não dois? A lei da diferença, que é a lei da articulação S1-S2, ainda é válida?
Esta mesma menina, conversando com seu irmão um dia, lhe atira um saber: “Você sabe, não há apenas meninas e meninos.” O irmão fica surpreso. “Há também as ‘meninasmeninos’ e os ‘meninosmeninas’. Eu sou uma ‘meninamenino.” O irmão responde secamente que para ele estava fora de questão situar-se na classe dos ‘meninosmeninas’. O diálogo se detém aí. Não há relação entre os sexos, mesmo multiplicando as classes e tentando ampliar as categorias. Por quê? Tenho uma ideia. Não é, me parece, em uma reiteração da fórmula A mulher não existe que se deve pesquisar, porque é claro que O homem não existe. Ninguém escapa do fato de que, desde que se começa a falar de diferença sexual, somos conduzidos pelo discurso a falar em termos de universal: “os” homens, “as” mulheres e “os” outros. Em suma, não saímos do universal, que se caracteriza pela verdade mentirosa e pelo sentido, infelizmente o mais comum possível, isto é, dominante. Na e pela linguagem, a sexualidade passa pelos desfiladeiros da palavra e todo locutor se encontra no quadro da sexuação que figura no Seminário mais, ainda do lado das duas fórmulas da sexuação, lado homem: existe um x tal que não phi de x e para todo x, phi de x[16].
Para caracterizar os efeitos da diferença sexual sobre o discurso e a fala, pode-se utilizar o modelo do buraco negro tal como os astrofísicos o definem no quadro da teoria da relatividade. Tudo o que entra no interior do buraco negro – toda a informação, toda a matéria –, é assimilada ao buraco negro, o qual é caracterizado apenas por três elementos: sua massa, sua quantidade de rotação e sua carga elétrica. Todos os objetos que caem nele se tornam inacessíveis. Desde o momento em que se entra no campo da diferença sexual, tudo o que define a singularidade dos modos de gozar e das posições subjetivas torna-se inacessível. O binário homem/mulher neutraliza todas as outras diferenças e torna inacessíveis os corpos falantes na contingência e na não universalidade de sua organização. O lado dito feminino, destacado por Lacan, é uma tentativa de tornar acessível o que não é lado homem, regido pelo regime de uma exceção e de maneira alguma universal. Lado feminino, a diferença sexual torna-se totalmente “assimétrica”[17]. O feminino só é pensável se se exclui toda ideia de complementariedade, de inclusão ou mesmo de contradição.
É certo que a diferença sexual só pode se formular no campo da identificação e da fantasia. Ser classificado por gênero só é possível do lado da lógica do todo e da exceção fálica. “O homem, o macho, o viril […] é uma criação de discurso.”[18]. Acrescentemos, A mulher também é uma criação de discurso, em função de Phi, entendido como medida do valor. A propósito, pode-se generalizar a fórmula A mulher não existe ao Homem. O sexo é o efeito de um dizer. Quais palavras, hoje, as crianças escolhem para dizer de seu pertencimento? Elas têm teorias sexuais novas?
A diferença é (a)sexuada: as diferenças ligadas à contingência
A diferença sexual do lado do gozo está ligada aos objetos mais-de-gozar ou objeto a. O que a diversifica em função da dominância de tal ou qual objeto; dominância cuja origem está ligada às marcas contingentes na história do sujeito, mas que, justamente por ser dominância e fixação, gera uma repetição e, portanto, uma necessidade.
Esses objetos têm um elemento em comum que, desde Freud, a psicanálise cerniu. Eles estão ligados aos orifícios do corpo, à passagem apreendida inicialmente como passagem do interior ao exterior do corpo. Os objetos permitem ao imaginário tornar-se uma superfície com borda.
A consequência disso é que, ligada aos orifícios do corpo próprio, a sexualidade é essencialmente autoerótica, mesmo se esses objetos são colocados no Outro. Pode-se ler a ascensão atual no laço social do discurso que submete a condições cada vez mais estritas o gozo de um corpo por outro corpo, quando, ao mesmo tempo, a interdição ancestral sobre a masturbação desapareceu. A fantasia, motor do autoerotismo, sim, o ato, não. A difusão da pornografia, o império da imagem nas redes sociais, modificam – e se sim, como –, a abordagem feita pelas crianças da sexualidade? Um puritanismo cada vez maior, aliado a uma crueza de imagens cada vez maior e a uma liberação de palavras, levaria a uma modificação da relação do sujeito com sua (a)-sexualidade? As crianças são, hoje, perversas polimorfas ou antes puritanas?
E o amor?
No Seminário XXVI, “A topologia e o tempo”18, Lacan, em 1978, fala da possibilidade de um terceiro sexo, a partir de sua escolha pelo “borromeano generalizado”: “Não há relação sexual, é isso que eu enunciei porque há um Imaginário, um Simbólico e um Real, é isso que eu não ousei dizer. […] O que faz suplência à relação sexual? Que as pessoas fazem amor, há para isso uma explicação: a possibilidade de um terceiro sexo.” Enigmático, Lacan criando dificuldade para si mesmo, retorna a esse tema para afirmar que “esse terceiro sexo não subsiste na presença dos outros dois”, que estes sobressaem do forçamento, da dominação. Ele só depende, portanto, do amor.
O amor zomba da diferença sexual? Ele é, como para o ódio, o lugar do possível onde a diferença sexual cessa de se escrever, onde ela se anula em diferença absoluta? Cessaria ela, no campo do amor, de ser dual, classificatória e, portanto, segregativa? Que podem nos ensinar as crianças sobre o amor como acesso ao terceiro sexo?
Texto estabelecido por Hervé Damase e Frédérique Bouvet, relido pela autora.
Tradução: Nohemí Brown.
Revisão: Ana Lydia Santiago e Ana Helena Souza.
[1] Cf. Miller J.-A., «L’orientation lacanienne», ensino pronunciado no âmbito do Departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, inédito.
[2] Cf. O Seminário, livro 19:…ou pior, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2012, p. 227.
[3] N.T: A expressão faz referência ao proverbio francês “nobreza obriga” [noblesse oblige], que teve origem na 51ª das Máximas e Preceitos do Duc de Lévis (1808), significando que, depois do nobre, por extensão, todo personagem deve se conduzir conforme a sua categoria.
[4] Ver: Du mariage et des psychanalystes, Paris, Navarin/ Le Champ freudien/La règle du jeu, 2011.
[5] Miller J.-A., A criança e o saber, Cien Digital 11, janeiro de 2012, p. 8.
[6] Lacan J., Televisão, Outros escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2003, p. 531.
[7] Lacan J., Le Séminaire, livre XXI: «Les non dupes errent», leçon du 19 mars 1974, inédito.
[8] Jones E., La phase précoce du développement de la sexualité féminine, La phase phallique, Psychanalyse, n 7, 1964.
[9] Naveau P., La querelle du phallus: 1920-1935, tese realizada sob a direção de Jacques-Alain Miller em 1988 no Departamento de psicanálise da Universidade Paris VIII, inédito.
[10] Miller J.-A., Perspectivas dos Escritos e Outros escritos. Entre desejo e gozo. Decima Terceira Lição, 1 de abril de 2009. Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2011.
[11] Lacan J., Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1998, p. 835-6.
[12] Miller J.-A., Perspectivas dos Escritos e Outros escritos. Entre desejo e gozo, op. cit.
[13] SAMCDA: sociedade de assistência mútua contra o discurso analítico, cf. Lacan J. “Televisão”, op. cit., p. 518.
[14] Lacan J., O Seminário, livro 19: …ou pior, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 2012, p. 93.
[15] Ibid., p. 93.
[16] Lacan J. O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1985, p. 70 e seguintes. O universo fálico é sustentado em um elemento que está condenado a não ser submetido à função de castração.
[17] Lacan J., Le Séminaire, livre XII: «Problèmes cruciaux pour la psychanalyse», lição de 16 junho de 1965, inédito.
[18] Lacan J., O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed., 1992, p. 57.
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GOZAÇÕES
by cien_digital in Cien Digital #23, Hífen

Autor: Mr Tt
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Claire Brissom
“O que é o assédio escolar na adolescência?” Tal é o título escolhido para uma conversação pública com os professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, iniciada em 2018 por um laboratório do CIEN, o Centro Interdisciplinar sobre a Criança. Nós visamos a noção de “assédio escolar”[1], que se tornou há alguns anos o principal instrumento para interpretar a violência da interação entre jovens. Surgido em torno dos anos 2010, este significante ganhou uma adesão incrível até a consagração, em 13 de fevereiro de 2019, de um “direito à escolaridade sem assédio escolar”, votado pela Assembleia Nacional. Este significante é revelador de um contexto político, dedicado a criar vastas categorias para nomear e objetivar o mal-estar social, sem perceber os efeitos auto-realizadores dos dispositivos de prevenção.
A conversação interdisciplinar em torno de situações práticas, discutidas caso a caso, revelou a inconsistência do binário assediador/assediado. Uma situação apresentada por um professor tutor do oitavo ano do Ensino Fundamental nos ensinou muito.
Recém-chegado em uma escola rural, o professor é interpelado por dois irmãos gêmeos que se queixam de serem tratados de “cocô de vaca” e de “bunda suja” por três rapazes da turma. Divertem-se de forma maldosa, verbalmente ou por SMS, com a ligação dos irmãos aos trabalhos da fazenda da família. Num primeiro momento, o professor tenta minimizar a situação, mas inventaram um rap do agricultor cujo refrão é conhecido na turma. As falas dos gêmeos nas aulas desencadeiam imitações sonoras e zombarias dos alunos; no recreio, são recebidos com mugidos. Isso persiste, apesar das reprovações e se intensifica quando os irmãos manifestam desespero.
A diretora convoca os autores das gozações. Virada teatral: quando o mais atrevido dos três é recebido sozinho, desaba e confessa ser ele próprio um alvo, pela sua obesidade e porque ele é, também, filho de agricultor – mas não de criador de gado, ele se apressa para especificar, que é filho de horticultor. Seu pai não trabalha “no rabo das vacas”, eles têm uma televisão, um vídeo game e ele não tem que trabalhar na terra do pai.

Autor: Pawel Czerwinski
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O professor se lembra de ter “caído da cadeira”, face à resposta desse rapaz. “O que fazemos agora?” – ele se interroga. Como tratar esse assediador assediado. Como abordar esta pequena diferença que ele formula para ser diferenciado dos mais “cocôs de vacas” do que ele? Aliás, o pai do rapaz se aborrece ao saber dos fatos. “Nada disso entre nós, somos gente da terra! Os inimigos não são eles!” – Isto se passa logo após os atentados terroristas de 2015, na França. O ideal paternal de um “nós” solidário do “gente da terra” comparava, manifestadamente e muito de perto, o filho ao estrume. No discurso do rapaz era preciso ressaltar a televisão e o vídeo game para aí se opor e instaurar, entre o criador de gado e o horticultor, uma outra segregação.
A decisão tomada pela instituição foi de não punir. Isso foi antes da lei sobre o assédio. Nós juntamos de um lado este rapaz, o mais implicado nas gozações, com o mais atingido dos dois gêmeos e, de outro, o segundo gêmeo, com os dois outros jovens. A dupla e o trio tiveram que produzir uma apresentação sobre o assédio, a partir de textos da lei vigente. Cada um se encarregou da proposta com seriedade. Os trabalhos, de qualidade, foram aclamados pela direção e o ano terminou sem nenhuma outra situação de assédio, sem outro incidente.
O efeito “cair da cadeira” seria hoje anulado pelo imperativo do protocolo e das punições. Um estágio de sensibilização ao assédio seria prescrito aos três “autores”, com a responsabilização dos pais pelas despesas e as “vítimas” seriam definitivamente identificadas como tais. Aqui, a situação foi tratada pela via de uma interpretação: não pela identificação de uns e de outros com papéis definidos a priori, não pela punição e a vitimização, mas, ao contrário, por um dispositivo que diferenciou “os gêmeos” um do outro, como também os “agressores”, uns dos outros.
Esta maneira de responder talvez tenha constituído, para cada um, uma solução pela contra-violência simbólica, sem reproduzir a lógica da exclusão que nós procurávamos prevenir.
Tradução: Analícea Calmon
Revisão: Ana Martha Maia
[1] No Brasil usa-se a expressão americana bullying.
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ENTRE-VISTA COM DAMASIA AMADEO DE FREDA
by cien_digital in Cien Digital #23, ENTREvista

Autor: Miguel Á. Padriñán
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Cien Digital, novembro de 2018, por CIEN-Minas
CIEN-Minas: O CIEN, em sua especificidade, consiste em apreender, via conversação, o ponto de real ao qual se está confrontado nas diversas disciplinas diante do esforço de normatização. Você salienta em vários textos que os jovens, atualmente, apresentam um “não sabe por quê” que não é proveniente de uma verdade oculta no sintoma. Esse “não sabe por quê” parece se referir a uma desorientação pela ausência de coordenadas identificatórias sólidas. Qual é o desafio que os adolescentes colocam para a prática do CIEN atualmente?
Damasia Freda: O que é possível extrair da clínica com adolescentes e crianças para o CIEN, a partir da particularidade que encontrei – o “não saber o que se passa” –, é acompanhado de uma grande preocupação por parte das escolas e de instituições sociais. Há uma imensa preocupação por parte dos agentes sociais em relação a certos sintomas que crianças e adolescentes apresentam. Essa preocupação por parte dos agentes, por não saberem o que fazer, leva à proposição de uma normatização via protocolos dentro das escolas. Isso é uma tendência da sociedade, é uma tendência dos governos também: a normatização de incluí-los, crianças e adolescentes, dentro de protocolos de comportamentos, devido a essa desorientação que há também entre os adultos, por não saberem, por não entenderem determinadas condutas nas crianças nos adolescentes. E, atualmente, em minha prática institucional, na universidade, onde temos centros de atenção às crianças e adolescentes, o que mais me chama a atenção é a quantidade de demandas das escolas pelo que se chama de hiperatividade ou síndrome de déficit de atenção nas crianças, por lhes atribuírem uma falta de atenção, uma falta de concentração associada a uma hiperatividade. Ou que essa hiperatividade faz com que não possam se concentrar nas tarefas que se acredita serem as centrais. É importante notar que crianças vistas com base nessa catalogação não apresentam essa hiperatividade no consultório nem distração às perguntas que são feitas. Há uma normatização. Colocam-se nomes em mudanças que se apresentam na cultura, mudanças de gerações, mudanças que ocorrem com a entrada no novo milênio. Crianças que chegam a partir do ano 2000 são hoje os adolescentes tardios. Para os que nascem em 2010, 2011, por exemplo, temos que pensar que as configurações são muito distintas. Já são nascidas no mundo virtual, nas novas tecnologias; têm uma facilidade e destreza para manejar os aparatos eletrônicos que a maioria dos adultos não tem. Isso faz com que tenham uma relação distinta com o conhecimento, muito diferente da imagem que tínhamos. Há muitas informações que podem buscar simultaneamente. Apresentam, assim, uma capacidade de atenção muito distinta daquela que se pretende, de que prestem atenção ao professor ou ao educador, a essa figura do saber. Esse problema faz com que o professor ou o educador, como agente do saber, como sujeito suposto saber, como chamamos nós, psicanalistas, já não funcione mais. A instituição escolar é primitiva para essas crianças e adolescentes.
Há que se considerar que há uma mudança de paradigma no século XXI e que as crianças são os protagonistas que encarnam esse novo paradigma, e, nesse sentido, estão mais adiantadas que nós, adultos, que pertencemos a uma geração anterior. Nesse sentido, creio que os adultos estão mais desorientados que as crianças.
CIEN-Minas: Então a desorientação está mais do lado dos adultos, dos educadores?
Damasia Freda: Em relação a isso, sim. Além disso, creio que – isso é uma hipótese – se há uma desorientação ou se há condutas que manifestam alguns adolescentes que respondem a uma desorientação, os adultos não estão mais orientados que eles. Essa desorientação está localizada numa ruptura que existe entre a cultura e a sociedade no século XIX e no século XX, sede dessa transição até uma nova configuração social. Antes havia o que era chamado de instituições sólidas, a ideia de Pai ou de qualquer figura de autoridade para, de alguma maneira, representar essa figura patriarcal, como chamam algumas correntes. Desde a psicanálise – não só a psicanálise, mas a sociologia, a história, a antropologia –, classificaram o século XX como o século em que essa figura da autoridade foi desaparecendo, abrandando, se dessolidificando para que passássemos ao que chamamos de uma sociedade líquida. Essa é uma hipótese e continua sendo, de alguma maneira. Essa noção que nós, na psicanálise, chamamos de Pai. Freud chamou de Pai essa ideia central, o núcleo central do Complexo de Édipo, que podia ser descoberto a partir do sintoma, desarticulando-o e descobrindo as condições edípicas de cada um, cujo fator principal era o Pai. Lacan, cujas ideias seguimos, traz o significante Nome do Pai. Tudo isso é o que foi desarticulado durante o século XX, chegando a sua forma mais contundente no século XXI. Minha ideia, minha hipótese, é a de que a desorientação, ou, dizendo de forma afirmativa, a orientação dada pelo Pai, foi perdida. A perda dessa bússola deu lugar a uma desorientação. Observamos mais essa desorientação nos adolescentes, mais que nos adultos e mais que nas crianças. Por que mais na adolescência que em outras faixas etárias? Porque, como Freud dizia, seguramente com razão, na infância, recorria-se ao Pai como elemento, sobretudo, de identificação. Para Freud, o Pai era a primeira figura de identificação; a primeira forma de identificação era com a figura paterna, ou com o Pai como noção. Por outro lado, Freud destacava em seus outros textos que o adolescente se separava do Pai para eleger outro – os professores, tutores, enfim, os orientadores de seu futuro –, para concluir a etapa da adolescência e passar à vida adulta. Se essa noção de Pai está afetada desde o início, na adolescência, por haver essa passagem de uma figura a outra, se a figura orientadora está afetada, nos deixa nessa desorientação. Essa era minha ideia. Essa desorientação manifestada no “não sei o que me passa, não sei o que faço aqui… o que se passa comigo não tem nenhum sentido digno de ser tratado pela palavra…” se faz presente também nos agentes envolvidos com os adolescentes, porque não sabem o que fazer com eles. Então estamos todos desorientados, devido a essa crise. O orientador, essa noção de Pai, não é mais regulador das famílias, dos governos. Não encontramos mais isso.

Autor: Elcarito
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CIEN-Minas: Recentemente, no CIEN Minas, em uma conversação com professores, educadores e familiares, ficou evidente o recurso à medicalização de crianças e adolescentes como saída para impasses enfrentados no campo da educação: os professores dizem que não sabem mais o que fazer com problemas que são da família, e os familiares, por sua vez, dizem que estão solitários, sem apoio. Em outra conversação com profissionais do campo do Direito, é marcada a situação na qual, primordialmente, pré-adolescentes e adolescentes, quando adotados, são devolvidos, como mercadorias, porque não “agradam” as famílias adotivas. Uma pré-adolescente considerada insuportável faz uma peregrinação por algumas famílias. Como trabalhar com esses impasses na conversação?
Damasia Freda: Primeiro, a medicalização de crianças e adolescentes e, depois, a adoção de adolescentes que são devolvidos como objetos de mercadoria. O que chama mais atenção é como é natural para as famílias medicar as crianças, por exemplo, dar um sedativo para que não incomodem à noite; como as famílias consideram normal medicar uma criança ou adolescente porque um neurologista indica por considerar que haja um déficit de atenção. É consequência do progresso da ciência a forma quase planetária que assumiu o sistema capitalista, no qual o que se ambiciona como objetivo a ser alcançado é a mercadoria. Se há algo que designa um valor humano, algo que designa uma pessoa, já não é o que se sabe, a autoridade que se impõe, mas sim os objetos que tem. Daí as pessoas passam a ser mercadorias. Isso se vê muito claramente nas adoções. Os pais, quando vão adotar, querem uma criança com determinadas características, como objetos. As tecnologias já permitem manipular os genes não para evitar doenças, mas porque pessoas querem ter filhos com determinadas características, como objetos. Isso faz com que eu possa devolver uma criança, como um produto num supermercado, porque não me satisfaz, porque não funciona.
CIEN-Minas: Em seu livro El adolescente actual você comenta sobre a conversação no subtítulo “La conversación y la lengua desarticulada”. Você diria que, na atualidade, os adolescentes continuam falando entre si, mas numa falação sem se dirigir ao Outro, de forma desarticulada em relação ao Outro?
A conversação poderia propiciar ao adolescente fazer uma nova articulação com algum Outro?
Damasia Freda: Sim. Não digo que não. Os adolescentes conversam entre eles ou não, na medida em que conversam com os aparatos eletrônicos, conectados com muitos outros adolescentes. Teríamos que ver essas conversações também, já que hoje em dia predominam as conversações virtuais, e não a conversação com grupos de amigos.
CIEN-Minas: Teria um efeito distinto quando um analista convida para um espaço de conversação?
Damasia Freda: O que creio é uma ideia, porque também sou docente, na universidade, de alunos que também são adolescentes, de uma adolescência prolongada, porque são jovens. Creio que há uma crise de desejo de saber como a academia o propõe, tal como Freud considerava. O bom encontro com um professor era determinante para Freud. O desejo de saber, nesse sentido, está muito modificado. Os adolescentes atuais têm uma relação distinta com o saber. Eles sabem. Não é que eles não saibam, mas têm uma relação diferente. Necessitam do Google para saber as disciplinas, para saber história, geografia. O problema não é que não saibam; é que há uma ruptura com o Outro encarnado como figura de saber, como tesouro de saber. Se nós procurarmos a conversação para rearticular isso, não me parece ser recomendável, porque o paradigma está mudado. Me parece que é mais positivo entender como os adolescentes interpretam a sociedade contemporânea do que como os interpretarmos.
CIEN-Minas: Nossa última pergunta é sobre o projeto que vimos ali da rua Sapucaí, que é o CURA, sobre os grafites. O modo como o adolescente se apresenta no mundo muitas vezes passa por algo marginal, fora da Lei. A pichação, diferentemente do grafite, é vista como algo marginal, fora da Lei. O que você poderia nos dizer sobre a manifestação dos adolescentes em relação a esses dois modos de agir na cidade, tanto a pichação quanto o grafite?
Damasia Freda: A pichação, diferentemente do grafite, sempre foi uma manifestação política dos jovens e adolescentes com um compromisso social que os adolescentes atuais não mostram. As pichações estavam sempre relacionadas a manifestações políticas de oposição, reivindicação… já o grafite é uma arte. Não posso dizer muito dos murais da cidade de BH, que são charmosos e me encanta que se cubram enormes paredes de edifícios. São grafites. Recordo-me do caso de um adolescente que fazia grafites. É claro que os grafites têm essa característica de utilizar os muros, as paredes. Quando entra o município, o governo, perdem o encanto (risos). Recordo que o adolescente me relatava que saía de noite com amigos para procurar espaços diferentes, entre eles, vagões de metrô. Havia trechos com leis muito específicas, que diziam que não poderia, que proibia grafitar os monumentos históricos e os patrimônios da humanidade. Respeitavam determinados espaços. A arte é sempre transgressora; não é possível fazer arte quando sou incapaz de inovar, fazer algo novo. A transgressão – e a arte é isso também – é instalar uma Lei nova, uma nova regra dentro desse movimento artístico. Quando está muito normatizado, é difícil que a criatividade surja. A arte é, sobretudo, liberdade de expressão.
Na ditadura militar argentina, os comandantes decidiram pintar de branco os troncos das árvores até um metro e meio de sua altura. Então, eram todas iguais.
Aqui se passa o contrário. Na paisagem da cidade há essas figuras enormes, diferentes… esse vestido, por exemplo. Creio que é um tema interessante que o Brasil perceba se os grafites e as pichações continuarão existindo, seria bom tirar fotografias. Os grafites nos dizem se a cidade transpira arte ou não. Pessoalmente, me encantam os grafites e as pichações de jovens e adolescentes no Brasil e, sinceramente, espero que não as pintem de branco.
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Da maconha ao “campão”: as palavras como invenção
by cien_digital in Cien Digital #23, LABOR|a|tórios

Autor: Philipp Trubchenko- Imagem:
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Bárbara Snizek Ferraz de Campos[1]
Renata Silva de Paula Soares[2]
O Laboratório Ciranda de Conversa[3] foi solicitado para realizar conversações com a turma de 5° ano de uma Escola Municipal de Curitiba. Em um primeiro momento, as professoras da turma foram escutadas, trazendo inúmeras queixas, que variavam de dificuldades de aprendizagens à negligência, drogadição nas famílias e violência sofrida pelos alunos no ambiente social e familiar. O relato retratava a experiência da infância dentro de uma favela organizada, grande parte, em torno do tráfico de drogas e da violência. Relatavam a grande dificuldade em lidar com a agitação e a agressividade dos alunos, bem como o que suscitou a procura pelo Laboratório: um acontecimento insuportável para as professoras. Três alunas, Kika, Ana e Maria haviam sido flagradas fumando maconha no banheiro, durante o contraturno. Ou seja, mesmo em uma comunidade centrada no tráfico, a escola se propõe a ser um lugar de proteção, um refúgio. O ideal é que as drogas não contaminem a escola e a primeira infância, mas foi necessário um evento que furasse a barreira do ideal da escola.
Já nas apresentações, as meninas demonstram desconfiar do motivo pelo qual o Laboratório foi chamado, pois contam que aprontaram demais e não podem mais frequentar o contraturno. Contudo a conversação inicia com as crianças falando sobre o uso do celular. Um dos meninos toma a palavra: “eu não sei a hora de sair do celular, mas minha vó fica a noite toda namorando no celular. Fica de conversinha: oi querido”. Quando pontuamos sobre a dificuldade da criança em se regular sem um adulto que se responsabilize por lhe impor um limite, uma aluna diz que às vezes é a própria criança que tem que dizer: chega! Nesse momento, as crianças consentem com a oferta da palavra e não mais se colocam, apenas, a partir da agitação de seus corpos. As crianças que resolviam seus impasses com chutes, empurrões e socos, ousam falar sobre seu desamparo diante da inconsistência do Outro. Miquel Bassols[4] aponta que, da perspectiva lacaniana, devemos nos aproximar e escutar as crianças como sujeitos que podem se fazer responsáveis por suas experiências de gozo, e não apenas como objeto de gozo do Outro. Nesta ideia está o centro do que é uma invenção para a criança, tornando a elaboração de um saber inédito possível. Também está o cerne do CIEN, que ao oferecer o dispositivo da palavra às crianças, aposta em seu consentimento com o dizer.

Autor: José Fernando Carli
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Em uma conversação depois, um dos alunos diz: “eu sei o esconderijo de vários maconheiros”, e o resto da turma nos conta que “moiô”, “XL” e “cerveja” são gírias que funcionam como senhas, usadas também pelas crianças, para anunciar a chegada de policiais. Não mais no lugar passivo de vítimas do tráfico, mas como participantes da dinâmica da comunidade, as crianças seguem falando sobre seus encontros com a violência. Escutamos uma criança contar que a mãe limpou sangue de tiro na parede de sua casa, outra relatar que a polícia em uma operação, disse para ele: “sai da rua filho da puta”, e que ele, sabendo que não se provoca policiais, não respondeu. Todos têm uma história que envolve violência, armas, sangue, briga ou morte para contar. Demonstram conhecer e seguir os códigos do local e como se comportar para evitar conflitos e perigos, quando os embates acontecem. Já se mostram capazes de falar a partir de seus lugares de sujeitos em meio a uma estrutura social tão organizada em torno do tráfico. Logo em seguida, nos contam que na escola existem maconheiros de 12 anos. Ana parece bastante nervosa, fazendo sinal de silêncio para os colegas. Quando diz: “moiô” aos colegas, perguntamos: “moiô, Ana?” Kika chega bem nesse momento, escuta e faz cara de susto. Todos riem. Pontuamos que já entendemos que três meninas da sala fumaram maconha no banheiro, mas que ninguém vai nos contar quem foi, porque não se cagueta ninguém. Assim é que são as coisas na Vila. Kika diz: “fui eu, a Ana e a Maria. Eu acendi e já apaguei porque a tia chegou. Deixei no bolso e me levaram para a diretoria”. “Depende do lugar que você vai fumar, não dá nada. Aqui na escola deu”. No término dessa conversação, Kika se dirige a uma das participantes, pede para conversar separadamente e conta sobre impasses de sua existência.
É possível perceber um desajuste das identificações que deram lastro aos sujeitos[5]. Dar a palavra a garotos de uma Vila, “vítimas” do tráfico, para que pudessem falar de sua relação com o tráfico, sem pretensão educativa, foi a verdadeira aposta no dom da palavra e no alcance do dispositivo das conversações. A partir desse momento, as crianças, em uma clara mudança de posição, passam a dizer que estão “mais favoráveis” e a nos contar que o campeonato de futebol da escola vinha tomando uma importância central para a turma. A escola é localizada ao lado de um campo de futebol muito importante na comunidade, o “campão”, e eles discorrem sobre a importância de conseguirem jogar uma partida por lá. Enfim, eles estão falando da descoberta de possibilidades para a agitação de seus corpos. Há algo a ser feito com esses corpos que se chocavam indiscriminadamente com a violência.
Em uma das nossas últimas conversações, um dos meninos conta como controlou sua vontade de bater no irmão mais novo, trancando o menino no armário. Outro diz que está com mais paciência: “antes se tinha um empurro eu já brigava, agora eu converso, peço desculpa”. Quando um menino dos mais briguentos da turma diz que: “faz uns dois mês que não brigo”, outro colega retruca: “ele briga falando”. O menino traz, então, um saber inédito: “às veiz xingamento dói mais que tapa na cara”. As crianças mudaram sua relação com a palavra e entenderam que falar faz diferença, pois, ao mesmo tempo que pode doer mais do que um tapa na cara, a palavra pode lhes trazer um novo sentido à vida. “Um ganho de saber que abre para propostas inéditas, trazendo um a-mais de vida ali onde reinava a pulsão de morte.”[6] Assim, temos a invenção dessa turma, feita de palavras que valem muito, que às vezes doem, mas que valem a pena. Quem sabe, a invenção de maneiras de viver a vida, que como as partidas de futebol no campão, valham a pena serem vividas.
[1] Psicanalista, Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Psicanálise – PUC/PR, Mestre em Antropologia Social – UFPR. barbarasnizek@gmail.com. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa/CIEN-PR
[2] Psicanalista Praticante, Correspondente da Delegação Paraná – EBP, renataspsoares@gmail.com. Coordenadora do CIEN-PR
[3] O Laboratório Ciranda de Conversa realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Andréa Neves, Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. Souza, Flávia Cera, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Suely Poitevin, Stephanie Abrão Gorte, Valéria Beatriz Araujo, Willie Anne Provin.
[4] Bassols, Miquel (2017) Trauma e Real, o que as crianças inventam. pg. 53, 56. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra, Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017
[5] Laurent, Éric (2017) Retornar à definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. pg 44. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
[6] Rêgo Barros, Maria do Rosário Collier. A Prática Interdisciplinar do CIEN. pg. 111. In. Brown, Nohemí, Macêdo, Lucíola, Lyra, Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.
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Héteros: o que faz furo?
by cien_digital in Cien Digital #23, LABOR|a|tórios

Autor: Gong Ty
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Franciele Gisi M. de Almeida[1]
Anna Luiza de Almeida Silva
Vânia Brito Gomes[2]
O Laboratório Digaí-Escola trabalhou em seus encontros os limites e possíveis efeitos de uma Conversação em três tempos ocorrida no Ensino Médio Técnico de uma Escola Federal situada na região metropolitana do Rio de Janeiro. Estas conversações se deram a partir de um problema ocorrido em uma turma com a criação de um grupo de whatsapp autodenominado “héteros”. Um aluno participante desse grupo resolve contar aos colegas sobre as imagens e comentários ofensivos que estavam sendo feitos a respeito deles, pois “passaram do limite”. O grupo do qual falavam era composto de meninas (uma delas lésbica) e um menino gay, em sua maioria negros. Havia comentários ofensivos sobre o fato do menino ser gay, sobre a aparência das meninas e referências a que fossem agarradas a força.
Essa situação gerou comoção na escola e culminou em reuniões da equipe pedagógica com professores, alunos e pais dos alunos. Constatado o impacto do ocorrido nos próprios participantes do grupo e a decisão de tratar a questão no âmbito da escola, produziu-se como primeira resposta um imperativo superegóico de “tudo dizer” e uma expectativa de reparação através de pedidos de desculpa. No entanto, uma assistente social percebe o excesso que estava se produzindo ali e faz um corte na reunião da equipe pedagógica com a turma, apontando que haviam chegado a um limite e que agora isso poderia ser tratado comigo, psicóloga da escola, quando retornasse das férias. Ao voltar, ouço estes relatos e a avaliação de alguns professores e da equipe de que a questão havia se resolvido, não sendo mais necessário falar sobre o assunto. Apesar disso, alguns alunos me vêm dizer que havia coisas a falar e proponho, então, alguns encontros.
Nas discussões do laboratório, localizamos um momento inicial importante da conversação na fala de uma das meninas alvo das ofensas, de que gostaria que os colegas falassem, cada um, sobre o que ocorreu, pois sua imaginação proliferava ao se perguntar: “por que eu?”. Mesmo que esta pergunta remetesse a algo de sua fantasia e não pudesse ser respondida inteiramente na conversação, ela abriu questões importantes. Foi um convite a falar fora do imperativo de confissão e perdão, um convite a elaborar um saber sobre o que ocorreu, no um a um.
Os meninos do grupo “héteros” começaram a dizer que não sabiam o que acontecera, não se reconheciam no que estava escrito nas mensagens, “saiu do controle”, repetiam. Aqui constatamos uma dimensão de gozo que pode se revelar nas manifestações de violência dos adolescentes, como nos aponta J-A. Miller[3], ao indicar que nem tudo é sintoma a ser interpretado.
Aponto como algo importante o fato dos meninos não se reconhecerem naquelas ofensas. Um deles diz que estava em silêncio até ali porque constatava que não poderia desfazer o que havia feito, então optou por ficar em silêncio até que tudo passasse. Pontuo que se não havia como desfazer, havia algo a falar, inclusive a partir do que ele não sabia. E assim eles falam mais um pouco, principalmente os alunos alvo do grupo. Os participantes do grupo “héteros” falavam com mais dificuldade.

Autor: Andrew Beierle
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Num segundo momento, o aluno e a aluna que foram alvo principal das ofensas apontam como causa para o que ocorreu um desejo não assumido dos meninos por ele (que é gay) e uma inveja dela (que é lésbica) porque ela saberia como se aproximar das meninas. O manejo desse momento foi difícil porque apesar do tom ser de brincadeira entre eles, havia também muita agressividade e alguns comentários obscenos. Fui tentando cortar para que a conversação seguisse e para dar abertura para que outros falassem. Aponto para o fato de que a sexualidade é uma questão para todos. Eles concordam, muitos riem. Um deles fala no grupo: “eu nunca transei, grande coisa”, mais risadas. Quase um alívio, pois aparece para todos o óbvio que até ali se esforçavam para evitar.
No terceiro encontro, há menos tensão entre eles. Contam que algumas conversas têm acontecido entre alunos depois da aula e estão se acertando, outros não vão mais se falar, segundo explicam. Alguns alunos me procuram depois da aula. Na conversação uma aluna conclui: “já está bom, o que tínhamos para resolver aqui, se resolveu, agora cada um lida com suas questões”. Concluo neste ponto.
O que pudemos extrair no Laboratório foi como a criação desse grupo de whatsapp pode ter vindo em resposta ao embaraço destes alunos com a própria sexualidade, a partir do encontro com o estilo afirmativo daqueles que falavam abertamente de sua sexualidade e das soluções que encontraram.
Localizamos que a conversação produziu furos na consistência destes grupos. Os meninos que precisaram se afirmar como “héteros” marcaram uma diferença com “homofóbicos” e puderam falar a partir do não saber sobre o excesso e a violência que havia se produzido naquele grupo. A aluna e o aluno, principais alvos das ofensas, puderam reconhecer que “às vezes também exageram”, ao contar de suas supostas aventuras sexuais ou nas provocações aos colegas, se implicando assim no estilo singular que assumem diante das situações difíceis que encontram. Essa posição não desconstrói seu modo próprio de estar no mundo, mas permite um deslocamento do lugar de vítima, que aquela situação poderia cristalizar. Apostamos que a conversação produziu algumas brechas para que algo retornasse como questão para cada um sobre o embaraço com a própria sexualidade.
[1] Psicóloga da escola, responsável pela conversação e psicanalista, participante do Laboratório Digaí-Escola.
[2] Psicanalistas, participantes do Laboratório Digaí-Escola, do qual fazem parte: Mirta Fernandes, Bernadete Mara, Lucia Thomaz, Gricel Osorio Hor-Meyll, Marcia Crivorot e Cleber Cruz.
[3] Miller, J. A. “Crianças violentas”, in Opção Lacaniana 77, agosto 2017.
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A judicialização das famílias: tentativa de normatização
by cien_digital in Cien Digital #23, LABOR|a|tórios

Autor: Pedro Sandrini
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Laboratório Novas famílias e suas judicializações
Cristina Nogueira, Letícia Greco, Marcela Silva Andrade, Marília Oliveira, Mônica Campos Silva (Responsável), Pâmela Freitas, Thaís Campomizzi.
Verificamos que o desafio essencial ao direito de família na atualidade é a tentativa de normatizar e regular a família a partir da judicialização da parentalidade. Esta seria a intervenção do judiciário nos casos em que a filiação e as funções parentais não são exercidas e/ou não são, a princípio, reconhecidas, levando a uma demanda de regulação que pode ser realizada sem a concordância de algum dos envolvidos.
Ao ser atravessada por vários discursos em busca de sua constituição formal, a família contemporânea ganha certas problematizações.
Na atualidade, podemos perceber que a família ganhou gestores laterais – a justiça, a educação, a ciência – que vêm intervindo no seu modo de funcionar. Nesta medida, temos como consequência um excesso de regulação pelo jurídico na família, em resposta às demandas contemporâneas de normatização das relações parentais. Contudo, é importante perceber que, atualmente, em sua ausência de referência, a família permite e solicita a entrada desses discursos, e vem buscando também cada vez mais reguladores externos para sustentá-la, introduzindo uma sorte de efeitos para os quais ela também não se sente preparada.
O aumento frequente e imperioso de judicialização das famílias – tentativa de padronizar os laços familiares, desconsiderando o mal-entendido, o desejo, o segredo e o não-dito – como soluções para as questões contemporâneas, motivou a formação deste Laboratório. Sua composição contempla profissionais das diversas frentes de trabalho do TJMG que cuidam da criança e do adolescente e são orientadas pelo ECA. Assim, as questões cíveis e infracionais, bem como as disputas dentro do seio familiar e o reconhecimento das novas famílias são assuntos das conversações. Constatamos cada vez mais a interferência da lei, normatizando e regulando a família, estabelecendo padrões para constituí-las, retirando o direito à palavra, à singularidade.
Nas conversações, os técnicos falam de sua prática, extraindo um ponto comum – diante das diferentes demandas trabalho: ao ter que responder sobre o melhor interesse da criança e do adolescente, o profissional é chamado categoricamente a evitar o real. Aclarar isto que aparece como um imperativo permitiu localizar o impossível em responder que, em muitos casos, leva a encaminhamentos que excluem a singularidade, ou seja, à normatização. Uma colega da Vara Infracional testemunha que, durante uma audiência, o juiz lhe demanda dizer se o jovem que ali estava deveria se manter acautelado ou ser liberado sob a responsabilidade da família que resistia em levá-lo para casa. Esta técnica subverte a solicitação e responde, “não há resposta ainda, Doutor”, tendo como efeito um tempo maior de oferta da palavra para o sujeito e sua família. Ao permitir que um vazio de saber se estabelecesse, possibilitou também que os envolvidos pudessem se responsabilizar pela construção de uma resposta.
Deste modo, se não há como evitar o real, buscar não tamponar este buraco no saber com a prevenção padrão é uma das respostas do Cien. Procurar um cálculo, construído a partir do caso, tem sido uma das soluções apontadas pelo laboratório, apostando sem deixar, contudo, deixar a criança ou o adolescente à deriva ou que a medida protetiva não se torne preventiva, cerceando toda e qualquer possibilidade de uma nova saída.

Autor: Adrien Olichon
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Outro recorte: na vara Cível da Criança e da Juventude, em que são tratados os casos de adoção e abrigamento, um impasse se apresenta. Os profissionais das Unidades Básicas de Saúde e das maternidades devem comunicar ao poder judiciário o atendimento a mulheres grávidas ou em trabalho de parto, usuárias de substância psicoativa e/ou que estejam em situação de rua ou de vulnerabilidade. Esta recomendação, protetiva e preventiva, visa retirar as crianças recém-nascidas do ambiente de extrema vulnerabilidade.
Embora o ECA indique a preferência à família extensa em casos nos quais a família principal não tenha capacidade protetiva e o acolhimento institucional seja compreendido como excepcional e provisório, pode-se perceber na prática que, a partir da intervenção do MP, o abrigamento de recém-nascidos aumentou significativamente. Nas conversações do laboratório, aparece a dificuldade diante da recomendação, pois seu caráter compulsório e o fato dos filhos serem retirados de suas mães sem qualquer medida prévia cria um clima ameaçador, autoritário, sem direto à palavra, condenando essas crianças a uma situação de orfandade. Por outro lado, a mesma recomendação aponta as consequências para uma criança vulnerável, sem proteção, exemplificando o caso em que uma mãe usuária de drogas saiu da maternidade com seu bebê, após dar à luz, e o vende. Nesta direção, para a lei, frente à incapacidade revelada pela mãe, a criança tem prioridade na atenção e proteção dos direitos.
As conversações levaram as seguintes considerações:
A oferta da palavra, em cada caso, poderia permitir a construção pelo sujeito de uma saída menos mortífera, protegendo essas crianças, mas sem retirá-las de forma generalizada e abrupta das mães, ou seja, sem uma prevenção privativa.
O caráter irreversível dessas ações cria um impasse entre proteção e prevenção.
Para os profissionais que são chamados a responder pelo melhor e maior interesse da criança, uma pergunta se estabelece: qual o lugar dado a cada criança ou adolescente nestes discursos?
A judicialização familiar compreende ainda sujeitos que, mesmo no lugar de filhos, estão vulneráveis, anônimos enquanto desejo, sem um lugar para se alojarem e se constituírem.
Como fazer um bom uso da judicialização, utilizando-a como espaço de implicação (pela palavra), intervenção e consideração dos laços para além de uma sentença judicial?
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O infamiliar e o êxtimo nas conversações inter-disciplinares do CIEN
by cien_digital in Cien Digital #23, Contribuições

Autor: Anni Roenkae – Imagem:
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Ana Martha Wilson Maia
“É numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas de dentro. Em um parque, há pássaros, gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. Em um parque a gente não está sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde.”
Marguerite Duras, Escrever.
Para escrever “livros desconhecidos” por ela mesma, diferentes dos que havia escrito até então, Marguerite Duras conta que permaneceu dez anos em casa, numa solidão feita por ela e para ela. Foi assim que escreveu Le ravissement de Lol V. Stein, um de seus mais belos romances cinematográficos, Le Vice-cônsul e muitos outros. E entre tantas coisas, Duras nos ensina poeticamente sobre estar só, “dentro” da casa.
Recentemente publicada pela Editora Autêntica, uma nova tradução bilíngue de um pequeno texto de Sigmund Freud transmite a grandiosidade de sua obra e a importância da palavra para o ser falante. Exímio clínico e pesquisador, Freud faz referência a diversos campos de saber – como à ciência, filologia, estética, linguística, filosofia e à literatura fantástica -, recolhe uma palavra alemã da vida cotidiana e a transforma em conceito, depois de tê-la dissecado até o osso. Até o que do real, esta palavra recorta.
Em seu centésimo aniversário, Das Unheimliche (1919) recebe uma tradução brasileira que ressalta a construção de um conceito-neologismo: “O infamiliar”, seja por sua forma ou uso inauditos.
O estranho, O inquietante, O estranho-familiar, O infamiliar – nas traduções para a língua portuguesa, Unheimliche apresenta variações em torno do intraduzível, no sentido do que Cassin descreve como “o que não cessa de (não) traduzir” (p.17).
Se o intraduzível é “o sintoma por excelência da diversidade das línguas” (Santoro, p.158), o infamiliar expressa a impossibilidade de sobreposição de uma palavra na tradução de uma língua a outra e mostra que “o muro entre as línguas não é intransponível, mas também que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (Iannini e Tavares, p.9).
Podemos dizer que a impossibilidade da tradução perfeita coloca em evidência o muro da linguagem, o impossível da relação sexual na expressão de Lacan, que separa o que é de cada um em seu dizer e na solidão do seu gozo, como ilustra Duras.
Das Unheimliche trata do que o ser falante encontra como estrangeiro em si mesmo, em seu “infinito particular”, diria Marisa Monte, com sua linda voz.
Nas palavras de Freud:
“[…] o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo. […] Quanto mais uma pessoa se orienta por aquilo que se encontra a sua volta, menos é atingida pela impressão de infamiliaridade quanto às coisas ou aos acontecimentos” (Freud, 2018 [1919], p.33).
O encontro com o infamiliar causa angústia. E quanto mais um profissional se queixa do sintoma da criança e insiste numa solução protocolar que coloca etiquetas, menos inventivo ele pode ser no trabalho com a criança e a partir de seu lugar na instituição. O que o sintoma da criança diz sobre o seu próprio sintoma? – é uma questão que se coloca e circunscreve que na aposta do CIEN na conversação não se trata de uma “psicoterapia generalizada” (Laurent, p.41), embora vise reintroduzir a causalidade psíquica.
No dispositivo fundamentado na proposta de Miller (2005) de uma associação livre coletiva, a conversação inter-disciplinar visa abrir um espaço para a invenção por meio de soluções singulares de cada um: da criança e dos profissionais que lidam com ela nas instituições.
Disso resulta os efeitos possíveis da enunciação para aquele que fala, ao tomar uma posição subjetiva diante de seu dizer. Efeitos que podem alcançar todos que estão de algum modo implicados no impasse apresentado na conversação, a saber: aquele que tomou a palavra, os que estão presentes na cena da conversação e os que dela fazem parte indiretamente, como outros profissionais da instituição, as crianças e seus pais.
Freud enfatiza que o “infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona.” (p.45) Algo que é tanto íntimo e conhecido, como estranho, desconhecido, inquietante, infamiliar. É justamente por ser intraduzível que o infamiliar traz uma contribuição para o trabalho que os laboratórios do CIEN realizam, pois de que se trata nas conversações inter-disciplinares senão de seres falantes com suas próprias línguas, em torno de um real que lhes concerne?
Aberta a conversação e colocado o impasse, cada um que deseja “fala”. E para não tornar a oferta da palavra um blábláblá que infinitiza a produção de sentido, “a aposta na conversação é uma aposta sobre o corte” (Laurent, p.43) em que se opera um traumatismo, uma interrupção na fala, cujo objetivo é manter o desejo de saber em torno de “um vazio pulsante”, (Maia, 2012).
Como não há um saber prévio e exterior, mas possíveis e diferentes respostas, a demanda de saber é decepcionada de uma boa maneira e pode se tornar um motor de trabalho (Udenio, 2011). Deste modo, o vazio pulsante desaloja o ser falante do lugar de mestre e promove invenções. Mas como manter vazio este lugar do saber?
Para que se preserve um vazio pulsante na conversação e, consequentemente o trabalho dos participantes, é fundamental a presença de ao menos um analisante esclarecido – na precisa expressão cunhada, há muitos anos, por Beatriz Udenio -, que possa sustentar uma posição de não-saber. “Trata-se muito mais de despojar-se de toda expectativa de tornar-se célebre” (Udenio, 2018, p.59) como um mestre que traria alguma “verdadeira” solução para o impasse, ao invés de estar numa posição de dentro-fora, visando o vazio pulsante. Assim, a posição do analisante esclarecido numa conversação do CIEN está diretamente relacionada a uma posição de êxtimo.
Como o infamiliar de Freud, o êxtimo é um neologismo criado por Lacan para indicar paradoxalmente aquilo que sendo o mais íntimo, interior e singular, é algo que está fora, no exterior.

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Lacan esclarece a estrutura topológica do êxtimo em seu ensino. Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, ele aborda o inconsciente freudiano e pergunta: “O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu?” (1957, p.527). E, apontando “uma excentricidade radical de si em si mesmo com que o homem é confrontado” (p.528), indaga: “Qual é pois esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (p. 528).
No Seminário 7, Lacan se refere à extimidade primordial: “a esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (1959-1960, p. 173) e alguns anos depois, no Seminário 16, localiza o objeto a dizendo que este “está num lugar que podemos designar pelo termo ‘êxtimo’, conjugando o íntimo com a exterioridade radical” (p. 241).
Por meio do objeto e do Outro, pois na época em que descreve o inconsciente como o discurso do Outro ele apresenta o Outro como êxtimo do sujeito, Lacan se refere ao ponto vazio da estrutura que inclui o dentro e o fora, o mais íntimo e o êxtimo.
A formulação lacaniana da extimidade trata do ser falante com o seu gozo. Extimidade é o tema de um curso inteiro de Miller (2010) em que ele ressalta, na estrutura do êxtimo, o íntimo como um corpo estranho, dizendo que a extimidade é “uma fratura constitutiva da intimidade” (p.17).
Em referência ao que diz Lacan sobre o hiato central da identidade consigo mesmo, Miller considera que “Este Outro que me agita no seio de mim mesmo é uma formulação adequada para toda loucura”. (p.26)
A loucura da educação para todos e da patologização da infância cria um cenário que compromete os laços sociais. Alguém será apontado como o estranho, o diferente. A angústia do profissional diante da criança incontrolável aponta para algo nele que não é reconhecido como próprio, mas como do outro, estranho, estrangeiro. “O estatuto estrangeiro do sujeito é de se sentir estrangeiro consigo mesmo”. (Laurent, 2018) É a criança, então, que será etiquetada e segregada.
Se “O drama do sujeito […] é não conseguir estar plenamente em sua casa” (p.25), como diz Miller (2010), ou estar tão só que às vezes nela ele se perde, nas palavras de Duras, a aposta do CIEN é que as conversações inter-disciplinares constituam um lugar aberto às invenções visando aos laços e a um lugar menos estrangeiro para que cada um possa estar com os outros e consigo mesmo, no encontro com seu sintoma infamiliar, êxtimo.
Bibliografia
Cassin, B. (Coord.) Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias. Volume um: Línguas. Fernando Santoro e Luisa Buarque (Org.). Belo Horizonte: Autêntica. 2018.
Duras, M. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco.1994.
Freud, S. (1919) “O infamiliar”. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Iannini, G. e Tavares, P.H. “Freud e o infamiliar”. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
Lacan, J. (1957) “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 1998.
Lacan, J. (1959-1960). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. 1991.
Lacan, J. (1968-1969). O Seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar. 2008.
Laurent, É. “Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. In: Brown, N.; Macêdo, L. e Lyra, R. (Orgs.) Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora. 2017.
Laurent, É. “L’étranger extime (1)”. In: Lacan Quotidien, n.770. 22/03/2018.
Maia, A.M.W. “Um vazio pulsante”. In: CIEN Digital, n. 11. Janeiro, 2012.
Miller, J-A. [et al] La pareja y el amor: conversciones clinicas con Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós. 2005.
Miller, J-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós. 2010.
Santoro, F. Introdução. In: Cassin, B. (Coord.). Dicionário dos intraduzíveis: um vocabulário das filosofias. Volume um: Línguas. Fernando Santoro e Luisa Buarque (Org.). Belo Horizonte: Autêntica. 2018.
Udenio, B. “A modo de orientación”. In: Boletim Preparatório à V Jornada Internacional do CIEN, n.4, abril/2011.
Udenio, B. Indart, JC. Conversação Internacional do Cien 2017. In: Cien Digital n 22. Revista do Cien Brasil. http://ciendigital.com.br/
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O Cien Digital e o impossível da transmissão. O Cien Digital transmite?
by cien_digital in Cien Digital #23, Contribuições

Autor: Jp Valery
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Margarete Parreira Miranda
Laboratório “Trocando em Miúdos” Compõe o comitê editorial do Cien Digital
O Cien Digital – instrumento escrito do CIEN –contribui para a orientação prática dos profissionais que participam, cada um com sua quota, do trabalho interdisciplinar nas instituições por onde crianças e adolescentes circulam. É uma revista ligada ao Campo Freudiano cujos marcadores encontram-se estabelecidos no Ato de Fundação, por Lacan em 1971[1] e outros escritos. A seção de recenseamento do Ato de Fundação aporta ali três subseções: O comentário contínuo do movimento psicanalítico, sua articulação com as ciências afins e a condição ética da práxis de sua teoria. O trabalho do CIEN Brasil e as publicações do Cien Digital constituem os dois lados de uma mesma moeda, consistindo o enodamento desses três pontos em forte viga de sustentação.
Ao serem publicadas as vinhetas práticas, diferente das vinhetas clínicas que se deduzem da cura analítica, recolhem a importância de um momento em que algo se deslocou pela palavra ou ganhou, até uma perspectiva de subjetivação como efeito de uma conversação. Uma lógica se mantém, entretanto, entre as duas vinhetas: Fazer o contraponto às identificações que levam crianças, adolescentes e adultos que com eles convivem, à submissão a políticas segregativas. Ali, “preto no branco”, as publicações do Cien Digital dão a conhecer os efeitos sobre o que o falar do mal-estar contemporâneo nas Conversações produz.
O Cien Digital tem por finalidade fazer laço, promovendo a troca de saberes entre os laboratórios, além de corroborar “o bem fundado da cultura do escrito, que é a do CIEN, onde ele exista”, como assinala Judith Miller (Miller, 2007, p.4). Para a autora, ao darem testemunhos de sua experiência redigida por um ou por vários, os participantes do CIEN encontram-se articulados a um segundo momento da transmissão. Em um a posteriori freudiano, as vinhetas práticas dos diversos participantes do CIEN permitem formulações a partir das conversações, do que opera como transformação de situações vividas anteriormente como impasses, ou como atos impulsivos.
Daremos destaque aqui, aos efeitos de transmissão possíveis que o Cien Digital comporta.
As vinhetas práticas do Cien Digital e os efeitos de transmissão
Ao abordarmos o conceito de transmissão de um instrumento escrito, trazemos a importância de sua circulação pelos espaços. A palavra transmitir nos permite o desdobramento do prefixo “trans” que já indica o caráter de deslocar, transportar. Exploraremos, a seguir, o recorte de uma vinheta do laboratório “Entre as Fronteiras das Práticas Socioeducativas”, relato de Joanna Ângelo Ladeira, no Cien Digital número 11.
“A experiência fala. Crianças e adolescentes que participam dos encontros dão mostras, a seu modo, como o discurso do mestre as aprisiona, mesmo se estão na rua. […] É o que deixa aparecer o depoimento de uma das jovens que participa das conversações:
– Nós não é fácil, se nós fosse fácil nós tava em casa! Vou falar a verdade com vocês, porque a gente tá conversando aqui e não precisa mentir[…] Nós temos um montão de problemas, nós mora na rua, tá ligado? Aí chega no lugar e a pessoa vem descontar os problemas dela ni nóis?!! Aí não.
Diz do abuso das normas que não deixam caber o sujeito – irregular por excelência – na instituição que se propõe a acolhê-lo:
– Vocês iam querer ficar num lugar que é igual uma prisão? – Interroga.
E em meio à sua crítica, localiza possibilidades para o bom funcionamento de instituições que se ocupam de crianças e adolescentes. Isso animou a conversação e permitiu que cada um introduzisse aí um ponto, em busca de novas saídas, sema pretensão de uma fórmula[…]” (LADEIRA, 2012, p. 23-27).
No prosseguimento de seu relato, Joanna revela os efeitos de transmissão que a prática do CIEN promove para os adolescentes e trabalhadores das instituições, susceptíveis a essa experiência: “Em muitas conversações os jovens revelam projetos pessoais e coisas novas para suas vidas e isso faz com que a instituição que abriga a conversação perceba de um modo novo aquele jovem que já conhece” (LADEIRA, 2012, p. 27). Antes, porém, Joanna indica uma orientação de Eric Laurent ao CIEN, para que este se detivesse nos impasses provocados pelo discurso do mestre na tentativa de normatizar o real. E vai além em seu relato, trazendo ainda, como referência, o trabalho escrito de Cristiana Pitella, no Cien Digital número 10. Joanna diz: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”.
Os dizeres de Joanna Ladeira (2012) ilustram os efeitos de uma transmissão, no que ousaríamos considerar, neste trabalho, cinco tempos: 1- A demanda institucional do trabalho do CIEN. 2- O instante das Conversações para os jovens e profissionais de áreas afins, com possibilidade de transformações. 3- Tempo de concluir a intervenção do CIEN na instituição, recolhendo consequências do trabalho. 4- Momento do a posteriori e a formulação escrita do laboratório. 5- Transmissão do Cien Digital, tempo em que consideramos os efeitos de transposição entre as publicações, permitindo novas formulações teórico-práticas.
A escrita e o leitor: transmissão de leitura?
Ao apresentar o Boletim número 1 do Cien Digital Brasil, Maria Rita Guimarães, sua editora geral, dá lugar às aspirações dessa ferramenta de comunicação virtual e sua característica basilar: “ele está agora por toda parte e em nenhuma parte” (2007, p.2). Chama de “utopia” o desejo de que seu alcance e enlaçamento no um a um possa se operar.
Onze anos depois, o Cien Digital ganha estatuto de revista on line. Insistimos, entretanto, em uma questão: Que efeitos de transmissão os CDs alcançam? Para além de uma publicação virtual, cujo abarcamento é somente uma aposta, contamos com o comparecimento de cada um causado pela escrita e pela leitura, no enfrentamento do real que gera impasses no duro dia-a-dia das instituições.
Sabedores da importância do registro no que concerne ao propósito do Cien Digital, nos referenciamos em Jacques Alain-Miller (2011), em seu testemunho de entrada no ensino de Lacan, via a leitura de seus textos. Nesse artigo, Miller delimita como transferência de leitura esta vinculação dizendo que “é por intermédio do texto, por um trabalho de leitura que se realiza uma transmissão do seu pensamento e do seu trabalho” (MILLER, 2011, p. 24). Destaca ainda, nessa entrevista, o valor da leitura e os fundamentos da transmissão escrita que levam em conta “o retorno de certas palavras e certas conexões”.
Seria essa a posição esperada do leitor do Cien Digital, em contato com os achados da experiência do outro? Que encontre ali a chance da transmissão da palavra, o toque especial da letra, que reverbera a força de uma causa, o brilho de um desejo?
A linguagem invertida na transmissão em psicanálise
Ao lidarmos com o aporte escrito da linguagem nos parece importante delimitar alguns orientadores, no que concerne a psicanálise. Nas “ciências conjecturais”, disse Lacan (2003), prevalece a racionalidade, o saber ancorado em realidade objetiva, submetida à condição replicante, à redundância e à repetição. Em psicanálise, lidamos com a ineficácia da réplica, mas com a constância da surpresa e do inesperado do dizer de cada um.
O sujeito da psicanálise é um ser que se divide, pois, as palavras como recursos de linguagem são tomadas a partir de um corte, de uma barra colocada entre o significante e o significado. Esses cortes do inconsciente inscrevem uma falha, um indecifrável, um ponto de não saber, onde se inaugura que “nenhuma significação, doravante, será tida como evidente […] É preciso tempo para fazer traço daquilo que falhou [défailli] em se revelar de saída”, sustenta Lacan no texto Radiofonia (2003, p. 401-427). Uma estrutura de vários cortes, como o cristal, que se submetem ao eixo da linguagem. Um significante não aprisiona significados, pois o “efeito do que se propaga não é de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso” (Lacan, 2003, p. 405).
Para a psicanálise, o sujeito responde à marca unária de maneira inédita, com o que nela falta ou ao que dela resta sem mediação simbólica. Essa resposta sintomática, em firme peculiaridade, furta-se aos números. É uma tentativa de suturar a falta de modo próprio. Faz sintoma, e é com essa cicatriz no ser que as subjetividades reverberam, em ressonância, na comunicação. Eis a inversão que se dá: No uso da linguagem, Lacan afirma no artigo Problemas Cruciais da Psicanálise que “a mensagem só é emitida nela no nível daquele que a recebe” (LACAN, 1996, p. 208)[2]. A mensagem emitida é sempre um risco desviante, pois, estará susceptível às multideterminações do sujeito do significante, ou ao que dele não se inscreve no opaco da letra.
O psicanalista praticante dos laboratórios do CIEN, lida, consequentemente, com o mal-entendido da língua que gera perturbações. Em sua posição analisante vislumbra o incerto, ao mesmo tempo o feliz-acaso dos encontros possíveis. Leva consigo sua experiência de sujeito barrado, sabedor de uma posição “rebotalha”, mas, entusiasmada, porém. Desloca-se da verdade acabada e, aproximando-se do saber incompleto, poderá recolher os efeitos da psicanálise que se inaugurou freudiana. Desta posição se abre para a troca entre os saberes que a interdisciplinaridade do CIEN propõe.
Quando escutamos a enunciação da praticante do CIEN, cujo relato exploramos acima: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”, uma questão reverbera em nós: Como se dá o processo de transferência de um texto com a imprevisibilidade de seu alcance?

Foto: Matthew Henry – Imagem: light-and-squares-abstract-art
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A transferência de trabalho que se transmite no um a um
Os praticantes do CIEN são chamados a lidar com o mal-estar da civilização que desestabiliza as instituições. Responder a essas demandas é “por em jogo a transferência e o que nela se interpreta não exige nenhum standard, tampouco um setting. Implica em pôr em jogo um corpo através da fala interpretante, através desse artifício singular que se assemelha ao amor”. (MILLER e MATET, 2007, p. 3-4). Miller e Matet asseguram, ainda, que os efeitos de uma prática institucional se instalam mais pelo ato sustentado pela transferência, do que pela função que o analista, e entendemos que outro profissional do CIEN, pode ocupar ali. Pensamos que o princípio do trabalho no CIEN é a conversação inter-disciplinar que aposta que o furo circule entre as disciplinas.
Em Freud, a transferência é mola mestra da prática psicanalítica, o que permitiu a Lacan enunciar: “No começo da psicanálise está a transferência” (LACAN, 2003, p. 252). Destaca ainda, por consequência, que a existência do analisante institui o laço transferencial. Freud elegeu como objeto da transferência o amor, ao operar tal conceito como reedição de vivências familiares infantis. Lacan enfatiza a participação do sujeito na construção de sua verdade subjetiva e elucida acerca do sintagma “sujeito suposto saber”, constituindo-se o saber como objeto da transferência. Em 1971, no Ato de Fundação, Lacan declara: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se pela transferência de trabalho” (LACAN, 2003, p.242). Refere-se aos “seminários” e afirma que eles nada fundarão senão por meio dessa transferência. Inaugura, assim, como objeto da transferência o trabalho.
Um aspecto fundamental para a prática e os princípios do CIEN é interrogar, portanto, a partir da obra de Miller (2018), em que momento distinguimos o trabalho de transferência, no tratamento analítico, da transferência de trabalho em outras práticas da psicanálise?
Para Miller (2018), a transferência de trabalho, quando nos ocupamos dos fenômenos sociais com perspectiva analítica, não se inscreve do um a todos: “Concerne, pelo contrário, como a psicanálise mesma, como a experiência analítica em todos os seus aspectos (terapêutico, didático) o laço do um com um ou com outro e não do um com todos” (MILLER, 2018, p. 181). Ao considerarmos os efeitos de transmissão de um instrumento virtual, o Cien Digital, contamos com o “despertar” que a transferência de trabalho induz em cada um, do que ali se escreve e se endereça a muitos, e a outros de disciplinas diversas. A experiência interdisciplinar cria a chance de que o incompleto em cada campo de saber sobre problemas comuns suscite o desejo de participar de maneira genuína. Um laço se faz pelo não todo que convida a uma aposta no novo.
De que laço se trata, então?
Miller nos esclarece, nesse artigo, sobre a indução como importante elemento da transferência de trabalho, firmando a ligação de induzir com “conduzir a”, “conduzir adentro”, no sentido aberto e não fechado de fazer um chamado ao outro. E deduz que “para induzir ao trabalho é necessário que fique alguma coisa por fazer”. (MILLER, 2018, p.182). Esse inacabado do trabalho, esse ponto de falta gera impasses, que induzem a transferência.
Não seriam os impasses ponto central da demanda de trabalho ao CIEN? Em sua versão conflitante, as portas das instituições se entreabrem aos analisantes quando os outros profissionais experimentam a divisão e o fracasso de um ideal. Brota, nessas circunstâncias, o endereçamento ao “saber trabalhar dos psicanalistas”, cuja transferência os analisantes acolhem, em ato, com a posição de saber faltante.
As experiências interdisciplinares do CIEN a partir daí ganham vida e, por meio do testemunho escrito dessa práxis, chegam às linhas do Cien Digital “estando em todos os lugares e em lugar nenhum”, com a firme aposta em um desejo de que as palavras escritas ressoem no íntimo do ser do leitor. Que ele possa reverberar ali, se inserir para fazer parte e contribuir, com o que o seu pedaço de real induz.