ISSN 2178-499X
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Editorial – Agosto 2014

by cien_digital in Cien Digital #16, Editorial

Imran Qureshi, Foundations, 2006

Maria Rita Guimarães

Caro leitor e amigo do Cien Digital,

Este novo número traz dois importantes registros da vivacidade com que o CIEN no BRASIL trabalha: a permutação dos colegas que participam de sua Coordenação e o convite a que todos compareçamos à IV Tarde de trabalhos que será realizada em 23 de novembro de 2014, em Belo Horizonte, por ocasião do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, com o título: Trauma e real: o que as crianças inventam?

A permutação dos Coordenadores nos proporcionou nova oportunidade de apresentar, mais uma vez, os princípios de orientação do trabalho do CIEN, através do pensamento de cada participante das Coordenações – tanto daqueles que dão passagem aos estreantes, como desses. Sob a forma de ENTREvista, a palavra de cada colega privilegia um ponto de orientação de nosso trabalho.

Essa orientação você igualmente encontrará no Argumento para a IV Tarde de trabalhos, no qual se reitera que seja um valor “fundamental que os adultos acolham e propiciem as invenções, que tornam possível à criança, uma a uma, um laço com o social.”

Trauma Blitz? Este é o instigante título do texto de Eric Laurent em Apresentação. Você alguma vez pensou no trauma como um livro, como uma música e outras variações? Trata-se de leitura obrigatória, e, certamente, você se aproximará à ideia da experiência traumática que porta a dignidade, o valor da marca singular, tal como nos ensina Mercedes de Francisco, na rubrica ENTREvista.

Trauma e real são objeto do Dossier sobre o cotidiano das crianças e adolescentes nas escolas, desarrimados de apoio para encontrarem um lugar no Outro. Outro da palavra.

Frank Stella, Anabel, 1997

Philippe Lacadée está na rubrica Hífen, com um texto inédito que nos permite o privilégio de, através do ensinamento que nos traz, irmos puxando o fio teórico sobre a questão da vida escolar e seu insuportável. Um fio que pode, não apenas iluminar os impasses da Escola na atualidade, impasses que os trabalhos dos LABOR(a)tórios nos contam, mas, sobretudo, nos permitir localizar, em muitas situações, os momentos cruciais, momentos de risco vividos por jovens e crianças. A perspectiva que a IV tarde do CIEN nos oferece é a de discutirmos qual a modalidade de resposta poderemos oferecer às respostas “inventadas” pelos adolescentes e crianças, após identificá-las. Certamente vamos nos interrogar igualmente sobre os professores – “docentes doentes” – que se incapacitam de seguir sua responsabilidade de adulto em relação ao mundo – para nos lembrarmos de Hannah Arendt -, que se exerceria na função de saber escutar o que veicula a palavra pronunciada por seu aluno. Marion, a adolescente do caso relatado por Lacadée comete suicídio. A professora Martine Lachance, do filme Monsieur Lazhar, igualmente encontra sua saída pelo ato, o único que não falha, segundo Lacan. No CineCien, você pode ler as reflexões suscitadas por essa ficção, desde o ponto de vista de nossas colegas psicanalistas que mantêm grande proximidade com o universo escolar. Não passou desapercebido – como se poderá ler! – que a história contada no filme, mais além da experiência do suicídio, mais além de tratar a complexidade das relações da intrincada rede que forma uma instituição, mais que a elaboração de um luto, busca responder à difícil questão de como afrontar, em nosso ponto mais familiar, mais íntimo, aquilo que nos é estrangeiro.

Desejamos que as ideias apresentadas nesse número lhe permitam o entusiasmo necessário ao trabalho do CIEN!

Desejamos-lhe boa leitura !

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IV Tarde de trabalhos do CIEN Brasil – Trauma e real: o que as crianças inventam?

by cien_digital in Cien Digital #16, Eventos

IV Tarde de trabalhos do CIEN Brasil

Na época atual, as práticas com crianças e adolescentes tendem a privilegiar a prevenção e o controle, visando evitar acontecimentos “traumáticos”. Dá-se ênfase ao maltrato, abandono e abuso, em que a criança é vítima, deixando-se, em segundo plano, as respostas singulares que cada uma pode constituir face ao real.

Muitas vezes, o controle dos efeitos produzidos por tais acontecimentos se faz por meio de protocolos e prescrições de condutas previamente estabelecidas, com o intuito de eliminar o mal-estar do vivido. Assim, seja no âmbito do jurídico, da saúde ou da educação, crianças e jovens, restam apagadas pela dimensão do acontecido e sumariamente identificados apenas por diagnósticos.

Ora, para Lacan, acontecimento externo e trauma são radicalmente distintos. Um acontecimento pode adquirir valor de trauma, mas isso depende da maneira como é subjetivado e da resposta pulsional. Sabe-se que um mesmo acontecimento repercute diferentemente em sujeitos diferentes. Para a psicanálise, no que concerne ao real, não há previsibilidade possível, o que funda para o ser falante a exigência de ter que se virar com a contingência e inventar os laços que o sustentem.

O CIEN aposta nas invenções singulares que as crianças e adolescentes constituem para responder ao real do gozo. Se a irrupção de um real está atrelada à surpresa, pode-se dizer que a aposta do dispositivo da conversação, nos laboratórios, implica em possibilitar a passagem da surpresa do impasse – ou seja, aquilo que não cessa de não se escrever –, ao encontro com a contingência de uma invenção, que traga a marca do cessa de não se escrever. Neste ponto, é fundamental que os adultos acolham e propiciem as invenções, que tornam possível à criança, uma a uma, um laço com o social.

A formação do analista faz-se necessária para que o dispositivo da conversação interdisciplinar se constitua em espaço de expressão do desejo e da singularidade, capaz de fazer vacilar saberes e significados impostos pelo discurso do mestre contemporâneo. Assim, a prática interdisciplinar do CIEN pode preservar o furo no simbólico, uma das versões do trauma, sob a forma de um “não saber”, como a boa maneira de se orientar pelo real.

Na IV tarde dos trabalhos do CIEN “Trauma e real: o que as crianças inventam?” esperamos colher “surpresas” de diferentes ordens, que apontam para diferentes formas de considerar o real em jogo.

Eixos temáticos:

  • Do impossível do impasse à contingência da invenção: as invenções das crianças e dos adolescentes;
  • Da surpresa do impasse à surpresa da invenção: as novas leituras das equipes interdisciplinares;
  • A formação do analista e a conversação interdisciplinar;
  • Da normatização à invenção: os impasses contemporâneos.

Envio dos trabalhos: até 20 de setembro, para brasil.cien@gmail.com.
Cada comunicação deverá conter até 4000 caracteres (com espaços), fonte Times New Roman, corpo 12.

Informações e inscrições: ipsmmg@institutopsicanalise-mg.com.br e brasil.cien@gmail.com

Valor da inscrição: R$ 40,00 (Inscrição CIEN + NRCereda R$ 85,00)

Comissão de Orientação e Coordenação CIEN–Brasil: Nohemi Brown (Coordenadora Geral), Lucíola Macedo, Rodrigo Lyra, Miguel Antunes e Maria do Rosário do Rego Barros.

Comissão Organizadora: Mônica Campos, Miguel Antunes, Lucíola Macedo, Janaína Dornas e Nohemi Brown.

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Trauma – Blitz

by cien_digital in Apresentação, Cien Digital #16, Sem categoria

Klara Kristalova, ‘The Catastrophe’, 2007

Eric Laurent

Trauma é uma palavra que nos vem da Renascença, como Sinthome. O trauma se escuta melhor quando ressoa sua origem grega: trôma, a ferida. Lacan nos fez entender que é a ferida irreparável que faz lalíngua sobre o corpo. É o traumatismo do nascimento à língua.

O esplendor da origem há muito tempo foi cantado em poesia e valorizado pela filosofia. O avesso desse esplendor é o sol negro do trauma e seus efeitos de atração estranha, de buraco negro absorvendo misteriosamente toda energia no sentido que Jacques- Alain Miller deu à energeia no final de seu curso “O ser e o Um”. Ele é o buraco que bordeia a iteração do Um. Ele organiza a topologia do espaço na qual se situa o que nós chamamos sujeito. O trauma tem também relação com o múltiplo. Há o trauma do qual testemunha o autista, há aquele que Michel Leiris e seu “reusement”1. No seu caso, o traumatismo é aquele da enunciação. No ato da enunciação, há nomeação latente desse primeiro núcleo traumático. O traumatismo não é simplesmente a inscrição de um choque, ele é também o buraco produzido pelo ato de enunciação.

A citação que me agrada sobre o trauma – ferida é uma variação sobre o que Lacan chamava o parceiro “devastação”. O homem-devastação, para uma mulher, esclarece a devastação que acreditamos conhecer muito bem entre a mãe e a filha, ou a devastação que pode fazer uma mulher visando uma outra. A marquesa de Merteuil escreve ao visconde de Valmont: “Quando uma mulher golpeia no coração de outra, ela raramente erra em encontrar o lugar sensível, e a ferida é incurável .”

Se o trauma fosse um livro, seria um livro ou uma novela de Kafka. No “Um Relatório para uma academia”, o macaco torna-se homem ,traumatizando seu professor de humanidade, aquele que se apresentava como mestre da linguagem dos homens.

Mauro Espíndola, enthes paterctomizados, 2009

Se o trauma fosse uma música seria “Elektra”, ópera de Richard Strauss escrita com Hugo Von Hoff-mansthal antes da Grande Guerra, tragédia em um ato de uma violência e de um horror sem igual. A filha traumatizada pelo assassinato do pai grita seu nome e sua dor do mesmo modo que um rugido animal. Ela se segura no lugar de sua dor de existir e aí se consome. Como dizia o texto de apresentação da última Ópera montada por Patrice Chereau neste verão, no festival de Aix-en-Provence, o Elektra dirigido por Esa-Pekka Salonen “Richard Strauss fez uma ópera violenta e súbita, com sua partição vulcânica, seu ato único de espera febril depois de violência irrepreensível, sua imensa orquestra também refinada que desencadeia, e suas vozes de mulheres que cantam o desespero de uma família decomposta. A solidão do indivíduo e a violência íntima jazem no coração do trabalho teatral de Patrice Chereau. Era natural então, para ele, entrar na corrida louca de Elektra, a mulher cujo grito é um canto”. Se lemos a homenagem que Brigitte Jacques-Wajcman endereçou à Chereau no Lacan, Cotidiano, não podemos pensar que ele não a fez deliberadamente.

Se fosse um filme seria Cidadão Kane de Orson Welles, pela última palavra que pronuncia Kane antes de morrer: “Rosebud”. Qual é o trauma secreto que vem assim se nomear? É o que um critico do filme americano chamou “o maior segredo do cinema”. Welles considerava que ele tinha feito tudo para – esvaziá-lo de sentido . « We did everything we could to take the mickey out of it ».

Resta esta pura letra “Rosenbud”. De onde ela vem? Entre todas as respostas propostas e que o artigo de Wikipedia condensa muito bem, dois se destacam. Em seu livro de 2002, Hearst Over Hollywood, Louis Pizzitola relata que era o apelido dado à mãe de Hearst pelo filho de um casal de amigos íntimos daquela e rival em seu coração de seu próprio filho. Gore Vidal, sempre bem informado dessas coisas, declarou que Rosebud era o apelido dado por Hearst ao clitoris de sua amante, Marion Davies. O que foi confirmado por outros. Então: traumatismo da mãe ou da mulher, no que acreditar? Nos dois.

Se fosse uma peça poderia ser “Os espectros” de Henrik Ibsen. Lemos aí o traumatismo das teorias da hereditariedade científica do fim do século, soberbamente expostas. Os espectros em questão são as aves da desgraça que se fundam sobre uma família decomposta quando todo o discurso está deslocado. No nível dos servos, um pai quer prostituir sua filha, mas em uma casa de repouso para marinheiros dignos. No nível dos mestres, o pai morto teve uma criança com a empregada, que se torna- dama de companhia da mãe, e o filho da família retorna de uma longa temporada no estrangeiro, de onde ele fugiu e contraiu sífilis, para querer se casar com ela. O pastor desconsidera todos esses segredos uma vez que ele está no coração da intimidade da família e é um antigo amante da mãe. A fogueira das vaidades consome a riqueza e as boas intenções da herança deixada pelo pai no incêndio do hospício. E no ano anterior, Thomas Ostermeier dirige a cena da morte do filho nos braços da mãe como um eco à morte incestuosa da mãe no “Minha mãe” de George Bataille.

Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães

 


Notas:
1 NT: Michel Leiris, no conto “A Regra do Jogo” narra sua experiência na infância ao emitir das entranhas, como riso ou grito: “reusement”. Essa jaculação vem marcar a primeira lembrança de sua vida e marca sua relação à felicidade ou mais exatamente sua relação à infelicidade. Um de seus brinquedos cai, um soldado de chumbo ou de papel mache. Rapidamente ele o pega e para sua alegria não tinha quebrado, ele então exclama: “reusement”! Alguém mais velho retruca: não se diz “reusement” se diz “heureusement”. Nesse momento sua alegria é cortada, fica pasmo e entregue a uma espécie de vertigem.
2 NT: Clássico da literatura libertina de Chordelos de Laclos, As ligações Perigosas
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A Bússola do sim e do não

by cien_digital in Cien Digital #16, Hífen

Andrew McConnell, Rubbish Dump 2.0, 2010

Philippe Lacadeé

Há um século, em 1914, Freud se interroga sobre o que desbussola “o comportamento da criança” perante seus professores. Propõe então sua bússola: esse comportamento se orienta e depende do que se passou no “quarto da criança”1 indicando que não é por isso “que se poderia tampouco desculpá-lo”. Freud designa assim um fragmento da vida de cada sujeito ligado a um lugar próprio. “Quarto da criança” designa especialmente na casa um espaço onde a criança encontra a presença do Outro parental, que se preocupa com ela, que abre um mundo de palavras graças às quais ela pode se identificar. Ela aí encontra igualmente o mundo dos objetos, objetos pulsionais da demanda oral e anal, e aqueles do desejo como a voz e o olhar. Esses objetos que Lacan nomeia objetos a, dependem de seu corpo e de sua relação ao Outro, são os objetos em jogo na pulsão, que se inscrevem no enodamento do corpo vivente ao dizer do Outro.

Se Freud pode dizer que o comportamento da criança faz sintoma, ele o é “enquanto signo e substituto de uma satisfação pulsional que não teve lugar”2, esse signo não é sem ligação com seu corpo em sua relação aos objetos da pulsão porquanto seu corpo é o lugar de uma satisfação possível. Freud insiste sobre a responsabilidade que cabe à criança. Esta concerne ao uso do gozo que faz do seu corpo e do seu pensamento. No seu quarto a criança cria seu espaço e nesse fragmento de vida ela apreende seu corpo como objeto de gozo, mas também pode se apreender como elemento à parte, querer se isolar e viver seu ser como objeto rejeitado.

O quarto da criança mudou

Mostrei em Vie éprise de parole como no início do século XXI, o quarto da criança mudou invadido pelos objetos do capitalismo pulsional3. A criança pode assim, muito cedo, ter acesso aos objetos gadgets4 que subvertem ou anulam a presença significante e desejante do Outro.

Eles “vêm no lugar do que nos falta na relação de conhecimento”. Para alguns, desde então há consequente modificação do lugar do Outro parental, da função de identificação, de transmissão, de falta, necessárias para a via do desejo e a relação ao conhecimento.

Se algumas crianças podem ser desbussoladas outras podem, de modo paradoxal, encontrar no uso desses objetos uma nova bússola; nós devemos, então, ser mais particularmente cuidadosos com o uso que cada uma faz disso.

Robert Heinecken, untitled

Sabe-se, desde Freud e Lacan, que por estrutura, a criança é submetida desde sempre como sujeito à pressão do objeto perdido, ao gozo desse objeto perdido. Tomadas então pela insaciável exigência de recuperar esse gozo mítico do objeto perdido no cerne de uma suposta experiência de satisfação, certas crianças se encontram presas, com seus corpos, na aposta sintomática desses objetos gadgets modernos que lhes seduzem articulados que são ao mais de gozo. Um querer gozar toma assim o lugar de um querer dizer e de um desejo de saber.

A criança sem o tempo da mediação do Outro

Aí onde reina a ausência do desejo do Outro a criança pode se reduzir ao silêncio do objeto que assumiu o comando de seu ser complementando sua falta a ser. Esse Outro, Freud o define como o complexo de Nebenmench5, o complexo do semelhante, com que Lacan introduz a dimensão ética do encontro com a presença e o tempo do Outro. Freud o precisa: “é desta forma, junto ao semelhante, que o homem aprende a reconhecer”. É com a presença do semelhante como objeto humano, o mais próximo dele, muito cedo e em sua intimidade que o sujeito aprende a reconhecer, ao mesmo tempo: “o objeto de satisfação”, “o objeto hostil” assim como “a única potência que confere segurança”, segurança de um discurso que se estabelece o mais próximo de seu ser. A criança conhece mais seu objeto que o Outro, ela conhece melhor o modo de emprego do objeto gadget que a respeito do Outro. É o caso, então, do encontro com o desejo do Outro, que o perturba, que agita seu corpo e faz sintoma. O computador ou o gadget suplantou a palavra do adulto. A criança não sabe mais o que fazer com a presença desejante do Outro, com o olhar e a voz do Outro. Mas é preciso assinalar que algumas crianças fazem justamente um uso que pode lhes servir para conseguir conhecimentos sem ter que passar pelo Outro6.

Da criança instrumentalizada à autoridade silenciosa do objeto

As relações com o que representa autoridade na palavra e a presença do humano são alteradas em proveito da autoridade silenciosa do objeto gadget. A criança moderna que se tornou adolescente corre o risco de não mais alojar, como o adolescente de Rimbaud, a verdade de seu desejo “em uma alma e um corpo”7 mas alojá-la como irmã do gozo no objeto mais de gozar silencioso onde ela pensa ter o gozo, enquanto pelo contrário, o objeto goza dela. É aqui que a relação com o objeto gadget pode ter valor de novo sintoma, introduzindo um comportamento aditivo, curto-circuitando a relação ao outro. Assim também quando o outro humano mais próximo lhe fala e quer lhe dizer o savoir y faire que ele mesmo extraiu de sua própria existência, ela se angustia ou tem medo, donde surgem os novos sintomas fóbicos que vão do pânico à fobia social. Mas também no lugar do sintoma como formação do inconsciente surge um estilo de vida em que predomina o gozo.

Jake and Dinos Chapman, Zygotic acceleration, biogenetic, de-sublimated libidinal model, 1995

O imperativo do gozo e o objeto como sintoma

A questão é saber como essa criança moderna – que não se sustenta mais de seu desejo, mas da solitária relação ao objeto –, toma conta do excesso de consumo que lhe barra o acesso ao saber e ao inconsciente. Os desejos tão solicitados são transformados em necessidades, em imperativos de gozo que respondem à gulodice de seu supereu sem que a criança saiba demandar ao Outro. Ela quer tudo e tudo já8. Ela se encontra, então, vítima de um supereu feroz que a empurra para querer gozar de tudo e para o qual bem e mal se equivalem.

Controle remoto na mão, a criança conecta diretamente seu corpo com o objeto gadget que já era interrogado por Lacan em 1974: “chegaremos a nos tornar animados verdadeiramente pelos gadgets?”. Lacan não acreditava, mesmo afirmando, não obstante, que “verdadeiramente não há nada a fazer quando o gadget não é um sintoma”9. Lacan evidenciava deste modo, a solução do gadget como podendo ser para o sujeito um novo sintoma; parece abrir uma via mais digna para o objeto gadget. Não se trata de rejeitá-lo com a nostalgia dos tempos antigos, mas compreender o uso que o sujeito faz disso. Se ele pode ter valor de sintoma, é porque o sujeito pode se servir dele como um ponto de apoio localizado, ou mesmo como suplência.

Como se orientar com a psicanálise para dizer sim e não a essa língua?

Eu mostrei em Vie éprise de parole e La vraie vie à l’école como o aumento, na cena do mundo, da pretensão do direito ao gozo como bem se quer, conduz alguns para além de toda culpabilidade ao não ceder ao imperativo do gozo do supereu. Isto vem fazer reinar em sua língua, que não se articula mais ao Outro, o imperativo do Um sozinho que diz o que ele quer, quando o quer, e tudo isto sem nenhum recalcamento nem culpabilidade.

Escuta-se, então, uma língua carregada de tensão verbal e que se pretende separada da língua dita, de sentido comum, vivida por eles como superegoica. Não se pode mais se encantar com a aparente “liberação” dos valores morais ou da palavra que fariam acreditar que, em nome da autenticidade, se teria o direito de dizer tudo o que se pensa. Percebe-se em seu avesso o novo império do gozo, seu o-pior do gozo, que para além da diferença sexual faz crer a esses sujeitos, que eles teriam também o direito de gozar do corpo do outro. Isso ilustra bem como para alguns é o empuxo-ao-gozo de seu corpo, o se gozar no corpo da língua que lhes fazem, paradoxalmente, esquecer que têm um corpo, aqueles que receberam justamente de sua relação à língua articulada.

William Cordova, “Some of US were gladiators”, 2006

Éric Laurent, em seu texto, A sociedade do sintoma10 interrogava a posição do psicanalista e propunha seguir a via aberta por Martin Heidegger em sua conferência “Serenidade”11: trata-se de localizar o uso do gozo que o sujeito pode experimentar a fim de evitar o impedimento de fazer valer seus próprios pensamentos. A questão essencial colocada por Martin Heidegger é, então, de saber como dizer ao mesmo tempo Sim e Não para o sujeito. Esse Sim e Não colocados desta forma desnudam a particularidade do inconsciente para cada sujeito e resultam também no triunfo do supereu. Obedecer ao Goza! é obedecer à sua ordem, não obstante, restabelecer o censor é anunciar as devastações que virão nos novos retornos que fará a pulsão. A posição do psicanalista com relação ao gozo é de enviar o sujeito à sua particularidade.

Existir na particularidade do sintoma de sua língua.

De acordo com Éric Laurent comentamos que o grande movimento da civilização, seu hedonismo de massa, fez desaparecer a particularidade do sintoma. Há, entretanto, variedades clínicas no modo em que cada um usa do insulto ou da provocação12.  Nós devemos então saber oferecer o lugar, a situação onde cada um encontrará a singularidade do caminho que lhe é próprio, saber ser o destinatário, falando com os jovens sobre aquilo que lhes parece ser um impasse, aí onde precisamente eles são tomados pelo empuxo-a-gozar do Um sozinho em sua língua13. Saibamos, no que parece gelificado em uma palavra, abrir pequeno furos particulares onde cada sujeito poderá se liberar da tirania do gozo todo ou de falar nessa língua de provocação. Trata-se de tomar posição colocando-se a serviço da língua, ao “dar um pequeno empurrão na língua”, a fim de que cada um se sinta trabalhado por sua relação a ela, aí onde pensava que tudo era estabelecido segundo sua medida.

O que se goza nessa língua não é sem relação com o que se goza no corpo desses adolescentes vindo indicar essa alguma coisa que tem traço e cruza a língua imediatamente. Esse movimento pulsional, essa imediatez verbal da sensação que anteriormente era reprimida pela língua articulada e que hoje não opera mais, se encontra de certo modo liberado e incidindo diretamente na vida do sujeito. Uma certa consistência da vida acompanhada de uma língua inédita não pode mais ser diminuída de modo autoritário exercido por um mestre cego ou fascinado, isso não opera mais e pode, ao contrário, implicar devastações ainda mais consequentes.

Michelangelo Pistolleto, World Globe, 1966-68

Marion

Marion, treze anos, insultada em seu Facebook e em seu celular por adolescentes de sua classe, na quarta-feira, 13 de Fevereiro de 2013, em vez de ir ao seu colégio e depois de ter consultado no Google o site Como se suicidar? decide se enforcar no cabideiro de seu quarto. É aí onde sua mãe a descobre mais tarde. O que aconteceu?

Nessa quarta-feira de manhã Marion diz à sua mãe Nora que está cansada e quer ficar na cama. Depois do café da manhã ela retornou para seu quarto. Na noite da véspera ela comunicou à sua mãe um sofrimento de amor e deu notícia de seu esgotamento. Nora a deixa então em seu quarto com o celular sob o travesseiro e sai para almoçar com uma amiga e seus dois outros filhos. Por volta das 13h30min a mãe se inquieta, sua filha não atende o celular, ela entra em casa se precipita no quarto da filha, arromba a porta que tinha sido bloqueada e a encontra enforcada, inanimada, presa a um lenço enroscado no cabideiro. Marion deixou duas cartas sobre sua escrivaninha. A primeira endereçada ao colégio. Aluna da quarta série, ela escreveu sobre o envelope o número de sua classe. Ela detalha seus sofrimentos, suas humilhações, os insultos ocorridos muitas vezes em plena aula e nomeia seus cinco algozes. “Minha vida virou de ponta a cabeça, ninguém pode compreendê-la”. Sobre o outro envelope ela escreveu “Minhas mil lembranças com vocês”, mas o envelope está vazio.

Os pais compreendem através de uma reportagem na FR3 que Marion havia se tornado a vitima de uns poucos e decidem apresentar queixa. Eles querem saber o que se passou no colégio e com os cinco alunos algozes. Segundo eles “esses jovens queriam eliminar sua filha”. E “não é porque são menores que eles devem ser desculpados”. Em seguida Nora procura os amigos de Marion para interrogá-los. Dizem-lhe para deixar as crianças tranquilas e ir fazer seu luto. Desconfiam dela, é tomada por louca. Os professores se calam. A diretora do colégio recusa receber os pais. “Nada permite pensar que Marion ia mal”.

Descobre-se que Nora queria anteriormente que sua filha mudasse de classe; desde a sexta série. Marion se deixava tratar de mongoloide e autista. Na quinta série um menino tinha endereçado um SMS: “Amanhã, na parada do ônibus você será morta”. Diante da demanda de Nora, o orientador tinha convocado o autor da mensagem que, ao lado de sua mãe, tinha balbuciado “Mas era por diversão”.

Geta Brătescu, ‘Vestigii’ (serie Vestigios), 1978

Nesse ano da quarta série ela se queixava de não poder trabalhar porque era tratada de tonta ou nerd quando ousava pedir silêncio em aula. No colégio era a balbúrdia, confusão, impostos por qualquer testa de ferro. Um aluno diz a uma professora: “você, eu te como”. Outro atira sua agenda no rosto de uma professora de história. No recreio lutam, e parece que às vezes bebem e fumam nos banheiros. O clima se apazigua e Marion se apaixona por um menino. Os pais a vêem mudar, ela escreve três mil SMS por mês ao seu amado.

Marion não se queixa mais de nada embora permaneça o alvo de um pequeno grupo de meninas e de um menino. Alban, que ela beijou um dia, depois rejeitou. Alban lhe tinha dito “a primeira vez será comigo”, mas ao se dar conta de que Marion ama um outro, se diverte com um grupo de companheiros a tratá-la de puta, diz que ela é gorda, não tem seios, é muito grave, a seus olhos ela é nada,  uma panaca.

É em seu quarto e sob seus lençóis que ela recebe tudo isso. Sem o conhecimento de seus pais ela criou seu muro Facebook. Sob o pretexto da perda de sua agenda, ela obtem outra, falsa, sobre a qual se atribui notas excelentes e um comportamento exemplar, que apresenta para seus pais assinarem, e outra, a verdadeira, na qual ela tem más notas e um comportamento deplorável com insultos e que assina no lugar de seus pais. Esse estratagema lhe permite não perder o enfrentamento aos outros.

Na véspera da tragéda uma simulação de incêndio impede Marion de partir. A quase totalidade da classe se agrupa em torno dela por uma banalidade. Com efeito, ela escreveu na parede sobre uma colega um dos comentários estúpidos que, tão frequentemente, leu sobre si mesma: “Lila, você é uma panaca, não gostamos de você”. Vaias generalizadas, Alban lidera a dança com outros pestinhas. “Você tem menos orgulho, hein?” Eles continuam pelos corredores “vamos arrancar seus olhos, te matar”. Do banheiro Marion chama sua mãe “não me sinto bem, eu queria ir para casa”.

Ela contata aquela que lhe disse: “se você voltar ao colégio eu te matarei”. Ela a tranquiliza, mas continua a lhe dizer “Você nos deixa tontos pra fazer do seu jeito, é convencida, vou lhe quebrar, você se acredita popular, tenta nos chocar e acredita que todos os caras te adoram”. Ela chama então seu namorado e diz “é melhor terminar o namoro para que os outros não te façam mal”. À noite ela se abriga nos braços de sua mãe, mas não lhe diz de sua ruptura amorosa e não diz dos pedidos de desculpas que deve fazer publicamente diante de toda classe para pedir perdão a Lila. “Ela não vai ter coragem de mexer com a menina, se ela aparecer eu vou matá-la!”

Quando informam a Alban a morte de Marion ele diz “Não é verdade, porra, não fiz nada, eu sou de jogar vídeogame”. No dia seguinte da tragédia é sua vez de receber ameaças de morte, seu pai decide então muda-lo de colégio. Sobre a página do Facebook intitulado Rip (Reast in Peace) aberta por seus colegas, as causas do suicídio não deixam nenhuma dúvida para eles e todos se dão conta de que o uso da língua injuriosa desarticulada do outro e seus objetos gadgets lhes fazem desbussolados. “O pior é que fizeram isso para brincar e hoje choram”.

Walter Nomura (Tinho), ‘Conversando com meus Mestres do passado’, oléo sobre tela, 2011

O efeito da linguagem e o mais-de-gozo

É disso que se trata em adolescentes como esses, de lhes oferecer entrar na linguagem mais do que em uma norma ideal14. A palavra é um dom da língua feita ao outro sobre um fundo de promessa, e assinala onde cada um, por mais pobre que seja, aceita se vestir de palavras para se ver amável e até digno de ser amado, servindo-se de seu sintoma. É aí que saberá o que deve ao Outro do símbolo com a condição de que lhe tenha sido oferecido o caminho certo, ou seja, que tenha sabido dizer sim à sua presença no mundo da palavra. Por isso o sujeito se realiza na falha onde surgiu como inconsciente, pela falta que produziu no Outro, seguindo a marca que Freud descobre como a pulsão mais radical: a pulsão de morte.

O supereu lacaniano é o rosto da pulsão de morte no qual são presos muitos jovens de hoje. É por isso que se busca estender o registro dos objetos a para além da lista natural a todos os objetos da indústria, da sublimação da cultura, a tudo que pode vir completar. São gotinhas de gozo, por vezes de pequenos nadas que dão o estilo de vida de muitos de nossos adolescentes e seu modo de gozo, lá onde reina a face do que Freud nomeia pulsão de morte.

É no momento da adolescência que chamei de o exílio (l’éxil) 15que se encontra esse furo no real sustentado pela divisão mais visível do corpo e do gozo. Com frequência é com esses produtos da civilização que a falta a ser do corpo procura se alimentar, se cortar, se ocultar, onde para alguns e cada vez mais a dívida simbólica foi devastada. A pulsão de morte se chama, aqui, a gulodice do supereu quando o símbolo não é mais o que se apresenta para marcar autoridade e devora o sujeito.

Como disse Éric Laurent, os adolescentes buscam também, como muitos sujeitos modernos, a presença do Outro entre eles16. O perigo de uma certa juventude sem qualidades e tragicamente sem memória nos remete ao que dizia Jacques Lacan em 196117 quando adiantava que a dívida simbólica pode não estar sob a responsabilidade de alguns sujeitos; desde então eles não se sentem mais responsáveis e se encontram “incumbidos de uma desgraça ainda maior desse destino de não ser nada”18. Não se desnudam à particularidade do sintoma para reinventar seu lugar no mundo.

Esses adolescentes diretamente conectados em um mundo imediato sem a mediação do Outro, se apresentam diretamente em ato e usam da escola para colocar em jogo seu desencadeamento pulsional no qual o se fazer ver e se fazer escutar ocupam a encenação de seus corpos. A pulsão de morte direta em estado bruto conduz ao pior de uma conduta desbussolada e fora de limites. É o que tornou a escola difícil para Marion, um espaço vazio à possível intervenção do Outro, resultando em fracasso a função do “ponto de apoio” do professor19. Nesse lugar é possível fazer valer o que é mais eficiente, mais do que se apoiar sobre um ponto ideal, com frequência rejeitado pelo adolescente, pois ele se orienta pela solução do ponto de apoio já encontrado, o sujeito com seu sintoma: “o insuportável do sintoma pode se transformar em ponto de apoio para que o sujeito reinvente seu lugar no Outro”20. “É na roupagem do discurso como tal que o sujeito pode se identificar e se apoiar para suportar o efeito de linguagem que é a angústia”21. As provocações linguajeiras, os insultos, os comportamentos desrespeitosos ou violentos são um modo particular de se situar na linguagem cobrindo toda a falta porque a linguagem do adulto, portador dessa falta, é muito angustiante e não cumpre mais a autoridade como antes. “A insolência não é mais que cobertura”22. Ela contém uma questão essencial que aguarda sua resposta, uma verdadeira resposta.

Para concluir Freud indica que a escola não deve esquecer a particularidade do sintoma, ela “não deve reivindicar para si mesma o lado cruel da vida” e “não querer ser mais que um lugar onde se goza a vida”, sobretudo quando é o sentido da vida, até o limite, que alguns adolescentes colocam em questão. Freud nos convidava a não recuar diante do sintoma “pouco satisfatório”, sobretudo quando, tal como o representa Marion, ele é a pantomima do teatro em sua versão da pulsão de morte.

Tours, 25 mai 2014

Tradução: Lucia Mello
Revisão: Raquel Veiga e Maíra Barroso Leo

 

 


Referências Bibliográficas
1 FREUD, Sigmund. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar. (1914) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Vol. XIII, p. 247-250.
2  FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e angústia. (1926) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Vol. XX, p. 95.
3 MEIRIEU, Philippe. Lyon, 15 de dezembro de 2008, de seu convite à apresentação de meu livro L’Eveil et l’exil em sua universidade, termo retirado de Bernard Stiegler.
4 LACAN, Jacques.  A Terceira, Dezembro de 2011, In: Opção Lacaniana , n° 62, p. 32. A tradução para gadgets nesta versão é bugiganga.
5 FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise. (1938) In: FREUD, S. Edição Standard Brasileiras das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 2006. Vol. XXIII, p. 157-220.
6 Jornal Le Monde de agosto de 2008.
7 RIMBAUD Arthur, « Il me sera loisible de posséder la vérité dans une âme et un corps. » Une saison en enfer in Œuvre-vie, Arléat., p. 453.
8 SPORTÈS Morgan, Tout, tout de suite, Paris, Fayard, 2011, p. 29.
9 LACAN Jacques, A Terceira, op. cit., p. 34..
10 LAURENT, Éric. A sociedade do sintoma. In: A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007. p. 163-177.
11 HEIDEGGER, Martin. “Sérénité”, Questions III, Paris, Gallimard, Tel, 1990.
12 LACADÉE, Philippe. Vie éprise de parole, “L’injure un des pics de l’acte de parole”, Editions Michèle, 2012p. 187-251.
13 LACADÉE, Philippe. La vraie vie à l’école, Editions Michèle, 2013.
14 LAURENT, Éric. op., cit.
15  LACADÉE, Philippe. L’éveil et l’exil , Editions Cécile Defaut, 2007.
16 LAURENT, Éric. op., cit.
17  LACAN, Jacques. O Seminário, Livro VIII, A Transferência. p. 295.
18 LACAN, Jacques. Ibid, p. 355: “Em suma, é a própria dívida onde tínhamos nosso lugar que nos pode ser retirada, e é alí que podemos nos sentir nós mesmos, totalmente alienados. Sem dúvida, o até antigo nos tornava culpados dessa dívida, mas ao renunciar à ela, como podemos fazer agora, somos tomados por uma infelicidade ainda maior, a de que esse destino não seja mais nada. Abordaremos esta questão no capítulo 6”.
19  Lacan, em A relação de objeto, p. 82, fala de “relação anaclítica”.
20 LAURENT, Éric. op.cit. Cf. Também J. Lacan diz do ponto de apoio ou apoio contra traduzido do alemão Anlehung para anaclítico, in Seminário, Livro IV, A relação de objeto, 1956-1957, Rio de Janeiro: Imago. p. 82
21 LAURENT, Éric. op. cit.
22 BENAMEUR, Jeanne.  Présent ? Denoël, 2006, p. 65.
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Permutação da Coordenação: Falando com seus participantes!

by cien_digital in Cien Digital #16, ENTREvista

Fernanda Otoni Brisset, Nohemi Brown, Siglia Leão, Lucíola Macedo, Rodrigo Lyra,
Miguel Antunes, Ana Martha Maia e nota da Comissão de Coordenação e Orientação do CIEN Brasil (2014-2016)

CIEN Digital: Você acaba de permutar o trabalho de Coordenação do Cien no Brasil. Este intenso período de dedicação ao CIEN resultou em avanços de trabalhos dos Laboratórios, testemunhado em realizações de eventos e publicações. No que lhe inspirou a seguinte afirmação de Judith Miller:

Jasper Johns, The Critic Sees, 1962

Fernanda Otoni Brisset: Essa feliz expressão Charybde em Scylla, utilizada ai por Judith Miller, remonta à antiguidade e, geograficamente, refere-se ao estreito de Messina que passa entre a ilha da Sicília e o sul da Itália. Esse estreito trazia muitos perigos aos marinheiros que ao tentar sair dos turbilhões de água formados pelas correntes de uma ponta do estreito, encontravam com o perigo dos recifes, na outra extremidade. Conta Odisseia que Ulisses para escapar do canto das sereias, jogou-se nesse estreito, caminho ainda mais perigoso, tendo que enfrentar dois monstros terríveis, descritos na mitologia grega como Charybde e ScyllaCharybde, três vezes ao dia, engolia e regurgitava quantidades enormes de agua, tragando para a guela adentro navios e peixes. Scylla que, aparentemente, era uma ninfa belíssima, escondia, da cintura para baixo, tentáculos enormes em cuja ponta guardava a cabeça de cães raivosos ávidos para devorar navegantes. Daí a expressão “cair de Charybde em Scylla” para indicar situações cuja presunção de escolher um caminho sem perigos pode levar do mal ao pior. O que seria então esse Charybde em Scylla contemporâneo ao qual Judite Miller se refere?

Hoje em dia, o Outro não funciona mais como bússola. O simbólico não é mais o que era, inaugurando a geração dos desbussolados, sem um Outro a qual se crer, cujo vazio de saber abriu nosso mundo à soluções além Édipo, orientadas pelo real. Contudo, a ironia do contemporâneo daí se deduz!

O desmantelamento das pedagogias tradicionais e outras ordens, efeito desse novo tempo, gerou uma nova desordem. Esta foi tomada como um perigo a ser evitado pelos gestores das populações que aliaram-se ao cientificismo e burocracias administrativas para perseguir um caminho estreito, guiado por ordens de ferro, a fim de suturar o vazio real do corpo do Outro que não existe mais. Fábricas de falsas verdades e procedimentos seguem, a todo vapor e sem cessar, visando tal intento. Avaliam comportamentos, ditam protocolos, prescrevem manuais de condutas perseguindo a pretensão de garantir um contemporâneo sem risco. A criança foi tomada como objeto precioso de intervenção e cuidado e protocolos de controle de qualidade exigiu amordaçar o seu dizer em prol do saber maestral que a antecede. Não tarde, vimos como tal direção vai cair no estreito do impossível, que leva do mal ao pior: a mordaça do dizer faz ratear o enodamento do corpo vivo à língua que o habita.

Dos numerosos laboratórios do CIEN-Brasil podemos extrair a forma singular com que esse contemporâneo recai sobre a criança e jovens modificando sensivelmente a forma como eles falam e vivem o que se agita em seus corpos, o que também afeta a prática e discursos dos que cuidam deles. É justo aí, que o CIEN encontra o seu lugar e instala as conversações para que cada um possa encontrar palavras para transmitir os impasses que a criança não pode sair sem falar, a não ser através de posições sintomáticas, acontecimentos de corpo e passagens ao ato que recobrem o seu dizer. As conversações estabelecidas pelo CIEN com as crianças e jovens, bem como com aqueles que cuidam deles, resgatam o valor do dizer da criança como um saber autêntico que lhe é próprio e porta a verdade da qual sofre o infantil. Hoje, esse dizer está em perigo, está cada vez mais desacreditado, em prol das falsas verdades que amordaçam sua língua.

O CIEN é uma resposta da psicanálise responsável por lançar o discurso analítico lá onde navegam outros discursos, a fim de abrir porosidades, arranjar espaços para que a língua se livre das mordaças tecnocientíficas e fale livremente, abertos à audição do inconsciente, para que este possa ter um destinatário, conforme comentou Jacques-Alain Miller. Por essas vias, os laboratórios do CIEN testemunham as transformações quando as conversações abrem os tampões dos ditos distúrbios de conduta para dar vazão ao dizer da criança que ali foi recoberto e que demanda ser escutado. Navegar por esses mares da linguagem é preciso, não há o Outro da garantia, e por essas veredas aguardamos, por esse furo vivo, a enunciação de um saber singular, autêntico, que sabe bem dizer a palavra que não pode ser dita toda, mas cujo trauma a criança carrega em sua língua e busca um destinatário que suporte o impossível de sua transmissão.

‘As publicações são formas de proteção desse dizer’, como ressalta Judith Miller, pela força com que guardam e transmitem o saber recolhido no dizer da criança sobre seus impasses, as soluções inéditas que o transformam e subvertem, ao tomar por guia a língua viva que pulsa nos corpos das crianças e jovens falantes. As publicações transmitem o que esse dizer ensina aos laboratórios do CIEN sobre as variadas e singulares formas de habitar um mundo falante, dando seu testemunho de que é possível dispensar o asilo num certo tipo de contemporâneo que procura os estreitos sem riscos e encontra, desde que o mundo é mundo, o caminho que vai de Charybde em Scylla, a mil por hora, leva do mal ao pior.

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Assepsia com respeito ao traço, à marca, à memória: defesa ao trauma

by cien_digital in Cien Digital #16, ENTREvista

Toz (Tomaz Viana), Seleção Natural, 2012

Entrevista de Mercedes de Francisco responde à Marga Auré

Marga Auré: Como você compreende o conceito do trauma?

Mercedes de Francisco: Minha primeira associação com o traumatismo é o neologismo de Lacan – troumatismo, que introduz o buraco no interior desta palavra. Esse buraco remete à impossibilidade da relação sexual e, ao mesmo tempo, aproxima-nos à marca, à letra.

A vulgarização do traumatismo levou a que, socialmente, ele seja considerado como algo de que se deva defender, do qual se tem que evitar :não obstante, toda uma série de respostas promovidas preventivamente são condenadas ao fracasso.

É assim que se rouba da experiência traumática seu valor de marca singular impossível de coletivizar.

Um fato em si mesmo não pode ser considerado traumático. Poderá tomar esse valor somente se para o sujeito se tratar do encontro contingente entre o gozo do corpo e a palavra.

troumatismo inaugura o campo do sinthoma – o que não cessa de se escrever – amarrando o “não há relação sexual” com o “há” disso que se repetirá todo ao longo de nossa vida.

Marga Auré: O que a psicanálise de orientação lacaniana pode propor diante de um traumatismo?

Mercedes de Francisco: Primeiramente a psicanálise de orientação lacaniana propõe não se guiar pela ideia de “para todos, igual”. Socialmente são catalogados os fatos que são supostos, em si mesmos, serem traumáticos e, a partir disso, os psicólogos especializados “em trauma”- desculpem-nos a ironia – vão ajudar as vítimas. De certa maneira elas são homogeinizadas sob o mesmo significante.

Nick Georgiou, Paper image, 2014

Estamos num tempo marcado pelo choque, pelo que chocante e isso pode ser confundido com o que, para a psicanálise lacaniana, é uma experiência traumática.

Walter Benjamin, apoiando-se em Freud, demonstrou-nos que, na experiência do homem moderno, a recepção de choques converteu-se numa regra e a consequência disso é uma tomada de consciência rápida, uma defesa face ao impacto, pois há um fluxo incessante de excitações que colocam à prova a tolerância dos sujeitos. Esse enorme aumento da tolerância frente aos choques que se produzem de maneira contínua, tem como preço esterilizar a consciência para a experiência pois o que é característico do choque em relação à experiência é não deixar traços, de se dissolver na consciência na medida em que é tolerado por ela.

Essa assepsia com respeito ao traço, à marca, à memória, é uma forma de defesa frente a uma realidade permanentemente preenchida de estímulos impactantes. Suportamos, cada vez mais, imagens desconcertantes que proliferam através da televisão, da internet, do cinema, etc … que nos provocam um sentimento desagradável mais que pode ser facilmente superado. Defendemo-nos em nos tornando insensíveis, mas, de certa maneira assim também perdemos nossa capacidade de viver uma experiência, de que o acontecimento nos deixe marcas, de que a memória nos enlace à nossa própria narração.

A psicanálise propõe uma experiência com a palavra, com a pontuação, com o “poético” enlaçado ao real. Ela propõe ao ser falante que não renuncie à dignidade da experiência traumática, isto é, uma experiência com o real que deixou um traço, uma marca.

Marga Auré: Como você compreende a frase de Eric Laurent que está na brochura das Jornadas 43 da École de la Cause Freudienne:

“Depois do trauma, é necessário reinventar um Outro que não existe e inventar um caminho novo que se desenha preferentemente pela via do insensato do fantasma e do sintoma”.

Mercedes de Francisco: Esta frase me sugere a relação com o acaso e a contingência. Na experiência traumática produz-se o encontro com a inexistência do Outro pela via do acaso, do imprevisto, do que não conhece nenhuma lei. A partir desse acaso, organiza-se, de forma contingente, uma lei que responde ao enlaçamento singular, – como se disse antes -, do gozo com o significante e que determinará nossa vida.

Do puro sem sentido do acaso organiza-se uma escritura sinthomática e, através da construção fantasmática, um sentido.

Jeff Koons, balloon dog sculpture, 2010

Esse momento inicial que é o trauma e ao qual se retornará a cada encontro em nossa vida que o evoque, é o que mais nos aproxima a esta experiência do real sem lei frente ao qual nos defendemos.

Para exemplificar esse último ponto, evocarei um encontro traumático, arriscado, vivido por mim em minha juventude. Frente a um mau encontro com outro desconhecido e violento, num momento de certa vulnerabilidade ‘alegre”do corpo, a resposta que, sem pensar, encontrei __“rogar-lhe” __ permitiu parar essa violência e apenas sofrer pequenas lesões físicas. Poderia dizer que consegui sair incólume, no sentido objetivo, mas é evidente que não foi assim, no sentido subjetivo.

Frente a este encontro imprevisível, arbitrário, sem lei nem causa, o primeiro que surge é uma pergunta: porque comigo?

As respostas que o sujeito dá a essa questão é a maneira de se defender frente a esse “real sem lei”, “sem sentido”, “sem causa”.

Essas respostas não são novas, elas remetem àquelas que o sujeito forjou no momento inicial traumático. Mas esse material já conhecido não me permitiu fechar a hiância que o “mau encontro” havia aberto. Podia reconhecer o insensato do fato e de minha tentativa de encontrar a explicação mas não era possível parar essa inércia.

Não imediatamente, mas depois de algum tempo, isso permitiu uma demanda de análise e, no percurso analítico, pode-se separar a escritura sinthomática que presidiu a vida do sujeito. “Agora”, em “cada ocasião”, essa escrita que marcou o corpo, em vez de encobrir, mostra o real sem lei, o buraco que se apresenta no interior do fato traumático.

Tradução: Maria Rita Guimarães
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A criança na hipermodernidade: vinhetas de um laboratório em formação

by cien_digital in Cien Digital #16, LABOR|a|tórios

Laboratório: A criança na hipermodernidade • Salvador (BA)
Mônica Hage Pereira

Sigmar Polke, Watchtower in the Eifel Region, 1987

Quando “os restos impossíveis de tratar” insistem em perturbar a rotina de trabalho dos profissionais, o que fazer? Quando estes não sucumbem à impotência e consentem em deixar a experiência em aberto, ali, no espaço vazio que se instala, uma experiência do Cien poderá acontecer.

Foi assim que o laboratório A Criança na Hipermodernidade encontrou um lugar. Atuando no ambulatório infanto-juvenil do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, como psicólogas da rede pública de saúde, recebemos uma série de demandas de “normatizações” de crianças e adolescentes, principalmente quando eles não correspondem aos padrões escolares esperados. No entanto, alguns desses “pedidos” nos chamam atenção de uma maneira particular. Foi o que aconteceu com João, hoje com 9 anos. Nesse caso, a escola da Rede Municipal de Ensino veio nos procurar, em busca de uma orientação pois não sabiam “como deveriam lidar” com aquele aluno que “já na primeira semana de aula, havia agido de uma maneira extremamente agressiva, dirigindo-se ao pescoço de um colega.”

A partir desse impasse apresentado pela professora e do acesso que a escola nos deu, decidimos ir até lá na condição de laboratório do Cien, e propor a atividade das Conversações com os diversos profissionais que atuavam com aquele aluno.

Para a nossa surpresa, fomos convidadas a participar da reunião (regular) dos professores com a coordenação pedagógica. No primeiro encontro, nos deparamos com profissionais bastante angustiados e com muitos impasses frente a sua prática no ambiente escolar. Após apresentarmos a proposta de trabalho do Cien – onde logo tivemos que esclarecer que não se tratava de uma conferência, mas sim, de uma Conversação -, passamos a escutá-los e perceber que estávamos diante de profissionais que se deparavam com o impossível da sua profissão, como disse Freud ao colocar as tarefas de educar, governar e psicanalizar, como tarefas impossíveis.

Jeremy Price, untitled

Rapidamente, pudemos perceber que a questão inicial que nos tinha levado até lá parecia ter se dissolvido em meio a tantas outras. Elas vinham em série, como uma avalanche de angústias, impasses, dificuldades: “A grande dificuldade com a qual nos deparamos diz respeitoà dificuldade no processode aprendizagem dos alunos”, disse uma professora. E porque?”perguntamos. As respostas foram várias e as falas iam se modificando: “os alunos que não querem estudar, perturbam toda a sala da aula…”; “mas esses representam apenas 20%”; “falta de respeito ao próximo”. “Os alunos são violentos, mas isso ocorre porque reproduzem o que vivenciam em casa, na família…”. “Os meninos ficam na rua, por falta de assistência da família…mas, de quem é a culpa? Da família?”“Não. As famílias também são vítimas…a questão está no sistema…na pobreza, na falta de condições sócio-econômicas, etc…o problema está no social”. “Muitas vezes, um menino não se alfabetiza e é cobrado em casa, pois tem que alfabetizar os pais…” “Eles dizem que virou otário quem gosta de estudar”. “O que importa é o ter, cada vez mais… ter celulares, tablets, etc”. E concluem que a escola precisa abrir um diálogo mais próximo com a família. Entre “a família” e “o sistema” pareciam, nesse primeiro momento, que buscavam um grande responsável por tudo aquilo que tanto os angustiava.

A palavra tinha sido franqueada, eles falavam, mas era preciso, como nos indica Laurent, estar advertido de que “apesar da conversação ser instalada pelo dom da palavra…o corte terá lugar e o gozo do blá-blá-blá ficará suspenso.” Era preciso intervir ali, para que cada um pudesse se escutar. Interferir para que cada um pudesse se escutar, mas “respeitando o impossível de dizer de alguns” foi um desafio para nós nesse primeiro encontro. O encontro foi finalizado com a frase de uma professora: “tem dias que tenho vontade de pegar a minha bolsa e ir embora!” Ao que pontuamos: “mas você ainda está aqui!” E completamos: “É curioso que em meio a tantos impasses vocês não desistiram! Estão todos aqui!” E com isso aproveitamos para marcar o próximo encontro e combinarmos que faríamos uma média de 5 conversações. A fim de delimitar um pouco o universo dos participantes, a coordenadora resolveu deixar que os professores pudessem decidir quem iria participar do trabalho. Para a nossa surpresa, aquela que nos disse da sua vontade de “ir embora”, quis retornar!

No segundo encontro, agora já com o grupo definido, éramos duas psicólogas do laboratório, cinco professores (dentre elas, a professora de João) e a coordenadora pedagógica. Iniciamos com o tema da agressividade e logo a professora de João colocou que o curioso é que ela vem observando que ele não é um garoto agressivo. E diz:

A partir daí foram surgindo diferentes sugestões sobre a condução do caso de João, quer fosse quanto a sua pseudo agressividade, quer fosse quanto ao seu complicado processo de aprendizagem. Iam e vinham nas considerações, até que concluíram que “não é que ele não soubesse ler”, o problema é que ele “não estava querendo ler”, devido às risadas dos colegas. Talvez as mesmas risadas que o tenham levado a agir de forma violenta ou agressiva, em algumas situações. Sendo assim, deixaram em suspenso a ideia inicial de colocá-lo em um reforço escolar, questionando seus benefícios e malefícios.

Saímos desse encontro nos perguntando sobre o nosso trabalho e querendo muito levar todo aquele material escutado na escola para a nossa reunião com todos os participantes do laboratório. E nos perguntávamos: será que estamos mesmo atuando de acordo com os princípios do Cien? No início, parecia que seria difícil sustentar esse lugar vazio, o do não saber; o do saber-não-saber. Mas começávamos a achar que tínhamos conseguido, e estávamos convencidas de que isso se dava devido à nossa posição analisante. O motivo principal que nos fez pensar assim foi quando pudemos perceber que, ainda que imaginássemos que seríamos convocadas a responder do lugar de mestre, isso não aconteceu…ou se aconteceu, conduzimos com tal fluidez que fizemos a palavra circular. O lugar que ocupávamos era, ao mesmo tempo, êxtimo e de fundamental presença, pois ele sustentava o vazio de saber. Os efeitos foram recolhidos no terceiro encontro.

Começamos nesse terceiro dia com a professora de João nos contando sobre a melhora dele: “descobrimos que ele sabe interpretar textos!” “Na verdade, ele sabe muito mais do queeu imaginava…” E completou: “quando ele quer.”Miller (MILLER, 2012, p. 8) coloca que as crianças “sabem sempre mais do que imaginam os adultos, estes já cretinizados por sua educação consumada”. A professora relata ainda que João tinha o costume de dizer sempre que “odiava” alguma coisa. “Ele sempre fica repetindo“eu odeio…eu odeio…” “Será que deveríamos perguntar a ele: “O que você não odeia?”, disse a professora. Digo a ela: “Parece que João vem lhe surpreendendo, não é mesmo”?

Waltercio Caldas, ‘Frases Sólidas’, 2006

O interessante nesse terceiro encontro foi que as professoras começaram a apostar na ideia de que manejos singulares, um por um, por mais que possam parecer difíceis de serem feitos, já que estão em uma sala com muitos, poderão produzir efeitos surpreendentes. Percebemos isso claramente na fala de outra professora que tinha um aluno com diagnóstico de TDAH, dado por psiquiatra. Ela diz: “não, ele não é hiperativo. O que observo é que ele tem dificuldades para lidar com as emoções, dificuldades nos laços afetivos e sociais…ele não sabe lidar com frustrações…mas ele não precisa de limitescomo fazemos com os meninos hiperativos. Ele precisa é de mais afeto. É preciso perceber a diferença…”

Ainda não concluímos o trabalho naquela escola. As férias chegaram, mas saímos de lá com o retorno já agendado! Do instante de ver, passamos ao tempo de compreender. Algumas reflexões podemos fazer. Como nos aponta Judith Miller (MILLER, J. 2007, p. 5) por mais formados que estejam os analistas…é próprio ao psicanalista saber que ele não sabe.” E o que percebemos no desenrolar das Conversações é que o fundamental para fazer acontecer essa experiência diz respeito à formação do analista, principalmente no que se refere ao seu percurso de análise. Saber-não-saber só é possível com um certo percurso analítico. Assim, como está no argumento da IV Tarde de Trabalhos do Cien, que acontecerá em novembro de 2014, em Belo Horizonte:

Para concluir, quer seja uma invenção da criança, ou dos profissionais que com elas lidam, o Cien aposta nas invenções singulares de cada um para responder ao real do gozo. A aposta nesse dispositivo – das Conversações dos Laboratórios, é uma aposta de que na contingência de um encontro, possa surgir a contingência de uma invenção, possibilitando assim, no um a um, um laço possível com o mundo que o cerca.

______________________________

Referências Bibliográficas

FREUD. (1925). Prefácio à Juventude Desorientada de Aichorn. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIX.

LAURENT. E. Segregación y diferenciación. Dossier – El Nino nº 6.

MILLER, J. A. A Criança e o Saber – CIEN Digital n. 11, 2012 (disponível em http://cien-brasil.blogspot.com.br).

MILLER, J. Apresentação do CIEN Digital n. 2, 2007. (disponível em http://cien-brasil.blogspot.com.br).

Argumento para a IV Tarde de Trabalhos do CIEN Brasil – Trauma e real: o que as crianças inventam? (disponível em http://cien-brasil.blogspot.com.br).

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“Num pedacinho azul do papel…” – trauma e invenção

by cien_digital in Cien Digital #16, LABOR|a|tórios

Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe” • Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia, Ana Cláudia Junqueira e Natalia Gomes1

A inexistência do Outro não implica na impossibilidade de o sujeito reinventar um lugar no Outro, como nos versos desta belíssima canção da música popular brasileira, cantados por um menino, em uma das conversações realizadas pelo laboratório A criança entre a mulher e a mãe. Uma vinheta relata como foi essa experiência de invenção para ele e para as participantes do laboratório.

O trauma toca o real. Através da figura do toro, Lacan mostra como o encontro com a linguagem é traumático, por estrutura. Laurent (LAURENT, 2002) circunscreve os dois lugares topológicos do trauma: como um buraco no interior do simbólico, ponto de real impossível de ser absorvido que o analista busca dar sentido para restituir ao sujeito seus laços sociais; ou como simbólico no real, referindo-se ao que há de real na linguagem, a não-relação sexual. Nesta perspectiva, o analista está no lugar do trauma como um parceiro que traumatiza o discurso comum, visando o surgimento do inconsciente.

Julian Schnabel, The Patients and the Doctors, 1978

A função do “analista esclarecido” (UDENIO, 2011) nos laboratórios do CIEN se articula a esse segundo lugar do trauma. Por ter avançado em sua análise pessoal, o analista contribui para que a Conversação aconteça sustentando o vazio pulsante (MAIA,2012) como ferramenta, na proposta de restabelecer um laço social possível para a criança e o adolescente. Nos tempos atuais, furar as etiquetas produzidas pelos procedimentos que buscam manter a infância sob controle, é um objetivo e um desafio, na medida em que as instituições pedagógicas funcionam sob o imperativo da vigilância.

Violência e não querer aprender

Ao chegarem ao portão, uma menina se dispõe a levar as participantes do laboratório à sala da Direção da escola. Pelo caminho, diversos cartazes: “Violência, NÃO!”, anunciando o que está para “ser visto”. Alguns metros antes, a menina aponta a sala e desaparece. Recebidas na porta pelas diretoras, a primeira cena: na sala, de castigo, um menino faz deveres e é surpreendido pelo grito de uma delas que descobre um vidro de adoçante derramado sobre os papéis, em uma das gavetas de sua mesa. Interrompendo as apresentações, dirige-se a ele: “tinha que ser você, não faz nada que preste!”. Inútil ele dizer que não havia mexido na gaveta. “Qual é a outra criança que está nesta sala, heim?!”

Alguns minutos depois, enquanto uma diretora permanece desinteressada e duas participam da entrevista, contextualizando a instituição, a segunda cena: dois meninos entram na sala. Um levado pelo outro. A mesma diretora grita: “eu não acredito, você está machucado de novo! Vocês estão vendo, é isso quase todo dia!” Um ferro havia furado a perna do menino, que já tinha um dedo da mão ferido. “Vem aqui, mostre este dedo para elas”. Quieto, o menino mostra o dedo inchado, enorme, em pus. Seu corpo, objeto de gozo, en-cena a violência que está por ali, em todos os lugares.

As diretoras se queixam da carga horária de trabalho, ausência dos pais, mau comportamento e dificuldade de aprendizado das crianças. De repente, uma se lembra do adoçante e diz para o menino ainda sentado, de castigo: “eu vou te dar um soco na cara!”. A outra completa: “devia pingar todo o adoçante no nariz dele!”.

“Eles não querem aprender a ler e escrever. Criamos um problema maior porque colocamos todos nesta turma que é agora o lixo desta escola”. A professora é chamada para contar o que se passa na sala de aula. Ela descreve a fragilidade de alguns alunos e sua dificuldade de lidar com esta turma que “não quer aprender a ler e escrever”, expressão que se repete como sintoma da instituição. Conta a história de Iuri, desamparado pelos pais desde muito pequeno, que apresenta grandes problemas com “interação e disciplina”. É justamente este menino que surpreende com esta canção.

Paule Tavera-Soria, 24 notes, 2012

Com a queixa e o impasse, é combinado que seriam realizadas de três a cinco conversações com a turma, dependendo de como se desenvolvessem e, ao final, com as diretoras e a professora.

Primeira conversação: a relação sexual não existe.

Entre uma agitação e outra, é difícil para as crianças escutarem e falarem sem reproduzir o que é dito sobre elas. Algumas interrogam o que o Laboratório faz ali. Outras, simplesmente, ignoram. A sexualidade é o tema levantado pela turma.

A agitação chega às cadeiras que as crianças jogam, violentamente, umas nas outras. Uma das participantes do Laboratório recorre ao discurso pedagógico, dizendo a Iuri, o menino mais agitado: “Você tem algum problema para ficar sentado?” Diante da indisciplina da turma, ela perde o controle: “Nós não viemos aqui para isso, estamos decepcionadas com vocês”. A conversação termina quando há uma briga violenta. Na porta, uma menina pergunta: “vocês vão voltar?”

Segunda conversação: quem detém o saber?

A mesma participante do Laboratório, apreensiva, solicita a presença da professora, o que inibe a turma. As meninas que “falam, falam…” ficam quietas. Os meninos que “gritam, gritam” resolvem falar e contam sobre o “bonde” (grupo formado só por eles), os apelidos – Mendiga é a feia, Adelaide (nome de uma “mulher louca”) é um menino – e sobre uma menina mais velha que destrói o bonde, “porque é forte”. A resposta da turma à tentativa de controle modifica a posição das participantes. Nas palavras de Miller: “É a criança, na psicanálise, quem é suposto saber, e é mais ao Outro que se trata de educar; é o Outro que convém aprender a se conter”.(MILLER,2012,p.9) Enquanto uma delas, por não conseguir se colocar de outra forma, neste momento, prefere não prosseguir, o desejo decidido das outras duas participantes sustenta o trabalho, a partir de então, de outro modo.

Terceira conversação: marcando a diferença

As participantes são recebidas com alguns abraços. Informam que uma não prosseguirá. “A Diretora paga vocês?” – é a pergunta que permite esclarecer a proposta desse trabalho e o lugar de cada um.

Iuri senta no colo de uma participante. Quando fica pesado, ela o acomoda a seu lado, mas ele logo levanta e se afasta da roda de conversação. O “grande desenhista” traz seus desenhos, como havia prometido. A menina mais velha diz que é difícil juntar palavras. Outra menina conta um segredo para as duas participantes e pergunta: “Vocês não vão contar para a professora, né?!”

Quarta conversação: invenções singulares

Muitos abraços, novas crianças e espaço para segredos e confissões. A Festa Junina se aproxima. O assunto, então, é pares na dança e paixões não correspondidas. As crianças cantam a música de uma novela da televisão brasileira:

Durante toda a conversação, diversos profissionais do colégio entram na sala. Um briga duramente com um menino e sai. Outros três chegam com pranchetas, fazem anotações e se retiram, sem dar uma palavra. Uma participante do laboratório se levanta e canta um Rap com uma letra sobre a conversação, um convite à invenção de cada um. Mais interrupções, bronca nos alunos. Iuri se aproxima e canta:

Ele não arrisca um Rap, mas toma a palavra, do seu jeito. Uma letra longa, com rimas complexas, é cantada por todos, na forma que conseguem.

Outra interrupção. Dois meninos brigam com violência e a Conversação é encerrada. As meninas não gostam. Uma canta: “gosto de ir à escola e estar com meus amigos, eu gosto de aprender brincandôôô!”.

Para concluir: “é a criança que interpreta o mundo” (MILLER, 2013, p.19)

Um período longo de greve e férias interrompe as conversações previstas. Todavia, a quinta não se realiza por impedimento do colégio. Segundo uma quarta diretora: “Pensei que a presença de vocês seria por um breve tempo”, diz ela se recusando a cumprimentar as participantes do laboratório.

As tentativas de enquadrar as crianças em patologias da infância estão de acordo com o atual regime de controle aplicado tanto às famílias, que são constantemente criticadas por negligência, quanto à criança que ora fica no lugar de ideal da civilização, ora de gozo. A direção se queixa, traz o impasse, mas se retira. Não se implica. As invasões na sala, vigilância que inclui o trabalho das participantes do laboratório, fazem parte da série de atos violentos que surgem de todos os lugares. Paixões mortíferas estão em jogo.

E as crianças não querem falar de violência, de aprender [“assunto muito chato”]. Querem falar de amor, de meninos e meninas. “Por que aprender é chato?” – o Rap da menina explica: querem aprender brincando. Esta experiência enriquece o trabalho do laboratório, principalmente porque as crianças ensinam como é possível fazer parceria com elas e, assim, acompanhá-las em suas invenções. Como o menino que conta, cantando, o que pode fazer com “um pinguinho de tinta” que, inesperadamente, cai “num pedacinho azul do papel” e se transforma em “uma linda gaivota, a voar no céu”.

 


Referências Bibliográficas
1 Atualmente, participam deste Laboratório Amanda Nunes, Ana Claudia Junqueira, Ana Martha Maia (responsável), Claudia Amoedo, Karina Guimarães, Marina Valle, Natalia Gomes, Paola Vargas, Rafaella Tavares Tinoco, Simone Monnerat e Vanessa Carrilho dos Anjos.
Campo de investigação: a sexualidade feminina, a maternidade, a criança e o adolescente, a família hipermoderna.
2 Claudinho e Bochecha. Música: Fico assim sem você.
3 LAURENT, E. Les traumatismes du savoir, Le savoir de l’enfant, Paris: Navarin, 2013
4 MAIA, Ana Martha. Um vazio pulsante. CIEN Digital 11. Maio 2012. Disponível em http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/
5 MAIA, Ana Martha. Um vazio pulsante. CIEN Digital 11. Maio 2012. Disponível em http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/
6 __________. Interpréter l’enfant. Le savoir de l’enfant. Paris: Navarin. 2013.
7TOQUINHO / MORAIS, V. – Aquarela é uma pérola musical que encanta diferentes gerações.
8UDENIO, B. A modo de orientación. Boletim Preparatório à 5ª Jornada Internacional do CIEN, n. 4, abr. 2011. http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/
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Do real ao efeito simbólico: do ato ao desejo de saber

by cien_digital in Cien Digital #16, LABOR|a|tórios

Hilma af Klint, De tio största, nr 3, 1907

Laboratório: Rekalque, aqui bate e volta • Belo Horizonte (MG)
Márcia Regina de Mesquita, Marcilena Assis Toledo, Paula Melgaço

O laboratório “Rekalque, aqui bate e volta”, ao propor a Conversação com adolescentes no espaço escolar, aposta nesta linha de trabalho que vem sendo desenvolvida no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN). Acredita-se que as crianças e os adolescentes falam e inventam diante de um real invasivo e traumático sendo possível uma mudança no sujeito. Segundo Brisset (2013) eles “falam, pensam, inventam moda por toda parte – na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais -, desde que haja pelo menos um dispositivo a escutá-los sobre o real de sua época e os impasses que lhe concernem” (BRISSET, 2013, p.19).

Apostando nos efeitos da circulação da palavra, realizamos a Conversação com adolescentes considerados agressivos pelos professores e gestores da escola. Durante a conversação, vimo-nos diante de algumas dificuldades que se apresentavam ao consentirmos com o “não saber” e permanecermos abertas às contingências. No primeiro dia da Conversação os adolescentes, cinco do sexo masculino e três do sexo feminino, se mostram muito agitados. Falam ao mesmo tempo, mexem uns com os outros, usam palavras agressivas, dão pontapés e batem nos colegas: falam “por meio de seus corpos, de seus sintomas” (BRISSET,2013,p.19). Ainda nas palavras da autora, “mostram, também, como são vivazes, quando querem escapar das garras do controle e fazem tumulto nas escolas, comportando-se como demônios, sempre que os mestres os tratam como ‘otários” ((BRISSET,2013.14).

Já na primeira Conversação, durante os intervalos das atuações dos corpos, eles começaram a se abrir à palavra, falando, cada um a seu modo, do real invasivo vivido na família, na comunidade e no próprio espaço escolar:

Os demais participantes também dizem do real que os afronta diariamente – da violência que vivenciam na comunidade como o tráfico de drogas, da violência da palavra entre eles na instituição, da violência da palavra de seus professores. Eles dizem se sentirem “maltratados” e “humilhados” principalmente diante da agressividade que vinha de seus colegas por meio dos apelidos, aqueles apelidos que tocavam no corpo como: Jonas: Chamar você de gorda.

E apelidos que tocavam na conexão do adolescente com o saber. Eles falam de seu insucesso no aprendizado e do constrangimento nas atividades escolares. O corpo do adolescente se manifesta quando o sujeito é colocado em xeque diante do saber:

Nessa Conversação, eles expressam em palavras o mal-estar diante das agressões sofridas. O corpo neste dia é contido pela palavra. Em outra Conversação, o mal-estar se apresenta quando os adolescentes se colocam também como os agressores e, então, dizem:

Nick Rands, ‘Hundreds and Thousands’, 2009

Nesse momento, surge a surpresa: o real que aparece nas Conversações, primeiramente atuado e expresso pelo corpo, agora bordejado pelo simbólico, vem apaziguar este movimento pulsional desenfreado que os adolescentes mostram através da agressividade. Agora, como efeito desse processo, o ponto de embaraço, de incomodo dos adolescentes, se apresenta como uma ação também praticada por eles mesmos. Daí, a surpresa ao se perceberem também como aqueles que maltratam e humilham.

A surpresa e o novo também tocam seus professores. No dia da devolução da pesquisa os professores falam sobre as mudanças daqueles adolescentes que participaram da Conversação. Até esse momento, para os professores, o nosso trabalho com os adolescentes não estava muito claro. Sabiam que se tratava de uma pesquisa e que, durante seis semanas, uma vez na semana, alguns de seus alunos tinham que descer para dela participar. Um dos professores diz: “eu não sabia a fundo”. Algo do inusitado provocado pelo não saber dos professores teve efeitos positivos.

Os professores solicitam, no início do trabalho, os nomes dos alunos  participantes da Conversação. Ao falarmos o nome de João, alguns professores se expressam com espanto, em coro “Nosso Deus”. A partir daí a palavra circula pelo grupo e alguns professores começam a falar das mudanças percebidas em João, como também de outros adolescentes. Joana, a adolescente “estourada”, “agressiva”, tem conseguido conter-se mais dentro da sala de aula. Jader, adolescente agressivo e com grandes dificuldades de aprendizagem, retido três vezes no sexto ano, apresenta mudanças: ”ele está mais tranquilo e consegue ler”. Ao sinalizar a tranquilidade do aluno, a professora aponta também para o bom trabalho que o professor de educação física tem feito com Jader.  Naquele momento o professor se surpreende e fala da alegria em escutar tal afirmação, além de ressaltar seu desejo em ajudar o aluno. Ele diz que não tem uma solução pronta “no hall na pedagogia”, ou seja, não há conhecimento teórico e nem manual didático que transmita ao professor o que fazer diante de tais situações. Por isso, muitas vezes, não sabia o que fazer e como fazer com esse aluno.

Outro professor, considerado bravo pelos adolescentes mas que também era amado pelos mesmos, surpreende-se a partir da fala da psicanalista que valoriza seu não saber. Na última Conversação com os alunos, ele não queria liberá-los.  Naquele dia, os adolescentes que apresentavam dificuldades de aprendizagem, inadequação de comportamento e eram agressivos, pela primeira vez estavam fazendo toda a atividade dada por ele em sala. Foi possível, então, para aquele professor e para os outros, constatarem os efeitos da palavra quando se abre espaço para sua circulação que ,através da escuta psicanalítica, pode promover mudanças. Nesse caso, não somente uma mudança de postura dos alunos em relação aos estudos, como uma nova posição assumida por alguns dos professores ali presentes. É importante salientar que a proposta não foi de entregar à escola alunos tranquilos, dedicados, ou seja, o aluno ideal. Um dos objetivos de nossa intervenção foi abrir um espaço para que os adolescentes buscassem outras saídas para lidar com o mal estar no contexto escolar. Saídas menos danosas, ao invés da agressividade que causava sofrimento tanto para o adolescente como para quem estava ao seu redor.

Destacamos, por fim, o caso de João. Durante as primeiras Conversações João solicita a palavra e a atenção a todo instante: corta a fala dos colegas e das pesquisadoras. Além disso, ao ser repreendido pelo grupo, ameaçava sair da sala e, para seus colegas, o melhor seria que realmente ele estivesse fora.

Na terceira Conversação inicia-se uma substituição sutil do ato pela palavra. João já não interrompia a fala dos colegas, não se mexia tanto e não se fazia de vítima o tempo todo, suportando ficar na sala até o encerramento. No entanto, demandava insistentemente ser escutado através de seus relatos que sempre traziam eventos chocantes. Considerando que a palavra opera transformações (SANTIAGO, 2009, p. 66-82), podemos pensar que João conseguiu aplacar a determinação pulsional do ato fazendo borda ao real através do simbólico ao falar de seus medos e aflições. Assim, ao fazer o bom uso do sintoma, usando agora a palavra e não o corpo, ele sai de um lugar onde aprender era algo de uma impossibilidade e se abre para o saber. Na última Conversação ele diz ter tirado “tudo nove” nas provas.

A Conversação propõe um espaço para o “bem dizer” que, em relação a João, favoreceu para que seu desejo de saber aparecesse. A esta possibilidade de mudança, soma-se também o desejo da professora de apoio em lhe transmitir algo. Ela começa acompanhá-lo mais de perto durante a realização da Conversação na escola. Os professores dizem que ele está mais calmo, menos agitado e aberto ao aprendizado. Destacamos duas falas distintas de João que podem ilustrar os efeitos apresentados pelo adolescente relacionados ao seu desejo de saber que pôde aparecer na medida em que o real começou a ser tratado pela palavra:


Referências Bibliográficas
BRISSET, Fernanda Otoni; SANTIAGO, Ana Lydia; Miller, Judith (Org). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. 206 p
________, Fernanda Otoni. Crianças falam! E têm o que dizer. In: BRISSET, Fernanda Otoni; SANTIAGO, Ana Lydia; Miller, Judith (Org). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Scriptum, 2013.p 11 – 19.
SANTOS, Tânia Coelho dos (org). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009, 192p
SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. Psicanálise aplicada ao campo da educação: intervenção na desinserção social na escola. In: SANTOS, Tânia Coelho (org). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.
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Da violência: docentes doentes

by cien_digital in Cien Digital #16, LABOR|a|tórios

Sonia Gomes, Torção, 2012

Laboratório Docentes doentes: deixem-os falar! • Belo Horizonte (MG)
Virgínia Carvalho

O tema da violência não é novo, mas tem se destacado no mundo contemporâneo, cada vez mais, como “pauta do dia”. Na célebre resposta a Einstein, sobre o porquê da guerra, Freud (FREUD,1933/1996, p.198) indica que se trata de um princípio geral que os conflitos de interesses entre os homens sejam resolvidos pelo uso da violência, assim como ocorre no reino animal. Atualmente, percebe-se um fascínio em torno desse assunto, como se pode observar no enfoque midiático. É o que destaca Miquel Bassols ao se referir à presença massiva do tema na contemporaneidade. Segundo o psicanalista, não se trata de uma “banalização do mal”, como na expressão de Hannah Arendt. Para ele, é possível verificar uma fascinação em torno da violência, como se ela fosse um “novo objeto que brilha com sua obscura presença no zênite social” (BASSOLS, 2014, p.1). E, nesse sentido, muitas vezes não se consegue distinguir mais de que violência se trata.

A violência”, com o artigo definido, como uma personificação desse objeto, está nos noticiários, nas conversas cotidianas, nos consultórios e, é claro, nas escolas. Violência nas escolas é um tema em que essa fascinação e obscuridade se apresentam com toda intensidade, o que leva os educadores a buscarem ajuda. E, na interface com a psicanálise, procuram auxílio para lhe dar o devido tratamento. Foi o que ocorreu em uma instituição escolar que nos procurou, solicitando capacitação sobre A violência.

Nossa primeira intervenção começou por deslocar o fascínio em torno do universal  do tema, tentando localizar o que se passava no âmbito particular dessa escola. “Violência: de que se trata?”. Essa questão foi o título dado ao trabalho, realizado a partir da metodologia da conversação. De que violência sofrem os educadores dessa instituição, e que os dificulta em sua tarefa de educar? – esse foi o ponto de partida para os cinco encontros que se deram com essa equipe.

“Não vou fazer nada porque não dá nada pra mim”; “não sei o que estou fazendo nessa desgraça de escola”

Ao permitir a circulação da palavra entre o grupo de professores, o que surgiu de violento não coincidiu com as manchas de sangue que extraímos cotidianamente nos noticiários. Falaram sobre mortes de alunos, professores sendo atingidos por livros, mas o que mais se destacou como sofrimento fora nomeado por eles de “violência verbal”: entre alunos; entre alunos e professores; entre pais e alunos e/ou professores; entre professores; entre professores e direção; entre a direção. Essa violência se apresentava na escola através das palavras “mal ditas” entre as pessoas. Para Lacan a violência é o que se pode produzir em uma relação inter-humana, quando não prevalece a fala.

A nomeada “violência verbal” trazia consequências importantes para aqueles professores, com sensação de impotência e questionamento de seu papel no processo educativo: “Aqui, só tomo conta de menino. Não consigo ensinar matemática”. “O que eu faço qualquer um pode fazer”. “A escola é uma mentira?”.

Os professores se queixam de que os alunos não os respeitam porque nunca “dá nada pra eles”, ou seja, não há nenhuma consequência. Acham que os alunos estão na escola por obrigação, por causa dos programas sociais da prefeitura que obrigam a presença. Mas, ao serem questionados sobre o motivo pelo qual eles próprios estão ali naquela escola, a resposta é a mesma: “estamos aqui obrigados”; “a gente falta muito – o número de faltas injustificadas que não dê nada pra nós”.

Os professores concluem que estão doentes: “docente pode ser substituído por doente”. Dizem que “ninguém quer estar na escola” e se questionam: “onde está o desejo? Não me formei porque era a melhor profissão do mundo, mas admirava essa profissão. Tinha professores que eu queria ser como eles”.

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Uma outra perspectiva começa a se abrir, o que lhes permite vislumbrar a possibilidade de se querer estar na escola: “Vi, numa entrevista, um traficante dizendo que o pó é para o filho dos outros. O filho deles está na escola porque o traficante não quer que o filho siga o mesmo caminho dele. Três C: cadeia, cadeira de rodas e caixão”.

A pergunta sobre o desejo abre também para uma constatação: “se não nos deixam falar, não deixamos os alunos falarem e acabamos sendo todos violentos uns com os outros”. “A gente não sabe conversar. Pensa que isso é fácil, mas a gente mesmo não consegue”.

“Aprender a falar com fino trato”

Os docentes, que se nomeavam doentes nessa escola, quiseram “aprender a conversar”. E o fizeram nas Conversações. Concluíram que só é possível aprender a conversar conversando e isso não significa que todos tenham que concordar com tudo. Pediram ideias uns aos outros sobre como utilizar o “fino trato” com as palavras, pois somente assim conseguiriam deixar de ser tão violentos. Ouvimos, após uma das conversações, uma professora pedindo desculpas à colega por ter interrompido sua aula de modo grosseiro.

Das conversações surgiram solicitações de encaminhamento para tratamento de questões subjetivas. Também um pedido de uma conversação com a presença da direção para exercitarem o “fino trato” e, ao mesmo tempo, levarem a prática da fala para a instituição.

Com Lacan, sabemos que a palavra faz marca, traumatiza. Afinal, “trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido” (LACAN, 1979-80, p.12, ) dois seres falantes não se entendem. Estar inscrito em um mundo de linguagem, servindo-nos dos significantes para nos representar por eles, não é suficiente para recobrir o impossível de ser dito – o real. Este escapa ao sentido, só restando ao sujeito elucubrá-lo, o que faz o inconsciente e, até mesmo, a linguagem (LACAN, 1972-73/1895, p.188). Pois, diante do trauma, é preciso inventar alguns “truques”, estratégias, para lidar com esse buraco (trou), como se vê no neologismo “troumatisme”, criado por Lacan (LACAN,1973-74, p.40) para designar o fato de que cada um inventa um truque para preencher esse buraco vazio e traumático que é o real, nome da falta de proporção sexual.

Um tempo após o trabalho com os professores ter-se concluído, soubemos pela direção que eles se nomeiam como “uma escola que sabe conversar para resolver suas dificuldades”. Nessa escola, o recurso à conversa foi uma estratégia importante. Henri Kaufmanner (2014) lembra que “a psicanálise é uma aposta de que mais além da irrupção da violência, por detrás do silêncio, é possível encontrar os elementos para um novo laço”. Essa também foi nossa aposta.

 


Referências
BASSOLS, M. (2014). Trauma nos corpos, violência nas cidades. In: Textos de orientação para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível em: http://www.encontrocampofreudiano.org.br/p/m3.html
FREUD, S. (1996/1933). Por que a guerra? In J. Strachey (Ed.& Trans.), Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 22). Rio de Janeiro: Imago.
KAUFMANNER, H. (2014). Por que a violência? InTextos de orientação para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível em: http://www.encontrocampofreudiano.org.br/p/m3.html
LACAN, J. (1957-58/1999). O Seminário, livro 5:as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_______. (1972-73/1985). O seminario, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_______. (1973-74/no prelo). O Seminário, livro 21: Les non-dupes errent. Lição de 19 de fevereiro de 1974.
_______. (1979-80/no prelo). O Seminário, livro 27Dissolution. Lição de 10 de junho de 1980.
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