
MESA DE ENCERRAMENTO
by cien_digital in Cien Digital #24
II Conversação CIEN América – A criança violenta e a dignidade do sujeito
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Um encerramento, uma abertura
Paola Salinas (CIEN Brasil) e Beatriz Udenio (CIEN Argentina)
Paola Salinas: Um encerramento e uma abertura. Vamos tentar extrair algo do que se trabalhou hoje intensamente, e tentar abrir alguns pontos.
Destaco, para iniciar, dois significantes que organizaram e orientaram nosso trabalho: a conversação, e depois de três anos de trabalho no CIEN Brasil incluo esse outro significante – a transmissão. Tem sido uma questão importante no trabalho da comissão do CIEN Brasil, e no CIEN Argentina, pensar como transmitir aquilo que fazemos nos laboratórios, essa possibilidade de afetar o outro, e transmitir a singularidade e especificidade do trabalho que o CIEN faz. Gostaria, então, de começar por esse ponto.
Para construir o encontro de hoje, utilizamos o dispositivo da conversação como forma de trabalho dentro da própria comissão de leitura e seleção dos textos. Lemos os textos previamente, discutimos o que cada um nos causou, o que cada um abriu como pergunta, e ainda, o que foi possível a cada um transmitir ou não. A partir daí, pudemos retomar a conversa com os laboratórios autores dos textos. Assim, a comissão se ocupou de tentar ler aquilo que era transmissível em cada texto, e devolver uma pergunta que visava destacar a intensidade e a preciosidade de trabalho, que muitas vezes não aparece no papel. Hoje pude rever alguns dos textos e perceber giros nas construções, especificamente no que diz respeito ao esclarecimento da função da conversação, de onde aparecia um furo, onde havia um impasse e poder dizer em que, a abertura, o vazio aberto nos espaços de conversação, permitiu a cada laboratório avançar.
Visamos para além de cada situação descrita, zelar pela transmissão do funcionamento que sustentou uma posição que possibilitasse a invenção em cada caso.
Ainda, gostaria de enfatizar alguns pontos trazidos hoje. Primeiro, em algum momento, uma mesa colocou a crença no inconsciente como um exercício permanente no laboratório, já que crer no inconsciente não garante que a hiância e o furo estejam abertos – é algo que pode se dar a cada vez ao se sustentar esse lugar.
Um outro ponto importante é o que fazemos em uma conversação. Hoje ficou claro que esse fazer acontece a partir de uma pergunta. Há um estatuto da pergunta no dispositivo da conversação do CIEN, como foi dito na mesa anterior.
Ao mesmo tempo, vimos que em uma conversação surgem significantes. O que se faz com esses significantes? Constatamos que não é exatamente a mesma coisa que se faz na experiência analítica. Vimos situações que trouxeram um fazer com esses significantes no ponto em que surgem para tamponar a dignidade ou a palavra, vimos o trabalho com esses significantes a partir dessa perspectiva da inter-disciplinaridade dos discursos e da conversação.
Para finalizar, gostaria de retomar a frase dita por Matías, adolescente que foi atendido no dispositivo, e é importante ressaltar que não priorizamos o caso clínico, mas como o dispositivo da conversação no laboratório redimensiona a prática dos profissionais e permite, dentro de um protocolo, uma outra forma de intervir. Há a dimensão do caso que pode aparecer ou não: em uma instituição de saúde é mais propício que apareçam os casos como “casos clínicos”, já nas escolas aparecem como outros tipos de casos – é o que esse dispositivo permite para que estejamos à altura de receber as crianças e adolescentes em cada lugar. Então, retomando a fala de Matias a respeito de uma internação para restrição de uso de drogas, ele dizia que não queria ficar internado, pois lá “ensinam só a ficar dentro e não a ficar fora”. Isso me fez pensar, “bom, e o que o CIEN faz com relação a essa borda do dentro ou fora”?
Podemos pensar o CIEN como a possibilidade de abertura de um espaço, de um lugar, de uma pergunta. É uma abertura que permite uma invenção e, com ela, a possibilidade da dignidade. O CIEN como possibilidade de abertura para que cada sujeito possa, nela, surgir: o professor, a criança, o orientador, o adolescente, a professora, o médico, a assistente social… e a partir daí um novo laço pode se fazer, ou seja, entrar. É uma entrada diferente daquela a que o Matías se recusa, é poder entrar de outra maneira no laço social.
Beatriz Udenio: Chegamos ao final desta Conversação. De todos os pontos destacados, tomarei somente alguns deles. Como em toda Conversação, algo seguirá nos empurrando a prosseguir.
O CIEN tem uma história que está presente em cada Conversação. Porque em cada Conversação se destaca algo do que, em seu momento, seguido de uma elaboração coletiva, seus assessores nos transmitiram – Alexandre Stevens e Eric Laurent – que nos acompanharam em muitas de nossas Jornadas e Conversações. Como Judith Miller, presente também em cada movimento do CIEN. Essas pontuações seguem vigentes, fazendo parte dos princípios nos quais nos apoiamos.
Mas há também a atualidade do CIEN, uma atualidade que conta com isso, mas também introduz e captura novidades.
Algumas dizem respeito aos laços que foram se estreitando entre o CIEN argentino e o CIEN brasileiro. Também, a presença de Ève Miller-Rose, Secretária do Instituto do Campo Freudiano, marcando um novo tempo, do CIEN e das Redes do Campo Freudiano. É o movimento que também assistimos nos laboratórios do CIEN, onde deixamos algumas coisas, pegamos outras, recuperamos algo de outro momento e depois esse impulso novo, essa novidade, essa surpresa, essa contingência que nos marca.
Quero dizer algo sobre o título que demos para a mesa de encerramento de várias de nossas Jornadas e Conversações: “Pontuações e perspectivas”. Juan Carlos Indart, assessor do CIEN, que nos acompanhou nas últimas Conversações americanas, dizia que ficava um pouco incomodado com esse lugar de ter que fazer pontuações e abrir perspectivas. Ele não pôde viajar desta vez, mas seu incômodo nos colocou a trabalho de tal modo que, quando pensávamos os títulos para cada espaço desta Conversação, surgiu este: “Um fechamento, uma abertura”.
Cada Conversação chega a um fim. Marcado pelo tempo e pelo que até ali foi possível dizer. Jacques-Alain Miller sublinhou isto em múltiplas ocasiões. Capturam-se alguns pequenos saberes e se perfilam movimentos por vir. Precipitamos algumas soluções, novidades, circunscrevemos impasses, perguntas abertas, e seguimos. Portanto, o título dado a esta mesa implica esse movimento: trata-se de um fechamento, mas dá lugar a uma abertura. Como frequentemente constatamos no trabalho dos Laboratórios.
O título do IX Enapol, que ocorrerá estes dias – “Ódio, cólera e indignação” – me convidam a situar dois afetos que vejo muito presentes nos trabalhos do CIEN.
Um, a alegria. Poderíamos escrever sobre a alegria do CIEN. A alegria que se notou em cada uma das mesas, por exemplo ao terminar a leitura dos trabalhos e começar a Conversação, quando aparecia o chiste, a piada e certo gozo da vida, que era o que se tratava de transmitir, pelo obtido ou, inclusive, dando conta daquilo que não se encontrava ainda em tal ou qual trabalho. Se ressalto isto, é porque com frequência nos deparamos com o efeito devastador dos discursos atuais, onde a burocracia produz o contrário à alegria. Lembro aquilo que Lacan mencionou em seus Escritos: “Todos sabem que sou alegre (…) Não sou triste. Ou, mais exatamente, só tenho uma tristeza (…) é haver cada vez menos pessoas a quem eu possa dizer as razões de minha alegria, quando as tenho”[1]. Não temos alegrias o tempo todo. Mas creio que poderíamos dizer que o trabalho no CIEN e estas Conversações são uns desses momentos em que encontramos alguns outros com quem compartilhar a alegria.
O segundo ponto ao qual queria me referir é o desejo. O desejo na dimensão de potência fecunda que lhe outorgamos na psicanálise, mas também em sentido mais amplo. Lembro que uma das professoras que interveio, fez referência àquilo que coloca em jogo em seu ato de ensinar. O desejo daquele que ensina nos ocupou em muitas ocasiões. No campo pedagógico se fala disso, nomeando-o como arte ou como vocação. Creio que no enquadre do CIEN, o desejo é crucial. Lembro com isso de uma referência do Seminário 10, A angústia, de Lacan, onde se refere ao desejo do analista e propõe a fórmula “te desejo, ainda que não o saiba” Te desejo, ainda que não saiba o que desejo, qual objeto estou acolhendo, que você desconhece e eu também.
Aí o desejo anda de mãos dadas com um não-saber. Não estamos distantes de situar esse não-saber como suporte dos trabalhos dos laboratórios, sustentado em um desejo, como vazio fecundo, justo ali onde o mercado oferece os saberes como mercadoria para preencher. Nos laboratórios, foi assinalado sob a forma de normas homogeneizadoras, protocolos, programas; novos objetos que o mercado lança para manter tudo quieto sob seu controle. O desejo como vazio fecundo, assim como na pureza da psicanálise se oferece a quem vem tratar seu sofrimento, nos laboratórios se constata em cada um daqueles sobre os quais intervém, de tal modo que cada um dos jovens ou crianças em questão possam encontrar um modo de transformar seu sofrimento em algum tipo de solução que lhe permita se fazer um lugar no mundo. Então, em seguida da alegria e do desejo, é preciso colocar o corpo.
Em todas as experiências que vocês narraram aqui e que nós compartilhamos, em certo momento chave da experiência, o ensinante ou o operador ou o psicólogo que a transmitia, fazia referência a um “colocar o corpo”. Do lado do operador, um modo diferente de se envolver, que lhe permitia, além disso, dar conta de certo júbilo constatado em tal ou qual sujeito, nesse novo modo de sustentar o corpo. Juan Carlos Indart sinalizou isso em Conversações anteriores: trata-se de algo que não se consegue sempre, mas em algumas ocasiões se constata. Um momento novo, no qual algum rapaz ou alguma criança, de repente, pôde se erguer e nomear-se de outra maneira; um instante de dignidade singular[2].
Há também, no modo de trabalho do CIEN e sua ferramenta fundamental, a Conversação, estilos de conversações, a variedade, não há uma norma para isso – como se escutou nos intercâmbios desta jornada. Se nós quiséssemos localizar critérios ou normas de como deve ser uma Conversação no CIEN, se “desnaturaliza”, não poderia continuar sendo o que é. Então também há essa variedade, que vocês poderão constatar ao retornar à publicação que se fará desta Conversação.
Outro ponto para destacar, que surgiu de vários, é o que acontece quando se abre a dimensão da palavra. Lembro aqui a referência de uma intervenção de Éric Laurent, onde lia os efeitos do trabalho de vários Laboratórios e dizia: que quando se abrem as comportas da palavra, é preciso saber muito bem quando e onde se deter – porque efetivamente há um limite com relação ao que se trata na singularidade de um caso em uma situação de uma experiência de análise e até onde chegamos com as experiências do CIEN. Isto é algo que esta Conversação também cuidou: até onde se provoca essa abertura à palavra, prudentes em seu alcance, respeitando os limites dessa intervenção[3]. Poderíamos dizer que esta Conversação de hoje nos ensinou sobre o que fazemos: facilitar, acompanhar, atuar como bons anfitriões, para que cada um tome a palavra e faça com sua palavra, com outros, alguma invenção.
Destacamos, então, a invenção.
Na mesma intervenção que mencionei anteriormente, Juan Carlos Indart nos dizia que com legitimidade poderíamos dizer que o CIEN se orienta pela noção do sintoma, tal como aparece descrito no último ensino de Lacan. Concordamos que é preciso trabalhar, investigar, para precisar essa perspectiva. Em sua aplicação ao trabalho dos laboratórios, trata-se de como resgatamos o constatável nas experiências do CIEN. Remeto-me a alguns momentos da Conversação onde se verificou como alguns dos jovens ou crianças de que falamos, fazem uma virada e saem do lugar de violentos, submetidos, deprimidos, fora de lugar, objetos dos protocolos, lá onde uma intervenção provoca o encontro com um desejo, com um interesse particularizado, com algo que sempre costuma ocorrer nas margens – tal como a psicanálise também nasceu. Um discurso nas margens, lugar a partir de onde sustenta sua capacidade de esburacar ou atravessar algo. Então, de repente, vemos emergir a imagem de um rapaz que pode se colocar de outra maneira frente a seu próprio sofrimento, às condições que lhe couberam na vida.
Paola Salinas: (…) isso toca a dimensão da transmissão, ou seja, para que consigamos que um “pibe” possa tomar a palavra dessa forma é necessário transmitir algo a ele, assim como é necessário que possamos transmitir uma lógica a quem nos escuta, para que não fiquemos em clichês. Só se transmite a partir de uma posição – é o que você diz – que leva o corpo. É extremamente difícil a cada vez fazer um espaço para uma invenção, é a cada novo laboratório e a cada conversação. Portanto, nenhum saber pré-estabelecido, nem o saber a respeito do CIEN. Isto é fundamental, um saber a respeito do CIEN não garante que consigamos produzir esses espaços colocados por Beatriz. Daí a importância da nossa discussão constante. O CIEN Argentina, a comissão de leitura, ou, por exemplo, quando a Vânia retoma a pergunta para a equipe que se ocupa do “Janela da escuta” sobre como a conversação retornou para equipe, é pra saber o que se transmitiu. Foi, voltou e causou o quê? Ou seja, para que a gente se implique – para usar o significante da implicância da professora – nessa proposta de trabalho.
Beatriz Udenio: Você mencionou a angústia em sua intervenção. A angústia está muito próxima do desejo. Aprendemos isso com Lacan: a angústia como antessala do desejo, a angústia dos operadores, a angústia do analista inclusive. E justamente, se conseguimos deslocar dali algo que está mal situado, como tampão, o objeto a, então esse vazio – que sustentamos com o uso do hífen (na inter-disciplinaridade) – torna-se um vazio fecundo.
Você evoca também a frase de Matías, que é genial: “não te ensinam a estar fora, te ensinam a estar dentro”. Nos remete a algo que fez uma marca no CIEN. Contamos, no CIEN, com uma expressão que um rapaz de um laboratório de Minas nos brindou, que Fernanda Otoni destacou e que tomamos como título de nossas Jornadas do CIEN do ano de 2013[4]. Quando o rapaz foi convidado a participar de uma conversação de um laboratório, respondeu: “me inclui, fora dessa”. Trata-se de uma inclusão topológica, ou seja, no CIEN também levamos em conta a noção de extimidade. Não devemos retroceder diante da colocação de algumas das noções da psicanálise, se podemos sustentá-las na prática que o CIEN nos ensina. Nos ensina sobre o trabalho com outros, nas margens, no hífen, nem dentro, nem fora. Freud dizia que o inconsciente tem estrutura de borda. Lacan retomou a Freud e dizia “a pulsão também tem estrutura de borda e é topológica”. Mas não seguirei por aí hoje. Me desloco e volto…
Plateia: (Risos)
Beatriz Udenio: … e também me incluo desde fora.
Para concluir, podemos dizer que é muito importante para o trabalho dos que integram os Laboratórios do CIEN poder sustentar esse trabalho que permite deslocar os protocolos e se mover um pouco dos lugares assegurados. É o que estas experiências nos ensinaram. Não somente perfurar, mas bordear, mover um pouco de lugar, abrir um espaço novo. Encontrar, a cada vez, a boa maneira de fazê-lo.
Paola Salinas: Agradeço a Beatriz e a todo o intercâmbio que tem se realizado entre os colegas do CIEN. Para encerrar, levanto dois pontos: Primeiro, nunca é demais ressaltar que não é necessário que seja o analista aquele que produz efeitos numa conversação do CIEN. Basta ser um participante atravessado pelo inconsciente, estar articulado ao inconsciente, o que, definitivamente, não é algo restrito aos analistas. A psicanálise tem o lugar de anfitriã – hoje nós ouvimos professoras, diretoras, sustentando esse vazio fecundo. Evidente que se trata de um dispositivo que não vai sem a psicanálise, sem dúvida nenhuma, mas ele coloca inclusive o psicanalista para aprender.
E, para concluir, gostaria de dizer da minha alegria com o trabalho na comissão, agradecer a comissão do CIEN Brasil. Estamos encerrando um momento, vamos fazer uma permutação no CIEN Brasil, e agradeço publicamente minhas colegas de comissão com as quais produzimos uma conversação constante nesses últimos três anos e principalmente no último um ano e meio em conversações diretas com os coordenadores dos Estados, e eles, por sua vez, conversações diretas com os laboratórios. Em algumas ocasiões a comissão nacional esteve presente nessas conversações. Colocamos o corpo nisso e a palavra sem dúvida, o que nos permitiu uma experiência e um aprendizado, a meu ver, surpreendente sobre o que não se sabe, e como se faz com isso. Agradeço a Vânia Gomes, do CIEN Rio, Mônica Hage do CIEN Bahia e Mônica Campos do CIEN Minas, que estiveram neste trabalho.
A partir de janeiro, Flávia Cêra passará a coordenar a próxima comissão CIEN Brasil. Agradeço ainda a presença da interlocução com a Fundação do Campo Freudiano, presença de pessoas importantes nesse lugar de êxtimo. E aqui, agradeço a Eve Miller-Rose, que para nosso trabalho no Brasil foi fundamental. Este trabalho seguirá porque ampliamos uma rede, uma rede de trabalho que já existia, e na qual cada um, a seu tempo, encontra um lugar. Essa comissão pôde encontrar um lugar e a seguinte assim o fará, no que concerne ao CIEN América, mas também à relação com a Fundação do Campo Freudiano que nos orienta e de alguma maneira nos permite ir de um campo a outro, com todo o estrangeiro e o que não se sabe acerca de lugares diferentes que temos que ocupar. Entonces, fue un gusto, ¡hasta la próxima conversación!
Beatriz Udenio: Até a próxima Conversação Brasil!! Onde for o próximo ENAPOL será a próxima conversação do CIEN América!
[1] Lacan, “Alocução sobre as psicoses da criança”, em Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
[2] Indart, J.C., Os laços sociais e suas transformações. Conversação Internacional do CIEN 2017 Mesa de Encerramento: Pontuações e Perspectivas. Buenos Aires, 12 de setembro de 2017. In: Cien digital n 22. Revisa do Cien Brasil. Disponível em: https://ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/Cien-Digital-22.pdf
[3] Laurent, Eric. “El don de lapalabra y sus consecuencias”, em Cuaderno 4, Cuadernos del CIEN, Buenos Aires, 2001.
[4] Udenio, B. “Argumento”, Cuaderno 7, Cuardernos del CIEN, Buenos Aires, 2014.
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SEGUNDA MESA DE CONVERSAÇÃO
by cien_digital in Cien Digital #24
II Conversação CIEN América – A criança
violenta e a dignidade do sujeito
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Coordena: Mónica Campos Silva (Cien-Brasil)
Anima: Flavia Cêra (Cien-Brasil)
Hernán Villar: Bom dia, quero agradecer o privilégio de representar a duas pessoas muito especiais que não puderam viajar nesta ocasião: vou ler o trabalho de um Laboratório do CIEN argentino formado por Victoria Aresca, que é assistente social e Vanessa Bernich, que é psicanalista.
O CIEN tem uma particularidade na Argentina e é que estamos integrados também como um departamento do Centro de Investigações do ICdeBa e sustentamos um seminário de investigação que este ano se chama “As experiências do CIEN”. É nesse contexto que mantemos uma viva interlocução com este e outros Laboratórios, já que os estados de trabalho dos mesmos são apresentados em nosso seminário.
Do “sem direção” ao “a todo ritmo[1]”. Apostas na
modulação do movimento
Laboratorio “Apuestas a la eficacia en los márgenes” (CIEN/Bs As/AR)
Victoria Aresca (assistente social) e Vanesa Bernich (psicanalista)
“Produzir a exceção não se faz por meio de grandes discursos sobre a excepção mas se trata de construí-la em ato.”
Éric Laurent[2]
A lógica institucional no Hospital para crianças nos confronta com um enquadre de normas, proibições e prescrições. Da mesma forma, o dispositivo de Urgências adiciona o imperativo de resposta imediata. Nesse cruzamento, como habilitar um tempo de espera para as intervenções singulares que incluam os tropeços como instância necessária? Um jovem nos interpela.
A poucos dias de completar 17 anos, Martin chega sozinho ao hospital, desesperado, com cefaleias e alucinações auditivas sem conteúdo preciso; somado ao consumo de sustâncias. Permanece na Urgência, em observação, onde é medicado e os sintomas cedem rapidamente.
Sem uma rede familiar que o acompanhe, seu primeiro tempo à espera de um encaminhamento para um abrigo fica marcado por um constante “ir e vir”. Expõe-se a situações de risco, imperando um empuxo cego, uma errância mais do que um percurso, uma sucessão de cenas marcadas pela expulsão e o desamparo. Enquanto isso, conhecemos um pouco de sua história da infância no Brasil, de pais desfalecidos e de percursos institucionais dos quais recorta modos de nomear-se sempre em relação à loucura.
Em uma de suas saídas precipitadas, confronta-se com a impossibilidade de sua mãe sustentá-lo; no retorno ele afirma: “me perdi”, “me achei só por momentos”. Inscreve-se uma diferença, cujo efeito se traduz no cessar das “escapadas”. Comprovação, em ato, da solidão e da perda; ponto de chegada que se faz possível ao ter podido suportar a partir da instituição “uma passagem ao ato circunscrita a um lugar”[3].
Inauguram-se movimentos, enraíza-se. Realiza atividades e arma circuitos pelo hospital. Chega sua carteira de identidade, grita “argentino” e pergunta quando poderá ir ao abrigo. Pede para contatar seu pai; também quer uma Bíblia. Isso ressoa em uma médica e ela lhe apresenta o “padre Cristian”, sacerdote do hospital, quem lhe oferece ser batizado. Aceita e diz “agora vou ter que fazer as coisas bem”. Sua presença se torna familiar. Há quem proteste: “será que ele acha que está num hotel?” e há quem consinta pequenas exceções, como o uso do computador pelas noites para entrar no Facebook. Por esse meio consegue contatar seu pai.
O laço com outros se desdobra ainda no vertiginoso da dinâmica da Emergência. A sua permanência lá não foi uma estratégia procurada, mas produto de discursos e práticas que confluem em um efeito de segregação. No entanto, orientados por pesquisar os arranjos que cada sujeito encontra, localizamos que nessa conjuntura Martin pode servir-se desse traço flexível do dispositivo de emergência para dar alguma forma possível a sua tentativa inicial de ir e vir.
Ou seja, por não ter um lugar onde estar na cidade, este garoto deambulava pelo hospital. O que fazia com que os médicos se queixassem: “o que esse garoto faz aqui?”, “ele acha que está em um hotel?”, “este não é o lugar para ele”. “Os protocolos sanitários existem para serem cumpridos, ele pode pegar alguma doença!”. Bom, toda uma série de questões que tornavam o trabalho muito difícil.
O pai começa a visitá-lo, mas é escorregadio com os profissionais. Quando algumas saídas com ele se concretizam, o pai chega tarde, discutem, desencontram-se. Ocasiões nas quais é preciso que as equipes suportem ser depositarias da sua raiva, que se decanta em desilusão. Expressa: “estou cansado de esperar e que não aconteça nada”.
Repara que “as vozes” aparecem quando está entediado. Ao conversar sobre aquilo ao que o conteúdo remete, se desvanecem; o que também acontece ao ler a Bíblia ou fazer algo que lhe interessa. Vão aparecendo outros modos de nomear o padecimento: entediado, cansado, zangado. Deixa de se nomear como “louco”.
Com cada vez mais clareza, sustenta que não quer passar as festas de fim de ano nem fazer 18 anos no hospital; reconhece que com seus pais não pode morar, mas que quer estar bem, “ser alguém para eles vejam a pessoa que ele é”.
A possibilidade de narrar-se ganha potência: conta que veio do Brasil há alguns anos e que desde então certas coordenadas nas quais tinha transcorrido sua vida foram abruptamente quebradas. Nesse momento seu pai, exaltado, decidiu que ele fosse morar com a mãe: “me mandou para casa dela de táxi e sem o endereço”.
Impõe-se operar com aquilo que insiste como afirmação desejante: a intenção de sair, estudar, trabalhar; a posição de aposta ameaçada pela inércia institucional. Compartilhamos essas questões na conversação do CIEN, onde se decanta a pergunta de como articular uma saída que o inclua e responsabilize.
Coordenou-se então seu ingresso num Centro Educacional que tem uma tradição de trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade, que responde rapidamente, convocando-o a tomar a palavra. Ele consente, entusiasmado, mobilizado. Em um fato inédito, o Hospital autoriza que ele possa sair todos os dias para ir à escola, e a partir do programa de Acompanhamento Terapêutico (AT) é possível alguém sair da instituição para acompanhá-lo.
Um novo obstáculo burocrático interrompe o curso do trabalho singularizado: é imposto o encaminhamento a uma instituição que não se encaixa no esperado para ele. Depois de um episódio de conflito em cujo contexto ele “escapa”, o seu reingresso é negado argumentando que ele “quebrou as regras”.
Desabrigado, ele volta à Emergência. Aposta-se em não o internar, sustentando sua atenção ambulatorial. Mas um dia ele chega sujo, confuso, diz ter dormido na rua e pede “me ajudem a encontrar um lugar para morar”. O marginal se torna mais cru. Tem 17 anos e 10 meses[4].
Martin retoma seu modo de estar no hospital, tranquilo e reflexivo. Publica no Facebook fotos na escola, com sua carteira de identidade e no pátio do hospital. Costuma adicionar a legenda “ATR” (em espanhol: “a todo ritmo”) e “digam o que quiserem”.
Sua equipe faz eco do desamparo que retorna dos circuitos formais e procura um lugar fora disso. Consegue-se o encaminhamento para um abrigo religioso. Propõe-se um “processo de adaptação”, reconhecendo a necessidade de um tempo lógico para passar de um lugar a outro. Embora seja um abrigo para maiores de idade, o diretor contempla a situação e o recebe.
Martin vai e vem sozinho do hospital ao abrigo várias vezes. Festeja seus 18 anos nos dois lugares. Diz que sente que “ter despertado” no hospital, que “aprendeu a ter sentimentos”. Um dia decide instalar-se no abrigo. Continua publicando no seu Facebook; uma foto o mostra em uma excursão com seus colegas, a intitula com a inscrição “tô por cima”.
Talvez se trate, como coloca Èric Laurent[5], de movimentos de passagem ao “regime da exceção”, entendida como “uma subversão do regime da proibição para todos”. Suspender os automatismos da pressa, suportar as irrupções e os vaivéns enlouquecidos até que advenha “ritmo”. Uma aposta ao despertar de um sujeito implicado na sua própria invenção.
Revisão da Tradução: Flavia Machado Seidinger Leibovitz
“Trevas” na educação?
Laboratório “Docentes-doentes: deixe-os falar!”
(CIEN-MG/BR)
Numa conversação com educadores, uma professora, Ellen, nomeou alguns alunos de “treva”. “Tem aluno que a gente reza todos os dias para ele morrer ou acontecer alguma coisa para que ele não esteja mais lá na sala” – essa fala foi feita em meio aos professores e não causou o estranhamento que esperávamos. Sentiu isso com Nicole, uma adolescente “agressiva” e “desafiadora”: “não consigo mais ter contato com ela por estar bastante esmorecida com toda a situação”. Qual seria a “treva” insuportável para essa professora, a ponto de ao mesmo tempo se “enfurecer” e se “esmorecer” diante dessa jovem?
Escuta-se muito sobre a cólera produzida, especialmente, pelos alunos indisciplinados. Não é incomum professores relatarem situações em que saem do sério, berram, jogam objetos, se indispõem com os alunos, por vezes chegando à agressão. Para Lacan (2005), a cólera “é o que acontece nos sujeitos quando os pininhos não entram nos buraquinhos”, quando, “no nível do Outro, do significante […], não se joga o jogo” (p.23, Seminario 10). A cólera indica uma ruptura e pode incitar uma resposta de violência, pois, como irrupção de um real, “a separação com o Outro pode levar a um curto-circuito onde a palavra falta ao discurso” (Site do IX Enapol, 2019).
Treva e esmorecimento
Se de um lado temos a cólera dos educadores, por outro, há o “esmorecimento” e o adoecimento diante dos casos considerados difíceis – aqueles que os angustiam, por não saberem o que fazer. O Laboratório realizou uma conversação sobre o tema e, nesta, gestores escolares apontam que sua função é a de sustentar os docentes para que não adoeçam. “Com isso, os gestores também adoecem”, o que se evidencia, inclusive, na alta rotatividade dessas funções, nas escolas de alguns dos participantes da conversação.
Não é raro os professores chegarem à sala da coordenação, em cólera, exigindo uma atitude. O pedido é o de retirar o aluno daquele contexto, tal como a ideia de Ellen, que embora “absurda”, não deixa de lhes ocorrer: “é a vontade que o problema desapareça”. E, em alguns momentos, a exclusão é a única solução encontrada, tal como ocorreu com Natan, expulso após uma orientação do Conselho Tutelar, porque a escola já não sabia mais o que fazer.
Natan batia nos colegas, nos profissionais e gritava dizendo “cala boca”, “deixa eu falar”. Não suportava o contato e vivia uma crise que se manifestava através de socos, chutes, beliscões, arranhões, mesas para o alto, furo na cabeça dos colegas com o lápis, etc. Crianças assustadas, professores procurando a gestão, indignados pelo que ocorria e a professora regente sem voz evidenciavam a dificuldade que representava esse aluno para a equipe, que adoecia diante da situação.
Seria Natan um “aluno treva” ou um aluno com uma questão psíquica a demandar urgentemente um tratamento para isso? “Pode ser”, diz Miller (2017), “que a violência da criança anuncie uma psicose em formação”. Na conversação do Laboratório, pareceu-nos que a criança mandava calar a voz que, por estar abolida do simbólico, retornava no real, tal como uma alucinação. Além de ressaltar a importância do tratamento à crise psicótica, inclusive com medicação adequada, chegamos a um orientador para as intervenções na escola, a partir da proposta de Miller (2017): diante da violência da criança, procede-se com doçura. Se o tratamento conseguisse conter essa crise, seria Natan um caso treva?
Caso treva?
Outro ponto levantado na conversação foi o de que um caso é considerado treva numa instituição e não em outra. Tal como Wallace, que chega na escola mordendo e batendo, mas que por não ter sido considerado treva, pode se colocar de outra maneira. Wallace vem com laudo de Transtorno de Espectro Autista (TEA) e com indicações de como a escola deveria proceder com ele, até mesmo sobre a expressão facial correta para se dirigir à criança. Diferente disso, a professora permitiu que o aluno a guiasse. Há uma ocasião em que ele deita no chão e ela se deita também, acompanhando-o. A intervenção da escola produziu efeitos tão importantes que, ao final do ano letivo, o neurologista questionou seu diagnóstico.
Por que um caso é treva em uma escola, mas não é em outra? Isso vai depender do sintoma de cada escola, que se refere a um modo de funcionamento próprio de lidar com as questões. Esse sintoma favorece algumas crianças ou pode se constituir como insuportável para outras. Poderíamos pensar, então, que o caso treva é aquele que questiona o sintoma da escola? Ou do professor? Seria quando a resposta sintomática, construída a partir da fantasia, não é suficiente para lidar com aquela situação?
Treva e angústia
“Treva é quando a gente não sabe o que fazer”, e, nesse sentido, seria interessante pensar que há “momentos treva e não alunos treva” – disse-nos uma participante da conversação. A pergunta, então, seria: o que fazer diante desses momentos? Seria a treva um dos nomes da angústia?
Lacan (2005) localiza que a angústia tem relação com o desejo do Outro, ao qual o sujeito tenta sempre responder. Que queres? Que quer ele de mim? E essa questão não se trata apenas de “que quer ele de mim?”, mas “que quer ele a respeito desse lugar do eu?”. Ele situa a angústia como um termo intermediário entre o gozo e o desejo e aponta que é “depois de superada a angústia, e fundamentado no tempo da angústia, que o desejo se constitui” (p.193). Frente a um “momento treva”, o que fazer? Lançar luz sobre o que não se sabe fazer ou sobre o modo com o qual se faz sempre e que se desestabilizou?
Se esses momentos trazem incômodo à escola, a ponto de que se busque eliminar a treva para que tudo volte a funcionar como antes, colocar a treva, esse “não saber o que fazer”, em questão, pode proporcionar uma reconfiguração na maneira de funcionar. Nesse sentido, o aluno treva pode trazer luz, a partir do momento em que explicita uma certa lógica. E Lacan (2005) nos indica que “só há superação da angústia quando o Outro é nomeado” (p.366).
Ao falar sobre a criança violenta, Miller (2017) pontua que há uma revolta da criança que pode ser sã e se distinguir de uma violência errática, aquela violência sem por quê. E essa revolta pode ser acolhida, afinal, o jovem se rebela contra o antigo para fazer surgir o novo. Com os “alunos treva”, poderíamos pensar que essa escuridão que se apresenta na angústia abriria o caminho para a dimensão do desejo, favorecendo uma invenção? Afinal, pode haver algo de produtivo nessa angústia se não a colocamos no armário (esmorecimento) e nem a deixamos tomar a cena, transbordando-se para a cólera.
Integrantes: Virgínia Carvalho (responsável pelo laboratório); Ana Lydia Santiago; Bruna Albuquerque; Danielle Vasconscelos; Fernanda Paolucci; Letícia Mello; Mariana Vaz; Paula Cristina Barbosa; Sabrina Rosa; Sérgio Porfírio.
Referências Bibliográficas
Lacan, J. (1962-63/2005). O Seminário, livro 10. Rio de Janeiro: JZE.
Miller, J.A. (2017). “Crianças Violentas”. In: Opção Lacaniana, 77. Abril de 2017. São Paulo, Edições Eolia.
Quando portas se fecham, Janelas se abrem:
Um olhar sobre um dispositivo clínico de Belo Horizonte
Laboratório “Janela da Escuta”
(CIEN-MG/BR)
Gabriela Antunes Ferreira e Maíra Carolina Alves Santos[6]
A metáfora da “Janela da escuta” coloca para os adolescentes, profissionais, familiares e para os serviços de saúde uma interrogação: é possível um espaço de escuta que tenha como premissa a singularidade e a liberdade subjetiva? Um lugar que desconstrua todo o modelo institucional vigente e que transgrida os protocolos impostos, a fim de construir espaços de escuta livre para adolescentes e jovens? Esta é a proposta do laboratório do CIEN “Janela da Escuta”, marcado pelo trabalho inter-disciplinar e pelas conversações de orientação psicanalítica.
A proposta do “Janela da escuta” pretende derrubar metaforicamente os muros e portas institucionais, que impedem a escuta livre de julgamentos e olhares universais sobre a subjetividade, para colocar no lugar dessas portas, janelas que devem estar constantemente abertas para a escuta livre. Ao que chamamos escuta livre, pretendemos nos referir à proposta metodológica do “Janela da escuta” que tem como base a concepção de que o adolescente é o especialista de si mesmo, ou seja, a equipe de atendimento aposta no saber do adolescente sobre si. Diante disso, cada participante da equipe ocupa a posição de aprendiz ao que se refere ao novo caso que se apresenta.
A partir dessa escuta é realizada a construção do caso, com os profissionais que atendem o adolescente no ambulatório e, dependendo do caso, com a rede de atendimento do adolescente junto às políticas públicas. Esta metodologia chamada “conversação” possibilita que os impasses que atravessam o caso possam ser escutados e que algo novo emerja dessa construção. A articulação com a rede territorial fomenta a abertura de uma janela da escuta do adolescente no seu território. Ou seja, atua como um multiplicador que visa o deslocamento de uma lógica do protocolo institucional universalizante para uma escuta singular no contexto das políticas públicas de atendimento ao adolescente.
O caráter inter-disciplinar do “Janela da Escuta” é uma marca presente em todo o percurso do adolescente no ambulatório. Neste sentido, as conversações clínicas acontecem sempre após o acolhimento do adolescente e em momentos em que há algum impasse na construção do caso clínico. As conversações contam com a participação de pelo menos um psicanalista que sustenta a aposta de que não há um saber constituído. O “não-saber” dá lugar ao vazio onde há a emergência criativa e singular que orienta cada caso. Os profissionais das diferentes áreas envolvidas na discussão se colocam num lugar de não saber diante do “novo” que se apresenta, e as soluções tecidas pelo próprio adolescente, assumem lugar central.
Trago aqui um trecho de uma música chamada “V. L. também ama”, do “Trilha Sonora do Gueto”, pois irei retomá-la a seguir. Diz assim:
“Cara é complicado essa vida
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
Boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente
Tendo que enfrentar toda manhã
E se preocupar com sua família
Amar é complicado, pros fracos não tem vez
Um dos vida loka vale deles tipo seis
Só tenho que eu mereço, humildade vem do berço
Amor é só de mãe, pois de outro eu não conheço”
Vida loka também ama!
A palavra dita somente encontra lugar e sentido quando escutada atentamente. Um exemplo de como transformar portas em Janela se dá todos os dias na cena do acolhimento. Em uma manhã de sexta-feira, um adolescente chega encaminhado pelo serviço socioeducativo, acompanhado de um agente e com um relatório detalhado de sua trajetória na criminalidade. Nesse momento, o adolescente chega e, em suas próprias palavras, diz que é visto como “criminoso”, “ladrão”, “pecador”. Informa que está vivendo os piores momentos de sua vida, confinado, diz que chora ao se lembrar da mãe, e a identifica como o amor da sua vida. Interrompe a fala para não chorar e afirma: “eu não gosto de chorar porque as pessoas pensam que eu sou fraco”. É dito ao adolescente que ali ele não precisa ser forte. Ele diz com os olhos marejados: “quem me vê não sabe o sentimento que carrego no peito. Vida loka também ama!”.
Lacadée (2011) nos adverte, a partir de um exemplo midiático – por sinal muito atual e presente no contexto brasileiro –, sobre os perigos da manipulação da língua para justificar a truculência do trato com o jovem. Os deslocamentos das expressões que nomeiam os jovens os convertem em “manchas a serem limpas” (p.13) – ou corpos matáveis – seja pelo cárcere seja pelo extermínio. Com isso, ao declarar Vida loka também ama, este jovem pontua sua indignação diante da maneira com que a sociedade descreve os adolescentes autores de ato infracional. Estes adolescentes sentem-se vistos como sem sentimentos, sem coração. Como se também não amassem, como se fossem cruéis. A escuta em interlocução ao que diz o jovem pode retificar sua posição em relação a estas qualificações, podendo naquele momento expressar livremente o que sente por sua mãe. Espaço improvável dentro do contexto institucional.
É interessante pensar no caso supracitado como a escuta abre janelas que apontam liberdades e possibilidade de avistar algo novo onde antes só se viam paredes. O “Janela da escuta” aposta que ao olhar para fora, além dos discursos que supõem algum saber sobre o adolescente, é possível manter uma janela aberta para a escuta e invenção de um novo lugar pelo adolescente. Janelas que se mantêm abertas apesar das portas fechadas dos protocolos institucionais e do próprio ideal de bem-estar de alguns profissionais das políticas públicas.
Referências:
CUNHA. C.F. A janela e a cidade – clínica contra segregação. Belo Horizonte: 2017. Disponível em: https://site.medicina.ufmg.br/observaped/wp-content/uploads/sites/37/2017/01/a-janela-e-a-cidade-observaped-30-01-2017.pdf. Acesso em: 07 de Julho de 2019.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio: Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de janeiro: Contra Capa, 2011.
MILLER J. A. Crianças Violentas. Opção Lacaniana, 77. abril de 2017. São Paulo, Edições Eolia.
Reconquistar como sujeito a dignidade de seu sintoma
Laboratório “Infância Errante”
(CIEN-RJ/BR)
Uma frase do Argumento proposto para esta 2a Conversação Internacional do CIEN América nomeia e nos inspira a escrever sobre uma conversação que realizamos a partir da demanda de uma professora. Apesar de já ter seis anos, Caio foi matriculado no Pré II da escola tradicional em que ela trabalha. É sobre eles de que se trata neste texto em que nos propomos a abordar a dignidade do sujeito.
Já na semana de sondagem, a professora percebe algo de diferente em Caio: uma agitação física desmedida o impossibilita a se centrar em algumas atividades; grande necessidade de contato físico com abraços e beijos a todo momento e com todos; desinteresse por atividades normalmente atrativas para a sua faixa etária; oscilações de humor; superexcitação diante de alguns estímulos e raiva e frustração diante de outros; respostas explosivas e considerável baixa autoestima. A coordenadora pedagógica informa à professora que Caio é agitado “porque tem TDAH”. Em tratamento medicamentoso, ele também é acompanhado por uma fonoaudióloga. Se esse diagnóstico traz consigo a “explicação” de seu comportamento, traz também dúvidas sobre a melhor maneira de trabalhar com ele sem encerrá-lo sob uma etiqueta.
A professora solicita, então, uma reunião com a família e somente a avó paterna comparece. Caio e o pai moram com ela e é ela quem cuida do menino que, muito dependente, não toma banho nem come sozinho. Agitado, corre o tempo todo, de um lado para outro. Quando está em “crise”, não quer falar, foge de todos e fica repetindo que “não faz nada direito”, que “não presta para nada”. A avó teme que, em sua “depressão”, ele faça alguma coisa consigo mesmo.
Conversação 1: há peças que se encaixam…
A professora conta que, após esta reunião com a avó, “algumas peças se encaixaram” e se pergunta como mudar o manejo com Caio e a turma, em seu “trabalho solitário”. “Por que solitário?” – pergunta um participante do laboratório. Ela explica: “quando ele grita e lança à distância qualquer objeto que esteja à sua frente, respondem a ele com gritos de igual ou maior volume, seguidos de um castigo, como a perda de alguma atividade prazerosa. Não há espaço na escola para minhas angústias e dúvidas”. Uma participante comenta que angústia e dúvida fazem parte do trabalho em qualquer instituição e propõe que nos encontremos para um segundo tempo da conversação.
Conversação 2: …e há as peças que não se encaixam…
Logo ao chegar, a professora relata que foi atravessada pela constatação de seu lugar de super-heroína, salvadora, como se as crianças não tivessem outra possibilidade senão suas aulas: “Parte desta minha solidão acontece por eu idealizar uma postura que não tenho como sustentar em minha condição de humana. Tenho um olhar sensível à infância e à aprendizagem que me diferencia dos meus pares, mas não sou melhor do que ninguém. Não promovo nenhuma grande revolução e meus resultados são os esperados e desejados pelo corpo docente.”
Após a primeira conversação, percebeu que seu olhar para a turma está diferente, principalmente para com Caio: “Ainda mantenho a postura de lidar com todos e cada um, mas tenho buscado um certo distanciamento emocional para um efeito pedagógico mais imediato.” Observa dois novos comportamentos inusitados de Caio:
(1) frequentemente, ele pergunta sobre sua família: Tia, sua família é grande? Você tem irmãos? Sua família mora toda junta? Como é o nome da sua mamãe? Um dia, pergunta o nome do seu pai e fica muito consternado ao saber que ele já havia falecido. Onde ele está? “Ele já virou estrelinha.” Ele já morreu? Poxa, vou te dar um abraço pra você não ficar triste.
(2) por vezes, ele se coloca ao seu lado e, de repente, lambe o cotovelo dela. Na primeira vez que isso aconteceu, pediu que parasse, deu uma ‘bronca’. Ele justificou: estou dando beijinhos. Outras vezes em que é pega de surpresa, ela não sabe muito bem o que fazer, tenta ignorar seu comportamento e chama a atenção para outra atividade em curso.
Momento de concluir: …e possibilitam um lugar no mundo.
Na Jornada Internacional do CIEN de 2013, em Buenos Aires, Éric Laurent estabeleceu uma diferença entre o mundo da proibição, centrado em normas e regras, e o mundo da exceção. Comentando o trabalho que apresentamos sobre o rapaz que queria se tratar, mas não queria deixar a droga, Laurent usou um termo que tem nos orientado no trabalho com as instituições: a “interdição sob medida”, que pertence ao regime da exceção, mas não está completamente fora do mundo da proibição. Em suas palavras: “Há sujeitos que, por razões múltiplas, não têm lugar neste mundo. Então, para se inventar um lugar que possam suportar têm que passar por suas condutas de risco e calcular como fazer parte desse impasse das regras, a solução que possa incluí-los”. (p.16)
Sobre Caio, ressaltamos um efeito importante sobre “inventar um lugar”, o que chamamos de sua “autonomeação”. Certo dia, ele pergunta para a professora qual o nome dela. Ela responde e, em seguida, Caio pergunta se poderia chamá-la, a partir de então, por seu nome e não mais de “tia”, como costumava chamar. E assim ele faz. Dias depois, em um evento da escola, pátio lotado, ele levanta a mão para fazer uma pergunta. Mas antes de colocá-la, Caio surpreende: ele se apresenta, de pé, dizendo seu nome completo.
Participantes: Ana Martha Maia e José Alberto Ferreira (psicanalistas, responsáveis pelo laboratório), Ana Lúcia East (psicanalista) e Tatiana Pantoja (pedagoga).
Referência bibliográfica:
Laurent, É. “A cada uno, su ponto de excepción”. Cuaderno 7 – Centro de investigaciones del ICdeBA: Me incluyo, desde afuera. Buenos Aires: Instituto del Campo Freudiano. 2014.
Invenções “no fio da lei”
Laboratório “Al filo de la ley”
(CIEN – Bs As/AR)
A presente vinheta surge da experiência recolhida em um centro sócio comunitário localizado na região sul da grande Buenos Aires. Trata-se de uma equipe interdisciplinar que atua a partir de ofícios judiciais, quando um juiz ordena uma medida (Suspensão de julgamento a prova).[7]
O nosso laboratório se origina a partir do encontro entre a psicóloga da equipe com um psicanalista integrante do CIEN, a quem ela consulta para se orientar em um trabalho de tese. O material que ela apresenta, estruturado no estilo do discurso universitário, alterna-se entre a queixa e o desânimo, diz sentir-se culpada e frustrada por não poder fazer praticamente nada pelos meninos, que nada funciona…
É que a intervenção desta equipe interdisciplinar é limitada no tempo e no seu alcance, e supõe a implementação de uma série de medidas que seguem um ideal de reinserção social normativizante, por meio de dispositivos muito limitados quanto a recursos que nem chegam perto dos objetivos que impõem, afundando amiúde os profissionais intervenientes e também aos jovens destinatários dessas medidas em sentimentos de desamparo e frustração, que muitas vezes retornam como violência e desconfiança: “recebemos sempre uma urgência impossível de resolver”, “temos que explicar sempre o que não somos”, “quando conseguimos que um menino confie em alguma de nós, temos que encaminhá-lo para um lugar que não está disponível, ou tem que suportar meses de lista de espera”, etc.
O encontro com as publicações do CIEN e o convite ao trabalho entre vários precipita a montagem de um laboratório, quando outra integrante da equipe, uma assistente de menores, se junta à conversação. O laboratório se constitui a partir da necessidade de pôr a trabalho as dificuldades derivadas das situações assinaladas e muitas outras, e de localizar as tensões próprias de uma tarefa que se situa nos limites do impossível: como estabelecer as coordenadas que o discurso jurídico denomina “a responsabilidade subjetiva” dentro de um enquadre institucional que muitas vezes a violenta em nome de regulações burocráticas?
“Fazer-se dócil à língua do outro” não implica “obediência devida”
Qualquer enquadre normativo porta em si um impossível.
O paradoxo das regulações burocráticas é que ignoram que qualquer questão relativa ao subjetivo se produz por fora dos protocolos e, se há alguma eficácia possível, ela aparece “fora de lugar”.
A situação que vamos apresentar ilustra muito bem o que poderíamos chamar de “a eficácia nas margens”.
Em espanhol tem um dito popular que diz: “hecha la ley, hecha la trampa”[8]. Vamos ver de que maneira uma “armadilhazinha[9]” permite nesta situação evitar cair na armadilha dos protocolos.
“O bebê da mamãe”
P se apresenta no centro, em companhia de sua mãe, com atitude prepotente e despótica.
Dirige-se à equipe com arrogância e responde zombeteiramente às perguntas que lhe formulam (motivo do roubo), afirmando que o evento que se lhe imputa ocorreu há 3 anos.
Ao recebê-lo, ele se apazigua quando esclarecem que não se tratava de um interrogatório policial.
P oscilava entre duas posições: por um lado, atribuía-se seus delitos com desembaraço e veemência; ao mesmo tempo que negava qualquer responsabilidade subjetiva diante dos fatos da acusação: “eles me levaram por engano, por uma troca de roupas”.
Enquanto isso, sua mãe se comporta como se fosse a irmã e nem se altera diante do relato das “façanhas” do jovem, naturalizando assim o consumo de drogas e a atuação delituosa.
O menino e sua mãe falavam como se fossem portadores de um único discurso, idêntico, sem fissuras, completando-se nas frases, um ao outro, e às vezes respondendo em coro. Por exemplo:
— Dados do pai?
— Não existe, não precisamos dele.
A advogada assinala essa modalidade discursiva, diante do que o menino responde com tom irônico e redobrando a aposta: “Sim, eu sou o bebê da mamãe”, apelido que se instala para nomeá-lo entre os profissionais do centro.
O curso do que parecia ser um roteiro fatal, que oscilava entre a zombaria (ele chegou a exibir orgulhosamente uns tênis de duvidosa procedência) e a desconfiança diante dos membros da equipe, deu uma virada fundamental em um segundo encontro, quando P comparece sozinho e declara, desconsolado, ter sido abandonado por sua namorada, que o deixou publicamente exposto e ridicularizado nas redes sociais.
Aquele menino valentão e prepotente se apresentava agora tão frágil e tão vulnerável quanto qualquer mortal diante das desventuras do amor… Em face da humilhação pensa na vingança, uma saída violenta: é convidado a falar sobre como se sente, cai no choro.
Foi preciso alojar nesse momento a angústia de P, que a partir daí começa a comparecer sem hora marcada para ver as integrantes da equipe. Este movimento espontâneo, acolhido pelos que o recebem para falar, está fora do que o Programa permite. Mas é justamente ali onde se abre uma possibilidade para o sujeito. É ali quando manifestou recursos que lhe permitiram dar-se um tempo para assumir e respeitar a decisão de outro, com a consequente dor da perda, uma nova posição em relação ao amor.
Para a equipe isto significou uma aposta: ir além dos protocolos que indicam taxativamente o encaminhamento a um serviço de saúde mental, o qual supunha uma lista de espera. Decide-se contornar a impotência à que empurra a burocracia, dando espaço à palavra e ao seu valor.
Em pouco tempo outra contingência oferece uma nova oportunidade.
O pai de P lhe oferece um emprego no seu açougue, que o jovem aceita queixosamente e como algo transitório.
A psicóloga da equipe, com quem o menino tem desenvolvido um laço de confiança e respeito, lhe pergunta: “Você já aprendeu a despostar[10]?” Frente a resposta afirmativa e alguma surpresa por parte do menino, ela diz em tom cúmplice: “Eu aprendi o ofício com meu pai, eu também sei despostar”. Ela lhe sugere aproveitar esse saber fazer porque é um trabalho muito valorizado e bem remunerado.
O jovem rapidamente se incorpora ao negócio do seu pai em tempo integral (inclusive atendendo no caixa), e abre para si uma porta ao mundo do trabalho, uma saída possível do mundo do delito.
Depois de um tempo, já quase no limite de nossa intervenção, ele vem nos visitar e orgulhosamente nos mostra as “altas llantas” (tênis) que pôde comprar com o dinheiro que ele ganha trabalhando.
Integrantes: Silvina Cantarella (psicóloga, participante do ICdeBA), María Soledad Lettieri (assistente de menores, operadora) e Hernán Vilar (responsável pelo laboratório).
Tradução: Milagros Villar.
Revisão: Flávia Machado Seidinger Leibovitz.
A Conversação diante da “política do para todos”
Laboratório Pipa-voada
(CIEN-RJ/BR)
Cyntia Mattar: O trabalho do laboratório neste ano começou com uma pergunta: onde estão os meninos e meninas que costumávamos ver nas ruas do Rio de Janeiro? Essa questão inicial se desdobrou, trazendo uma segunda pergunta: qual é o laço possível desses adolescentes que experimentam o movimento de errância com a droga, na rua e nas instituições e com cada um de nós? Além de ser uma das participantes desse laboratório, eu coordeno a equipe de Redução de Danos do Município de Niterói do Rio de Janeiro.
O “Pipa-voada”, ao questionar onde estão as crianças e os adolescentes usuários de drogas em situação de vulnerabilidade, fomentou três conversações – duas delas foram realizadas com participantes de outros laboratórios do CIEN-RJ. A presença de profissionais de outras áreas do saber, dentro e fora do laboratório, evidencia a aposta na conversação como um dispositivo capaz de interrogar nossa prática.
Levamos para a conversação o impasse colocado por uma psicóloga com o tratamento de uma adolescente de 15 anos, em situação de rua, usuária de múltiplas drogas, num contexto de violência cotidiana, e assistida por diferentes instituições que atuam no território. Aos 13 anos fora internada compulsoriamente em hospital psiquiátrico. À época, convivia com outros adolescentes pelas ruas. Nessa ocasião, teve o seu primeiro filho, que foi entregue, aparentemente contra sua vontade, à adoção de parentes. Após a alta, seus laços na rua ficaram fragilizados, passou a circular solitária pela cidade e também a se esquivar das instituições que antes a acompanhavam.
Dois anos depois dessa internação, a equipe de “Redução de Danos”, na qual a psicóloga relatora atua, foi convocada ao caso devido à proximidade com a cena de uso, uma cracolândia situada dentro de uma favela. No contato, uma das “redutoras de danos”, que já a conhecia, aborda temas íntimos: pergunta sobre o primeiro filho e sobre o uso de preservativos nas relações sexuais. Abre, assim, caminho para que a adolescente fale de sua menstruação atrasada. A equipe propõe a ida ao serviço de saúde e ela, mesmo hesitante, aceita. A psicóloga recolhe a pergunta da adolescente: “Vou ser mãe, né?”
Após essa intervenção, um morador da comunidade, também frequentador dessa cracolândia, se responsabiliza por ela. Alega que o tráfico proíbe a presença de grávidas na cracolândia e a acolhe em sua própria casa, facilitando o início de seu pré-natal. A mãe da adolescente, que mora em outra comunidade, reaparece, mas o cuidado ofertado com esse morador é interrompido. Retorna às ruas, ficando em diferentes pontos da cidade. As equipes voltam às buscas, esperando-a em diversos lugares habituais, como cenas de uso, ponto de ônibus, ou a casa de sua mãe. Em poucos encontros marcados com ela, os técnicos ficavam esperando por horas e, na maioria das vezes, ela não aparecia. A adolescente, no entanto, surpreende a equipe do “CAPSi” ao se comunicar por uma rede social. Por mensagem, explica que estava fugindo, pois temia que esse filho também lhe fosse retirado.
O campo de atuação da maioria dos profissionais que compõem o laboratório é o campo plural da saúde mental. Ao fazer as conversações com profissionais que não atuam neste campo e, ao compartilhar nossas experiências e impasses, nossa aposta é de que novas aberturas poderiam surgir.
Algumas questões circularam nas conversações: como nos orientar quando o adolescente na rua parece não fazer demanda ou foge dos encontros? Como dar direção a um tratamento tão fragmentado, num espaço sem contorno, como é a rua?
É pontuado que a gravidez amplia a gravidade do caso. “Eu vou ser mãe, né?” Como acolher essa fala? Fica evidente que as esquivas revelam o temor da adolescente de ficar sem este segundo bebê. Algo aponta para a responsabilidade institucional da equipe para com a adolescente e o bebê. Será que essa responsabilidade e as condutas institucionais se pautaram no ideal de promoção de saúde da gestante e do bebê? Na “política do para todos”?
Segundo Borsoi (2011), “A política do sintoma no sentido analítico é oposta ao mecanismo da política, senso comum, por subvertê-la, retirando o sujeito das identificações genéricas, opondo-se ao que o destino condiciona.” Tal política não está guiada pela promoção de um ideal de saúde, bem-estar e felicidade. A política do sintoma inclui o sujeito e suas particularidades de gozo. Como recolher essas particularidades com tantos desencontros? A impotência é o que aparece para a psicóloga diante de um ideal de “construção de caso”, orientação de “cuidados”.
As conversações destacam aspectos que oscilam entre “a política do para todos” e “a política do sintoma”, mostram que as condutas institucionais se pautaram no ideal da equipe de promover a saúde da gestante e do bebê, deixando de lado as particularidades daquele sujeito adolescente. Como acolher e tratar novas invenções dos adolescentes, em especial daqueles em situação de vulnerabilidade psicossocial. Como possibilitar que o sujeito construa uma trama que sustente a vida e não o leve ao pior, como a fragilização drástica do laço social e, no limite, à morte?
Na última conversação, a psicóloga relatora pontua que a clínica na rua tem uma urgência devido à fugacidade dos encontros e a fragilidade do laço social experienciado. Para ela, a saída da impotência diante de um caso como este, talvez seja provocar o falante do corpo desses meninos e meninas, não mais apenas à espera da formulação de uma demanda, mas, sim, na oferta do encontro com um profissional disposto a “recolher os cacos” de um sujeito. Recolher discursos espalhados pelas instituições, pela cidade, promovendo, assim, “traços de um cuidado” que só pode ser validado a posteriori.
Saímos do impasse de suportar o “não encontrar” e o “não saber o que fazer”, para uma “solução sintomática”, uma “direção de trabalho” que, orientada pela escuta em conversação sobre esse sujeito adolescente, reflete sobre a necessidade de incluir os medos e as possibilidades inventivas da adolescente. Em outras palavras, a orientação para um cuidado possível é aquela que pratica uma escuta singular que inclui o sujeito. A equipe de saúde mental que a acompanha pôde estar outras vezes com ela, em encontros nos quais ela não precisava mais fugir. A adolescente da qual nos ocupamos segue na vida.
Integrantes: Jorge Carvalho, Carmen Gustavo, Camila Macedo, Carla Paes, Cyntia Mattar (relatora), Giselle Fleury (responsável pelo laboratório) e Vilma Dias (responsável pelo laboratório).
Bibliografia:
Indart, J. C. I. Udenio, B. Conversação Internacional do CIEN 2017 – Os laços sociais e suas transformações. In: Cien Digital, n 22. Revista do CIEN Brasil. Disponível em:www.ciendigital.com.br/
Borsoi. P. “A política do sintoma na clínica da Saúde Mental: aplicações para o semblante-analista”. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/A_polC3%ADtica_do_sintoma.pdf
Comentários
Flávia Cêra:
Vou falar um pouco a partir do que os trabalhos me ensinaram. Os textos me levaram a pensar que o CIEN é uma prática que atua lá onde a segregação e a homogeneização se apresentam como saída para um impasse. Acho que isso é uma marca, tanto nas escolas como nas instituições de saúde.
Nesse sentido, estamos sempre perto de certo limite, na pressa de resolver um impasse, no limite justamente do saber, quando o protocolo para, quando a burocracia para, quando “não sei o que fazer”, nesse sentido angustiado, como Cynthia estava apresentando algo que aparece como sem saída, limite do saber e no limite do insuportável. Os laboratórios se situam aí, nesse limite. E se colocam à disposição, como Marita dizia, convidando à conversação e à inter-disciplinaridade. Nesse limite, é a partir de onde se pode relançar as perguntas, reposicionar o mal-estar.
Há também um desafio, já levantado na mesa anterior, com o qual o CIEN trabalha, que é o de fazer furo, desviar os caminhos dos protocolos, das burocracias. Como fazer isso sem levar a psicanálise como uma verdade? Laurent define a inter-disciplinaridade a partir do que ela não é: ela não é a prática de levar a verdade psicanalítica como o saber que falta para deixar os outros saberes à altura da época. Então, como praticar a inter-disciplinaridade sem levar a psicanálise como verdade?
A questão do não-saber já foi levantada. Não levar como verdade, mas levar a psicanálise como uma lógica, e evidentemente como uma ética, que opera sustentando um espaço vazio, que considera por isso o furo no saber e o inconsciente. Para que as identificações possam surgir e serem trabalhadas, esvaziadas. E que, assim, no muro implacável da impotência – muitas vezes é com isso que nos deparamos – possam aparecer algumas brechas.
Então, fiquei pensando se o “saber não-saber” seria justamente a posição que tornaria possível acolher os outros saberes. Porque há um saber aí que circula na errância, quando se aposta neste saber, alguma coisa muda. Como se deixar instruir, como dizia Judith Miller, se deixar tocar pelos outros saberes. A fala da Tamires na última mesa foi muito interessante nesse sentido. A psicanálise leva essa lógica: como sustentar esse vazio pulsante ou funcionar como pulmão artificial, quando o ar está muito irrespirável – como hoje, nestes tempos.
Vou passar pelos trabalhos, como pude lê-los. Eu começaria pelo Al filo de la ley, que me trouxe uma imagem muito forte, kafkiana justamente, diante da lei, diante da burocracia, esse lugar tão difícil, onde há um portão. Como pode o CIEN trabalhar justamente no fio da lei? Esse lugar se dá ali, lado a lado, com a disciplina do direito e pode incluir o impossível do direito, o impossível da lei, encontrando um outro lugar. Parto daí porque foi mais ou menos a imagem que me veio como o lugar desse pulmão artificial, desse respirador.
Ao mesmo tempo, poder suportar o movimento para encontrar um ritmo, como é o caso do trabalho “a todo ritmo”, suportar a errância para armar um circuito. Ou como no trabalho do Pipa Avoada, que vai justamente furar a política para todos, quando sai do “dar direção” para “passar a acompanhar”. Acompanhar é diferente de dar direção, isso faz com que a garota não precise mais fugir. Nesse sentido, eu diria que o saber não está do lado da equipe de cuidado, está também na garota, que está numa situação realmente muito delicada, grávida, na rua, mas quando se aposta um pouco por aí, recolhemos algo muito interessante.
O trabalho apresentado por Virgínia desloca e esvazia – num sentido diferente do trazido pelo “Pipa Avoada” – a impotência do “nada a fazer”, que me parece ter sido isso o que inicialmente se encontrou. Descola e esvazia o “nada a fazer”, da impotência, para relançar um “não sei o que fazer”. Permite, com isso, a localização desse impossível do saber sempre prévio, que as escolas, as instituições costumam apresentar em protocolos, em leis, que ajudam a não ter que se inventar toda vez – o CIEN está neste lugar.
Esse me parece ser o lugar específico do CIEN, esse que se pode abrir quando justamente acontece um impasse que angustia, como essa professora apresentou. Permite localizar um impossível de saber previamente, como os protocolos, e com isso abre-se um lugar para um inventar a cada vez – o que não é fácil, mas ao mesmo tempo desangustia. Gostaria que Virgínia pudesse falar sobre o que se produziu após esse momento de localização. E, ainda, como tomar a palavra, no “Janela da escuta”, e situar algo da indignação que vocês levantam no trabalho.
O trabalho do “Infância Errante”, em que o garoto toma a palavra, me fez pensar que a dignidade não é coisa que se dê. Inventar um lugar foi fundamental para que alguma coisa da dignidade pudesse aparecer, é preciso inventar um lugar, senão caímos na dignidade universal, na dignidade da pessoa humana. É uma diferença que eu consegui recortar a partir do trabalho de vocês. Gostaria de saber se vocês pensaram sobre isso com a auto-nomeação que surge ali. Não é algo que se dê.
Tatiana Pantoja: Flávia, você poderia repetir a questão sobre a dignidade?
Flávia Cêra: Dignidade etimologicamente é um título, um valor universal, que se dá para alguém. A subversão psicanalítica é justamente retirar a dignidade desse lugar. Não é que se dá um lugar na escola para essa criança falar. Ele inventa um lugar para que possa falar e fazer um outro laço com o Outro e a partir daí se pode pensar a dignidade. Tatiana pode me ajudar, eles chamam de auto nomeação.
Mônica Campos: O trabalho do Al filo de la ley me remeteu ao filme “De cabeça erguida”, em que a Catherine Deneuve é uma juíza. Há uma cola entre um menino com a mãe, o bebê da mamãe, e é partir de uma certa escuta dessa juíza, em que ela vai suportando essa cola, flexibilizando, ele vai se organizando, algo se dá, ao fio da lei mesmo.
Gisele Fleury: Estava pensando sobre essa questão da dignidade que não se dá… O trabalho na rua nos convoca o tempo todo para o limite do que se pode fazer, do que se deve fazer, como a encruzilhada que Cyntia traz no texto com um caso muito difícil, muito angustiante, que a convocou a repensar sua prática. Queria convidar Cyntia para que pudesse falar um pouco de como a menina segue na vida, suas soluções, e um pouco o que é o trabalho do redutor de danos.
Ana Lúcia East: O dispositivo de conversação com os professores, no laboratório Infância Errante, permitiu, me parece, a retificação da posição da professora Tatiana no trabalho com o aluno em questão. Penso que foi a partir de sua retificação que, então, abriu-se para o garoto esse processo de nomeação e construção de sua dignidade. Gostaria que você comentasse, Tatiana, se entende assim também, que a sua retificação permitiu, ao garoto, um espaço de enunciação. Isso me ensina sobre como o trabalho de conversação do lado do professor pode promover também movimentos do lado dos alunos.
Hernán Villar: Retomando o que Flávia trouxe, creio que viemos escutando desde ontem um significante que se repete e insiste: o insuportável. O limite do insuportável. E você pergunta: como fazer com que a psicanálise não se transforme em uma verdade? Creio justamente que podemos responder com uma lógica e uma ética, a partir dos impossíveis, de situar os impossíveis, como saída frente à impotência. Alguns significantes ficaram reverberando: muro impossível de franquear, beco sem saída, impotência. E justamente trata-se de suportar não saber. Outro dia escutei uma frase interessante, não sei de quem é: “o beco é sem saída, e a saída é o beco”. Ou seja, neste ponto em que algo se torna quase um chiste, em que topamos com os impasses dos saberes todos, é que surge uma fagulha, algo que surpreende.
E a dignidade não é algo que se dê, é certo, não é um título de nobreza, não é uma medalha com a inscrição: “Eu te considero digno”. É de outra ordem. Mas este equívoco me parece que está presente cada vez que se fazem estes programas com “as melhores intenções”. É ofertada uma bateria de respostas prêt-à-porter para todos os sujeitos insuportáveis, e, pretendemos que eles suportem todas as soluções pré-desenhadas. É o caso do programa no qual Silvina Cantarella, que nas palavras das mesmas profissionais, “é perfeito”. E o problema é esse: que é perfeito.
Não se suporta a imperfeição, ou seja, o insuportável de sermos falhos, de não estar à altura, de não entrar na caixinha de cada um desses programas pré-desenhados: a grávida, que deve obedecer tal o qual indicação em nome da saúde do bebê, ou pela redução de danos no adicto. São exemplos. O pior disto, que é muito importante sinalizar é que a angústia – que é um nome da responsabilidade – é o que perdeu a dignidade em nossa época. Ou seja, me parece que uma das formas de lidar com isto é justamente devolver a dignidade a essa angústia, a esse ponto de angústia que é o que nos permite, de alguma maneira, dar um salto, fazer uma invenção, encontrar a possibilidade de uma resposta que não seja automática, que não seja pré-desenhada, porque o que é pré-desenhado já sabemos para onde conduz. Então, uma lógica e uma ética, de saber suportar que há o impossível, há o ingovernável, há o ineducável. É por esse lado que podemos encaminhar nossa intervenções.
Silvina Cantarella: Quero lhes contar algo. Quando o menino chega ao centro, vem com uma lista de coisas que tem que fazer. Como, por exemplo: tarefas comunitárias, tratamento para o consumo de drogas, escolarizar-se, fazer cursos de formação profissional. Se eu fosse por essa via, teria perdido todo o resto, ou seja, o que realmente era importante trabalhar. Quando este menino chegou ao centro, justamente o fato de eu me esquivar do protocolo teve efeito.
Virgínia Carvalho: Flávia, fiquei realmente animada com o seu comentário, agradeço. Você extrai uma lógica da conversação, do “nada a fazer” ao “não saber o que fazer”, ao “inventar a cada vez”. Talvez a conversação dê dignidade à pergunta, mas não para parar na pergunta. Em todos os textos que foram apresentados hoje, percebemos que uma pergunta aparece e, então, uma virada. Isso me fez pensar se a conversação não traria dignidade à própria questão, o que produziria um giro diferente da violência, pois a dignidade à questão restituiria a dimensão da palavra.
Ontem, lendo o Seminário 8, me deparei com um trecho que me surpreendeu, não me lembrava de ter lido isso antes, que é o Lacan falando sobre a pergunta das crianças.
“O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? O que nos torna tão inadequados para responder a essas perguntas? Algo nos força a respondê-las de uma maneira tão especialmente inábil, como se não soubéssemos dizer que correr é andar muito depressa, é realmente estragar um trabalho, que dizer bater com o pé e ficar com raiva é realmente proferir um absurdo, e não insisto na definição que podemos dar de imbecil. De que se trata no momento da pergunta senão do recuo do sujeito em relação ao uso do próprio significante e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras.”[11]
Lacan, em seguida caminha mais um pouquinho e afirma: “(…) a incapacidade sentida no momento que a criança faz a pergunta é formulada na pergunta que ataca o significante como tal”[12].
Acho que a pergunta traz essa dimensão de uma certa vacilação em relação ao significante, e permite, então, uma invenção. No Laboratório Docentes Doentes, nessa conversação específica, conseguimos localizar a pergunta: “Por que tem treva numa instituição e não tem em outra?” A invenção veio, em um outro encontro que a escola traz, um caso de uma criança em crise que está na instituição, pois a criança trazida para a conversação já tinha ido embora da instituição. É o caso de uma criança que chega como muito violenta, uma criança que bate em todo mundo, bate na professora, uma criança que causa um rebuliço. Na conversação alguém coloca: “Mas como é o momento que acontece isso? O que desencadeia isso?” Podem então se deparar com esse não-saber de um jeito diferente do que o da impotência. Colocam-se uma questão em relação a isso, o que traz modificações na maneira como se colocam em relação a essa criança na escola.
Também achei muito interessante o que a Marita falou sobre ser um bom anfitrião para as outras disciplinas e penso que “inventar a cada vez” tem a ver com isso também. Eles chegam, principalmente os gestores das escolas, muito angustiados, pois não sabem o que fazer com esses casos. Sentem-se muito sozinhos e cobrados de todos os lados. Então estão muito angustiados, muito tomados, sem saber para onde ir, muito cobrados, as famílias cobram, os professores cobram, os alunos cobram. Acho que encontram um espaço ali para falar do não-saber de um outro jeito. Lembrei-me também daquele verbete que Freud escreve sobre psicanálise, no qual se pergunta: “como ensinar alguém sobre psicanálise” Não tem outro jeito, só experimentando. Por aí que a psicanálise não se torna a verdade entre as outras.
Cyntia Mattar: A Redução de Danos é uma política pública de cuidados a pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas de forma prejudicial. Em Niterói, temos uma equipe composta, em sua maioria, por redutores de danos de nível médio de escolaridade, moradores das comunidades, que são usuários ou que já tiveram um percurso com um uso prejudicial na vida. São pessoas que ajudam o restante da equipe a se aproximar de cenas de uso, como, por exemplo, nas cracolândias. Nossa atuação é basicamente nas comunidades, nas favelas de Niterói.
Achei muito importante o comentário sobre a diferença que existe entre dar direção e acompanhar. Meu lugar como coordenadora dessa equipe me faz atuar, no campo diretamente. Participar da conversação foi muito importante e um dos efeitos foi poder acompanhar a Maria Eduarda.
Sobre a questão de como ela está hoje: o segundo filho nasceu e foi retirado dela, novamente. Descobriu que havia um acerto entre o Conselho Tutelar e sua mãe, no qual seu filho seria dado para outra mulher, residente em outra cidade. Ela não participou muito nessa decisão, ficou muito pouco tempo no hospital, pois o hospital não conseguia estar com ela. E o que é estar com essa adolescente?
Ela fica um tempo longe da nossa equipe, longe da mãe, longe de onde conseguiríamos encontrá-la, fica mais errante na cidade. Depois de alguns meses, retorna à cena de uso, onde a encontramos. Uma das redutoras de danos mora nesse lugar, está lá todos os dias. Voltamos, então, a encontrá-la, o que possibilita que ela faça algumas demandas à equipe, como comida. É uma cena de uso com cerca de trinta pessoas, onde o atendimento acontece no meio de todo mundo.
Em um dia em que pediu comida, desceu com a equipe para poder comer. Logo em seguida, na despedida, perguntou se poderia ir com a gente. Como eu ia para o centro e ela também, seguimos juntas no ônibus. Foi uma cena muito bonita. Nesse dia, escolheu um banco próximo a uma janela, eu fiquei ao lado dela e me contou como foi esse momento da maternidade. Ela tem mais quatro irmãos, sendo que todos foram para abrigos, assim como ela. Fugia dos abrigos para ir à casa de sua mãe, mas, chegando lá, não conseguia ficar e nem a mãe conseguia recebê-la. Contou que os irmãos não conseguiram fazer isso, pois foram adotados por outras famílias e perderam contato.
Ela percebia essa repetição, mesmo não verbalizando dessa forma, com os filhos dela. Queria ter uma menina, teve dois meninos. Fala o nome da menina que poderá vir. Ela se encolhe, se recolhe, dorme e antes disso me pede para acordá-la no lugar onde teria que descer. Fez-se um laço de confiança, de endereçamento.
Seguimos no acompanhamento, é um caso grave, não é um caso de sucesso, acho que o ponto é esse; continuamos discutindo muito esse caso, com todos os impasses que ele traz para a equipe.
Gabriela Antunes: Gostaria de retomar um pouco sobre o trabalho com as questões da instituição, pois de maneira alguma se quer demonizar os trabalhadores das instituições. Eu, enquanto trabalhadora de uma política pública de assistência social, vejo que, na “fazeção” do dia a dia, acabamos por perder um pouco o sujeito de vista. Com um furor de tudo resolver, pela garantia de direitos, o sujeito vai ficando de lado, começamos a esquecer que só há direito se houver sujeito. Se o sujeito não estiver ali, o meu trabalho deixa de fazer sentido.
Quando o profissional de políticas públicas chega ao “Janela”, quando algo insuportável se apresenta, aparece um impasse. O adolescente chega, tem uma acolhida. Acho que esse é o papel do “Janela” na articulação com as políticas públicas. É um espaço para reconhecermos que na “fazeção” do dia a dia o sujeito, muitas vezes, fica de lado – o adolescente, quando chega, vem com essa marca. É muito importante que ele seja escutado sobre o território, assim como é importante que o profissional que ali esteve para discutir um impasse, também o seja.
Como se enlaça com a dignidade? Isso acontece quando a dimensão de sujeito é resgatada. Como foi dito pelas colegas, a dignidade não é um título dado, mas um reconhecer-se como sujeito nesse espaço.
Flavia Cêra: Dá dignidade à palavra dele. Dar dignidade à palavra dele é diferente da questão do título.
Maíra Santos: Gostaria de seguir com proposta que Flávia lançou, a de conversarmos um pouco sobre a indignação. Acho importante destacar como o adolescente que atendi chegou até nós, falando que os adolescentes autores de atos infracionais são vistos como criminosos, pecadores. Existe uma indignação de sua parte frente a isso. Quando pergunto: “o que te traz aqui?” Ele me responde: “Acho que eu vim falar sobre os meus sentimentos, sobre o que eu penso.” Conseguiu se apropriar desse espaço de escuta, chegou para ser escutado sobre o seu afeto, sobre como via a vida e pensava. Quando diz “vida loka também ama”, fala, de certo modo, que a dimensão do afeto não é permitida na instituição. A sua indignação surge quando quer falar o quanto ama sua mãe, mas não encontra lugar para isso, pois o próprio grupo de adolescentes o recriminava. “Se eu falar com os meus colegas que eu amo a minha mãe, vou ser excluído desse grupo”.
A passagem da indignação para a dignidade se dá no momento em que ele reconhece que poderia ser escutado naquilo que o afetava. Esse espaço de escuta, ao ser garantido, pode permitir a invenção, através da palavra, de uma saída possível e a ressignificação de experiências.
Tatiana Pantoja: Gostaria de contar o que me moveu até o Laboratório Infância Errante. Meu modo de trabalho costuma quebrar alguns protocolos institucionais e isso, na maior parte das vezes, não é bem-visto pelos pares. Entendo essas quebras como necessárias diante de algumas situações, como um respeito à infância. Mas escuto questionamentos difíceis: “Como você pôde fazer isso, sair da sala? Se ajoelhar para falar com a criança?” Esses questionamentos me angustiavam, percebia que minha visão, que eu entendo como de respeito à infância, nem sempre era partilhada. “O que estou fazendo de errado?”, me perguntava frequentemente. Percebo as crianças na turma aprendendo, mesmo sendo levadas, brincalhonas. “Mas por que os outros adultos na escola me criticam?”
Através das conversações, pude encontrar dignidade para mim também, encontrar um espaço para entender que eu não sou uma super-heroína, que tenho o meu furo no saber, mas que o meu fazer é um fazer diferente, não precisa ser igual ao do outro. Quando eu consegui entender isso, elaborar isso, após a primeira conversação, tive um afastamento emocional das crianças, especificamente dessa criança que trouxemos para a conversação. Quando me foram passados os diagnósticos de TDH e TDC, também me foi passada uma receita sobre como fazer com ele. Diferente dos outros, os terríveis, as crianças trevas, que não têm receita, esse tinha receita e inclusive remédios, ele é medicamentoso, medicamentado, medicalizado. Foi assustador para mim, mas, para mim, ele não tinha essa receita. Minha intenção era tratá-lo como qualquer outra criança. Então, quando pude ter esse afastamento emocional, da própria imagem dele, pude também assumir o papel da professora diferente, e ele assumir o papel de uma criança, como qualquer outra.
Vou contar duas passagens muito bonitas. A primeira: num dado dia, em que ele estava muito agitado e não conseguia fazer a tarefa de alfabetização, disse a ele que eu poderia esperar, que ele não precisava fazer naquele momento. Expliquei que eu iria ajudar os outros colegas e que, então, retornaria para ajudá-lo. Ele esperou, fiz a atividade com todos os outros, e depois pude dar atenção para ele. Ele me acarinhou – tem esse hábito físico muito forte, sempre beijinho, sempre carinho, ou o inverso, automutilação, explosões de raiva – e começou a fazer perguntas: “Como é o seu nome?” Me pergunto: “Como assim ele não sabe meu nome? Ele me chama de tia o tempo todo.” “Meu nome é Tatiana”. “Como você gosta de ser chamada?” “As pessoas me chamam de Tati”, digo. “Posso te chamar de Tati?”, pergunta por fim. Consinto. Nesse momento ele se levanta, se vira para a turma, que está jogando um outro jogo, e diz: “Gente, que tal a gente chamar ela de Tati e não mais de tia?” Metade da turma obviamente não dava a menor atenção para ele, a outra metade concorda. Nesse dia, até o final, ele me chamou de Tati.
Segunda passagem: em outro dia, ele me pergunta sobre minha família, com quem eu moro, o nome da minha mãe, o nome da minha filha, cadê o meu pai. Quando soube que o meu pai tinha falecido, que “virou estrelinha”, ele ficou meio assim e falou: “Ah, vou te dar um abraço para você não ficar triste.” Percebi que, nesse momento, ele se colocou no lugar de alguém que pode ajudar outra pessoa.
Uma passagem também importante, antes desse momento: ele era um “menino sem sonhos”, que sabia que “a gente não pode ter sorte sempre na vida”. Naturalmente, era algo que já ouvido e que devolvia. Ele não tinha nome, não se nomeava. Depois dessas duas passagens, tanto de perguntar o meu nome, quanto de perguntar sobre a minha família, houve outras conversações. Fechamos com uma passagem muito bonita, um evento na escola, onde estávamos todos juntos. Todos o conhecem, porque é o “terrível da escola”. Na ocasião, ele levantou a mão e disse que queria fazer uma pergunta. A pessoa que estava ministrando o evento lhe deu a palavra e ele diz: “Queria botar meu nome”, dizendo o nome dele completo, com o sobrenome. Sai desse evento muito feliz. Passa a dizer “Eu sou fulano”, “Meu nome é esse”.
Penso que aconteceram dois movimentos nas conversações. Por um lado, eu percebi o meu lugar de professora, o de uma professora que tenta romper com esses protocolos, essa burocracia, posta pela escola, uma professora que entende que não existe o ideal, e que é mais importante corresponder ao real, ao meu real, à minha realidade. Por outro, uma criança que se encontrou dentro de seu sintoma. Por isso a dignidade de seu sintoma. Não melhorou, nem piorou, ele simplesmente se reconhece como é, não mais o “terrível”, a “criança treva”, “aquele que não presta”, “que não serve para nada”, como se nomeava antigamente.
Vânia Gomes: Uma questão para o “Janela da escuta”: Vocês funcionam dentro de uma instituição? Como o trabalho de vocês retorna para a instituição em que estão? Para os profissionais, como o dispositivo do “Janela” se articula com a instituição?
Claudia Castillo: Queria referir-me ao trabalho que Silvina Cantarella apresentou. Disse em algum momento algo, que me parece estar presente em todos os trabalhos: falar, ou deixar falar além de onde o programado permite, surgindo ali, você dizia, uma oportunidade para o sujeito. Parece-me que por aí é possível driblar o obstáculo, creio que isto está presente em vários dos trabalhos e me lembra algumas das primeiras questões que o CIEN se encarregou, em relação à regra, ao uso da regra, para além inclusive, digamos, o detalhe da regra, podendo contornar os protocolos. Obrigada.
Hernán Vilar: Sim Claudia: “por trás das normas, o detalhe”.
Silvina Cantarella: Bom, o garoto quando chega, vem com uma lista de coisas para fazer que o juiz manda. No Centro, nós o recebemos em equipe. Era óbvio que ele vinha porque era obrigado e não porque quisesse vir. Além de pensar que se defrontaria com um interrogatório policial.
A primeira coisa que fazemos é lhe explicar que não se trata disso. As entrevistas seguintes já foram somente comigo. Não sabia o que encontraria, pois fora muito agressivo na primeira e surpreendeu-me que ele desmontasse dessa forma e me contasse isso; foi algo não calculado, surgiu. Eu me esquivei do lugar das tarefas comunitárias e coisas do estilo. Preocupava-me sua saída violenta – com muito consumo de drogas – contra si mesmo ou contra sua namorada. Pois isso o levaria a outra ação judicial. Dispus-me a escutar o que doía, o que acabara de acontecer. O haviam deixado de maneira que para ele era dramática e ainda fora exposto nas redes sociais, sabendo o que elas representam para os jovens. Creio que o que facilitou que começasse a falar é que pôde ficar com raiva, gritar, dizer tudo o que havia guardado. E foi necessário sinalizar-lhe que ela estava em seu direito de deixá-lo, ainda que ele não concordasse. E em seguida trabalhar com ele que talvez fosse bom pensar por que ele queria ficar com uma menina que não o escolheu. E isto mudou algo, mudou sua posição.
Hernán Villar: Esclareço que o protocolo tem expressamente proibido o que Silvina decidiu fazer. A indicação seria encaminhá-lo a um tratamento psicológico. Esse… “não fale disso aqui”, vinha para cumprir com o que “se tem que cumprir”. Parece-me que este é o ponto. Trata-se de se fazer um bom anfitrião, e insisto: devolver a dignidade à angústia, porque a angústia tem “não dá ibope”[13] nos dias de hoje. Se a ordem judicial aponta à responsabilidade subjetiva, trata-se de uma ordem paradoxal, porque: se não nos permite alojar a angústia, de que responsabilidade estamos falando?
Gabriela Antunes: O “Janela da escuta” funciona no “Ambulatório de saúde do adolescente”, no Hospital das Clínicas, onde vários profissionais atendem esse adolescente. Porém, como funciona sob demanda espontânea, porta aberta, o adolescente pode não chegar necessariamente por uma medida socioeducativa. Pode estar no bairro, conhecer o ambulatório e ir. Vemos qual a regional dele, para saber se alguma outra política pública já atende esse adolescente. Se já for acompanhado, chamamos os profissionais envolvidos para construção do caso conjuntamente, mas atentos para que o atendimento continue sendo feito na Rede. Não é um atendimento obrigatório para o adolescente.
Mônica Campos: Bom, queria agradecer muito essa mesa muito rica. Vamos passar para a próxima mesa.
[1] N. T.: Em português a expressão “a todo vapor” pode ser pensada como sinônimo.
[2] Notas extraídas da Conferência do autor na VI Jornada Internacional do CIEN “Me incluyo desde afuera. La brújula que cada uno inventa”. 20 de novembro de 2013. Buenos Aires.
[3] Éric Laurent. “A cada uno su punto de excepción”. Cuadernos del CIEN No. 7.
[4] A iminência de seus 18 anos ameaça deixá-lo fora do Sistema de Proteção Integral de Direitos de Crianças e Adolescentes e de sua atenção no hospital.
[5] Èric Laurent. Op. Cit.
[6] Integrantes da equipe do Laboratório do Cien “Janela da escuta”. Responsável pelo laboratório: Cristiane de Freitas Cunha Grilo.
[7] Através do Convênio Internacional sobre os Direitos da Meninos, Meninas e Adolescentes e a Coordenação de Políticas de Responsabilidade Penal Juvenil, juntamente com o Organismo Estadual da Infância e Adolescência se intervém por meio de um programa estadual alternativo à privação da liberdade, orientado a instrumentar medidas socioeducativas.
[8] N. T.: Literalmente: “Feita a lei, feita a armadilha”. Em português é conhecido como “Feita a lei, cuidada a malícia”, mas que tem sentido diferente de armadilha ou engano, que a palavra trampa tem.
[9] N. T.: No original trampita, que tem o sentido de uma pequena trapaça.
[10] Termo espanhol de uso específico para referir-se à atividade que consiste em esquartejar uma carne de vaca ou boi. Dividir em postas de carne.
[11] LACAN, J. Seminário 8. A transferência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992, pg. 237.
[12] LACAN, J. ID.IBID. pg. 237.
[13] N. T.: Expressão aproximada a “mala prensa” do espanhol.
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PRIMEIRA MESA DE CONVERSAÇÃO
by cien_digital in Cien Digital #24
II Conversação CIEN América – A criança
violenta e a dignidade do sujeito
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Coordena: Vânia Brito Gomes (CIEN-Brasil)
Anima: Fernando Gómez Smith (NEL)
Quando uma história vinda de uma criança toca profundamente. (Nahuel)
Laboratório “Niños y Adolescentes Violentos”: Nacidos para molestar?
(CIEN – Ushuaia, Terra do Fogo, Argentina)“O ser humano como parlêtre está destinado a ser sintomático.”
Jacques-Alain Miller, Crianças Violentas, Intervenção de encerramento da 4a. Jornada do Instituto da Criança, 2017
“Aprisionar o próprio sofrimento é arriscar-se a que ele te devore desde o interior.”
“Tudo pode ter beleza, até o mais horrível.”
“Na verdade, não sei se meus quadros são surrealistas ou não, mas sei que representam a expressão mais sincera de mim mesma.”
Frida Khalo
Em uma escola inaugurada esse ano, há somente três alunos na 6a. série. Crianças que tiveram que deixar suas escolas particulares pela situação econômica do país. A professora nos relata o quão difícil se apresenta a demanda dos pais que exigem “qualidade educativa”.
A prima de Nahuel, conta à professora uma cena da escola anterior: seu primo sofria Bullying, o trancavam no banheiro. Nahuel, frente à fala da garota, não diz nada. A seguir diz que trocou de escola porque ele não gostava da anterior e que as professoras o maltratavam. Agora diz que desta escola nova também não gosta.
Nahuel já é conhecido por todos os professores pelo mal-estar que gera. De seus colegas, debocha da falta de saber. Ele assume o comando. Discute tudo, se é corrigido, fica bravo, se é solicitado a fazer atividades, justifica-se. Desafia o professor negando que seja certo o que lhe dizem. Nunca fica calado. Quando comete um erro, discute ou se angustia. Em alguns momentos é apático. Frente ao pedido da professora para que modifique seus modos, diz “eu sou assim”. Perguntamo-nos para que isso lhe serve.
Quando se escuta “há crianças violentas”, se tornam sensíveis aspectos mais profundos da condição humana. As respostas podem ser díspares, e as consequências inesperadas. É por isso, efetivamente, o que denominamos um instante de olhar: é a partir de localizar uma construção de um sujeito, o que há de verdade nesse sofisma “violentos”, e naqueles que trabalham com crianças, a partir de um saber fazer, que se aposta na direção de uma dignidade da criança, a qual, mais do que alcançada, está sempre por advir.
Algo chama a atenção, Nahuel se preocupa com sua letra, pergunta para sua professora se é legível. As palavras que não são compreensíveis, a professora as sublinha, e lhe pede que as escreva de novo. Ele se angustia, não aceita o erro, diz que sim são compreensíveis. A professora efetivamente não consegue ler, e o que se põe em jogo é um impossível. A leitura é algo de que ele gosta. Leva livros de ficção científica para usar uma vez que terminou os deveres… antes de todos.
Nesse laboratório, professores, docentes de outras áreas e agentes de saúde pública conversam acerca da coincidência da impossibilidade do saber frente ao que lhes excede, o que fazer frente a este tipo de situação. Uma constante reflexão sobre a incompreensão é escutada.
Também se escuta uma forte alusão à infância como um valor em si mesmo que não se representa em nenhum signo como o violento. Após cada conversação volta a disrupção entre ambas as circunstâncias: os corpos não calam nas salas de aula e os adultos terminam com sanções paliativas de normatividade. No entanto, a professora de Nahuel se mostra paciente esperando-o de outro modo.
Algo é forçado para além do dito, entre a verdade dos saberes das disciplinas e as exigências do senso comum, para tudo o que não é compreensível. Com esta vacilação subjetiva se precipita uma indagação.
Aparece então uma primeira leitura: do Bullying passamos a pensar numa criança que se faz não ser querida. Apresenta-se como uma criança que pode com tudo, desafia e prescinde do Outro. Também é uma criança que começa a se angustiar, se afeta, se enfurece, aparece a raiva e o choro. “Tenho medo que minha mãe morra” expressa quando um professor o repreende por se mostrar desafiante.
O pai não mora aqui, a mãe não se faz presente na instituição a não ser para reclamar o privilégio dele ser o portador da bandeira. Uma criança exigida a partir de um ideal e sujeita a uma violência não esclarecida.
O bullying aparece como um significante que não remete a outra coisa. A subjetividade da criança fica anulada, esmaga-se um desejo. A palavra da criança permite fazer uma leitura. Há outra coisa em jogo. É a singularidade que nos reposiciona frente à impotência e aos ideais.
Na volta das férias a professora comenta que observa mudanças. Quando lhe pede a folha para ler sua produção Nahuel diz: “Minha letra é feia, você não vai entender. Minha mãe disse que é feia”.
Nesse dia falam sobre a biografia de Frida Khalo, de seu sofrimento e sua arte. Momento no qual Nahuel pode falar com a professora sobre o Bullying que viveu na outra escola. Conta que no primeiro grau os colegas lhe batiam, enfiavam sua cabeça na privada e lhe quebraram o braço. “A professora era uma tonta porque não acreditava em mim” – exclama. A partir de que lhe quebram o braço ele diz que se torna “mau”.
A professora pede que escrevam um cartaz em grupo, ele propõe a Luís, porque sua letra é horrível. A professora aceita o pedido, mas acontece um imprevisto: Luís, que vinha escrevendo bem, tem um sangramento no nariz por uma hemorragia nasal e precisa ir embora. Então a professora pede a Nahuel que continue a escrita da atividade. O menino copia a letra do colega e pela primeira vez faz uma letra bonita. A letra bonita é produto de uma cópia e por mais que seja falsa não deixa de ser dele. Quando Luís volta do banheiro, Nahuel propõe que escrevam um pouquinho cada um. “Um pouco” que implica uma borda, um lugar. Um pouco que instala uma alteridade, um pouco ele e um pouco o outro. Isso lhe permite um tratamento de seu todo. Já não é todo feio, todo mau, todo enfrentamento, não é todo deboche. Aparecem inclusive palavras amáveis para seus colegas. Algo desperta, pode pensar-se como um acontecimento, que o faz ceder.
Na sala de aula concluem que Frida tinha um problema na perna de nascença, depois sofre um acidente e ela, a partir da impossibilidade prostrada na cama, extrai a arte. Com a biografia de Frida e a confidência de Nahuel à professora, perguntamos se o que antigamente era bullying agora fica do lado do sofrimento, uma segunda leitura.
No decorrer deste relato podemos situar três momentos. O primeiro onde Nahuel enuncia que sua letra é feia, sob a identidade do “eu sou assim”. No segundo a professora incorpora um “não entendo você”, extraído do Laboratório, e a criança responde “sim, me entende”, se aborrece e chora. Finalmente um terceiro momento, em que ele diz “você não vai me entender porque escrevo feio”. Aparecendo o início de uma alteridade de uma forma suportável.
Depois de trabalhar a biografia de Frida Khalo a professora propõe que escrevam outra de uma pessoa que seja do interesse deles. A criança responde “eu vou escrever a biografia de Nahuel M.” – seu nome e sobrenome paterno.
Integrantes: Sandra Ponce de Leon (fonoaudióloga), Araceli Villalba (professora), Jose Rodriguez (psicólogo, praticante da psicanálise), Constanza Padilla (psicóloga, praticante da psicanálise).
Tradução: Mariela Pradeiro
Revisão: Flavia Machado Seidinger Leibovitz
Crianças terríveis
Laboratório “A criança entre a mulher e a mãe”
(CIEN – RJ/BR)
A criança que apresenta um comportamento diferente do que é esperado incomoda e, quando manifesta repetidamente agressividade, seu comportamento é tomado como uma patologia e justificado com um diagnóstico, na tentativa de controle da infância.
Frequentemente, a loucura na infância tem hoje o nome de Autismo, Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade ou Transtorno Opositivo Desafiador, usados para solucionar impasses que surgem no cotidiano da instituição escolar.
Terrível é o significante que marca uma conversação realizada em dois tempos pelo laboratório, com a participação de professores e da diretoria de uma escola. Terrível é etiqueta que também funciona como um nome, uma vez que a criança responde com violência ao que lhe é dirigido.
Tempo 1: Um menino autista fica sempre agitado no horário da saída. “Ele é terrível”, comenta o pai. Certo dia, corre pela sala de aula e belisca a professora que anunciou o término da atividade. “Ele é terrível”, diz uma professora durante a conversação. Outras concordam, e trazem muitos exemplos de crianças terríveis.
Muito angustiada, outra professora inicia um longo relato: “Mas o caso do Lucas é muito pior. Fui injustamente acusada de roubo, fiquei com muita vergonha. Já havia alertado a escola: este menino tem problema. Registrei no livro de ocorrências. Precisamos fazer algo com seu comportamento desafiador. Estou muito mal. Tomo meus remédios, mas não melhoro.”
A diretora diz a ela que precisa pensar por que se sente envergonhada, já que estava entre colegas que compartilham dificuldades parecidas. A participante do laboratório comenta que ela não é a única responsável pelo aluno e que a conversação visa justamente que todos possam encontrar novas soluções para os impasses do dia-a-dia na escola.
A professora descreve uma primeira cena como uma intervenção ideal. Ela pede à turma um trabalho sobre a família. Lucas começa a falar do tio. Ela o interrompe: “tio não vale” e passa a palavra para outro aluno. “Não vou deixar esse menino fazer o que quer. Ele me confronta e eu preciso mudar ele”, diz na conversação.
Na mesma semana, a cena da vergonha: ele está usando o celular durante uma atividade, a professora toma-lhe o aparelho e explica que o entregará a seu pai. Visivelmente angustiada, ela prossegue na conversação: “Na hora da saída, estamos diante do pai e ele tem um surto, corre pelo pátio, gritando e atirando objetos, me xingando de ladra e mentirosa. Rosna para quem se aproxima dele”. E ela repete: “não vou deixar o menino fazer o que quer”.
Ela conta ainda outra intervenção supostamente ideal: como de costume, após uma atividade, pergunta aos alunos quem quer apagar o quadro. Ele levanta a mão. “Ah, não deixei. Chamei outra aluna.” A participante do laboratório pergunta o porquê. “Para ele não pensar que pode fazer o que quer. Ele é terrível” – responde.
A diretora conta que, no dia seguinte, o menino repete para ela a queixa sobre a professora. E acrescenta: “Ela não me deu voz. Meu coração acelera, eu sinto muita raiva. Você sabe que eu sou terrível? Eu mordia as crianças no Jardim de Infância, fui expulso da escola e minha mãe quase foi demitida. Eu tenho um canal no YouTube chamado Fazendo besteirinhas. Eu sou terrível”. A diretora diz: “parece que ele repete o que dizem sobre ele e que o coloca neste lugar de terrível, é o que a escola acaba por reforçar”.
A participante do laboratório lança na conversação a pergunta do que tornaria possível, para o menino, outra resposta. “Mas ele sempre me confronta”, diz a professora irritada. “Se ele repete, o que se repete?” – continua a participante.
Retorna nas falas hostis das professoras o sentimento de impotência. Acreditam que ele não tem jeito. A professora se irrita e convoca as demais professoras a apoiarem seu discurso corretivo. Algumas repetem sua frase “vamos deixar ele fazer o que quer?”. Uma delas diz: “ele sabe como te perturbar”, com o que um participante do laboratório concorda, dizendo que o menino já espera ouvir o que escuta da professora, “já vem no pacote.”
A participante diz que ele já conta com o NÃO e lança a pergunta sobre como poderia ser surpreendido: “e se ele escutasse SIM?” As professoras falam ao mesmo tempo, não sabem como fazer diferente com ele. “E se fosse criado um caderno de anotações das coisas boas realizadas pelos alunos da escola, não só por ele, no lugar do livro de ocorrências?”, sugere a participante. Todas olham surpresas e a professora insiste no controle do comportamento do menino. A participante fala que ele não mudará porque ela quer, mas somente quando e se esse lugar de terrível ficar ruim para ele, e corta a conversação.
Tempo 2: A diretora traz notícias. Primeiro, conta que na saída da primeira conversação, durante uma carona, ao invés de falar de Lucas, a professora fez queixas da filha: “ela tem me aborrecido muito, pensa que pode fazer o que quer. Não conseguimos manter um diálogo, ela sempre me confronta”. A diretora conta ainda que esta professora tem estado silenciosa e hesitante nas intervenções com ele. Antes, já possuía um saber prévio.
Observa outra mudança: diante do que aparece como dificuldade no trabalho com as crianças, as professoras costumavam colar no discurso da professora de Lucas. No momento, elas a procuram em sua sala, no corredor: têm se interrogado sobre como fazer de outro modo com as crianças terríveis. Efeitos vão surgindo a partir da aposta na conversação.
A criança terrível é um nome que veste, sob medida, aqueles cujo ideal do professor não alcança. Ser terrível seria um dos nomes da criança no século XXI, uma resposta ao declínio do pai no tempo em que, muitas vezes, não sabendo o que fazer, os adultos se colocam como autoritários e caprichosos para com as crianças?
Integrantes: Ana Claudia Junqueira, Ana Martha Maia (responsável pelo laboratório), Anna Paula Araújo, Hugo Magalhães, Marina Valle, Nádia Aslan e Valéria Cristina Glioche.
A porta fechada
Laboratório “Ciranda de Conversa”
(CIEN-PR/BR)
Bárbara Snizek Ferraz de Campos e Renata Silva de Paula Soares[1]
O Laboratório Ciranda de Conversa[2] foi chamado para uma Conversação com uma turma de 4º. ano em uma Escola Municipal de Curitiba a partir da queixa da professora. Ela apontou para um mal-estar entre os alunos, com idades entre 9 e 11 anos, que não “paravam quietos”. A agitação da turma dificultava não só o aproveitamento escolar, mas o laço social. Para a diretora, os “problemas” eram: “violência e sexo: violência gratuita, para machucar”!
No primeiro contato do Laboratório com a turma, a animadora pontuou que, durante a Conversação, a palavra poderia circular sem reservas e uma das crianças disse: “quero falar da vida!”. No decorrer dos encontros, a violência foi a primeira a dar as caras, pois as crianças, agitadas, trocavam empurrões, socos e gritos, os quais foram sustentados sem “normatização”, mas com algumas palavras que acolhessem e fornecessem algum sentido. As crianças conversavam com a animadora, mas não entre si. Diante da constatação que buscavam resoluções, sem sucesso, com violência, uma criança pôde dizer: “não resolve mesmo, só gera mais violência. Seria melhor tentar conversar”.
As palavras chegaram em letras de funk. As crianças cantavam e dançavam letras e coreografias bastante sexualizadas, sem demonstrarem o menor pudor, também sem serem provocativas. Era “normal”, quase natural. Quando o teor das letras foi apontado, elas contaram que escutavam as músicas que estavam “tocando por aí”, o tempo todo e em todos os lugares. Instigada pela insistência do conteúdo trazido através dos funks, a animadora disse que poderiam, se quisessem, falar sobre a sexualidade. Nesse momento, um dos alunos levantou, em silêncio, e fechou a porta da sala. Então, passaram a conversar sobre um menino e uma menina da sala que estavam namorando, sobre o aluno, do sexo masculino, que havia expressado sua vontade de ser mulher.
A animadora e a professora pontuaram que estavam interessados nas mudanças que vinham acontecendo com eles e em seus corpos. Eles começaram a falar que as mudanças eram o bigode, o pinto que crescia, os seios. Passaram a contar de alunos do quinto ano que se beijavam atrás da árvore e a animadora marcou que isso tudo era sobre sexualidade. Comentaram que assistiam a filmes pornôs em seus celulares, prática comum, mas que não entendiam tudo dos filmes ou das letras dos funks. O funk era escutado em todos os cantos e a pornografia era consumida o tempo todo. O sexo aparecia de forma obscena, de portas abertas, dentro de suas casas.
Nesse momento, a animadora percebeu que uma das meninas estava “grávida”, pois havia colocado um casaco embaixo da blusa, e perguntou: “está grávida?”; ela disse que sim e “como meu filho vai nascer?”; a professora respondeu: “de parto normal ou cesárea” e explicou as vias de nascimento. Ficou claro que as dúvidas giravam em torno da sexualidade, e não, necessariamente, sobre a pornografia. Um aluno pediu para fazerem um planejamento sobre esse assunto, no sentido de uma palestra. A professora interveio, dizendo para pensarem nas dúvidas e trazerem, para uma conversa, no próximo encontro, que seria após as férias de julho.
As crianças retornaram, trazendo suas questões e conversando sobre sexualidade e suas situações familiares. Foi quando decidiram inventar um “show de talentos”, onde se apresentariam para toda a escola. Estavam muito entusiasmados. As músicas que ensaiavam não traziam mais os pornográficos, mas eram sucessos com letras que falavam sobre o cotidiano. Algumas crianças dançavam muito bem, e ensinavam para os colegas, que esperavam sua vez e aplaudiam quem se apresentava. Era possível observar corpos que se moviam com ritmo, prazer e ordenação. “As músicas são de criança da idade deles”, disse a professora, muito feliz, e a animadora se despediu, dizendo: “vocês têm a professora de vocês para seguir nesse percurso.”
Houve uma professora que aprendeu com seus alunos e crianças que encontraram um lugar para falar do que não sabiam. Houve uma invenção. As crianças, de portas fechadas, encontraram um espaço privado para falarem, e serem escutadas, em suas questões sobre a sexualidade.
Essas crianças não eram violentas, estavam submetidas à obscenidade e, com isso, violentadas. Eram corpos impregnados sem o direito do momento de compreender. Como diz Jacques-Alain Miller, “o pornô é uma fantasia filmada” (…) “não há nenhuma regulação”[3]. A pornografia é exibição sem véu, uma intrusão, um forçamento, aqui, uma violência imposta a essas crianças. Foi preciso que uma porta se fechasse, para dar um espaço de privacidade às crianças submetidas a um tudo ver: sexo, sangue, morte, álcool, drogas. Assim, abriu-se uma pergunta, um espaço de construção da infância, do corpo e da sexualidade, um momento de reflexão, de possível elaboração.
Miller, em seu texto Crianças Violentas, alerta os psicanalistas que não se deve aceitar de olhos fechados à imposição do significante violento pela família ou pela escola, pois pode ser apenas um fator secundário. Afinal, há motivos para acolher a revolta quando essa se diferencia da violência errática. “Há razão para se revoltar.”[4]
Integrantes: Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. Souza, Niura Kiame, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo laboratório), Suely Poitevin, Stephanie Abrão Gorte, Valéria Beatriz Araujo, Willie Anne Provin.
Vazio e invenção: Liga contra a briga
Laboratório “O saber da criança”
(CIEN-SP/BR)
“… se pensa uma inserção no laço não sem o singular”.
Indart, J.C.I. Udenio, B.
A partir das reuniões do laboratório “O saber da criança”, em 2019, e do argumento da 2ª conversação do CIEN América, escreveremos sobre o inédito que surge na prática com crianças. O inédito se apresenta a partir de um ato. Aqui não é o protocolo que orienta e sim algo que retira o discurso vigente de um lugar pré-estabelecido e o leva para um furo, que faz algo sair dos trilhos, levando a outras estradas.
A partir de um ato, descrito abaixo, da professora T., qual efeito se pode extrair da conversação?
Um dos alunos da sala, S., achou um lápis no material coletivo e disse que era seu. Outros disseram que era de M., mas M. não estava em sala e pedi para que as crianças não comentassem. Dito e não feito. M. chegou e uma criança contou a ele sobre o lápis. Pronto: confusão armada. M. segurava S. e dizia, me dá o lápis, ao que S. respondia não. Pedia que me dessem o lápis, mas eles não me escutavam e ali começaram os socos.
Quando já estavam a caminho da direção, voltaram a se bater, pararam por um momento e consegui colocar um de cada lado da grade que ficava entre as salas de aulas e o pátio. Com a grade entre eles, formando uma barreira física, assegurei um mínimo de espaço para a palavra existir. Uma pessoa da equipe gestora me ajudou a acalmá-los.
Durante nossa conversa, ambos pensavam que estavam certos. Disse ao S. que ele poderia ter dito a M. que não concordava com ele, mas que podia ter dado o lápis para ele ou para mim. Falei a M. que ele não precisava pegar o lápis dessa forma, deveriam ter me deixado ajudar a resolver o problema. Ambos foram se acalmando, sugeri que M. fosse ao banheiro. Enquanto isso, conversei com S., perguntei se ele daria conta de voltar à sala e conviver com M. até o final do dia sem brigar. Combinamos que se ele ficasse nervoso poderia me contar e sair da sala para beber uma água. Depois, enquanto S. foi ao banheiro, conversei o mesmo com M. Expliquei o combinado que havia feito também com o S. e o menino aceitou.
Retornamos para sala de aula, o assunto da briga continuou, agora com todas as crianças. Após um tempo, S. parou na frente de todos, respirou fundo e disse: “Menino, eu não concordo com você, mas me desculpa”. Silêncio e uma emoção de surpresa afloraram diante dos meus olhos. Continuamos a conversar sobre a violência. Várias crianças contaram sobre as violências sofridas. Em meio às mãos levantadas e o empenho para que todos se escutassem, a resolução começou a ser escrita pela turma. M. precisava falar, interrompia uma e outra criança e contava de seus “apanhamentos”. A ânsia de M. em falar era tanta que as outras crianças, sabiamente, compreendiam e o deixavam falar, permanecendo atentos. Eu, então, olhei para M. e disse: “Eu sei que você está contando isso tudo assim num tom faceiro, mas eu imagino o que você sentiu enquanto apanhava e sei que não foi bom. A gente precisa pensar no que sente a pessoa que apanha. Não é normal as pessoas apanharem tanto assim”. M. responde: “Ninguém gosta de apanhar”. Ao que completei: “Precisamos, então, pensar em outras formas de resolver os problemas, sem ter alguém que bata e alguém que apanhe”.
No dia seguinte, tínhamos o jornal de parede, técnica inspirada nas práticas de Freinet. Nos reunimos em roda para discutir questões trazidas pelas crianças. Na roda, a palavra estava em aberto. Neste dia, as crianças resolveram criar a “Liga contra a briga”.
Após escutar as propostas feitas pelas crianças, chamei-as em duplas para criar uma frase e espalharmos pela escola. Começamos nossa Liga. Quando chamei M. para escrever sua frase, ele inicialmente se recusou, mas, no outro dia, sentou só em minha mesa e escreveu: “Eu queria acabar com a briga. Eu queria melhorar”. Assinou seu nome: “M., 4ºB, Liga contra a briga”.
Nessa situação, a abertura para a palavra forjou um espaço onde foi possível circular um dizer sobre a violência. Um ato da professora – a conversa com os alunos – fez nascer uma invenção e abriu algo novo. Um tratamento simbólico à violência criou uma solução encarnada na “Liga contra a briga”, produziu um tratamento na conversa estabelecida ali. A professora não respondeu protocolarmente a essa situação e sim apostou no inédito. Essa aposta fez eco entre os dois alunos, nela, na turma e na escola.
Quando o praticante fala no laboratório, suas experiências podem ser ressignificadas. Também é na conversação que se produz um saber sobre a ação e sobre a coragem de um ato. A decisão de não recuar diante do saber da criança apresenta seus efeitos a posteriori. E, na invenção, abre-se um lugar para o elaborar, desde que a solução possa surgir no um a um. O que vivifica é o saber que, no lugar vazio, onde a conversação se faz presente, (inter-disciplinas), cada integrante pode encontrar sua própria resposta e tecer seu laço.
Como construir saídas frente à violência? Um dos impasses discutidos no laboratório – que trouxe o relato da vinheta acima – foi o de como construir respostas frente à violência que insiste em se apresentar entre os jovens e as crianças. Foi essa a pergunta que a professora fez ao iniciar uma de nossas conversações. Ela diz: “Passei por uma situação (a do relato) e fiquei pensando sobre o que fazer quando nos vemos em situações como essa”. Nesse momento, a construção da “Liga contra a briga” ainda não aparecia como saída, uma invenção. Perguntas feitas pelos participantes abriram a conversa. “E como foi para você deixar a sala sem um adulto?”. A resposta: “Na hora eu nem pensei, apenas fui. Eu sabia que os outros alunos ficariam bem, eu precisava estar com os dois que estavam brigando.”
Nesse ponto da conversação, cada qual com suas perguntas e contribuições, trazendo também situações onde o ato produzira efeitos, foi possível localizar que a professora havia permitido um descolamento da norma para o singular e para a invenção. Ocorreu, no momento da decisão, perceber um “não sei no que vai dar, mas eu vou arriscar”. Com isso, foi possível identificar que é a partir de um não saber, e de um permitir-se ao risco, que o inédito pode aparecer, – isso também acontece na conversação, na qual é preciso deixar um espaço para o vazio, a fim de que uma invenção surja.
Depois da conversação, dois participantes (um deles a própria professora) escreveram suas reflexões, efeito produzido pelo laboratório:
Primeira reflexão:
“O que podemos fazer quando nos deparamos com uma situação complicada com os alunos e que nos deixa de certa forma congelados? Transferir um reflexo do qual sirva de inspiração no meio do caos. A troca, em pequenos gestos tão simples, que para eles se transformam em empatia, também nos faz crescer e aprender. Pra quê um espelho se nós podemos olhar o outro? O CIEN está sendo a prova concreta que estamos recitando, declarando e nos inspirando nos reflexos coletivos. O conhecimento e a disposição é o que nos traz nesta construção.” W.M.F
“Será que me autorizo a inventar mesmo diante de um protocolo, quando me coloco a escutar? E será que escutar depende do vazio que eu permito descobrir em mim? Assim entendo que quando não há é que pode haver. Como poderia eu escutar, se em mim espaço vazio não houvesse? O que eu faço é inventar com elas, as crianças, as possíveis soluções daquilo que eu não posso resolver.” T.D.S.P
Integrantes: Ana Amélia Tridico (professora), Cássia Maria Rosato (psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo), Cláudia Santa Silva (psicóloga, psicanalista e responsável pelo laboratório), Emelice Prado Bagnola (psicanalista) Lilian Sayuri Matsumoto (enfermeira CAPSij), Nataly Pimentel (psiquiatra), Sibele Campos Martins (psicóloga e psicanalista), Tamires Dorneles e Silva Pieruccini (professora do Ensino Fundamental I) e Washington Magalhães Filho (professor do Ensino Médio. Letras – português e inglês)
“Eu não te conheço”.
Ensaios sobre saídas possíveis
Laboratório “Infancias estalladas”
(CIEN – Bs As/AR)
“O pensamento é por essência uma potência de dominação Não para até orientar o desconhecido ao conhecido, até fragmentar seu mistério para fazê-lo seu, esclarecê-lo. Nomeá-lo.”
A hospitalidade, Anne Dufoumantelle, Jacques Derrida
Encontramo-nos diante do mal-estar que nos provoca a insistência de um “sem saída” nas tentativas de dar resposta a diversas situações que afetam meninas, meninos e adolescentes. Diante da complexidade e escassez de recursos de políticas públicas que habilitem um lugar possível para eles, reforçam-se protocolos e práticas que, em nome de garantir seu bem-estar, invisibilizam essa complexidade, reproduzem respostas alienantes e os responsabilizam pelas carências do sistema.
Insistem os enunciados que os nomeiam como violentos, perigosos, estranhos, acompanhados de gestos que redobram a expulsão. Diferentes significações que recaem sobre as crianças e seu padecer, delimitando respostas nos profissionais, que muitas vezes justificam práticas segregativas.
Como tornar visível o singular de cada caso, a fim de evitar reproduzir respostas automáticas, des-subjetivantes, violentas na direção das crianças e que, por sua vez, as violentam? Como não ficarmos nós mesmos, profissionais chamados a dar resposta, como objeto dessa lógica que impera?
Na prática verificamos os efeitos de sustentar como equipe inter-disciplinar os próprios impasses, esses que furam o muro de “tudo é a mesma coisa” e “nada é possível”, onde muitas vezes a falta de recursos pareceria nos eximir do compromisso de oferecer alguma resposta.
Matías é um jovem de 14 anos. Ele é levado em duas oportunidades consecutivas para a emergência do hospital, de madrugada, algemado, com uma ordem policial e um operador do Conselho de Direitos de Crianças e Adolescentes, que de acordo com um novo protocolo de intervenção recentemente instaurado, sugere que ele seja avaliado em um centro de saúde. Esse protocolo inclui uma “plataforma informática” que consiste em um sistema de “dados compartilhados” que promete dispor de “toda a informação a partir do minuto zero” sobre as crianças e jovens afetados severamente em sua saúde, assim como sobre suas trajetórias institucionais, a fim de articular intersetorialmente uma resposta que garanta o acesso aos seus direitos. Mas na prática advertimos que a resposta é sempre a mesma: não há lugar para a abordagem das problemáticas dos jovens que estão ali. O sistema de dados funciona como um saber antecipado e totalizante, que nos conduz ao risco de obturar a emergência do sujeito e seu dizer. Voltemos a Matías. Foi recebido. Inicialmente ficamos tomados pela cena, nos prestando à repetição daquilo que o traz. Foi escutado. Ele está com muito sono e pouco interesse em falar; contudo, a seu modo, sempre é amável. Ele já conhece o percurso que o espera, um circuito que se repete uma e outra vez sem fissuras. Está entregue a isso. Realizamos um relatório, o mais humanizado possível. Falamos de um jovem que perdeu seus pais, sob os cuidados de uma irmã que, cansada das chamadas cotidianas por seu comportamento disruptivo, parece ter largado mão. Um jovem que acabou o ensino fundamental e abandonou o ensino médio. Sem abordagens prévias, apostamos na possibilidade de um tratamento possível ao que poderia ser seu sintoma.
Em sua segunda chegada ao plantão, assistimos a uma configuração idêntica. É a partir da Equipe que se introduz uma diferença: convencidos de que não-tudo[5] pode ser da esfera pública, nem de conhecimento público, decide-se sustentar em ato a escuta no privado do dizer de Matías. O policial que o acompanha não esconde seu incômodo e vai embora (não sem antes assegurar-se que Matías não possa sair dali).
Pouco depois, um terceiro encontro se produz. Mais uma vez, algemado e escoltado. Ele desmonta em uma cadeira, abatido, apenas diz “voltei a cair”. A sós, a equipe sustenta um categórico: “Eu não te conheço, vamos conversar um pouco”.
Matías começa a narrar-se. Ganha corpo, e alguma implicação no seu dizer começa a aparecer. Ele situa o consumo como o começo de seus problemas, mas logo depois corrige que já antes tinha perdido o interesse pelas coisas. Localiza-se também que pouco tempo antes disso sua mãe tinha morrido… “rápido demais”. Ele esteve em uma comunidade terapêutica, no entanto foi embora, explica, porque tinha “pessoas mais velhas, dopadas, que não queriam deixar de estar ali”. Soube que sua família saiu de férias, então “o que eu faço aqui?”, disse a si mesmo.
Retoma-se com ele algo do que aparece no seu relato: a dor, a perda, a solidão. Mas insiste: “não quero me internar porque lá não ensinam a estar fora, ensinam a estar dentro”. Adverte que tem tempo para pensar, apropriando-se de modo inovador de um saber que o Outro institucional tinha lhe oferecido: tem uma bolsa para fazer tratamento e alguns meses para decidir-se. O encontro conclui-se com o convite para seguir conversando.
A cada vez, frente à constatação da falta de um espaço possível para ele, ressoa-nos esse “sistema de dados compartilhados” criado para dar uma resposta e que, longe de orientar uma saída que o restitua no seu dizer, funciona cristalizando um relato estrangeiro aos jovens lá incluídos. Antecedentes que perpetuam a designação a um lugar inequívoco (“o violento”, “o enfermo” … o mal-vindo).
Diante do não-saber o que fazer com uma criança, nós profissionais corremos o risco de responder de modo automático, alienados no saber antecipado de um protocolo, um relatório, um preconceito. Mas, por sua vez, sustentando o incômodo desse não-saber é que podemos dar lugar a versatilidade da invenção para alojar o sujeito, como ato de recuperação da sua dignidade e reconhecimento dos seus direitos.
Trata-se de uma construção cotidiana. Que a marca seja a de uma aposta; não sabemos onde vai parar essa escuta, esse convite. Mas é a tentativa de que essa pequena incidência produza algum despertar… o da criança, e também o nosso.
Integrantes: Gabriel Arcidiácono (médico pediatra, toxicologista, emergencista), Victoria Aresca (assistente social), Vanesa Bernich (psicanalista), Mariana Castro (psicanalista), Sebastian D’ Agostino (médico psiquiatra), Carolina Dominguez (assistente social), Cynthia Galli (médica psiquiatra, especialista em arte terapia), Eugenia Gutierrez (psicanalista), Daniela Teggi (psicanalista), Milagros Vilar (Lic. em letras com orientação em linguística), Virginia Voievdca (psicanalista, professora especializada em deficiência mental), Melina Caniggia (psicanalista e responsável pelo laboratório)
Revisão da Tradução: Flavia Machado Seidinger Leibovitz
Comentários
Carlos Fernando Gómez Smith:
Em primeiro lugar, quero agradecer aos organizadores por este convite. Para mim, é uma satisfação e uma aprendizagem participar do CIEN, tal como foi há dois anos. Os casos que li foram muito ensinantes e me permitem colocar uma pergunta que espero que motive a conversação.
De alguma maneira, em todos os trabalhos, o que encontro inicialmente é uma demanda de algo que não anda; e que, a partir dessa demanda, se estabelece um dispositivo cujo fundamento é a Conversação. Sua peculiaridade é que tal Conversação aponta à invenção, a algo novo. Diria que isso que não anda tem relação com o que Lacan coloca nestes termos: “Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o domínio da violência, e que reina ali, mesmo sem que a provoquemos?” O domínio da violência começa ali onde se rompe o pacto simbólico da palavra, ali onde a pulsão deixa de ter uma amarração com um significante.
A violência infantil, portanto, é equiparável à relação que o sujeito mantém com a pulsão e com aquilo que limita esse gozo pulsional. Creio que cada um desses “que não andam” tem relação com isto. Ou seja, seguindo Lacan, a palavra funciona como um ponto de limite, uma saída frente a esse impasse que vocês recebem. O novo, nesse sentido, é que o discurso analítico é mais um entre outros, dando lugar a uma Conversação com outros discursos – qualidade que considero que sempre há que se levar em conta.
Mas também é uma Conversação, como Éric Laurent colocou em uma ocasião: “o grande projeto do CIEN é o de reintroduzir a causalidade psíquica em todos os lugares onde se leia o mal…” Essa frase guiou, no meu entender, a Conversação e considero os trabalhos de hoje introduzem esse ponto da causalidade. Destaco também outro ponto, que concerne a algo que Alejandro Daumas trabalhou – a quem homenageio neste momento – que concerne à dignidade do sujeito. Gostaria que vocês pudessem destacar de que forma, em cada uma das experiências que desenvolveram, a questão da dignidade do sujeito esteve em jogo.
Obrigado.
Vania Gomes: Você poderia repetir a pergunta?
Fernando: Eu lhes dizia que queria prestar uma homenagem a meu amigo Alejandro Daumas, usando suas palavras. Palavras que Juan Carlos Indart retoma na primeira Conversação, que toca a dignidade do sujeito. Disso que, de alguma maneira, está posto no trabalho de cada um. Gostaria que pudessem destacar isso em cada trabalho. Essa seria minha pergunta.
Vania: Obrigada Fernando. Vamos escutar outras perguntas para darmos início à conversação.
Ana Lydia Santiago: Um prazer escutar os trabalhos da mesa e seguir constatando como cada laboratório trabalha de maneira única neste dispositivo do CIEN. Chama muito a atenção, nas exposições, como o ponto da dignidade do sujeito pode aparecer como efeito da conversação. Por exemplo, no caso Nahuel, a conversação permite à professora intervir de maneira inédita para ela e em relação à escola, o que deu espaço para que algo da criança aparecesse.
No texto “Crianças terríveis”, chama atenção como a conversação, em laboratório com os professores, abre um acesso, mesmo que mínimo, ao efeito de transferência, inconsciente, que a professora apresenta em relação à criança em questão. Isso não é incomum. Em minha experiência em escolas, testemunhei algumas situações em que, por exemplo, uma professora entra em sala de aula, no primeiro dia, afirmando que determinado menino não irá passar. Constatamos que algo da transferência interfere nessa relação, e às vezes é a criança quem paga um preço caro por esse traço que carrega, algo de insuportável, mas não nomeável a princípio. O laboratório permite tratar desses efeitos, desse fenômeno da transferência inconsciente, que se reproduz na escola das mais diversas maneiras entre o professor e o aluno.
Em relação ao trabalho “A porta fechada”, chama atenção como é comum para quem trabalha com crianças o encontro com situações em que suas perguntas são atuadas, não enunciadas; as crianças atuam a puberdade, atuam as questões da sexualidade, atuam a violência, mas para perguntar…
É mais fácil nomear TOC, TDH, Autismo etc., ou ainda nomes como “terrível”, um nome que surge na escola. O desafio da conversação pode ser abrir para os professores a possibilidade de tradução da pergunta da criança. É um trabalho que o analista faz no consultório, mas também um primeiro passo que os educadores, os professores, todos que lidam com a criança, podem dar, fazer a pergunta: “o que esse menino está querendo dizer?”. “O que ele está querendo dizer atuando desse jeito, batendo desse jeito, apertando o pescoço do próximo, ou correndo de um lado pro outro, ou apontando o lápis até ele acabar?” Com isso, é possível permitir que as crianças mesmas formulem suas perguntas, a partir da oferta da palavra.
Esse mesmo ponto também me chamou a atenção no trabalho “A liga contra a briga”, a forma como foi feita a oferta da palavra, a professora praticando a oferta da palavra dentro da sala de aula. Algo que não tinha espaço na escola, e que ela conseguiu fazer acontecer de um modo fantástico, se surpreendendo depois. Acontece, então, uma conversação autêntica entre os professores, quando perguntam, “mas você saiu?”, isso surpreende por ser impensável dentro das normas da escola. Dá ideias aos demais participantes da conversação, permitindo a circulação da palavra e que algo novo possa acontecer.
Marcia Crivorot: Gostaria de ouvir a mesa sobre a experiência da diferença que o dispositivo de conversação – que conta com a presença da interdisciplinaridade e com um tempo para um trabalho ser feito, um tempo que eu chamaria de fugidio, no sentido de que algo aí se levanta para que posteriormente possa ser desenvolvido pelas pessoas que estão trabalhando na instituição –, traz para o trabalho. Gostaria de ouvir sobre a experiência de vocês em relação a essa diferença, tanto como professora em sala de aula, como psicóloga e como psicanalista.
Um Membro da NEL: Interessou-me muito a maneira como colocam a Conversação, porque ficou muito claro nas apresentações, que a Conversação não se trata da palavra no sentido da comunicação. Trata-se do mal-entendido estrutural na relação com a linguagem, do qual se extrai que não há um saber-todo, que há um furo e não se tenta preenchê-lo.
Marita Manzotti: Quero retomar o que Fernando Gómez colocou sobre a questão da dignidade, que está no título desta conversação. Parece-me que a dignidade comparece de várias formas e de ambos os lados. Aparece o respeito à dignidade das crianças, na confiança da professora ao dizer “bom, vou me dedicar a isto que me convoca neste momento porque sei…” Trata-se de uma aposta sobre um cálculo. Sabe que os meninos vão se comportar bem, porque ela está se ocupando de outras crianças. Ou seja, há algo que frente ao declínio das figuras de autoridade permite a aposta na própria autorização. Ou seja, quando isto aparece no caso de Nahuel, não é sem a confiança do outro. Disto que ontem conversávamos muito, como Beatriz situava, a questão dos adultos, não? Ou seja, adultos que possam acolher o sofrimento da criança ou do adolescente, tal como fez a psiquiatra no caso, que pediu ao policial que fosse embora porque se tratava de uma questão privada. Ou seja, poder colocar um limite à ordem pública respeitando a dignidade do sujeito.
Tamires Dorneles: Sobre a conversação: posso dizer que participo de uma conversação do Cien, mas não saberia afirmar se o que eu faço na escola é uma conversação…Trabalhamos com a teoria de Célestin Freinet, um pedagogo francês, da primeira metade do século XX, que desenvolveu técnicas de trabalho pedagógico nas quais considera a participação dos alunos. O que faço, o jornal de parede, é uma reunião semanal, um momento em que nos sentamos em círculo e a palavra realmente fica em aberto. Acredito que, com o tempo, falem cada vez mais e possam, eles mesmos, conduzir as reuniões. Há um cartaz colado na porta do meu armário, para que os alunos da tarde não destruam esse material: envelopes colados, “eu quero saber”, “eu critico”, “eu proponho” e “eu ofereci”. Durante a semana, colocam os papeizinhos nesses envelopes. No jornal de parede, as crianças leem os papéis e a gente discute as questões. Uma regra que coloquei – vocês podem me ajudar a pensar se por aí é mais interessante mesmo – foi que, quando fazem uma crítica não podem escrever o nome da criança criticada, criticam-se apenas ações. A partir das críticas às ações que incomodaram, a gente discute. Questões sobre apanhar e bater aparecem bastante. Estou em uma escola pública, num bairro com o tráfico organizado, preciso falar com famílias envolvidas, conversar com eles, dar condições, existe muita violência doméstica… o machismo é muito forte, então a violência é banalizada como uma forma de resolução das questões. E no jornal de parede se colocou: “mas qual é o problema de apanhar?”, e eles mesmos contam coisas muito bonitas. É o que eu faço em cima da ideia do jornal de parede.
Sobre a dignidade do sujeito, dentro da instituição escolar temos uma concepção, somos formados a partir da ideia de que o professor fala e o aluno escuta. O professor é quem sabe. Na escola onde eu trabalho, outras salas de aula também fazem jornal de parede, partimos da perspectiva de entender que a criança tem direito à voz, tem direito a pensar, tem direito a sentir, tem direito a se expressar, mesmo que o que ela diga não esteja em conformidade com o que espero dela. Afinal, nós, professores, esperamos, não é? Tenho me perguntado sobre qual a escuta que me cabe, como professora – falamos bastante do trabalho do psicanalista, dessa escuta psicanalítica, mas qual a escuta da professora? Acho que a dignidade das crianças e adolescentes está em assegurar esse direito a terem voz, a serem alguém que pensa, que sente.
Existe um texto do Paulo Freire que é sobre ouvir as crianças – não tem como não pensar também sobre a democracia. Segundo Paulo Freire, “quando escutamos as crianças, nós também as ensinamos a escutarem”. Está dentro dessa ideia uma postura de uma professora não autoritária, uma tentativa de uma postura democrática. A democracia se faz com a garantia de direitos. A garantia de direitos à dignidade das crianças e adolescentes também é algo necessário, quando pensamos em fortalecimento da democracia, que é algo que nos é caro.
Vânia: Os professores também têm algum espaço pra eles na escola?
Tamires: Temos um grupo de trabalho onde discutimos a pedagogia de Freinet.
Vânia: Mas essas questões, por exemplo, que aparecem nas atividades que vocês fazem, isso é discutido também?
Tamires: Embora pudessem haver outros espaços, o laboratório me ajuda muito, a “Liga contra a Briga”, eu dei muito mais valor a ela depois do laboratório. Agora a liga está espalhada.
Ana Paula Araújo: Eu sou psicóloga de formação, tenho uma experiência com o inconsciente, faço análise pessoal, participo do laboratório com a Ana Martha, e hoje estou na gestão pedagógica dessa escola, onde as conversações estão acontecendo.
Ouvindo a colega falar, penso que com certeza muda completamente o trabalho, a perspectiva muda, inclui o aluno, dá valor. Isso é dar dignidade ao aluno. A escola onde eu trabalho é tradicional, há ali uma especificidade da equipe que acredito ser importante, o fato de trabalhar junta há mais de quinze anos. As professoras todas trabalham na instituição há vinte, a mais nova tem quinze anos de instituição. É difícil fazer um furo ali.
Vânia: As conversações são feitas na escola?
Ana Paula: Sim. Achei lindo o trabalho de vocês, vou me inteirar dessa pedagogia. Sobre o comentário de Ana Lydia, essa professora pode se autorizar a fazer algo diferente. É muito difícil quando os outros perguntam: “Como assim, você saiu de sala?”, “Podemos fazer a mesma coisa?” Essa autorização só nasce se há ali um não-saber. Na escola, os professores ainda estão muito referidos a uma norma que vai vir de cima. Perguntam: “O que a escola vai fazer? O que a instituição vai fazer diante desse menino?” Aguardam a ação da escola.
A diferença do laboratório tem sido produzir uma divisão lá onde o discurso do mestre ainda é muito forte. A professora presente na conversação é alguém forte na escola, então outras a seguem. Lembrei-me da frase de Lacan: É preciso que os analistas tenham no horizonte a subjetividade da sua época, seria muito bom que os professores também a tivessem.
O significante “terrível” tem aparecido muito na escola, ele fala da subjetividade da nossa época, de como as coisas estão. Em momento algum essa criança foi interrogada, até que eclodisse em uma cena violenta. Conforme comentou Ana Lydia, mal ele chegou à escola, se anunciou como terrível, e a professora tomou isso para si: “Eu estava esperando que algo desse tipo fosse acontecer”, disse. Quando ele tem um encontro comigo depois dessa cena, eu pergunto, “o que é isso, ser terrível?” “Você não sabe? Eu sou terrível. Eu mordia meus colegas no jardim de infância”. Ao que comento: “ué, mas os meninos aqui no jardim de infância costumam fazer isso, eles mordem os colegas”. Ele se surpreende: – “É?!”.
Talvez a pergunta seja essa: “o que ele estava fazendo ali? O que é ser terrível?” Acho que ele escutou.
Vânia: Você falou sobre o não-saber. Vocês localizam algo que o saber não dá conta. Como isso se produziu na conversação?
Ana Paula: Foi preciso um corte. Como eu estou ali no lugar de diretora da escola, as professoras esperam de mim uma solução. É legal a conversação por isso, a todo tempo é lançada a pergunta: “E aí, o que fazer numa hora dessas?” Eram ditas coisas como: “Ele queria te provocar”. Penso que quando falamos da dignidade do sujeito, também se faz preciso pensar na dignidade do professor. É um trabalho muito complexo, cada vez mais, agora que essa autoridade não está aí. O recurso à norma torna-se um refúgio mesmo, uma segurança.
Depois do corte, inserido na conversação no momento em que a professora estava muito queixosa em relação ao menino, repetindo que achava que ele a confrontava o tempo todo, e a queixa a respeito da vergonha que passara devido à fala do aluno sobre ela ter roubado seu celular, não toca mais nisso. No carro, quando voltamos juntas, começou a falar da filha: “está muito difícil o diálogo com ela porque ela me confronta o tempo todo”. Aí eu digo “nossa confronta de novo, né?”
Há duas semanas, vivi uma experiência com outra professora. Ela reproduziu com a turma a Iara, uma personagem do folclore brasileiro, uma índia da Amazônia. Depois de ter lido a lenda, assistido a um filme produzido pela prefeitura do Rio, foi para sala com as crianças para fazer uma pintura. As crianças fizeram uma pintura da Iara loira – a professora é loira. Não tem nenhuma menina branca na turma. Quando eu vi a Iara loira, fiz uma provocação: “Mas a Iara não é uma índia da Amazônia?” As crianças disseram então que ela precisava ser morena, com a pele mais escura. A professora me disse: “Você e sua implicância”. Fiquei com essa palavra implicância – o que a gente se implica, o que te interroga. É bom… quando você tem uma experiência com o inconsciente.
Beatriz Udenio: Somente para dizer que Fernando conseguiu a resposta de como reintroduzir a causalidade psíquica: se reintroduz a partir de si mesma, pelas vias do inconsciente.
Renata Soares: Essa conversação teve uma particularidade, normalmente temos um tempo prévio, umas cinco ou seis conversações. Essa em particular teve algumas contingências, coincidiu com as férias, Copa, etc, intervalos. Foram feitas dez conversações na escola. É interessante pensar o tempo na conversação, pois é necessário ter um tempo de concluir a fim de se evitar a fala do blábláblá. Mesmo com as crianças, não só com os adultos, isso também acontece.
É importante situar que essa escola fica localizada dentro da maior favela da cidade de Curitiba, na qual a questão do tráfico é muito presente, bem como da violência. Um ponto que me chamou a atenção, tocando na dignidade do sujeito, foi a possibilidade de situar algo em relação à privacidade. As casas nessa favela, muitas vezes, são pequenas, o que faz com que os moradores precisem dormir todos num único cômodo. Por vezes, isso possibilita que as crianças estejam mais expostas ao sexo. A morte também às vezes se apresenta nas esquinas das casas, com manchas de sangue. Então, no momento em que o menino levanta para fechar a porta, isso se torna um ato que marca algo fundamental do trabalho ali, onde eles poderiam falar e não mais atuar, como Ana Lydia pontuou. Atuavam na agitação dos corpos, na sala em que era impossível trabalhar, e podem então ir cedendo um pouco do gozo. Colocando em palavras, aos poucos, algo da sexualidade, muito mais do que da violência em si. Nós já fizemos outras conversações nessa mesma escola e o tema violência foi o cerne. Acontece muito de a demanda vinda da direção ser diferente da que os adolescentes trazem.
Nessa, a demanda foi a questão da violência e o que foi possível trabalhar, foi “falar da vida” – como as crianças dizem –, das mudanças dos corpos, das sexualidades, a partir das letras de funks, que é o que os jovens cantam. Ali, eram letras que traziam, de uma maneira muito forte, marcada no corpo. Aos poucos, elaboram perguntas: “ah, como é que nascem os bebês?” Não é nem tanto a pornografia que se vê no celular, não é a letra do funk…
Essa conversação foi primorosa nesse sentido. Queria deixar aberta uma questão para continuarmos conversando, a questão da transferência, da violência sob transferência. Como pensá-la no CIEN? É algo da ordem da confiança, podemos falar de transferência? Como isso se passa nos laboratórios?
Marita Manzoti: Quando comentei sobre o lugar onde estava funcionando este Laboratório, queria destacar que essa cidade está no “fim do mundo”: Ushuaia, uma cidade que se caracteriza por um alto nível de migração. Está quase que inteiramente constituída por gente de toda a República Argentina que foi trabalhar lá. E o que caracteriza o trabalho do Laboratório é ir circunscrevendo as dificuldades da família em se instalar com algum laço que não seja familiar. Porque são desenraizados. Com isso, o nível de isolamento e de desenraizamento é muito intenso e aparece permanentemente nas dificuldades que as crianças têm para se integrar no laço social.
Este caso é o de uma professora, porque o Laboratório está constituído por professores de distintas escolas. E dá um panorama bastante claro de quais são os sintomas sociais da cidade, onde se reiteram o desenraizamento e a violência em relação às crianças.
Há muitas situações em que os professores não sabem muito bem o que fazer com a rebeldia das crianças. Rapidamente, poderia cair do lado destes nomes que adquiriram na escola: o bullying, a criança violenta, a criança inadaptada, e que não alojam o mais subjetivo e as dificuldades que cada criança tem para se enfrentar com a solidão dos vínculos que se desfazem em âmbitos tão difíceis.
Creio que o interessante que se produziu no trabalho deste laboratório é como permanentemente há uma tentativa, um convite a que cada criança se responsabilize pelo valor que tem sua escolha. E que é a partir daí que se dignifica a possibilidade de intervenção que os Laboratórios do CIEN têm, porque convidam a que cada um seja responsável e veja se pode fazer algo com isso, na medida em que isso faz sofrer.
E por outro lado, me parece que o efeito que Judith sempre insistia é na crença no inconsciente. Era como um leitmotiv. O lugar da psicanálise nos Laboratórios: “confiar no inconsciente é talvez um exercício permanente dos Laboratórios. Porque implica dar conta da responsabilidade do gozo e dar conta de que há algo que cada sujeito tem que inventar para resolver seu modo de sofrer”. Então, nesse sentido, me parece que, nesse caso, a possibilidade desta criança se inventar até chegar a Frida e encontrar que com o sofrimento se pode fazer outra coisa que não o enraivecimento.
A aparição de um dado de sua história, que foi a fratura de um braço que o tornou mau. Ou seja, não contou com outro recurso mais que a rebelião, a violência e o enraivecimento.
E, como ao ser acolhido com a confiança que uma professora pode conseguir quando escuta, introduziu a possibilidade de que esta criança fizesse uma transformação. A professora se transforma e a criança também. E nesse ponto caem todas as etiquetas, caem todos os protocolos para trabalhar com crianças violentas. Há aí um ponto onde acolher a palavra não é suficiente, é preciso promovê-la porque não estamos acostumados a ser escutados. E me parece que em todas as experiências que vamos contando, há um convite à palavra, mas porque também há quem possa escutá-la.
O último ponto que queria comentar é o estatuto da psicanálise em relação às outras disciplinas. Uma das questões que Beatriz trabalhou no início do CIEN era em relação à inter-disciplina e ao vazio de saber. Lacan teve diferentes posições em relação à psicanálise com os outros saberes. Até que finalmente situa a psicanálise como um saber entre outros que tentam abordar o real. Quando conseguimos situar no centro da questão o não-saber, estamos todos na mesma condição. O que nos faz diferentes é que a psicanálise é a que convida as outras disciplinas, somos os anfitriões. A psicanálise convida a conversar porque estamos todos com problemas e porque sabemos que há uma causalidade que não vem somente das etiquetas, que cada um escolhe uma forma que às vezes é a mais sofrida.
Então, me parece importante situar como a psicanálise acompanha e se deixa acompanhar. Daniela já dizia “acompanhar estando ao lado”. Este lugar onde alguns têm que ser bons anfitriões para as outras disciplinas. E me parece que, em todos os exemplos, cada um foi um bom anfitrião.
Daniela Teggi: Eu vou dizer algo a respeito do Laboratório apoiando-me no título que é “eu não te conheço”. Isso é algo que se extrai nas Conversações a partir da insistência deste garotinho de entrada no plantão. Muitos dos profissionais que estão no Laboratório participam de um plantão de um Hospital Público de crianças e adolescentes, em Buenos Aires. E era um caso que nos interpelava muito por esta questão de escrever relatórios, fazer o esforço de transmitir que era desejável que se escutasse o que esta criança necessitava, quais eram as sugestões que se poderiam fazer para que ele pudesse ter um lugar. Percebem-se no relato as dificuldades para um sujeito em criar um lugar de escuta no outro. E isso retornava sobre os profissionais e os dividia. Surgiu nas conversações qual podia ser a maneira de dizer, de colocar em jogo a impotência. Quer dizer, como se lidou com este caso e o que se extraiu da Conversação, para que pudessem voltar ao trabalho.
Para que isso que se transforma em uma letra morta, em um relatório, um protocolo que se publica, permita que esse sujeito tenha um lugar. E é a partir desse “eu não te conheço” que a criança começa a narrar algo de sua história. Então aparece sua palavra, sua enunciação, que permite aqueles que trabalham com ele, colocar um limite à polícia para que não entre nas entrevistas. E também por um limite ao uso da medicação, que arrasa com este sujeito.
O desafio permanente é como não ficar capturado na maquinaria institucional e colocar algum ponto de parada que permita que o sujeito tenha uma oportunidade para inventar – como dizia Marita.
Beatriz Udenio: … também fecharam uma porta…
Daniela Teggi: Também fecharam a porta, é verdade, para que isso fique do outro lado. Além disso, é interessante o que esse jovem diz a respeito de como se configurou para ele o estar dentro e fora, e nos adverte, a nós que acreditamos que estamos fora, mas também estamos dentro.
[1] Psicanalista Praticante, Correspondente da Delegação Paraná – EBP, Coordenadora do CIEN-PR. renataspsoares@gmail.com.
[2] O Laboratório Ciranda de Conversa realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar.
[3] MILLER, J.A. “O inconsciente e o corpo falante”. In: SCILICET: o corpo falante. Belo Horizonte: EPB, 2015. p. 21.
[4] MILLER. J. A. “Crianças Violentas”. In: Opção Lacaniana, 77. Abril de 2017. São Paulo, Edições Eolia.
[5] N.T.: Em espanhol no-todo, referência ao regime do não-todo em português. Optamos pela forma não-tudo, com o hífen para indicar a referência.
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ABERTURA – II Conversação CIEN América – A criança violenta e a dignidade do sujeito
by cien_digital in Cien Digital #24
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Mônica Hage (CIEN-Brasil) e
Daniela Teggi (CIEN-Argentina)
Mônica Hage:
É com muita alegria que vamos dar início hoje à II Conversação do CIEN América, nesta que é a 9ª Jornada Internacional do CIEN. Este trabalho conta com a interlocução com a Fundação do Campo Freudiano e a atenção cuidadosa de Ève Miller-Rose.
A primeira Conversação do CIEN América aconteceu há dois anos, em Buenos Aires, e teve como título: “Os laços sociais e suas transformações”. Nos dois anos de trabalho que se seguiram, pudemos construir a temática de hoje: “A Criança violenta e a dignidade do sujeito”, fazendo uma articulação entre o tema central das Redes do Campo Freudiano sobre a Infância – crianças violentas – e o que pontuou Juan Carlos Indart em sua fala de encerramento em Buenos Aires, sob a forma de perspectivas para um trabalho futuro.
Indart nos fez lembrar que uma conversação do CIEN acontece quando cada um pode inventar, “arriscar-se a colocar em palavras a sua singularidade”. Tomando a expressão “dignidade”, de Alejandro Daumas – e aqui prestamos uma homenagem ao nosso colega –, Indart nos sinalizava a “dignidade singular” como o ponto de alcance máximo a se aspirar em uma conversação. Aponta, assim, como perspectiva e, por que não, também como desafio, o exercício de situar esse “isso” dessa “dignidade singular” com a noção de sinthome, do último ensino de Lacan.
Em outras palavras, a ideia era a de que nos interessássemos pelos ganhos do sinthome, como sustentação para um sujeito se instalar na vida, no mundo e no laço social.
Testemunhamos, hoje, mais uma vez, que as crianças e os jovens, sensíveis às modificações no laço social, orientam o campo de investigação do CIEN. Então, como pergunta que orienta a nossa política, trazemos no argumento a questão: “como ser receptivos aos diferentes modos de resposta sintomática dos jovens e das crianças?” A nossa aposta é na política do sintoma como invenção. Contra os ataques de ódio e violência atuais nos perguntamos: o que podemos coletar como um saber fazer?
Para o CIEN Brasil, “a aposta é a de que cada um possa responsabilizar-se por um dizer que lhe escapa, por um ato que lhe surpreende e reconquistar, como sujeito, a dignidade de seu sintoma e outra possibilidade de laço com o Outro.”
Para a construção dessa Conversação, tentamos enfatizar o próprio dispositivo da conversação no trabalho que fizemos, um a um, com os estados do Brasil. Através de uma interlocução que se deu ao longo deste ano, pudemos ir recolhendo e intervindo, junto às coordenações de cada local, nos pontos de impasse, tentando promover aberturas e novos direcionamentos. O fruto deste trabalho recolheremos hoje com a presença viva da prática de cada laboratório.
A interlocução com o CIEN Argentina, através da presença das colegas Daniela Teggi e Beatriz Udenio, e da nossa futura coordenadora do CIEN Brasil, Flávia Cêra – a quem dou as boas-vindas –, foi fundamental para a construção deste encontro. Uma verdadeira conversação para realizar esta conversação de hoje.
Para animar a conversa, nas duas mesas de trabalho, contaremos com a presença dos colegas Fernando Gómez Smith (NEL) e Flávia Cêra (EBP), sob a coordenação de Vânia Gomes e Mônica Campos.
Antes, gostaria de retomar em que consiste o trabalho do CIEN. No Ato de Fundação de sua Escola, Lacan define que deveria existir, além das seções de “Psicanálise pura” e de “Psicanálise aplicada”, uma seção que ele denominou de “Recenseamento do Campo Freudiano”. Nesta seção, ocorreria, dentre outras coisas, uma articulação entre a Psicanálise e outras disciplinas, que Lacan chamou de “ciências afins”. Nas palavras de Judith Miller, essa terceira seção teria “uma dupla função, visto que concerne, por um lado, à relação que a Psicanálise e os psicanalistas podem manter com outras disciplinas, se deixando instruir por elas e, por outro, à preocupação de educar as inteligências que se especializam nessas diversas disciplinas.
Para um psicanalista estar à altura dos seus deveres no mundo, esperam-se dele diversas tarefas.
Estão aí sutileza e a delicadeza do trabalho do CIEN. Convido vocês a se deixarem tocar pelo que irão escutar e, com os corpos, a se manifestarem em nosso debate! Passo, antes, a palavra a Daniela Teggi.
Daniela Teggi:
Bom dia a todos. É um prazer estar aqui e iniciar o movimento de abertura desta Conversação.
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à Paola Salinas e aos colegas do Brasil pelo intenso trabalho realizado para podermos estar aqui hoje reunidos e comparecer a este encontro.
Obrigada a Ève Miller-Rose, por sua presença e sua companhia; e a cada um de vocês.
Bem-vindos à Segunda Conversação Internacional do CIEN Americano. Segunda Conversação que nos encontra transitando outro tempo no Campo Freudiano e em nosso CIEN. Um tempo que nos obriga, nos força a estar atentos e disponíveis, nesse laço tão peculiar que é a interdisciplina.
Nas “regras do jogo”[1], nas Jornadas do CIEN do ano 2000, Judith Miller se referia à interdisciplina deste modo: “Crer no inconsciente é o que o CIEN compartilha com o conjunto do Campo Freudiano, e é por este fato que pertence ao Campo Freudiano. Mas o CIEN tem uma pretensão, para além do Campo Freudiano, partindo da crença no inconsciente, aquilo que chamamos interdisciplinaridade. E nesta interdisciplinaridade, o CIEN está animado por um desejo, ou seja, a marca de um não saber, um furo no saber. É precisamente este furo o que anima o CIEN; é muito singular e se dirige aos outros saberes, às outras disciplinas que atuam no vínculo social.”
O projeto de investigação do CIEN continua, persiste, resiste, percorremos suas vias através das experiências dos Laboratórios e para isso nos servimos do instrumento da Conversação, sustentando o furo de saber, suportando seus efeitos, e, acrescento, suportando seus efeitos corpo a corpo e suas transformações, como disse Éric Laurent. Dando destaque às respostas e invenções de cada criança e dos que trabalham com elas.
Uma aposta que se sustenta, a cada vez, no laço com outros e requer, por parte dos interlocutores, uma disposição espontânea, e, para dizê-lo de algum modo, de interesse, de espera, sem preconceitos.
Hoje, o empuxo feroz de um discurso burocrático e totalizador atravessa os campos da saúde, educação, social e jurídico, arrasando tanto a criança como o adulto, manifestando-se em uma intolerância radical e em respostas desmedidas.
A pergunta inicial do argumento “o que é que se faz escutar na contemporaneidade?”, será colocada em tensão. Crianças e jovens se fazem escutar com suas respostas e são a bússola em um tempo inquietante.
Em uma entrevista realizada por Le Diable Probablement, “A reconquista do Campo Freudiano”[2], Judith Miller, ao final afirma: “O mundo mudou muito desde Lacan. Estou convencida que não posso fazer nada melhor do que consagrar que seu ensino e o desejo do qual dá testemunho continuem sendo transmitidos: é uma verdadeira escolha da civilização, uma aposta essencial sobre o porvir. O porvir me parece inquietante, é claro, mas este desejo e este ensino permanecem como uma bússola fiável e isso supõe que cada um coloque algo de si”.
Convido, então, que cada um de nós coloque algo aqui hoje, nesta Conversação, que a animemos entre todos, que sustentemos esse furo de saber para sair um pouco modificados deste encontro.
Deixemo-nos ensinar pelas experiências de campo e por suas ressonâncias, e novas perguntas se decantarão a partir do nosso encontro, submergindo-nos em um trajeto novo. Obrigada.
[1] Miller, J. Las reglas del juego. Jornada del CIEN, “Detrás de las normas, el detalle”, 19 de julho de 2000.
[2] MILLER, J. La reconquista del Campo Freudiano. Entrevista. In: El caldero de la Escuela. Nueva série. Publicación de la Escuela de Orientación Lacaniana, n. 16, año 2011.
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Dignidade, um significante em rede[1]
by cien_digital in Cien Digital #24, Hífen
Paola Salinas (EBP-AMP)
Uma rede pessoal, a princípio.
Inicialmente, este significante se precipitou a partir de uma torção em relação à indignidade, construído em uma primeira reunião por skype com Ève Miller-Rose, Daniel Roy e Anne Ganivet–Poumellec[2], contingencialmente, em um momento decisivo no qual eu iniciava uma nova análise. Uma angústia me acompanhava quando me vi só, diante do computador, com algumas anotações sem falar o francês, ao mesmo tempo que só, em outro país, cuja língua eu falava e que apesar disso, não conhecia. Este só compunha outra rede pessoal, que não deixava de se impor à construção do meu laço com a psicanálise, a partir de outra perspectiva da solidão e da palavra.
A dignidade, especificamente ‘a dignidade da palavra’ também estava em uma rede pessoal, já afetada pelo trabalho no Cien Brasil com uma grande equipe de colegas dos diferentes estados brasileiros e com os laços com o Cien Argentina desde o ano anterior.
Indignação era um dos significantes que compunham o título do IX ENAPOL, e era um ponto de partida para pensar a II Conversação do CIEN América. A dignidade do sujeito como bússola era algo que me permitia pensar o singular dentro do coletivo. Nesta primeira reunião, pude escutar aportes, ressonâncias e explicitar a cadeia de trabalho à qual o significante dignidade pertencia. O tema então se decantou: “A Criança Violenta e a Dignidade do Sujeito”.
Uma rede com o laço, com o outro
Esta frase soa estranha, mas surgiu espontaneamente dessa forma, talvez por querer destacar que a rede foi motivada pela importância do laço. Ou seja, para além ou para aquém do outro, o laço constitui-se em uma ferramenta fundamental em nossa prática, bem como na possibilidade de reintroduzir a solidão em um coletivo.[3] Possibilidade esta que pude extrair do CIEN, com os diferentes colegas com os quais compartilhei o trabalho, um laço considerando a solidão de cada um.
O significante dignidade se apresentou, primeiramente, ao buscar formalizar os efeitos de uma determinada conversação, nas palavras de Alejandro Daumas[4]. Estávamos na I Conversação do Cien América e este ponto retornou nas perspectivas finais, nas pontuações de Juan Carlos Indart, que soube extraí-lo, afirmando que “quando cada um pode se arriscar a colocar em palavras um pouco da sua singularidade, podemos dizer que uma conversação ocorreu e desse modo, a ‘dignidade singular’ seria o alcance máximo que se poderia aspirar em uma conversação”[5]. Já no Argumento da II Conversação do Cien América[6] , enunciávamos que quando se aposta que cada um possa se responsabilizar por um dizer que lhe escapa, por um ato que lhe surpreende, e assim reconquistar como sujeito a dignidade de seu sintoma, abre-se outra possibilidade de laço com o Outro.
Uma rede que inclui a diferença, e por que não, a diferença sexual[7]
Se sustentamos que a dignidade no CIEN se apresenta de modo “contingente, articulada ao desejo e à margem da rotina protocolar, podemos verificar uma aposta que se sustenta a cada vez no laço com os outros e que requer uma tomada de posição frente ao saber e ao ideal”[8]. É justamente um vazio de saber que é convocado e é interessante, senão essencial, que assim seja.
Ser possível inserir no laço social algo da singularidade porta uma dignidade, sendo que a primeira guarda uma relação íntima com a diferença absoluta. A dignidade de uma diferença é a de poder dela se apropriar e tomá-la, seja na experiência analítica, ou em pequenas experiências do dizer, como nos laboratórios, na direção contrária à da segregação.
Assim, trata-se mais de retomar o ponto de exclusão de cada parlêtre presente em sua constituição[9], tomar o corpo incluindo esse ponto opaco que o compõe e que marca uma diferença essencial, que não pode ser absorvida em nenhuma identidade, normativa ou não. A ética lacaniana parte da noção que o sexual porta um impossível de legislar, de domesticar, de harmonizar, e de nomear precipitadamente.
Transmissão
Creio poder afirmar que a dignidade de uma diferença é que ela seja sinthomática, ponto mais singular de um sujeito, frente ao qual, na experiência analítica, se espera uma identificação. Uma diferença sinthomática, uma identificação ao sinthoma, que é diferente de identificar-se a uma identidade compartilhada ou a um grupo.[10]
Seguimos no Cien América na construção a tantas mãos, letras e ouvidos, em um laço renovado e vivificado. Ademais de contarmos com os aportes do Cien francófono. Esta El niño 15[11] dá mostras de um diálogo constante, aberto e furado em relação ao que nos cabe investigar neste momento no CIEN, que nomearia de modo geral, pontos da diferença sexual.
Assim, ao acompanhar a rede do significante dignidade, desde a I conversação de 2017, a reunião por Skype, a II Conversação em São Paulo e este momento de lançamento da El niño, posso constatar que ocorreu uma transmissão. Uma experiência de dignidade em ato, a qual depois pode vir a se fazer texto. É a partir dessa experiência que as citações, referências e comentários podem transmitir melhor, incluindo o corpo no tecer dessas redes de trabalho. A experiência do CIEN contribui desse modo para a psicanálise atual, ao tecer, não sem o corpo, um lugar para acolher a diferença e retomar outro modo de laço com o Outro. A psicanálise como anfitriã desse espaço, abre os poros para que o singular possa respirar.
[1] Texto apresentado no Lançamento da Revista El Niño n 15, em 26 de setembro de 2020, via Zoom.
Disponível em: Presentación de la Revista El niño – Última parte – https://www.youtube.com/watch?v=SXC0BUwxET4&list=PLtR_NyEau3CbD6Czt4UxAEZ2kIFSa7uNF&index=2&t=55s Traduzido do espanhol pela autora.
[2] Compõem o Bureau da Fundação do Campo Freudiano. A reunião ocorreu em março de 2019.
[3] Miller. J. A. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola. In: Opção Lacaniana on line nova série. Ano 7, n 21, novembro de 2016.
[4] Impossível não mencionar seu livro intitulado La dignidad del niño analizante. Lançado em 2018 pela Grama Ediciones.
[5] Udenio, B e Indart, J C Os laços sociais e suas transformações. Conversação Internacional do CIEN 2017 – Mesa de Encerramento. In: Cien Digital, n 22. novembro de 2018. Disponível em: www.ciendigital.com.br
[6] Argumento II Conversação Cien América, São Paulo, setembro de 2019. Disponível em: https://cienbrasil.wordpress.com
[7] Tema de estudo das Redes da Infância do Campo Freudiano 2019-2021.
[8] Salinas, P. Cêra, F. CIEN: una apertura posible a la dignidad. Puntos vivos de la II Conversación Americana del CIEN. In: Revista El Niño n 15. El niño: modulaciones sobre lo neutro. Comp. Beatriz Udenio. Publicación del Instituto del Campo Freudiano y del Centro Interdisciplinario de Estudios sobre el Niño (CIEN) – Nueva serie. Olivos, Grama Ediciones, 2020.
[9] Lacan, J. El ombligo del sueño es un agujero. Respuesta a Marcel Ritter. In: Freudiana, n 87. La discordia de los sexos. Septiembre-Diciembre de 2019. Revista de Psicoanálisis de la comunidad de Cataluña de la ELP.
[10] Laurent, É. Observaciones sobre tres encuentros entre el feminismo y la no relación sexual. In: El psicoanálisis. Revista de la Escuela Lacaniana de Psicoanálisis. n° 35, p. 7.
[11] Revista El Niño n 15. Id. Ibid.
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Editorial – Janeiro de 2022
by cien_digital in Cien Digital #24, Editorial
Mônica Campos
Caros leitores, é com satisfação que apresentamos, no 24º Cien digital, a II Conversação do CIEN América que ocorreu em setembro de 2019. Um trabalho realizado com a interlocução da Fundação do Campo Freudiano e a presença viva de Ève Miller-Rose.
Com a temática: “A Criança violenta e a dignidade do sujeito”, esse encontro se fez por uma articulação central das Redes do Campo Freudiano sobre a Infância. Se uma conversação do CIEN acontece quando cada um pode inventar, “arriscar-se a colocar em palavras a sua singularidade” (Indart), a participação na II Conversação do Cien América, dos laboratórios do Cien Brasil e Cien Argentina, permitiu ir além e verificar os princípios do Cien como estabelecidos por Judith Miller.
A partir da cena contemporânea, em que as crianças e os jovens, sensíveis às modificações no laço social são as que orientam o campo de investigação do CIEN, extraiu-se a questão: “como ser receptivos aos diferentes modos de resposta sintomática dos jovens e das crianças?”. Como orientação, veremos nos textos apresentados que a aposta do CIEN é na política do sintoma como invenção, ou seja, inventar um saber fazer.
Como vocês poderão constatar, o fruto deste número provém da prática singular de cada laboratório. Uma verdadeira conversação para realizar a II Conversação do Cien América.
Para iniciar, teremos a intervenção de Paola Salinas no lançamento da Revista “El nino”, nº 15, “Dignidade, um significante em rede”, em que esclarece a importante torção deste termo para que seja possível acolher o singular de cada um.
Ao entrarmos na II Conversação do Cien América, em sua abertura, Mônica Hage lembra o Ato de Fundação, no qual Lacan define que deveria existir, além das seções de psicanálise pura e de psicanálise aplicada, uma seção que ele denominou de “Recenseamento do Campo Freudiano”, lugar em que poderíamos incluir o Cien.
Para além, através de cada testemunho dos laboratórios do Cien aqui recolhido, será possível localizar os efeitos do dispositivo da conversação que, mantendo o espaço vazio de saber, destaca as respostas e invenções da criança, do adolescente, bem como daqueles que trabalham com eles. Isto é, frente aos discursos da saúde, da educação, e do jurídico, entre outros, veremos as possibilidades de construção de saídas e soluções singulares frente aos impasses relatados.
A questão “o que é que se faz ouvir na contemporaneidade?”, presente no argumento, está também nos trabalhos apresentados, fazendo-nos perceber que as crianças e os jovens fazem-se ouvir com as suas respostas e são a bússola num tempo perturbador.
Deste modo, a partir dos trabalhos, “Quando uma história vinda de uma criança toca profundamente”, laboratório Niños y Adolescentes Violentos: Nacidos para molestar? (CIEN-Ushuaia, Terra do Fogo/AR); “Crianças terríveis”, laboratório A criança entre a mulher e a mãe (CIEN-RJ/BR); “A porta fechada”, laboratório Ciranda de conversa (CIEN-PR/BR); “Vazio e Invenção: Liga contra a briga”, laboratório O saber da criança (CIEN-SP/BR); “Eu não te conheço: ensaios sobre possíveis saídas”, laboratório Infancias estalladas (CIEN-BsAs/AR); “Do sem direção ao todo ritmo: apostas à modulação do movimento”, laboratório Apuestas a la eficacia en los márgenes (CIEN-BsAs/AR); “‘Trevas’ na educação?”, laboratório Docentes-Doentes: deixe-os falar! (CIEN-MG/BR); “Quando portas se fecham, Janelas se abrem: Um olhar sobre um dispositivo clínico de Belo Horizonte”, laboratório Janela da Escuta (CIEN-MG/BR); “Reconquistar como sujeito a dignidade de seu sintoma”, laboratório Infância Errante (CIEN-RJ/BR); “Invenções no fio da lei”, laboratório Al filo de la ley (CIEN-BsAs/AR); “A Conversação diante da ‘política do para todos’”, laboratório Pipa Avoada (CIEN-RJ/BR), verificaremos que cada experiência transcrita neste número demonstra o lugar do Cien como uma prática que opera no lugar em que a segregação e a homogeneização se apresentam como saída para um embaraço. É neste contexto que se pode recolocar a questão que consistiu o mal estar, produzindo um furo, desviando das vias protocolares e burocráticas.
Outro ponto sensível localizado na II conversação do Cien América, “como pode o CIEN trabalhar justamente no fio da lei?”, marcará a diferença entre acompanhar a solução do sujeito e dar a direção. Nessa medida, os trabalhos apresentados trazem como a conversação descola do universal, do bom para todos.
É possível extrair dois significantes que constituíram e nortearam a construção desse trabalho: a conversação e a transmissão. Em outras palavras, como transmitir aquilo que se realiza nos laboratórios, como a possibilidade de afetar o outro e transmitir o que é próprio do fazer do CIEN.
Para encerrar, poderemos constatar, como nos diz Beatriz Udenio que a atualidade do Cien traz novidades, novos modos de laços, bem como algo sobre a alegria do Cien. Por sua vez, Paola Salinas destaca a dimensão da transmissão, ou seja, em cada novo laboratório e em cada conversação é que se constitui o lugar para a invenção, sem uma condição prévia que garanta.
Convidamos a todos a consentir em ser tocados pelas experiências do Cien, pelas suas ressonâncias e novas questões que esse encontro produziu.
Boa leitura!
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