
Violência e confronto na adolescência: o que pode fazer borda?
by cien_digital in Cien Digital #25, Órbita
Pedro Braccini Pereira[1]

Foto de Vitor Freitas [pexels-victor-freitas-1072842 (1)]
Adolescentes ou jovens “violentos” é uma expressão do discurso corrente, que tende a alçar as manifestações violentas dos adolescentes a uma categoria comportamental. Sabemos que dar consistência a uma categoria assim a torna suscetível de ser instrumentalizada por políticas autoritárias. Temos visto inclusive a passagem de um paradigma da proteção da infância, com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – e seus avatares, a um paradigma de proteção contra os chamados adolescentes violentos ou potencialmente violentos. O maior exemplo disso é o constante retorno da discussão sobre a diminuição da maioridade penal.
Para a psicanálise lacaniana, a expressão “adolescentes violentos” nomeia uma série de fenômenos que fazem objeção à coesão do laço social. É o nome de um impasse coletivo, uma assinatura do fracasso do laço simbólico no tratamento do que surge como real. Por isso, é crucial situar nessas situações de violência, que elas são, antes de tudo, uma queixa do Outro. Uma vez que elas fazem sintoma menos para o adolescente que transborda a violência do que para os seus responsáveis e seu entorno[2].
Não se trata de aceitarmos com os olhos fechados a imposição do significante violento pela família ou escola. Não podemos negligenciar que existe uma revolta do adolescente que pode ser sã e se distinguir da violência errática. Essa revolta é importante de acolher, na medida em que eventualmente podemos sim ter razão de nos revoltarmos.[3] Para Lacan[4], o lugar no mundo se adquire em geral “em virtude da precipitação”. Poderíamos dizer de algo da ordem de um atropelo. No caso, é o atropelo do Outro como condição do sujeito. Afinal, desde a sua chegada ao mundo, o que está em jogo para a criança é se fazer um lugar como corpo falante entre os outros corpos.
As quase infinitas possibilidades de modos de gozo, que se desinibiram no corpo social contemporâneo, fazem escalar na cena o lado obscuro da força das pulsões sexuais, que Freud chamou pulsão de morte. Cada investimento pulsional de um objeto carrega consigo essa marca. A escolha de um objeto, ao se afirmar, produz também, e ao mesmo tempo, uma rejeição daquilo que não foi eleito. É esse rejeito que é o terreno fértil da violência[5].

Foto de Steve Johnson no Pexels
Porém, violência tampouco se trata de um conceito psicanalítico, não sendo redutível nem à agressividade, nem à pulsão de morte. Entretanto, ela não depende apenas do registro do fenômeno, e certamente toca algo da estrutura. Por isso, é necessário se extrair de uma clínica da observação, em que o fenômeno satura a percepção da trama desses novos sintomas.
A violência convoca, especialmente, à dimensão do ato, um ato que separaria do insuportável e esvaziaria o gozo. A lógica de um ato violento é a de uma expulsão, ou seja, uma expulsão do objeto que está em excesso e que passa fora do corpo, impondo a expulsão do próprio sujeito. Por vezes a expulsão se efetua na própria realidade, quando, por exemplo, um sujeito é expulso da sua escola.
Se o momento de violência ultrapassa o sujeito e constitui para ele um puro fora do sentido no tempo do seu surgimento, uma maneira de torná-lo legível é situar que ele é uma resposta à angústia, compreendida como sinal de um mais de gozo ou de um impossível de suportar. No Seminário 10 sobre a angústia, encontramos essa correlação forte entre angústia e ato, quando Lacan[6] indica que no momento em que o sujeito vai passar ao ato, existe a dimensão de angústia que precede.
Jacques-Alain Miller[7] se pergunta se a violência é um sintoma, uma vez que definimos o sintoma como uma recusa do gozo. A emergência da violência, por sua vez, seria o próprio testemunho de que não houve substituição de gozo. A práxis psicanalítica, com os adolescentes de hoje, se modifica justamente devido ao fato de sua extensão ao “isso que não é sintoma”, e o tema da violência é mais uma maneira de entrar nessa exploração.
Para uma pragmática da abordagem de adolescentes com essas apresentações, Miller[8] sugere, entre outros, que pode ser que a manifestação violenta anuncie uma psicose em formação. Diante de cada caso e a cada vez, ele sugere sempre nos perguntarmos sobre alguns pontos. Seria essa violência manifesta naquele sujeito uma violência sem frase? Seria uma pura irrupção da pulsão de morte e de um gozo no real? O adolescente consegue colocar palavras e simbolizá-la? Mesmo que ela seja signo de um puro gozo no real, isso não quer necessariamente dizer que se trata de psicose. De qualquer forma, ela traduz em todos os casos um rasgo na trama simbólica. Trata-se de procurar saber qual a extensão desse rasgo.
É preciso descolar adolescentes e violência. Filtrar para fora do pequeno sujeito a coisa violenta, para podermos situar o que a desencadeou. Porque procuramos menos sua causa do que sua ocasião. Começamos por disjuntar o adolescente como corpo falante da coisa violenta que toma posse desse corpo. Como fazer essa distinção? Uma pista talvez se dê a partir dos seguintes questionamentos: quais são os contornos ou roupagens da coisa violenta no adolescente? Como pode advir daí um processo de formatação de um sintoma? Quais recursos ele encontrou para construir uma saída à invasão que fez crise no seu grupo social, no seu corpo e no seu mental? Qual acolhimento esse momento de violência recebeu da parte dos adultos presentes? Quais saídas dar a isso que se produz nesses momentos de impasse?
Por vezes o adolescente fica agitado por uma presença excessiva no seu próprio corpo, cujos movimentos são para ele confusos e fora do sentido. A psicanálise permite ler e circunscrever esses movimentos na sua fonte, via de regra não identificada pelo adolescente: um ou vários objetos pulsionais (objeto oral, anal, olhar e voz) que se autonomizam, como tantos objetos violentos não identificados que o bombardeiam de gozo. Falar a um psicanalista permite um processo de formalização do objeto ou objetos em causa, o que introduz um limite a essa invasão.
Em outras séries de eventos violentos, é um Outro feroz que encarna a coisa violenta. Esse Outro para o adolescente pode ser representado por um colega ou grupo de colegas, um adulto em posição de poder (professor, pais, etc.), as instituições do Outro social, ou pela própria linguagem. Trata-se então de operar um movimento visando diminuir o poder desse Outro, de descompletar sua vontade e de abrir um espaço vazio onde o sujeito possa se alojar sem se sentir em perigo.
As duas situações têm seu começo no surgimento de um “excesso” que vem se associar ao corpo. Esse excesso não é nomeável nas coordenadas da língua intima do sujeito[9]. É crucial na nossa ação fazer valer a eficácia pragmática do recurso aos semblantes diante da pulsão de morte, para que esta ache um lugar. Não é necessário temer a existência dessa potência de destruição, já que temos que estar cientes dessa presença em cada um de nós.
Miller[10] diz que o analista deve proceder com a criança violenta, porque não com o adolescente, de preferência por meio da doçura, sem renunciar a manejar, se preciso, uma contra–violência simbólica. Frequentemente somos tentados a nos mostrarmos firmes para parar a violência de uma criança. Entretanto, firmeza não se opõe a doçura. Podemos agir firmemente e falar com doçura. O chamado à interdição não opera a partir do momento em que a violência é a própria pulsão, a satisfação que o adolescente encontra no simples fato de quebrar e de destruir. Existe um fora de limite imediatamente presente, em que o simples enunciado de um limite não limita o ilimitado.
Diante de um gozo sem limite, nem um enquadramento, nem regulamentos e nem uma lei convêm. O que opera é a constituição de uma borda. A borda se constitui entre real e saber, entre um gozo que transborda e o campo significante que se trata de dizer apenas uma parte. Essa borda, Lacan a nomeou função da letra[11]. Ela pode reduzir para o sujeito o peso do sentido e permitir à violência ceder lugar à fala. Fazer borda é introduzir a dimensão do semblante.
[1] Psicanalista, psiquiatra.
[2] LEDUC, C. Ce que les enfants disent de la violence? In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.83.
[3] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.
[4] LACAN, J. Meu Ensino (1967-1968). Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p.13.
[5] ROY, D. Mon enfant est-il violent ? In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019, p.35-37.
[6] LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, livro 10: a angústia Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p.128.
[7] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.
[8] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.
[9] ROY, D. Deux violences, un noyau. In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris : Navarin éditeur, 2019, p. 55-56.
[10] MILLER, J-A. Enfants Violents. In: Institut Psychanalytique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris: Navarin éditeur, 2019. p.19-31.
[11] STEVENS, A. Un cadre ou un bord ? In: Institut Psychanalythique de L’Enfant (org.). Enfants violents. Paris : Navarin éditeur, 2019. p. 147.
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Alexandre Stevens1 nos fala do trabalho com meninos de rua na Bolívia2
by cien_digital in Cien Digital #14, Órbita
Tradução: Samyra Assad
Revisão: Maria Rita Guimarães
Pergunta: Como se chama a instituição boliviana na qual o senhor trabalhou?
Alexandre Stevens: Ela se chama Uyarina, que em quéchua quer dizer “falar”. Mas, lá, ela é chamada pelas crianças principalmente pelo nome do lugar onde são acolhidas, que se chama, em espanhol, Punto de Encuentro portanto, Ponto de Encontro. Essa instituição nasceu porque uma jovem colega de lá, Sofia Guaraguara, trabalhou, há alguns anos, em Cochabamba, na Bolívia, com meninos de rua. Ela estava fazendo, ao mesmo tempo, sua formação em psicanálise. Ela reuniu-se com essas crianças simplesmente para conversar e escutá-las, talvez se colocando em risco, em alguns momentos, na época. É o que ela diz hoje, apesar de nunca ter tido problemas graves. Acontece que quando ela decidiu partir, porque ela veio para a Europa, algumas crianças lhe perguntaram: “Mas então, quando você for embora, quem será nossa psicóloga”? Foi o que a fez decidir fundar essa instituição, a fim de passar o bastão desse trabalho que ela fazia de forma isolada. Desde então trabalham nessa instituição alguns psicanalistas e outros participantes orientados pela psicanálise que são psicólogos de formação, alguns que são educadores ou pedagogos, enfim, professores, já que a instituição é, ao mesmo tempo, um lugar de escuta e um lugar de reforço escolar para as crianças mais novas.
O que chamamos “meninos de rua” é uma população bem variada: temos por um lado, jovens adolescentes e jovens adultos que estão na rua e nela passam todo o tempo, que dormem na rua em lugares bem específicos, localizados em algumas praças. Alguns dormem nos morros vizinhos. Por outro lado, existe outra população que é seu prolongamento: geralmente são as crianças da população anterior e não ficam o tempo todo na rua. Às vezes ficam nas ruas, mas às vezes numa instituição. Eles vão à escola, de vez em quando, às vezes são acolhidos por uma família ou numa instituição. As situações são muito variadas. Com os mais novos também é feito um trabalho para ajudar no reforço escolar, para ajudá-los a se reintegrarem ao mundo escolar e a obter certa localização no mundo institucional. Os meninos de rua propriamente ditos permanecem mais nas ruas e vem para o Ponto de Encontro unicamente para um trabalho com a palavra, digamos, um bate papo.
Pergunta: Então, no espaço físico dessa instituição, há um lugar para os encontros destinados às entrevistas e também um espaço mais voltado para a área escolar?
Alexandre Stevens: Fisicamente, é um cômodo que deve ser mais ou menos quinze metros quadrados. A instituição é dividida em três. Na parte maior se encontra uma mesa em torno da qual alguns se colocam e que serve como lugar de encontros mais públicos, especialmente de trabalho escolar. Depois há dois pequenos consultórios, cada um perfazendo três a quatro metros quadrados: são os lugares onde se fala em particular com um participante/professor, com alguma discrição. É bem pequeno como local. Isso acontece nesses lugares onde se encontram crianças de rua. É um lugar onde se localiza inclusive uma das principais delegacias de polícia, que, dependendo da ocasião, intervém também junto dessas crianças, mas, é preciso dizer, de uma forma diferente.
Pergunta: É a proximidade geográfica que permite captar essas crianças para um trabalho no Ponto de Encontro, mas, haveria um deslocamento dos praticantes para o encontro com algumas crianças na rua?
Alexandre Stevens: Existem os dois. No início, esses encontros eram feitos na rua e depois se abriu esse local que fica na praça. Ao lado dessa, há um morro no qual existe um grupo bem expressivo de crianças de rua. Mas eles (trabalhadores da Uyarina) também vão ao encontro de crianças de rua em outros lugares. Hoje, essencialmente, eles estão localizados nesse lugar que é próximo das ruas onde estão essas crianças.
Pergunta:Qual postulado teórico orienta o trabalho dessa instituição?

Renata Pedrosa
Fala-se aí de psicanálise aplicada, e, se assim for, como se recusa e se adota essa orientação?
Alexandre Stevens: É uma instituição que se pretende psicanalítica e que é de orientação da psicanálise aplicada. Essencialmente, Ponto de Encontro é um lugar onde os jovens podem vir falar, onde eles são escutados por psicanalistas ou por pessoas em formação analítica. Mas, além da assistência escolar da qual falei, não acontece nada mais. Esses meninos de rua são, por outro lado, ajudados pelas instituições religiosas para os cuidados necessários, que lhes dão um pouco de alimentação, de leite, coisas assim. A especificidade do Ponto de Encontro é, justamente, não se ocupar de todas essas necessidades e ser somente um lugar onde se pode vir falar. Trata-se de um lugar que é unicamente orientado pelo sistema de referência psicanalítica. Não obstante, principalmente para as crianças menores, existe todo um apoio escolar que é mais implementado. Assim, a referência é psicanalítica, mas, por outro lado, não exclui o trabalho com a pedagogia, na medida do possível e do necessário. Quer dizer, o máximo possível.
A questão que se coloca inicialmente é, quando se diz “um lugar para vir falar”, primeiramente conseguir que a palavra possa querer dizer alguma coisa para eles. Pois são jovens que, frequentemente, ocupam seu tempo brigando e se drogando nessa praça. Existem algumas meninas, existem relações sexuais, elas também têm filhos, mas não há, de fato, casais. Isso circula de modo diferente. A parceria deles é mais a briga e a droga mais barata do mundo, ou seja, a cola. Por outro lado, vir falar implica, de início, ter vontade de falar. Mas isso não é muito a praia deles. O hábito deles é brigar, interpelar, falar na delegacia policial. Vir para falar como tal não faz parte da rotina deles. A primeira coisa é colocá-los diante da ideia mesma de que é possível falar, falar de si, de uma dificuldade encontrada, etc.
Pergunta: Sem que isso seja um interrogatório policial…
Alexandre Stevens:De fato. O que é muito surpreendente é que a polícia os chama somente por seus apelidos. Todos eles têm um apelido e assim são chamados entre eles. Os apelidos são dados por uma característica física ou um hábito. Um deles é chamado de “o chinês”, pois ele tem os olhos um pouco puxados; outro, “criança do lixo”, pois ele se aloja sempre perto das lixeiras. São apelidos que têm um sentido, como, aliás, todos os apelidos do mundo. Então, a polícia os chama por seus apelidos, enquanto, no Ponto de Encontro, nós os chamamos somente por seus nomes. Pediu-se que seus nomes fossem declarados e, pouco a pouco, é o único lugar onde são chamados pelo nome e sobrenome, enquanto em outros lugares são chamados pelo apelido.

Natsuyuki Nakanishi
Pergunta: Os apelidos usados pela polícia são aqueles que ela dá para esses jovens, ou são apelidos que os jovens se dão, eles mesmos?
Alexandre Stevens:São apelidos que eles mesmos se dão. Aliás, contaram-me um incidente. A polícia deteve uma jovem – pois de tempos em tempos isso acontece em função da violência que excede entre eles, e é quando a polícia irrompe. Era uma jovem e a polícia perguntou-lhe seu apelido; ela disse que não tinha. A polícia não quis acreditar nela e ela o inventou, na hora, para a polícia: “criança de rua”. É divertido, pois ela se designou por isso que ela era do lado da identificação. O apelido identifica do lado imaginário, mas identifica, ao mesmo tempo, do lado do sentido. Enquanto o nome marca uma distância em relação a isso. A palavra implica, pois, o nome, isso implica que se fale em seu nome, e implica certa responsabilidade subjetiva. Todo o trabalho é chegar a que se tenha aí uma implicação subjetiva.
Estar na rua é uma escolha, frequentemente uma escolha forçada do sujeito por razões econômicas, mas também por razões de estrutura. Eu encontrei algumas dessas crianças de rua. Escutei falar de muitas delas no plano das discussões clínicas e devo dizer que estamos amplamente no campo da psicose. São pessoas fortemente desamparadas no mundo para se juntar a esse mundo muito marginal, aliás, como uma parte dos Sem Domicilio Fixo (SDF) para nós. Mas isso não é somente por uma questão econômica. Existem, ao mesmo tempo, razões econômicas e as razões de estrutura subjetiva que fazem com que eles se encontrem assim na rua.
Pergunta: A realidade desse trabalho com as crianças de rua faz um chamado para outro sistema de referência do que o da estrutura, da transferência, dos conceitos que temos o costume de utilizar? Chegamos com as referências psicanalíticas da mesma maneira nesse trabalho? Ela encontra a mesma pertinência?
Alexandre Stevens: Sim, totalmente. Do lado da estrutura do sujeito, a questão se coloca sempre quando se debate isso clinicamente. Os efeitos de transferência são incontestáveis quando nós os vemos encontrar um ou outro educador no local. Mas o que me parece mais surpreendente é o que se passa ao nível da responsabilidade subjetiva. Por exemplo, fui informado sobre um caso clínico de uma jovem adolescente que está parcialmente na rua e parcialmente na escola. Na rua, ela já foi violada, sofreu efeitos de toda uma série de devastação inerentes à passagem pela rua e também já foi drogada. Na escola ela chora por ser injuriada pelos colegas de classe, onde a tratam como “menina de rua” e também “de ter sido violada”. Ela toma isso como uma injúria. Quando um dos responsáveis da instituição vai com ela à escola, ele descobre que ela se faz injuriar pelos outros, mas é porque ela mesma contou para os outros que ela é uma criança de rua, que ela se fez violar, etc. A partir daí, falando disso novamente, ela bruscamente compreendeu que a palavra tem um efeito. Que o fato de que ela falou tinha esse efeito. E pela primeira vez depois dessa sequência – quando ela já tinha ido falar regularmente no Ponto de Encontro, mas aí, sempre queria falar apenas em público –, pediu para falar num consultório, para que ninguém escutasse o que ela dizia. Aí está um efeito de construção sintomática e de tomada de uma responsabilidade subjetiva, nisso que falar quer dizer, e nisso que lhe traz como consequências. Ela é injuriada porque ela mesma forneceu ao outro os instrumentos para injuriá-la. A partir disso, tomando em consideração pela primeira vez o lado subjetivo, ela pôde trocar parcialmente de posição. O trabalho consiste muito em fazer aparecer essa responsabilidade subjetiva dos jovens. Nesse sentido, essas são as referências que temos na psicanálise, caso por caso.

Saloua Raouda Choucairi
Pergunta: Trata-se então de fazer aparecer essa referência subjetiva mais além do contexto social e econômico, pelo qual não é preciso se deixar cegar totalmente…
Alexandre Stevens: Exatamente, pois o contexto econômico e social é apenas uma parte do problema. Ele existe efetivamente, mas há certo número de reações possíveis, e, no fundo, são essas reações que essa instituição procura deixar abertas para esses jovens, na medida em que eles estão prontos para reagir a isso.
Pergunta: Eles são todos psicóticos?
Alexandre Stevens:Não poderia dizer que todos o são. Mas, daqueles dos quais escutei falar e por esses com quem rapidamente encontrei, muitos me pareceram psicóticos e, sobretudo, os que permanecem nas ruas. Desses que estão nas ruas sem regularidade e que, em parte estão na escola, particularmente a jovem de quem falei aqui no plano clínico, parece-me menos seguro que sejam psicóticos. No quadro desses jovens que não são completamente “meninos de rua”, são jovens em perigo, na margem entre a rua e a inserção. Alguns deles não são psicóticos, seguramente. Não tenho a estatística disso mas é uma impressão bem sustentada a partir do que escutei.
Pergunta: Em que consistiram suas intervenções diante dessa equipe e com as crianças?
Alexandre Stevens: Fui convidado para discutir com eles sobre seus casos clínicos, mas na condição de que eles escrevessem um livro sobre isso. Eles queriam formalizar um pouco seus encontros clínicos e o trabalho que eles fizeram, para colocá-lo no papel e extrair disso um ensinamento. Eles tinham me convidado para supervisionar, para ajudá-los a formalizar seus casos clínicos, as situações que eles encontram e o trabalho que fazem. Durante quatro dias, meu trabalho consistiu em fazer isso com eles. E ainda dei uma conferência na Universidade sobre o tema dos meninos de rua. Havia muitas pessoas, fiquei muito impressionado com isso. Com as próprias crianças, só tive um breve encontro com um grupo na praça, em frente ao local de Uyarina. Um encontro que foi muito interessante. Não os encontrei sozinho, pois eles não me conheciam. Eu os encontrei com a equipe que os atende regularmente.
Assim que os vimos na praça, o que me impressionou muito foi quando eles estavam justamente entre dois bandos, a ponto de se baterem um pouco. Digo um pouco, pois é, em alguns momentos, mais violento, e, em outros, menos. O fato é que eles rapidamente pararam para ver chegar as pessoas de Uyarina e, nisso, dizendo explicitamente: “vamos falar”. O que é muito interessante, é que a ideia de ir falar reduziu o volume da violência.
O outro efeito é que, no momento em que eles falam, eles não se drogam. Isso diz que eles se drogam permanentemente. Os jovens dessa praça ficam permanentemente paralisados com recipiente branco de cola, a Kefla tal como eles chamam isso, cheirando, salvo quando eles estão prestes a falar e aí eles a colocam no bolso. Então é um simples e pequeno efeito bem localizado, a partir do qual pude ver como a fala reduz a violência e reduz o consumo, pelo menos em alguns instantes.
Pergunta: O senhor já falou de um caso particular. Haveria outro caso a partir do qual gostaria de nos dizer alguma coisa: um caso encontrado, ou através do qual o senhor supervisionou um trabalho junto aos profissionais?
Alexandre Stevens: Para ser otimista então, um caso totalmente interessante. É um jovem de rua, que já estava nas ruas há muitos anos, e que, recentemente, encontrou no ônibus a fundadora da instituição, Sofia Guaraguara. Ela não o reconheceu imediatamente, mas ele se apresentou e ela o reconheceu. Ele se tornou arquiteto nesse meio tempo. Para alguém que se encontrava na rua, colocar-se a construir casas, não é nada mal! Isso indica que existe uma dimensão de escolha que permite sair disso também. Achei bem extraordinário como percurso. E depois, lembro-me também que, na praça, reencontrando-os, um dos jovens conversava comigo, tinha outro que queria falar comigo ao mesmo tempo; ele parou imediatamente de falar, dizendo: “cada um fala na sua vez”. Isso também é um efeito da fala que achei interessante, não está do lado da fala grupal, mas foi “um a cada vez”.
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Me inclui fora dessa! – a bússola que cada um inventa.
by cien_digital in Cien Digital #15, Órbita

Georg Bazelitz, Torso Frau, 1998
Rômulo Ferreira da Silva1
As experiências que tive no CIEN me marcaram e, juntamente com a experiência em cartéis que me parecem bastante próximas, deram-me a possibilidade de trabalhar na saúde mental _ seja como psiquiatra, como chefe de serviço e mesmo supervisor de equipe_ de uma forma muito mais rica do que antes havia experimentado.
Reunir pessoas interessadas em um tema que nos apresenta problemas, para tentarmos soluções nas quais não há prevalência de um saber específico, e que respeite as singularidades dos envolvidos, não é fácil.
Finalizar minha análise e me deparar com o dispositivo do passe me possibilitou retomar quais foram as bússolas que pude inventar ao longo do meu percurso de vida. Foi possível, também, a partir disso, rever minha experiência clínica com crianças, principalmente no que diz respeito aos casos graves.
Desde minha formação psiquiátrica na área da infância e adolescência era procurado como aquele que daria uma resposta médica a esses casos. Colegas psicanalistas me encaminhavam essas crianças com o intuito claro de que eu receitasse medicamentos. Afastei-me dessa clínica. Não sabia muito bem o que fazer diante dessas demandas.
O Ministério da Saúde vem paulatinamente, há mais de uma década, introduzindo métodos de avaliação e classificação precoce dos transtornos de desenvolvimento da infância. Divulga uma “cartilha” que orienta como abordar essas crianças. Atrelado a esse movimento, vem ocorrendo aqui e ali, tentativas de colocar como prioridade a abordagem cognitivo-comportamental. A psicanálise ainda não está proscrita, porém, tendo em vista o que ocorre fora do Brasil, chegaremos lá. A posição abordada no CIEN, diante de tais questões, me fez retomar a possibilidade de atender essas crianças.

Anselm Kiefer, Lilith, 1987-89
Só retornei a receber crianças com mais frequência, inclusive os ditos autistas, muito próximo ao meu final de análise. Chegar a um significante sozinho, sem ter mais o que dizer em análise, proporcionou a vivencia de um gozo autista ao qual a análise não demandava mais nada. Era um vazio total. Diante desse silêncio, não demandar nada ao S1, mostra um pouco da clínica que podemos adotar diante do autismo.
O dispositivo do Passe não é demandado àquele que termina sua análise. Mais uma vez o silêncio. Ficar só com o sinthoma poderia me afastar do laço social, inclusive no âmbito da Escola Una. Por não ser exigido que fosse feita qualquer articulação sobre a posição autística, já que o Outro perde sua consistência e se apresenta inexistente, um passo foi desejado: o Passe.
Deparei-me com a possibilidade de falar livremente, da necessidade de expressar ao meu entorno, minha experiência para sair do autismo. A contingência da experiência do Passe, na oferta que a psicanálise de orientação lacaniana propicia a quem chega ao ponto final de sua análise, me alavancou a desejar tratar o impossível e refazer meu laço no uso da lalíngua. Catar os restos, os objetos caídos e reconectá-los aos significantes possíveis é uma abertura para o que podemos fazer diante dos autistas que nos chegam para tratamento.
Mesmo não tendo sido um caso tão grave na infância, considero interessante observar a bússola que criei para seguir na via da minha empreitada infantil, ou seja, conquistar todas as mulheres.
Inaugurado num universo masculino, mas do qual pude escutar coisas horríveis a respeito dos maridos, de minha mãe e de minhas tias, tentei cair fora dessa série que me aguardava. Aliás, era esperado por elas como um ser que responderia muito mais ao modelo do avô materno do que ao do meu pai.
Foi um primeiro momento de dizer: “me inclua fora dessa!”
Ao tentar ser diferente, busquei a via de ser o garoto bonzinho que respondia às demandas e me comportava de forma feminina, no sentido de não perturbá-las com minha diferença. Minha bússola foi dizer “sim”.
Essa marca perdurou até a adolescência quando a questão da sexualidade se colocou e foi necessário escapar do compromisso com essas mulheres e novamente dizer: “me inclua fora dessa!”
Algo do real se apresentou. A história do meu nascimento ganha força, mas agora, de maneira a me colocar diante da morte naquilo que foi a significação dada pelos médicos: ter salvo minha mãe de um possível câncer.
Ao invés do sim, do bonzinho e salvador; e podendo-se até pensar que se tratava de uma desorientação, minha bússola foi o enfrentamento com a morte.
Por um lado um empuxo à morte e por outro a onipotência de poder dominá-la.
A afirmação da escolha da carreira de medicina demonstra bem essa bússola.

Elida Tessler, “Você me dá sua palavra?”, 1994-2010
A partir dos comentários de Eric Laurent sobre o meu passe, pude retomar as brincadeiras infantis, nas quais, as galinhas eram objetos de pesquisa. Essas pesquisas diziam respeito à sexualidade e à morte. Assim, pude recompor após a análise o que havia, desde então, nesse movimento de enfrentamento com a morte.
É talvez, num terceiro momento de dizer “me inclua fora dessa”, que aparece uma busca da análise. A partir daí, não mais uma busca de bússola como nos movimentos anteriores, mas uma decisão de que o real seja a possibilidade de “bússola”.
Um ponto interessante é que para aqueles que conheceram a criança, o adolescente e mesmo o jovem adulto, que hoje pode contar essa histoeria , parece difícil acreditar que a ideia de suicídio esteve tão presente ao longo da vida. Era uma maneira de viver muito intimamente a relação com a morte.
Pode haver pessoas que inventam bússolas mais interessantes. Apenas na minha experiência analítica é que pude ficar livre das bússolas inventadas na minha neurose. Quisera eu ter iniciado minha análise mais cedo!
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A criança, os autismos e a instituição
by cien_digital in Cien digital #21, Órbita

Imagem: Sergio Camargo
Ana Martha Wilson Maia
“Nós, então, estamos o trazendo aqui porque queremos que ele aprenda a ler e a escrever, e frequente a escola, como as outras crianças” – este é o desejo dos pais, quando chegam com o filho autista, criança ou adolescente, no consultório de um analista. Podemos dizer que todos os pais desejam uma vida normal para o filho e que não é fácil o percurso de entrada na instituição escolar e a aprendizagem em si. Para os que apresentam maiores dificuldades com a linguagem e o laço social, às vezes se trata mesmo de uma impossibilidade.
Depois de uma série de tentativas frustradas, mudanças de escola, recusas (“não temos vaga” – escutam frequentemente) e, não raras as vezes, experiências com tratamentos cuja orientação visa o controle pulsional, o enquadramento a um padrão social, os pais chegam perdidos, angustiados, desesperançosos, alguns desesperados, e preocupados com o futuro do filho: “como será quando não estivermos mais aqui?’ O tempo passa, as crianças crescem.
O acesso do sujeito autista à educação e ao ensino profissionalizante é hoje garantido pela Lei 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Sua implementação tem trazido impasses para todos que estão vivendo esta experiência: pais, equipe pedagógica, colegas de turma e seus pais, além da própria criança.
Assim, a questão da inclusão é muitíssimo complexa, pois trata do tempo presente, o que se pode fazer hoje, e da perspectiva de um futuro enigmático e sombrio quando se percebe que para os “mais diferentes” pouco adianta insistir em um tratamento padrão. Pode-se obter como resultado que o sujeito consinta um pouco melhor com a presença do outro, que se apresente com uma conduta social “adequada”, durante certo tempo, sendo ele literalmente treinado para suportar o malestar que experimenta e se apresentar “menos louco”, mas sem que jamais se saiba o que ele deseja, pelo que se interessa, e até onde poderia ir em seu caminho de vida, caso lhe dirigissem a aposta de que poderia, a seu modo, avançar.
Loucura e morte
A loucura é uma das faces da segregação que é bem ilustrada pela leitura de Foucault (1972) sobre uma impactante imagem: “A Nau dos Loucos”, quadro de Jeronymus Bosch.
Foucault descreve a figura do louco como aquele que vivia errante, escorraçado de cidade em cidade, e às vezes entregue à grupos de mercadores, peregrinos ou navegantes. O louco era o “passageiro” ou o “prisioneiro da passagem” que, aparentemente acolhido, era na verdade recolhido em prisões para que não ficasse vagando com sua loucura obscena, exposta. Ele se transformava, desta maneira, em “prisioneiro de sua própria partida”.
Por isso a forma como a loucura apareceu no imaginário da Renascença: Narrenschiff é um estranho barco deslizando ao longo dos rios da Renânia e dos canais flamengos, na tela de Bosch, que faz série com a “Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza” e a “Nau das Damas Virtuosas”.
Há, todavia, uma diferença entre Narrenschiff e as outras naus: ela de fato existiu. Não foi apenas uma criação artística. Em uma barca louca, o prisioneiro da passagem tinha como destino um outro lugar em que também não havia lugar para ele. Como um lugar de passagem é um limiar entre um dentro e um fora, um interior e um exterior, restava para o louco um “entre-lugar’, na medida em que representava uma ameaça, o incontrolável, a morte.
Traçando a “História da loucura”, Foucault mostra que a representação da morte atravessa a cultura ao longo do tempo de diferentes formas. Se o leproso era a presença viva da morte, mais tarde o desatino da loucura veio substituir a lepra, marcando uma virada no interior de uma mesma “inquietude humana”.
Liberdade e segregação na infância
Foi em uma Jornada organizada por Maud Mannoni (1968) que Lacan proferiu a “Alocução sobre as psicoses da criança”. Este texto e “Nota sobre a criança” são referências fundamentais de seu ensino para a psicanálise com crianças.
Ao final desta Jornada, Lacan circunscreve que a liberdade está no centro da questão que entrelaça a criança, a psicose e a instituição, comentando que foi desenvolvida durante a apresentação dos trabalhos em “uma perspectiva meio estreita” (p.360) pelos analistas ingleses. A crítica de Lacan incide precisamente neste entrelaçamento, na medida em que os autores não articularam a clínica com a teoria a respeito da relação sexual, do inconsciente e do gozo. Ele, então, lança a pergunta: “será que essa liberdade, suscitada, sugerida por uma certa prática dirigida a estes sujeitos, não traz em si seu limite e seu engodo?” E afirma que o valor da psicanálise está justamente em operar com a fantasia e o gozo, e que o progresso da ciência tende à segregação, o que nos leva aos manuais de classificação diagnóstica e às etiquetas que passam a acompanhar o sujeito por onde passe, deixando-o à margem da norma, segregado.
Por exemplo, nunca se falou, se publicou, se etiquetou tantas crianças e adolescentes com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como agora. São muitas as hipóteses sobre sua causa, mas não se pode dizer que há uma causa específica, na medida em que o autismo só se pode dizer no plural e que não há como reduzir o singular ao reconhecimento de alguns sinais. Neste sentido, mesmo que sejam criados novos métodos de avaliação, a generalização do autismo não se sustenta.
Lacan (1953) já havia marcado uma estreita relação entre a loucura e a liberdade. Em suas palavras: “longe de ser para a liberdade um insulto, a loucura é sua fiel companheira, segue-lhe o movimento como uma sombra. E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não carregasse em si a loucura como limite de sua liberdade” (p.177).
Inconsciente à céu aberto, livre, como pode uma criança psicótica, autista ou que apresente uma neurose grave, estar em uma instituição se a loucura marca o limite de sua liberdade? Que instituição está à altura de acolhê-la? “Como fazer para que as massas humanas, fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas?” (Lacan, 1967). O respeito à diferença está em jogo e as diferentes formas de segregação falam do ódio ao gozo do Outro.
Autismos e inclusão
“O que faz com que este Outro seja Outro para que se possa o odiar em seu ser?” (p.53) – pergunta Miller (2010), em seu curso Extimidad. “Se odeia especialmente a maneira particular de que o Outro goza”, prossegue ele, do que podemos extrair que o que fica de fora, segregado, é o mais íntimo de cada um, seu modo de gozo. O autismo é um modo de ser diferente. E como incomoda aos outros o uso que o sujeito faz de seu objeto privilegiado! Lembremos de Temple Grandin (2010) que teve jogada no lixo da universidade sua “máquina do abraço”.
A relativamente recente criação da função de mediação na escola tem movimentado debates, como aconteceu durante o Fórum “O que é o autismo, hoje?” (2017). Qual a função do mediador escolar? O que é, e para quem é a mediação: para o autista, o professor ou os colegas da turma? Em que medida esta função se assemelha à função do duplo nos autismos? E se agora a lei obriga a escola a acolher o portador de TEA, é possível para o educador trabalhar com o “diferente” quando não deseja?
Muitas questões surgiram e os participantes saíram com a certeza de que o Fórum foi um espaço de trabalho que promoveu um debate clínico, epistêmico e político importante, e que estreitou laços de trabalho entre profissionais e pais de autistas. A mesa das mães foi emocionante.
Mas o que de fato surpreendeu foi a apresentação de dois jovens adultos. Henrique ao piano e Beatriz na voz mostraram, através da música, o efeito do trabalho que realizam em análise e como a psicanálise de orientação lacaniana é uma possível abordagem no tratamento dos autismos, única em sua aposta nas invenções singulares do ser falante, a partir do modo de gozo de cada um.
Na direção de uma das músicas que apresentaram, seguimos com eles:
“É saber se sentir infinito
Num universo tão vasto e bonito, é saber sonhar.
Então fazer valer a pena
Cada verso daquele poema sobre acreditar.”
Trem bala, Ana Vilela
Bibliografia
Maia, AMW. Curso “Autismos – um modo de ser diferente”. Espaço Culturama – Centro de Cultura e Ensino. Goiânia, 2016.
Maia, AMW. Asperger – um dos nomes dos autismos. Edição Especial da Revista Psicologia. São Paulo: Mythos Editora. Número 33. 2017.
Maia, AMW. Pontuações apresentadas na coordenação da Mesa-redonda II: “O que é a inclusão dos autistas?” Fórum de Debates: “O que é o autismo, hoje?”, realizado pelo Observatório Políticas sobre o Autismo (EBP/FAPOL), em parceria com a Universidade FUMEC. Belo Horizonte, FUMEC. 26 de abril de 2017.
Foucault, M. (1972) História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva. 1997.
Lacan, J. (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. RJ: Zahar. 1998.
Lacan, J. (1967) Alocução sobre as psicoses da criança. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 20013.
Lacan, J. (1969) Nota sobre a criança. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2003.
Mannoni, M. Enfance alienée II. L’enfants, la psychose et l’institution. Recherches , 8. Décembre. 1968.
Miller, J-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós. 2010.
Temple Grandin. Direção: Mick Jackson. Telefilme norte-americano exibido no canal HBO. 2010.
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Que tipo de criança audiovisual você é? – Casos de produções audiovisuais voltadas para o público infantil
by cien_digital in Cien Digital #22, Órbita

Gisele Camargo
Jon Russo[1]
O convite para escrever sobre minhas experiências com a produção audiovisual voltada ao público infantil torna-se uma grata oportunidade à reflexão e ao pensar no trajeto profissional trilhado até aqui.
No ano de 2001, junto com outros dois amigos, decidimos criar um estúdio de produção audiovisual, Usinanimada, voltado principalmente a produção de animações e que tivesse como norte a criação autoral, ou seja, a materialização de nossas próprias ideias. No início das atividades do estúdio desenvolvemos todo tipo de material: publicidade, vídeos didáticos, educativos, mas o objetivo era ter autonomia para gerar conteúdo. Isso aconteceu a partir do ano de 2005 e tentarei ater meu depoimento a duas produções específicas que tive o prazer de conceber e co-dirigir.
Em 2005 a ideia de um programa infantil para a TV começou a martelar na minha cabeça a partir da insatisfação que sentia ao ver o que se produzia para esse público. Vale lembrar que há treze anos atrás não existia a profusão de séries infantis que são oferecidas hoje, nas mais diversas plataformas: TV aberta e a cabo, video on demand, Netflix, Youtube e Aplicativos. E é fundamental salientar um ponto: quando se fala em público infantil estamos tratando de um universo diversificado e multifacetado. De maneira sucinta, quando pensamos no mercado audiovisual, pode-se dividir o público infantil em três faixas etárias: a pré-escolar (de 3 a 5 anos), a escolar (6 a 9) e a pré-adolescente (10 a 12). A linguagem, estética e apelos de uma produção serão direcionados para uma dessas faixas, lembrando que público-alvo é aquele para o qual se pensa a mensagem mas uma produção pode ter uma recepção muito maior, o chamado público potencial. Então voltamos ao ano de 2005 e à minha insatisfação. Alguns fatores que geravam incômodo no conteúdo infantil veiculado na época: ver a criança tratada como coadjuvante e não como protagonista; abordagens maniqueístas de diversos assuntos; e ruídos sonoros, muitos programas eram ensurdecedores, característica que contribuía para calar as vozes infantis. Portanto, o processo de criação se deu a partir do que eu não queria fazer. Foi assim que nasceu o projeto “Que tipo de criança você é?”.
O “Que tipo” foi veiculado na TV Brasil no ano de 2009. Foram 82 episódios, 41 de 3 minutos e 41 de 1 minuto. De 2005 a 2007 tentamos a veiculação em outras emissoras voltadas para conteúdos culturais mas quando se vislumbrava que o projeto ‘sairia da gaveta’ acontecia algum entrave. Em 2008 o projeto finalmente deu certo na TV Brasil, sob direção de Rogério Shareid e minha. Apresento essas datas para ilustrar a demora em se concretizar uma produção audiovisual no Brasil. Essa dificuldade de realização angustia boa parte dos profissionais que trabalham com criação, mas também serve como tempo de maturação de ideias.
A estrutura do “Que tipo” era pautada em entrevistas com crianças, de 6 a 12 anos, de diversas classes sociais, em variados contextos espaciais, falando sobre 41 temas diferentes. O conceito do programa era nunca conseguir responder à pergunta título: que tipo de criança você é? Através da edição dos depoimentos a narrativa se constrói, como se uma criança complementasse a fala da outra, e o resultado era uma abordagem heterogênea sobre os assuntos. As respostas não eram evasivas ou taxativas e sim aberturas a ‘perífrases mentais’. Os conceitos de dialogismo e polifonia do linguista Mikhail Bakhtin serviram como baliza à edição, assim como a teoria da montagem intelectual do cineasta e teórico russo Sergei Eisenstein, que em linhas (muito) gerais defende que “uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição”. Então, a concepção da edição do “Que tipo” era a aplicação do dialogismo bakhtiniano através da montagem eisensteiniana. Mas não funcionou, pelo menos não como se esperava.
O primeiro erro, do ponto de vista do mercado audiovisual, foi não definir bem a faixa etária das crianças entrevistadas – uma criança de doze anos tem interesses diferentes de uma de seis – o que influencia diretamente na atenção dos espectadores infantis. O público adulto ficava fascinado com os depoimentos infantis mas as crianças se dispersavam. O “Que tipo” se propunha um programa infantil de entretenimento, e acabamos por criar um programa documental com crianças, para adultos. Esse foi o primeiro cruzamento entre as esferas da ficção e do documentário no meu trabalho, que se transformaram numa constante e no fio condutor de boa parte do que desenvolvo.
Para o teórico Bill Nichols, “todo filme é um documentário”, partindo-se da ideia que a captação de imagens e sons são registros de um determinado contexto espacial, cultural e social realizados em um tempo delimitado, reflexo de uma realidade específica. Por outro lado, Christian Metz, em seu ‘Significação no cinema’, defende que todo filme é uma ficção, a partir do momento que se considera a presença do aparato tecnológico de captura de imagens e sons como um canal mediador entre quem observa e quem é observado. As questões sobre as unidades de produção documental e ficcional remontam aos primeiros filmes dos irmãos Lumiérè, percorrem toda a história do cinema, passam pelos suportes de difusão eletrônica como a TV e o vídeo e chegam às plataformas interativas digitais. Na produção audiovisual contemporânea nota-se o constante imbricamento entre esses universos, exemplos como os mockumentaries ou doc-paródias (filmes que se revestem de técnicas documentais mas que são encenações pré-roteirizadas), ou o fenômeno das fake news, potencializado pelos meios de difusão das novas mídias.
A segunda experiência que tive com a criação de conteúdo para séries infantis retoma, em certos aspectos, linhas soltas do “Que tipo de criança você é?” e mais uma vez o encontro entre o documentário e a ficção. Aconteceu na concepção da série “Lala”, co-dirigida com Thomas Larson.
Lala é uma série voltada para o público pré-escolar, produzida com técnica mista de animação. A protagonista é uma menina representada por uma boneca animada em stop-motion, mais conhecida como ‘animação de massinha’. Seus amigos Toni, Foguete e Zima são brinquedos animados por computador e o diferencial da série é utilizar desenhos e depoimentos reais de crianças na elaboração dos roteiros.
O processo de produção dos episódios começa com oficinas realizadas com crianças de 6 a 8 anos. A faixa etária mais alta que a do público-alvo visa garantir o interesse das crianças mais novas. Nessas oficinas os participantes são incentivados a desenhar livremente a partir de temas dados pelos diretores. Além dos desenhos são feitas gravações de áudio. Esse material serve como substrato para a definição dos roteiros e os desenhos são refeitos por animadores, buscando a maior fidelidade possível com o traço infantil. De 2010 até 2017 produzimos 40 episódios de aproximadamente 2 minutos de duração cada. Nesses episódios experimentamos estruturas narrativas diferentes, em clipes musicais, poesias, um programa de entrevistas feito por Lala e seus amigos. Neste momento estamos formatando a série em episódios de 7 minutos que englobam todas essas possibilidades narrativas testadas nos episódios de menor duração.
No caso da série Lala temos um universo ficcional protagonizado por uma menina de 6 anos de idade, que dá vazão à sua imaginação e criatividade, junto com seu irmão caçula, o Tato, e seus amigos Toni, Foguete, Zima e Massinha (que são seus brinquedos) em seu quarto de brincar. Esse microcosmo serve como canal para expor os desenhos e depoimentos coletados nas oficinas artísticas. Nos últimos episódios utilizamos também ideias para a composição das músicas. A colaboração das crianças no material desenvolvido está em confluência direta com alguns aspectos da produção audiovisual voltada para as novas mídias.
O filósofo Pierre Lévy chama de Revolução Digital o fenômeno desencadeado com a popularização da internet e da sociedade interligada em rede. Esta revolução compreende as mudanças observadas nas relações humanas e no ambiente virtual, o ciberespaço. Essas mudanças influenciaram não só a maneira das pessoas se relacionarem, mas também a forma de consumirem, se expressarem e apreenderem o mundo à sua volta. Uma das transformações mais significativas no âmbito das comunicações é a da inteligência coletiva e da cultura participativa. Henry Jenkins é um dos principais expoentes dos estudos midiáticos das novas mídias e o autor da obra ‘Cultura da Convergência’, na qual analisa a construção e a apreensão de textos culturais audiovisuais. Jenkins pontua a modificação de paradigmas na estrutura comunicacional preconizada pelos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e a televisão. A base emissor-mensagem-receptor, estratificada e unívoca foi substituída pela via de mão dupla entre emissor e receptor, transpondo-os aos papéis de usuários no contexto virtual. Nos dias atuais os fãs ou consumidores de uma série ou texto cultural audiovisual não se contentam em receber os conteúdos de forma passiva. As novas mídias possibilitam a participação por parte dos fãs, seja na geração de novos conteúdos relacionados à seus objetos de adoração, ou no compartilhamento e circulação de informações. Podemos citar os exemplos da séries Game of Thrones e da franquia Star Wars, que teve de se atualizar aos novos modelos de consumo por parte dos fãs.
Quando finalizamos os primeiros 20 episódios da série Lala fizemos um ciclo de exibições coletando opiniões das crianças, sobre os temas, quais estruturas narrativas agradavam mais, até sobre a aderência com os personagens. O Massinha é disparado o personagem preferido do público. Ele é feito de massa de modelar verde e pode se transformar em qualquer coisa. No clipe da música Leão ele foi um felino de diversos tamanhos e um novelo de lã. Nos episódios Massinha assumiu formas tão variadas quanto um periscópio, lâmpada, pandeiro, E.T, sapo. É justamente a capacidade de transformação que encanta as crianças, a relação mágica de um objeto sumir e assumir outra dimensão. Numa perspectiva filosófica pode-se dizer que é um pouco isso o que a criança faz com seu entorno, a recodificação de signos em outros contextos. Esse processo fica mais claro durante as entrevistas para composição dos roteiros.
As entrevistas são captadas como conversas espontâneas e livres sobre os mais variados temas. Realizo uma pauta mental mas no momento de captação o assunto pode tomar rumos inesperados. Uma das entrevistas mais curiosas foi sobre a China. Nós queríamos saber o que habitava o imaginário infantil sobre esse país. A conversa começou tratando de aspectos mais conhecidos da cultura chinesa, como a culinária. A diferença cultural indignava uma das meninas que se negava a comer sapo e cobra e ela sabia que isso acontecia porque um tio dela já havia estado na China. Na opinião dela e da amiga o ideal seria comer doces, até porque essa era a “religião” delas. Pra entrar na religião das duas, tinha de responder um questionário, se não gostasse de doces estaria fora da seita. Esse é um exemplo das conexões feitas durante o processo de pesquisa.
Em um outro momento tratamos do tema Tecnologia e ficamos surpresos ao perceber que não são todas as crianças que curtem aparatos tecnológicos, pelos mais diversos motivos. Uma delas nos contou que o grande problema era a bateria, que acabava logo, então ela preferia brincar com coisas que não dependiam da energia elétrica. Ainda sobre esse tema ouvimos que o Google sabe muita coisa mas foi o homem que colocou tudo lá. Pode-se pensar no caráter curioso e “engraçadinho” de tais falas, mas elas demonstram muito mais do que uma aparente superficialidade. A apreensão de um objeto (tema) pode acontecer de diversas formas, muitas vezes vem à tona a reprodução de um discurso notadamente adulto, como opiniões sobre política. Mas o que tentamos é quebrar o discurso reproduzido provocando a criança a dizer o que ela pensa sobre aquilo, desvinculando sua opinião da fala dos adultos. Em uma das entrevistas tratamos do tema Teatro e em determinado momento o menino com que conversávamos disse que “amava” o teatro musical; diante do palco ele podia se desligar do mundo real e sonhar por pelo menos uma hora e meia. Mas mesmo sendo fã dos musicais ele também gostava de peças mais sérias pois era muito importante ter um espírito crítico sobre a realidade. Talvez a termo “espírito crítico” tenha sido ouvido em alguma conversa entre os pais ou familiares mas a conexão feita entre o teatro musical e as peças mais sérias é uma forma de aproximação realizada pela própria criança.
Um dos maiores desafios nesse momento é utilizar as plataformas digitais de modo cada vez mais participativo. O próximo passo será a produção dos episódios de 7 minutos e prevemos a criação de canais mais diretos de pesquisa, através do envio de materiais via redes sociais. O objetivo é usar as plataformas digitais para potencializar a coleta de material documental e também ficcional, aproveitando ideias do público na composição das músicas e das narrativas.
O cineasta alemão Win Wenders diz que sempre fez o mesmo filme, perseguindo uma mesma ideia. Tento modestamente aproximar-me desse olhar. Tanto a série “Que tipo de criança você é?”, quanto a “Lala” são tentativas de investigar a riqueza do universo infantil e propor cruzamentos entre a realidade da criança e suas projeções imaginárias. Esses universos nem sempre apresentam linhas divisórias claras, por isso essa investigação é tão instigante. No meu caso, creio que esse seja o principal fio condutor e estímulo para trabalhar com crianças e para crianças.
BIBLIOGRAFIA
BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
EISENSTEIN, S. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2009.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2012.
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.
Internet – Que tipo de criança você é? Disponível em: https://vimeo.com/album/2003253
[1] Gustavo Russo Estevão (Jon) possui graduação em Comunicação Social – Radialismo e Televisão, especialização em História da Educação e mestrado em Imagem e Som. Leciona desde 2001 em cursos de graduação e pós-graduação de Comunicação, assuntos referentes à criação e produção audiovisual. É sócio-diretor dos estúdios Usinanimada e Lala Produções Artísticas, nos quais atua como roteirista, produtor e diretor.
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FÓRUM RACISMO – Por que existem apenas raças de discurso: desafios para a democracia – As armas do analista frente ao discurso racista[1]
by cien_digital in Cien Digital #22, Órbita

Tatiana Blass
Rede Movida Zadig Doces & Bárbaros – Belo Horizonte, 9/3/2018
Ana Lydia Santiago
A segunda metade do século XX foi palco de grandes mudanças no espírito do capitalismo, que teve como consequência o avanço e a globalização dos mercados. Desde então, a crescente unificação de preferências dos consumidores e de seus padrões de consumo passa a alimentar a intolerância em relação ao diferente e faz aparecer o impossível de suportar, quando as diferenças se precipitam em um espaço único. Em razão dessa conjuntura, ocorrem fenômenos que concretizam o que Jacques Lacan, em 1973, em entrevista a Jacques-Alain Miller, tratada em Televisão, tinha profetizado como a proliferação futura do racismo.
Não é preciso muito esforço para observar a atual escalada do racismo. É o que pude constatar no espaço escolar, em que o insuportável da diferença se revela no corpo, em imagens geradas não apenas pela cor da pele mas também por objetos de indumentária e de consumo, que sinalizam para o Outro modos de gozo e estilos de vida não conformes aos padrões impostos.
Um dos segredos da prática analítica consiste em tomar o sujeito como vazio de sentido, falta a ser, sem identificações prévias e, portanto, sem qualquer destaque de suas condições social, cultural ou étnica. Interessa, antes de tudo, revelar a incidência, nele, de determinações da palavra, da linguagem. É por isso que o campo aberto por Freud tem como ponto de partida a chamada regra fundamental, que se funda no convite ao sujeito a tomar a palavra o mais livremente possível ̶ posição inédita, subversiva, no âmbito da ordem médica ̶ , o que atraiu a atenção de muitos, inclusive de artistas. Esse campo é explorado de diversas maneiras, sobretudo a partir de uma proposta de Jacques-Alain Miller, para o psicanalista manter conexão com os sintomas que afligem a civilização. Refiro-me à oferta da prática da Conversação, em que se adota o método da “associação livre coletivizada”, voltada ao mal-estar que ocorre em espaços institucionais.
Nessa perspectiva – e no âmbito de uma pesquisa/intervenção desenvolvida pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Psicanálise e Educação (Nipse)[2] em uma escola da rede municipal de Belo Horizonte/MG, que apresentava, na ocasião, o menor Índice de Desenvolvimento Escolar Básico (IDEB) e o mais baixo resultado na Prova Brasil, avaliações censitárias promovidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) –, foi Júlia, uma menina de 9 anos de idade, que explicitou o nó do racismo e sua interferência no acesso à alfabetização. Para a escola, Júlia representava o sintoma da instituição: fracasso escolar nos primeiros anos de escolaridade. Ao tomar a palavra, ela afirma: “Só os brancos aprendem” e “Ler e escrever não é para negros”. Conta que, na sua sala de aula, apenas Isabela, uma de suas colegas, e a professora sabiam ler. Reproduzo, por oportuno, parte da conversa desenvolvida ao longo dessa entrevista no âmbito da referida pesquisa:
Pergunto-lhe:
– Não tem mais nenhum coleguinha que sabe ler?
Ela pensa e responde surpresa:
– Uai! Tem! O Marcos, o Cauã e o Márcio.
– Você pode me falar um pouco mais sobre a Isabela?
– Ela tem uma mochila de rodinhas rosa… Eu também tenho mochila, mas a minha é mais bonita que a dela. A Isabela tem um tênis rosa… Mas eu acho o meu mais bonito que o dela.
Continuando, ela enumera outros objetos que ambas possuem, sempre valorizando os seus em detrimento dos da colega.
Digo-lhe então:
– Não estou entendendo. Você acha que a Isabela sabe mais. Mas, ao se comparar com ela, é você quem sabe das coisas e tudo que escolhe é melhor para você.
Então, qual é o problema?
Depois de um minuto de reflexão, Júlia responde:
– É que minha mãe não sabe ler.
Dou prosseguimento à conversa, visando cingir, de maneira precisa, algumas crenças a que o sujeito se agarra, porque estão ao seu alcance, para tentar inscrever o que lhe escapa. Júlia transforma-se visivelmente durante a entrevista: no início, ela fala baixinho, de cabeça baixa; depois, vai mostrando gosto pela palavra; e, no final, pede para voltar e conversar mais.
No que concerne à alfabetização, Júlia teve seu destino mudado a partir do encontro com um analista. Para Oprah Winfrey, ganhadora do Globo de Ouro 2018, o encontro que mudou sua vida também aconteceu, quando ela era uma menina da mesma idade de Júlia. Sentada no chão da casa de sua mãe – que, inclusive, tinha a mesma condição da mãe de Júlia –, ela estava assistindo à televisão, quando Anne Bancroft anunciou o ganhador do Oscar de Melhor Ator, na 36a edição dessa premiação pela Academia de Artes e Ciência Cinematográfica dos Estados Unidos, em 1964: “O vencedor é Sidney Poitier!” Essas palavras da apresentadora associaram-se, de imediato, à imagem do homem mais elegante que Oprah já tinha visto. Segundo ela testemunha, “sua gravata era branca e sua pele, negra”[3]. A propósito, afirma que, naquele instante, viu “pela primeira vez, um homem negro ser apresentado como celebridade” e isso traduziu em imagens sonoras o que ela própria queria para seu destino. Durante seu discurso, quando entregou o Globo de Ouro a Sidney, em 1982, ela declara que, naquele momento, só pensava que outras meninas poderiam estar assistindo à primeira mulher negra entregar esse prêmio e, assim, se inspirarem.
Volto a Júlia, para esclarecer que, ao tomar a palavra, a menina permitiu o deciframento de uma série de fenômenos que estavam acontecendo durante o trabalho pedagógico voltado à alfabetização, que, na época, na escola em questão, foi assumido por uma dupla de pesquisadoras do Nipse, uma negra e outra branca. Essa composição deu oportunidade para as crianças expressarem a marca nociva do racismo na escolarização.
Fazer da cor da pele uma aquarela, misturar branco e preto ou diluir a tinta do discurso racista por meio da palavra constituíram o processo de transformação operado por Júlia e outras crianças da mesma instituição, para tornar possível o uso do código alfabeto do Outro em uma pintura própria.
Os gestores da mesma escola “moviam montanhas” para mudar a situação de fracasso comprovada, sem conseguir resultados minimamente satisfatórios. Para eles, a “associação livre coletivizada” permitiu a explicitação de que, na verdade, responsabilizavam a pobreza familiar pelo fracasso escolar dos alunos. E criticavam os pais, pois viam, na relação destes com a escola, apenas um interesse meramente assistencial. Consequentemente, implementavam mudanças no espaço escolar apenas com base no que julgavam apropriado à realidade social das respectivas famílias.
Quando a prática educacional situa o aluno e sua família em posição inferior em relação ao saber e à educação, produz-se um discurso que segrega. No fundo, o que está em jogo é a dificuldade para acolher a diferença e o diverso expressos em um modo de gozo outro. “Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido”, afirma Lacan, em Televisão, indicando que a lógica contemporânea do racismo consiste em rechaçar no Outro um modo diferente de gozo. O declínio da civilização patriarcal deixa o sujeito desbussolado, sem saber qual Outro possibilita a orientação do gozo. Como se sabe, o racismo é o hábito, cada vez mais crescente, de recusa do gozo do Outro.
Na escola de Júlia, o método da Conversação mostrou-se uma arma potente, com vistas a se desembaraçar dos fatos de gozo de que o corpo se constitui lugar privilegiado da contraposição ao discurso racista presente em muitas práticas de instituições escolares. Além disso, possibilitou a grande parte dos educadores envolvidos estabelecer novo laço com os pais de alunos, laço pautado na aposta em que a educação pode ser um instrumento valioso para a vida civilizada, em detrimento dos apelos obscurantistas da época atual.
O analista tem, portanto, suas armas e não abdica delas frente às tendências segregacionistas das sociedades contemporâneas. Diante da prática racista, a “associação livre coletivizada” afirma-se, pois, como um discurso que, ao acolher a trajetória singular de uma vida, resiste às ideologias, utopias, ideais e práticas que gravitam em torno da uniformização dos modos de gozo.