ISSN 2178-499X
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Biografia não autorizada de um jovem infrator.

by cien_digital in Cien digital #20, Traço de União

Janaína Tschape, Dust Particles, 2010

Célio Garcia

Nasce uma criança.

Parto natural, dores terríveis.

Havia escutado na barriga da mãe (eles não vêm, mas escutam) “me inclua fora dessa”.

A criança se destinava assim a ser um jovem infrator.

Lembrar-se ia da frase aderindo a ela.

Descobrindo o corpo achou o sexo.

As “minas” ficariam para mais tarde

Esgueirando-se ao longo do muro que o separa da escola

Conversando com seus botões, próximo da escola, disse para si mesmo.

“me inclua fora dessa”.

Não tem nada a ver.

Em vez de pai que já se foi, padrinho que permanece como chefe da boca de fumo estável, dá segurança e proteção quando a barra é pesada.

Demais, ameaça de morte.

É dura a vida quando se trabalha de aviãozinho.

É dura a vida quando se trabalha de aviãozinho.

“Howling for You” © Renata de Bonis/Reprodução

Segunda parte.

Encontro com o sistema socioeducativo.

Um dia, aviãozinho caiu na malha da policia.

A polícia toda malhadinha, história de camuflagem, onde se faz tocaia.

Um programa como o “Fica vivo” articulado de uma maneira sutil com a psicologia serve de tocaia.

Varias vezes fui chamado para falar sobre o Fica vivo.

Desde a primeira vez estranhei o título do programa.

Na mesma época a Bienal de São Paulo teve como lema “Como viver juntos”; me perguntei se poderia mudar o nome do programa; ao invés

de “Fica vivo”, “Como viver juntos”.

Tal como queria a curadora Lyzete Lagnado da Bienal de São Paulo.

Um dia passou no Conselho da Casa.

Todos tinham o direito a falar, o jovem infrator também, mas não conseguiu dizer nada do que queria. Faltaram as palavras. Havia o costume do instrutor sair para comprar sanduiche depois do lanche, antes de dormir.

Também comprava- se fuminho.

O Serviço de segurança era formado por gente boa talvez próximos dos jovens infratores.

Recuperar quer dizer através do PIA. O pia é impiedoso. Eles piavam para preencher o PIA.

Jovem Infrator algum pretende mexer com tais coisas.

Arrependimento e culpa.

Havíamos passado da periculosidade da época do Código de Menores, FUNABEM e FEBEM para a noção de recuperação por culpa e arrependimento.

Eis-me aqui, antigo Conselheiro da FUNABEM no Rio de Janeiro nos anos sessenta.

Sheila Hicks Fetera II, 2011 Plumes and cotton

Terceira parte.

Existe um índio em uma região entre o Peru e o Estado do Acre“isolado” causando preocupação à Funai. Como ele foi parar lá? Ninguém sabe…

Desgarrado. Forçado pelas circunstancias da natureza? Forçado pela perseguição do branco? Escolha do índio?

Isso revela uma polarização, um antagonismo rechaçado entre os índios “pacificados” e os isolados, refletindo toda uma perspectiva cultural, antropológica e social, contemplada por uma concepção de modernidade que não admite mais o “selvagem” como parte de sua engrenagem. Quanto mais o

filme se imanta das memórias e dos causos contados pelos personagens, quanto mais se embrenha na densidade soturna da floresta e do rio, quanto mais revela uma miscelânea de etnias, de feições de povos e culturas, mais somos confrontados com uma realidade que nada tem de heróica ou exotizante, mas somos confrontados com o lado obscuro e selvagem que existe escondido, adormecido em cada um de nós.

Esta nota vou escrever em paralelo com o jovem infrator. Isolado como se fosse o mesmo destino do índio.

Minha documentação em se tratando do índio isolado é basicamente constituído pelo documentário “Paralelo 10”.

Silvio Darín, autor desse documentário,

Também o jovem infrator parece fazer a mesma escolha do índio, permanecendo isolado.

Como pode haver tal estranha escolha?

A FUNAI busca proteção do índio, tal como o ECA e o sistema socioeducativo. Nenhum sistema socioeducativo dá conta de tal escolha, nem a FUNAI. Como bem sabemos, o fracasso é total em se tratando do jovem infrator. O desafio é de monta.

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A Prática de Laboratório do CIEN: uma abertura para o desejo de saber.

by cien_digital in Cien digital #20, Traço de União

Paulo Nimer Pjota

Siglia Cruz de Sá Leão.

A prática dos laboratórios do CIEN aparece como uma resposta do Campo Freudiano às urgências e exigências que o mestre contemporâneo faz recair sobre as crianças e os adolescentes. O laboratório é o nome que damos ao espaço, à instância de encontro das diferentes disciplinas, cuja experiência torna-se inédita por ser sustentada pelo “não saber” – para tanto, apostamos na presença da psicanálise enquanto discurso que pode manter o lugar vazio e tirar consequências do desejo de saber.

Esta orientação promove inquietação nos profissionais das diversas áreas que se aproximam do CIEN, não por acaso. Afinal, o que está em questão é o próprio estatuto do saber na atualidade, em um tempo marcado pelo apelo ao utilitário, à produção de respostas generalizantes, “válidas para todos” e que sejam também tranqüilizadoras, rápidas. Saber(es) que vêm sendo progressivamente infiltrado(s) pelo discurso da avaliação, por práticas tecnológica/políticas, que têm, dentre outros, o efeito de silenciar o impossível de dizer que por ali se agita. Respostas prontas; sujeitos categorizados.

A aposta é que a interdisciplinaridade, tal como concebida no CIEN pode fazer frente a este fenômeno característico de nossa época e favorecer uma práxis que possibilite a emergência de um novo saber, que não o das categorias.

Uma prática da interdisciplinariedade que não é como outra qualquer, como aquela presente no cotidiano institucional – a multidisciplinar, ou seja, a reunião de várias disciplinas que possam dar conta do que acontece. Enfim, a interdisciplinaridade é uma prática distinta que carrega o traço de sua distinção na grafia da palavra inter-disciplinaridade[1], grafada com hífen, contrariando a norma gramatical, justamente para fazer marcar a abertura, uma abertura no opaco das disciplinas.

Nesta proposta, é o desafio poder sustentar esse hífen operador, esse lugar vazio, o que implica, nos diz Laurent, que não se trata de agregar a verdade de uma disciplina a outra, nem mesmo a psicanalítica[2]. Nenhum saber a mais, tampouco o da psicanálise a fechar a brecha do não saber aberta pelos pontos de impasse que enfrentamos.

No laboratório, este uso particular dos saberes, em uma conversação, promove uma “elaboração provocada entre vários”[3], de maneira que cada disciplina possa interrogar-se e ser permanentemente interrogada, pela outra, em seus pressupostos e teses. A aposta é que possa acontecer certo deslocamento do seu saber mestre, um certo “desarranjo nas identificações”[4] mais ou menos obscuras de cada um em relação ao seu próprio saber. É nesse ponto, muitas vezes, que pode surgir o saber da criança como uma bússola.

Arturo Herrera, Jack, 2010 Mixed media on paper

A experiência de um Laboratório

Nomeado “A Criança e as Ficções Jurídicas”, este laboratório centrou seu campo de investigação nos modos de incidência do discurso do Direito sobre a criança, os efeitos e impasses daí advindos. O termo “ficções jurídicas” designa as medidas de proteção às crianças e adolescentes, inspiradas e regidas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e que estão organizadas de maneira própria em cada país – no caso do Brasil, estão formuladas no ECA.

Este laboratório mobilizou a participação de profissionais de alguma maneira atravessados pelo discurso jurídico, em sua atuação junto a crianças e adolescentes: psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados e psicanalistas, profissionais estes com atuação no Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Publica, em ONGs de defesa dos direitos das crianças, em projetos sociais voltados ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, programas municipais de assistência social, instituições de saúde e de educação. Buscam o CIEN movidos por alguma inquietação, ansiosos por alguma resposta às dificuldades que enfrentam em sua prática cotidiana, ou interessados no intercâmbio com a Outra disciplina.

A conversação, que transcorre no interior do laboratório, acontece sobre um tema lançado à discussão, um texto-pretexto ou prioritariamente em torno de impasses que os profissionais enfrentam em sua prática cotidiana, oriundos não só dos atendimentos as crianças, mas também da aplicação de leis e normativas que se impõem e atravessam suas ações, provocando certo desnorteio – o foco principal é, pois, a posição do profissional frente às demandas que lhe são colocadas em um dispositivo jurídico.

Trisha Brown , Untitled (Montpelier), 2002 Charcoal on paper

Qual a medida?

Um adolescente de 14 anos é encaminhando à Fundação Casa após brigar na escola e no abrigo onde se encontrava. A medida era excessiva, desproporcional ao acontecido – a assistente social que acompanhava a família em um Projeto Social apresenta tal situação no Laboratório. O adolescente (na época, uma criança) e sua família começaram a ser atendidos por estarem em situação de rua, na “Cracolândia”. Os pais, usuários de drogas. A mãe, presa algumas vezes. Ele e os quatro irmãos acabaram abrigados. Após algum tempo, as visitas dos pais foram suspensas judicialmente, por descumprimento das regras do abrigo. O adolescente começou a manifestar “problemas de comportamento”, sendo descrito pelo coordenador da instituição acolhedora (que tentou transferi-lo diversas vezes) como agressivo e perigoso; e outras etiquetas passaram a compor seu “prontuário”: impulsivo, sedutor, dissimulado, hipercinético, delinquente, abusador. A partir da conversação no Laboratório, ficaram evidentes os significantes mestres institucionais, o ideal que se sobrepunha à prática de cada profissional, apagando seu saber-fazer, impedindo a criatividade no encontro com o outro. Imersos em protocolos pré-estabelecidos e em busca do comportamento padrão, é a gravidade suposta das ações do adolescente que sobe à cena; ele desaparece – não havia nenhum registro de suas falas na instituição. Os únicos dados eram psiquiátricos, apesar de ter sido atendido por diferentes profissionais, psicólogos e educadores.

A assistente social se surpreende com essa sua descoberta durante a conversação. Na própria instituição em que ele era tratado (a que ela trabalhava) e que tinha como uma das metas defende-lo da segregação a que poderia estar exposto nas outras instituições, repetia-se o mesmo, isto é, a segregação. O sujeito obliterado por práticas, que ao final, concluiu-se, estavam impregnadas pelo afã de seu controle, o controle social.

Conseqüência da conversação, a profissional vai evidenciando para todos os envolvidos no atendimento que ninguém sabia nada do adolescente – estava coberto de diagnósticos e pelo barulho dos acontecimentos em que se envolvia. O que se via era a medida que extrapolava; e à medida em que extrapolava, fazia-se ver.

A partir de sua posição única, “descompletada” de sua equipe, a assistente social fez-se destinatária, na contingência de um encontro com esse adolescente, da enunciação, por ele, de seu lugar de sobra: “os BOs sobram para mim”. Ele que sobrou com seus irmãos no abrigo, sem família, sem adoção no desejo do Outro. Partindo de seu campo de saber e lugar institucional, essa profissional lhe propõe então ajudá-la a separar as fotos de sua família para montar o álbum de um projeto do qual ele participava no abrigo: o “Fazendo História”. Ele topa, se alegra, se recompõe.

Sustentar esse encontro com o Real insuportável, que não se domestica, buscando um modo, o seu modo de fazer com o obstáculo, foi um dos efeitos para esta profissional concernida nesta situação. Assim, a própria orientação inter-disciplinar busca dar um sentido a esse real, diverso do universal, para que o trabalho continue.

Vânia Mignone

O tempo, a medida… Qual?

Em funcionamento desde 2004, esse laboratório encontrou, em 2015, seu tempo final. Como localizar esse tempo? Qual a medida?

Mantido o princípio da conversação inter-disciplinar, os laboratórios funcionam nos mais diversos tempos, estilos, locais. Há laboratórios pontuais, há aqueles mais perenes, há conversações feitas somente com os profissionais, há aquelas em que participam também as crianças e os adolescentes.

O que mantém o laboratório vivo são os impasses – sua coluna vertebral. Sem eles, o laboratório deixa de o ser; perde sua função. Se é função do laboratório arejar os saberes consolidados das disciplinas, quando os impasses foram se aquietando, restava escutar do que se tratava esse silêncio. A escuta levou a dedução do encaminhamento a ser dado: diferentes profissionais implicados com suas práticas, menos “asfixiados”, o laboratório ainda estava em funcionamento, mas já era o seu tempo final. Era o meu momento de concluir e sustentar que não daríamos consistência ali a outras demandas que levariam, equivocadamente, a fazer consistir uma disciplina, a da psicanálise.

 


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