
Editorial – Abril 2015
by cien_digital in Cien Digital #17, Editorial

Daniel Arsham, Sideways clock, 2012
Foto: Simone Catto
Maria Rita Guimarães
Caro leitor e amigo do Cien Digital,
Talvez a melhor maneira de lhe apresentar este número do Cien Digital, fosse simplesmente sugerir que você o abrisse, como quem abre um “Kinder Surprise“: uma surpresa, certamente aguardada, mas impensável! Tomemos outra perspectiva: se a evocação do Kinder Ovo veio fácil à cabeça por ser tempo de páscoa e vemos ovos de chocolate por toda parte, apelativos, atiçando os sentidos, sussurantes em nossos bolsos, é que aí, justo na face que se oculta sob a sedução do Kinder Ovo, reside nosso interesse de reflexão no momento. Chocolate? Não! Interessa-nos pensar a criança e adolescente como metáfora do Kinder Ovo, caso pensemos como Zizek que qualificou o famoso chocolate –aliás, de chocolate tem pouco- de metáfora da mercadoria. Assim, nosso assunto, porque é nossa preocupação, é com a criança/mercadoria. Se continuarmos na formulação de Zizek, que cita Lacan “Eu o amo, mas, inexplicavelmente, amo alguma coisa em você mais do que você mesmo, e portanto, o destruo”, temos a noção de objeto a, o agalma representado tanto pelo brinquedo que vem dentro do chocolate (no vazio material do ovo, como um “mais”) quanto pela criança como plus que colma a falta materna, o nada do desejo. A mercadoria perfeita porque ela mesma já é o suplemento capaz de satisfazer as expectativas idealizantes.
A criança no consumo, consumidora, consumida, saturada. Clic em Evento, leia e se inscreva na Jornada Internacional do Cien, cujo título é: Crianças saturadas.Você encontrará, junto ao Argumento, todas as informações de que precisará para estar conosco em 03 de setembro em São Paulo, por ocasião do Enapol. Se, rumo ao VII Enapol estamos às voltas com a temática O Império das Imagens, publicamos, na rubrica Hífen, a valiosa elaboração de Paula Sibilia: O passado editável – crise da interioridade e espetacularização de si – que nos ajuda a entender, se posso dizer assim, a efemeridade da experiência humana, constantemente deletável, nos tempos atuais.
Paula diz em seu trabalho: “Sempre há um espectador, um leitor, uma câmara, um olhar sobre o personagem que tira dele seu caráter meramente humano. E, para poder existir, ele precisa fervorosamente desse olhar alheio”.
A criança/adolescente foram descobertos pela publicidade como novo target, termo que designa o público de referência a que se destina a mensagem. Um estimulante e rigoroso estudo desse assunto você vai ler, com o entusiamo que o texto suscita, também em Hífen: Publicidade infantil: o estímulo à cultura do consumo e outras questões.
E o avesso dessa perspectiva, onde está? Leia a ENTREvista com Nina Krivochein, de onze anos, que nos ensina muito sobre como se pode ser uma criança que escapa às malhas da engrenagem contemporânea. Se a palavra contemporânea convoca a uma sociedade que vive baixo o império das imagens, a linda surpresa é conhecer como jovens de 13 a 16 anos, estudantes de uma escola municipal situada em uma região de “alta vulnerabilidade de Belo Horizonte”, reagiram ao encontro com a arte de Leila Danziger, na coleção: “O que desaparece, o que resiste”. Essa experiência está relatada em Labor(a)tórios, mas, lá, você encontra mais!
Por quais paradigmas se orientam e/ou se desorientam os jovens sob o império das imagens? A obs-cenidade já não conta mais com a barreira do prefixo obs, obstáculo que permitiria a delimitação mínima do privado? Postar foto nua no Facebook, em posição “ginecológica” é “natural” mas, o obs passa à fala. Falar disso é interditado? O texto O real do sexo, a imagem do corpo e seu consumo na adolescência nos deixa a questão.
Os integrantes do Laboratório Trocando uma Ideia nos relatam o que vivenciaram junto a “adolescentes do Centro de Internação que estão cumprindo medida com privação de liberdade por um período que varia de 06 (seis) meses a 03 (três) anos, e possuem, em geral, entre 12 e 18 anos. Eles foram convidados e aceitaram participar de “conversa sobre sexualidade”. Cada encontro, uma surpresa, no sentido da contingência.
Os escritos da experiência de Conversação dos Laboratórios do CIEN a cada vez nos reavivam o valor das palavras de Judith Miller:
A publicação escrita das transformações produzidas pela prática da Conversação, própria ao CIEN, garante um meio de proteção do dizer em relação ao Charybdeem Scylla contemporâneo que leva do amordaçamento à passagem ao ato.

José Bechara, Água Viva, 2015
Como finaliza a prática de um Laboratório? É Thaís Morais, do Maranhão, quem nos conta sobre a trajetória do Laboratório Guarnicé.
Vidademerda.com Uma localização que define, através da fala de uma adolescente do filme 17 filles, a vida que levam, mas sobretudo a vida de suas famílias. Querem, naturalmente, se libertar do asfixiante tédio que lhes acena no horizonte. Como respondem? Numa espécie de epidemia histérica, engravidam-se ao mesmo tempo, gestação de um poder tão espetacular que seus ventres adolescentes, carregados de objetos a como os brinquedos que recheiam os Kinder Surprise, parecem não ter que responder à lei da gravidade, tal como os vemos nas magníficas imagens dentro das claras águas em que se exercitam em grupo. Cristina Drummond, nossa colega da Escola Brasileira de Psicanálise , responsável pela coordenação da próxima Jornada da Seção MG, com o título: O que quer uma mãe, hoje? Maternidades no século XXI – faz uma análise do filme, conduzindo-nos, através de suas palavras, a uma análise do fato real ocorrido em 2008, nos EUA, na interpretação atual das irmãs cineastas francesas. Teresa Mendonça e Simone Pinheiro também nos apresenta sua contribuição ao debate, em indagações pelo sentido do ato adolescente via a maternidade. No Cine Cien!
Por fim, você notará que a equipe editorial do Cien Digital tem nova composição. Nossa querida colaboradora Fernanda Otoni de Barros-Brisset se despediu: nossos agradecimentos vão para além do tempo e trabalho conosco, para chegar às suas palavras ”estarei por perto.” E damos as boas vindas aos colegas que, a partir do número 17, integraram-se à equipe , com muito entusiasmo! Ana Martha Maia (RJ), Dário de Moura (MG), Margarete Miranda (MG), Nohemí Brow (PA) e Siglia Leão (SP).
Desejamos-lhe boa leitura !
Nota: o texto de Zizek , numa versão bastante reduzida, pode ser acessado em http://www.angelfire.com/sk/holgonsi/identidade.html
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VII Jornada Internacional do CIEN – Crianças Saturadas
by cien_digital in Cien Digital #17, Eventos

VII Jornada Internacional do CIEN • Crianças Saturadas
Argumento
Nossa Jornada Internacional do CIEN terá por tema Crianças saturadas. O título já remete ao excesso ao qual muitas crianças e adolescentes encontram-se submetidos na atualidade. Saturados, fartos, saciados, termos que indicam a satisfação, mas levada até o fastio.
Na atualidade podemos constatar que, apesar de as crianças e os adolescentes ganharem novos espaços em diferentes áreas dos saberes e práticas, tais como o Direito, muitas das vezes, no afã de protegê-los, terminam por submetê-los a saberes e práticas que acrescentam um plus, algo a mais. Um exemplo foi o recente e acalorado debate sobre a chamada comida Junk food. Considerada prejudicial para a saúde dos pequenos pelo alto teor de açúcar, sódio e gorduras saturadas, foram objeto de dois Projetos de Lei na Assembleia Legislativa de São Paulo, que pretendiam limitar os horários de veiculação de propagandas de junk food, como também, proibirem a distribuição de brinquedos associados aos alimentos. Porém, além de regular a publicidade, deveriam incluir advertências dirigidas sobre os males da obesidade infantil.
Podemos dizer que as formas de saturação são múltiplas e diversas. As crianças parecem saturadas por saberes, por ofertas, por demandas, por medicamentos, por gadgets e pelas imagens que deles proliferam, numa profusão nunca antes vista. Paradoxalmente, frente a esse excesso, elas encontram-se sozinhas, entediadas e desorientadas. Muitas vezes, as telas e as drogas tornam-se um recurso fácil e imediato frente à angústia, ao mal-estar e à solidão. As crianças e adolescentes, tão solitários quanto desorientados, passam muito tempo na internet e diante das telas, dos games e da televisão. A tela que conecta é a mesma que pode distanciar. Trata-se de uma infância negligenciada, onde as telas passam a se ocupar das crianças, instalando uma relação de dependência que a criança encontrará novamente na adolescência, através da oferta de objetos de todo tipo, por um mercado cada vez mais agressivo e em franca expansão. (LAURENT, E., “A crise do controle da infância” In. Crianças falam! E têm o que dizer, 2013, p. 38).
Assim, a solidão da criança e do adolescente não provém apenas de famílias “desestruturadas”, de situações de carência, de crise ou de doença. Ela se produz na própria relação que a criança estabelece com seus objetos, perturbando, inevitavelmente, o laço com os outros. Aos objetos de satisfação imediata ou objetos de gozo, como dizemos em psicanálise, entre os quais se incluem as telas e as drogas (e também os medicamentos), se agregam diferentes campos de saberes e, inclusive, as demandas sem fim relacionadas ao que pretensamente se deveria esperar de uma criança.
Uma vez mais, a proposta CIEN se coloca no olho deste furacão, assumindo o desafio de abordar tais impasses contemporâneos em espaços institucionais interdisciplinares. Uma prática que, através do dispositivo da conversação, permita produzir interrogações para dar um lugar mais digno aos modos de resposta, sempre únicos, de cada criança ou adolescente. Para que não fiquem reduzidos a meros objetos de consumo e de saberes, e se abra a via de um desejo e de uma invenção própria. O que podemos extrair da prática do CIEN para pensarmos tais questões atuais e seus impasses? O que nos ensinam as crianças e adolescentes através de suas pequenas invenções quando, nas instituições, lhes oferecemos a palavra?
Mais do que respostas, este argumento propõe perguntas para que cada laboratório possa compartilhar e, a partir do trabalho conjunto, transmitir os efeitos de suas experiências, tanto aquelas realizadas no âmbito das conversações com as equipes interdisciplinares, quanto as que se realizam com as crianças e os adolescentes.
Eixos temáticos:
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Crianças e adolescentes saturados por imagens;
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Crianças e adolescentes saturados por saberes e práticas;
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Crianças e adolescentes saturados por drogas lícitas (medicações) e ilícitas;
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Crianças e adolescentes saturados por demandas.
JORNADA INTERNACIONAL DO CIEN • CRIANÇAS SATURADAS
World Trade Center – São Paulo – SP
03 de setembro de 2015 – quinta-feira
Horário: 12h a 17h30.
Convidado: Miquel Bassols
Informações: brasilcien@gmail.com
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O passado editável Crise da interioridade e espetacularização de si
by cien_digital in Cien Digital #17, Hífen

Maurizio Savini, gomma da masticare, 2011
Paula Sibilia1
O homem é o único animal capaz de lembrar. Ao menos, isso supomos, e também é o que Friedrich Nietzsche observou em suas Considerações extemporâneas de 1873. Claro que não se tratava, para ele, de uma grande qualidade capaz de enaltecer o gênero humano. “É possível viver quase sem lembranças, sim, e viver feliz assim, como o mostra o animal”, constatava então o filósofo alemão, “mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento”. Por isso, esquecer ruminando seria, para Nietzsche, “a capacidade mais elevada do espírito”.
Pode parecer estranho, mas esse autor não foi o único a se revoltar contra as tiranias da memória, defendendo em troca as potências libertadoras do esquecimento. Para ter uma ideia das desventuras que o lembrar-se de tudo pode implicar, basta evocar o célebre protagonista do conto de Jorge Luis Borges, Funes o memorioso, a quem a quantidade avassaladora de lembranças, literalmente, o impedia de viver.
Tudo isso vem à tona agora porque subitamente convivemos com uma máquina monstruosa que parece se lembrar de tudo: a internet. A essa fabulosa qualidade apontam as reclamações que se erguem contra os motores de busca como Google ou Yahoo, em nome do “direito ao esquecimento” nas redes informáticas. O que se pede, em suma, é que sejam apagados certos dados pessoais que se referem a situações do passado e que, embora sejam verdadeiros, o demandante considera que o prejudicam de algum modo.
Em maio de 2014, a União Europeia tomou uma decisão insólita nesse sentido, que provocou intensos debates ao repercutir em todo o planeta. Segundo tais medidas, os buscadores da internet devem atender as petições dos usuários quando estes solicitem que sejam eliminados de seus resultados alguns conteúdos que os afetam de forma negativa. A partir daí, e por toda parte, não cessam de proliferar os processos judiciais que tentam limitar a informação disponível sobre um determinado indivíduo.
Assim, por exemplo, entre os casos que mais ecoaram, estão os de atrizes ou modelos que pedem a omissão de links para sites pornográficos em todas as buscas associadas a seus nomes. Mas não é só isso, pois a diversidade abunda neste âmbito. Existem também aqueles que querem desaparecer dos resultados mostrados por Google porque temem por sua segurança, por exemplo, ou porque desejam proteger sua privacidade, ou porque os associam a episódios de seu passado que não querem que sejam lembrados por ninguém.

Diego Velázquez,
La infanta Margarita Teresa de Austria,
1653, Kunsthistorisches Museum, Viena
São inúmeros os ingredientes deste debate, que é muito complexo e está cheio de contradições. Em todo caso, esse reconhecimento tão recente do “direito ao esquecimento” por lei abala alguns alicerces de nossa tradição filosófica e faz surgir a seguinte dúvida. Por ventura estaria se realizando, afinal, em pleno século XXI, aquele feliz desprendimento das garras da memória proposto pelos autores anteriormente mencionados que, não por acaso, marcaram a fogo o pensamento e o imaginário dos séculos XIX e XX?
Talvez sim, em certo sentido, porém não exatamente como eles o enunciaram. Porque o que entendemos por memória e esquecimento, inclusive o que consideramos que seja “ser alguém” e a relação que isso implica com as próprias lembranças, são todas definições que costumam mudar com os vaivens da história. E talvez tenham se reconfigurado de maneira inesperada nos últimos tempos. Nessa perspectiva, não surpreende que figuras como Nietzsche e Borges tenham se encarniçado contra os possíveis abusos da memória, já que suas obras costumavam disparar agudos dardos aos valores vigentes na época em que escreveram. E, como é sabido, tanto o século XIX como boa parte do XX estiveram, obcecados pela memória.
Inclusive Sigmund Freud, autor de uma das teorias mais bem-sucedidas sobre o que significa ser humano na era moderna, atribuiu à memória um papel despótico: podemos não nos lembrarmos de algo,ou acreditar que o esquecemos, mas tudo o que vivemos nos constitui de um modo profundo e crucial, alimentando o que somos. Mesmo se um determinado episódio não se encontra esclarecido no nível mais imediato da consciência, admite-se que tudo o vivido está abrigado em substratos ainda mais profundos de nossa essência. E não há o que fazer: ainda que pensemos que não nos lembramos, estamos feitos dessa matéria tão esquiva como insistente.
No entanto, muita água correu debaixo da ponte desde aquelas vitorianas épocas, e é provável que nossa relação com a memória já não seja a mesma. Embora hoje, mais do que nunca, sejam erguidos museus, eventos ou parques temáticos para prestar culto a toda sorte de acontecimentos do passado. Isso, sem deixar de lado a encenação espetacularizada de épocas inteiras, enquanto infinidade de material jornalístico ou bibliográfico, bem como cinematográfico e televisivo, também se ocupa do assunto.
Para não falar dos blogs, dos perfis nas redes sociais e das toneladas de fotos que acumulamos para documentar cada instante de nossas peripécias vitais, ou de seja lá o que for.
De modo que o desejo de registrar e arquivar parece ainda muito presente em nossa cultura, mas o curioso é que tudo isso convive com uma novidade: as ferramentas para apagar lembranças. Nesse sentido, a reivindicação do “direito ao esquecimento” que estourou recentemente na internet, não parece estar sozinha nessa tendência. Vários experimentos científicos procuram descobrir uma substância química que seja capaz de eliminar reminiscências dolorosas dos cérebros daqueles que sofrem de “estresse pós-traumático”, por exemplo. É a esse esforço que alude o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, dirigido por Michel Gondry em 2004, cujos personagens recorrem a uma empresa que vende esse tipo de serviços para solucionar, de modo indolor e com alta praticidade, a tristeza de uma desilusão amorosa.

Freya Jobbins, Kerri Anne, 2013, série “dollfaces”
Não é casual que, justamente agora, surjam esses sonhos de uma memória editável ao gosto do consumidor, como se a própria vida fosse uma história contada num suporte digital, cujos episódios desagradáveis pudessem ser apagados – ou melhor, deletados – com a eficácia típica dos computadores e por livre decisão de cada um. A metáfora acabou se aderindo ao referente, de modo que a Timeline de Facebook não representa mais a epopeiade seu protagonista por meio de uma série de imagens cuidadosamente selecionadas. Agora, ambas as substâncias — vida e relato audiovisual — se fundem e se confundem nessa biografia informática.
Tratadas como arquivos digitais, as lembranças deixam de ser aquele ingrediente etéreo
e misterioso que nutria a interioridade de cada indivíduo. Essa essência oculta e enigmática era claramente analógica, incompatível com qualquer dispositivo eletrônico e incapaz de se converter em informação. Por isso, exigia outras técnicas de deciframento: as viagens introspectivas e as evocações retrospectivas, por exemplo, como rituais cotidianos para se conhecer a si mesmo, procurando dar um sentido coerente ao caótico fluxo de acontecimentos que compõem toda e qualquer vida.
Mas algo parece ter mudado bastante nesse panorama. Quando se opera segundo a lógica informática, se ninguém lembrar que algo aconteceu – inclusive consigo mesmo – porque esse dado foi eliminado tecnicamente, então, pode-se agir como se isso nunca tivesse ocorrido. Algo comparável ao que acontece quando se recorre ao bisturi para modelar o próprio aspecto físico, por exemplo, ou quando alguém edita a “linha do tempo” em sua página de Facebook, ou quando lhe exige a Google que deixe de mostrar imagens e textos vergonhosos a seu respeito.
A naturalização, entre nós, de todas essas atitudes, sugere algo inquietante. A matéria que nos constitui parece ter mudado sutilmente para transmutar-se em outra coisa, ao se redefinirem os pilares que sustentam a história pessoal de cada sujeito. Já não é algo cujos vestígios são guardados no mais recôndito do próprio lar — como se fazia com o álbum de família ou com o diário íntimo de antigamente, por exemplo — ou então “dentro” das entranhas mais profundas de cada um. Em vez disso, agora parece se tratar de uma espécie de capital que se deve administrar com o propósito prioritário de mostrá-lo.

Ian Davenport, Ingleby Wall Painting (after Carpaccio) – detalhe, 2011
Ou seja, em lugar daquele tesouro que devia ser protegido na intimidade para dar consistência ao eu, trata-se de um relato cuja função primordial consiste em ser visto. Isto é, que os outros o assistam como se fosse um espetáculo e que o testemunhem com seus próprios olhos; e, na medida do possível, que também o “curtam” clicando nos botões adequados ou fazendo comentários afirmativos.
De fato, já não se guarda quase nada para sempre, nem na interioridade impalpável da alma nem na privacidade do lar. Não se conservam fotos impressas, cartas ou diários, por exemplo, pois tornou-se imprescindível mostrar logo tudo nas telas e, em seguida, descartá-lo para renovar o perfil. É preciso exibir tudo o que se é; ou, mais exatamente, o que se está, clamando sempre pela aprovação alheia. Ainda com mais exatidão, dir-se-ia que é necessário mostrar tudo o que se deseja que os outros considerem que se é, para assim receber o seu almejado apoio com o polegar para cima.
Além disso, cada vez existe menos diferença entre aqueles pares que antes se consideravam opostos e excludentes: essência e aparência também se confundem e se misturam nestas novas práticas vitais, sem privilégios morais para a primeira nem desprezos para a segunda. O importante é que se somos algo, então tudo isso tem que estar à vista; porque se não se mostra e os demais não o enxergam, então nada nem ninguém poderá nos garantir que existe.
Ante essa importante e curiosa mutação, o fato de que algo tenha acontecido ou não, parece perder relevância. Também muda a maneira em que uma lembrança do passado afeta o presente, sem necessariamente se afixar de modo indelével na “essência interior” de seu protagonista. O que mais importa, agora, parece ser outra coisa: o efeito que tudo isso produz nos outros; em suma, como os demais o veem.
Daí que as reivindicações atualmente em curso em torno ao “direito ao esquecimento” também costumem se apresentar sob outro rótulo: o “direito à autodeterminação informativa”. Neste caso, o que se defende é a faculdade de cada indivíduo para administrar por si mesmo a divulgação e o uso dos dados referidos à sua pessoa. Esses sonhos de autonomia também levam a marca do contemporâneo. Essa ilusão de controle total, porém, não cessa de nos desapontar, dando ressonâncias inesperadas às sagazes teorias de Gilles Deleuze sobre o mundo contemporâneo.
Cabe lembrar que esse filósofo francês recorreu à expressão “sociedades de controle” para designar o “novo monstro”, como ele mesmo ironizou naquele breve e contundente ensaio publicado originalmente em 1990. A que se referia? À gradual implantação de um regime de vida inovador, que vai se distanciando dos modos de funcionamento tipicamente modernos e industriais , ou seja, daquilo que Michel Foucault nomeara “sociedades disciplinares” em seus estudos publicados alguns anos antes.
Essas novidades começaram a se delinear nas últimas décadas do século passado, com o apoio crucial das tecnologias eletrônicas e digitais, para configurar uma organização social mais compatível com o ágil capitalismo de final do século XX e princípios do XXI; isto é, um sistema regido pelo excesso de produção e pelo consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão em redes globais de comunicação. E, sobretudo, marcado pela decadência de certos estabelecimentos básicos da sociedade moderna — tais como a escola, a fábrica, a prisão e o hospital — enquanto a empresa se entronizava como um modelo que impregnaria todas as demais instituições, ao contagiá-las com seu onipresente “espírito empresarial”.

Choi Jung Hyun, keyboard viper, 2008
Como parte desse movimento, entraram em crise as figuras de autoridade mais tradicionais (pais, chefes, mestres, Estado), de modo que o antigo sistema de poder centralizador — que exercia uma vigilância vertical e internalizada por meio de regulamentos e culpas — também caiu em declínio. Contudo, essa transformação não significou uma liberação total das velhas amarras; ou pelo menos, não foi apenas isso o que aconteceu. Junto com esse afrouxamento, abriu-se o horizonte para a implantação de um tipo de controle mais sutil e eficaz, que opera em todo momento e lugar, graças à espantosa ubiqüidade dos dispositivos digitais de comunicação e informação. Em síntese, trata-se de um poder descentralizado e distribuído pela totalidade do tecido social, como Deleuze vislumbrara com tanta perspicácia há um quarto de século atrás.
Contudo, esse controle sobre a fatal insegurança da vida é mais uma armadilha extremamente lucrativa que um fato consumado — ou algo que alguma vez possa vir a se consumar de vez. O mercado , a tecnociência e os meios de comunicação selam, todos os dias, uma aliança tácita para manter essa dinâmica em funcionamento. Um movimento estimulado, ao mesmo tempo, pelo temor ao inimigo (ou ao simples acaso) e a promessa de que sempre será possível afugentá-lo tecnicamente. Os mais variados artefatos estão à nossa disposição, conforme nos é explicado todo dia, para que possamos com eles “controlar” o caótico acontecer da vida.
Porém, além dessa potência que emana do bem-sucedido “mito cientificista”, agora também vivemos na “sociedade do espetáculo”. Quer dizer, aquilo que Guy Debord entrevira já faz quase meio século. Em plena agitação das rebeliões contraculturais, esse autor notou que estava se engendrando esta nova configuração sociocultural, política e econômica, uma de cujas definições mais citadas afirma que “o espetáculo é uma relação entre pessoas mediada por imagens”. Quase nada do mencionado nestas páginas teria sido imaginável no longínquo ano de 1967; no entanto, tudo isto talvez sugira que algo daquela ácida previsão está se cristalizando agora. Com alguns ingredientes imprevistos, sem dúvida, mas é inevitável associar o que acontece hoje em dia com aquilo que Debord intuiu, com furioso desdém, numa época em que recursos técnicos como a internet não habitavam sequer os mais audazes relatos de ficção científica.
É muito peculiar a combinação que atualmente se dá entre essas duas vertentes: a incitação ao espetáculo de si mesmo, por um lado, e os sonhos de controle total com ajuda da tecnociência, por outro lado. Os conflitos que essas novidades suscitam não deixam de causar toda sorte de perplexidades. Assim, por exemplo, em meio à proliferação de estratégias de visibilidade que todos estamos intimados a colocar em jogo cotidianamente, com o propósito de projetar perfis atraentes e capazes de conquistar o maior número de olhares, de cliques no botão “curtir” e de seguidores, cabe se perguntar se é possível ter algum controle sobre aquilo que se difunde acerca de si mesmo.

Ana Kesselring, Corpotopias, 2011
Essa pergunta evoca os casos, cada vez mais frequentes, de fotos ou vídeos de pessoas famosas em atitudes sensuais, muitas vezes sem roupas ou praticando atividades sexuais, que de repente “vazam” e são divulgadas pela internet, transformando-se imediatamente em notícias de alto impacto — pelo menos, por uns poucos dias. Algo semelhante acontece com o fenômeno do bullying, outra manifestação bem contemporânea, embora seja habitual dizer que não se trata de nenhuma novidade, mas de uma atualização do clássico “assédio escolar” que sempre teria existido.
No entanto, não é por acaso que hoje o constrangimento se multiplique exponencialmente com essa virtual exibição em inúmeras telas e que, em consequência, possa chegar a ter efeitos descomunais. Quando se dissemina pelas redes informáticas, a humilhação diante de uma exposição vergonhosa se torna ainda mais asfixiante, pois o que antes costumava ser de ordem privada — limitando-se às paredes da escola ou da casa, por exemplo — subitamente se joga no âmbito público com um alcance potencialmente infinito.
Nesse contexto, as reivindicações pelo “direito ao esquecimento” parecem justíssimas.
No entanto, aqui emerge outra das complicações deste assunto: como consegui-lo? Como obter, de fato, esse apagamento tão buscado nesses casos? Se a espetacularização de si mesmo se legitimou e se generalizou, a pretensão de manter algum controle sobre os próprios dados em suporte digital torna-se cada vez menos plausível — ainda mais quando se trata de imagens, esses materiais especialmente inflamáveis que se multiplicam e circulam despertando grande avidez. Talvez os dois componentes dessa equação sejam incompatíveis, de modo que a única forma de controlar o que se diz sobre si mesmo — incluindo aí o que cada um conta ou mostra acerca de sua própria vida — seja se abstendo não só de fazer circular, mas também de produzir qualquer documento digital a seu respeito.
Algo altamente improvável, que talvez possa até ser digno de pesadelos para boa parte dos sujeitos contemporâneos; ou seja, aqueles que se converteram em loquazes autores, narradores e personagens de si mesmos. Vale notar que essas criaturas — os personagens — nunca estão sozinhos: sempre há alguém que observa tudo o que eles fazem, alguém que segue com avidez seus atos e gestos, seus sentimentos e pensamentos, até suas emoções mais minúsculas ou banais. Sempre há um espectador, um leitor, uma câmara, um olhar sobre o personagem que tira dele seu caráter meramente humano. E, para poder existir, ele precisa fervorosamente desse olhar alheio.
Já na vida das pessoas de carne e osso, nem sempre há um público disposto a observar suas ações — nem as heróicas, nem as miseráveis, e menos ainda as trivialidades cotidianas. Com muita frequência, aliás, ninguém nos olha. Nesses casos, não temos testemunhas do que somos. Isso não seria muito grave e até poderia significar um alívio, se não vivêssemos imersos numa cultura como a contemporânea. Isto é, uma sociedade na qual a verdade sobre o que somos deixou de brotar prioritariamente da interioridade , ou seja, de algo que teríamos zelosamente guardado “dentro” de cada um de nós e que constituiria a própria essência. Em vez disso, cada vez mais, cabe ao olhar alheio o poder de irradiar essa verdade, ao avaliar tudo (e tão somente) o que cada um é capaz de mostrar.

Daniel Escobar, ‘The World’, 2014, Foto: Simone Catto
As redes sociais são meios perfeitos para consumar esse jogo. No entanto, mesmo dispondo desses recursos e usando-os ativamente, se ninguém constata ou — ainda melhor — festeja nossa existência traduzida em valiosas imagens, se são poucos aqueles que nos “seguem”, os que clicam em “curtir” ou deixam algum comentário positivo diante da última selfie que postamos na internet, então, como garantir que somos alguém?
Embora os personagens às vezes pareçam estar sozinhos, não é o que de fato acontece: eles sempre estão à vista. Absolutamente tudo em suas vidas deve acontecer sob os olhos gulosos de algum espectador ou leitor, ou então dos mais atuais seguidores, amigos ou fãs. Sozinhos, eles não existem. Somente são ou estão quando alguém os observa: sob esse olhar tão cobiçado, eles ganham sua fantástica vitalidade. Como resistir, portanto, a esse anseio atual de se mostrar e mendigar aplausos, se o mundo nos converteu em verdadeiros personagens?
Por isso, o anonimato não é uma possibilidade viável hoje em dia, supondo que alguém pudesse chegar a desejá-lo. Entre tantos cruzamentos de dados e redes de informações, se um cidadão do globalizado século XXI quisesse se manter na obscuridade do invisível, provavelmente lhe seria muito difícil. O velho sonho da ilha deserta, por exemplo, não parece mais factível; aliás, ele nem sequer é imaginável hoje em dia como pura fantasia… pelo menos, não sem wi-fi, e portanto com acesso aos apetecidos — mas também temidos — portais de Google ou Facebook.
Isto parece ser, de fato, o ponto culminante daquilo que Walter Benjamin denominara, em seus escritos da década de 1930, “o triunfo sobre o anonimato”. Acompanhando o percurso de seu famoso flâneur pelas ruas deParis, o ensaísta alemão descreveu alguns mecanismos de controle administrativo arduamente implantados na Europa do século XIX, como os processos de identificação dos indivíduos e o reordenamento urbano das populações. Todos movimentos imprescindíveis para a modernização do mundo então em andamento. Naqueles textos, o autor constatava algo fundamental para o projeto moderno: “um homem se torna mais suspeito quanto mais difícil seja encontrá-lo”.
Com a transição do paradigma analógico para o digital, as tecnologias de processamento de dados reduziram muito mais ainda as possibilidades de permanecer oculto, alheio ao controle, fora da abrangência das tentaculares redes. Não apenas porque não é mais possível se esconder, mas sobretudo porque quase ninguém deseja fazê-lo. Por isso, as novas ferramentas informáticas parecem concluir o processo iniciado pelas técnicas criminalísticas da época comentada por Benjamin, como a assinatura, a carteira de identidade e a fotografia. “A história de detetives surge no instante em que se assegura essa conquista, a mais decisiva de todas, sobre o anonimato do homem”, afirmava o filósofo ; “a partir daí, não se pode mais pressentir onde acabarão os esforços para fixá-lo no falar e no fazer”.
Contudo, o ponto mais extremo dessa trajetória talvez possa ser vislumbrado na exposição por livre vontade que se consumou nos últimos anos através de canais interativos como as redes sociais da internet ou os aplicativos para celulares, que permitem manter um circuito de contatos permanentemente ativado. Através desses dispositivos, todos os dias, milhões de indivíduos comunicam toda sorte de dados sobre si mesmos, inclusive textos e imagens pessoais de diversa índole, além de “seguir” as informações relativas a quantidades crescentes de gente interconectada.
A maioria costuma adotar tais práticas com prazer, cumprindo rituais de cotidiana devoção, e não porque alguma autoridade os obrigue a fazê-lo como um sofrimento imposto sob o peso da lei. Pelo menos, isso acontece até que a situação fique complicada e mostre, de repente, sua face mais obscura. Então, a tecla delete será vista como uma ambígua promessa de solução absoluta. E o “direito ao esquecimento” aparece como uma válvula legal que procura cumprir essa impossibilidade.
Google é um poderoso emblema desse conflito. O buscador mais usado da internet parece ser não apenas um oráculo que tudo sabe, mas também uma instância legítima — ao menos assim legitimada, inclusive pelas instituições jurídicas mais respeitadas e poderosas do mundo — para administrar as referências pessoais de seus milhões de usuários de todo o planeta. Tentar lhe colocar barreiras jurídicas, no entanto, pode resultar tão inócuo como problemático.
Certamente, o debate continua. No entanto, talvez esta polêmica tão atual em torno do “direito ao esquecimento” na internet, seja um novo indício de uma mudança histórica de enorme magnitude e complexidade, que vem se concretizando há algum tempo e cujos sintomas estão por toda parte. Em suma, e como já foi insinuado: a verdade não emana mais do interior de cada um, como costumávamos pensar até pouco tempo atrás, mas do olhar alheio. Inclusive no que se refere a algo fundamental: quem se é, quem se foi e quem se poderia chegar a ser.
Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Paula Sibilia
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Publicidade infantil: o estímulo à cultura de consumo e outras questões
by cien_digital in Cien Digital #17, Hífen

Lia Mascarenhas Menna Barreto, Cascas de Boneca, 2006
José Ednilson Gomes de Souza Júnior1, Camila Hildebrand Gazal Fortaleza2 e Josemar de Campos Maciel3
Transcrito de “Infância e Consumo: estudos no campo da comunicação”, publicado em 2009,
Agência de Notícia dos Direitos da Infância (ANDI) e do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana
Introdução
O Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2000, aponta que existem no Brasil 37.245.906 crianças de 4 a 14 anos, o que representa quase 22% da população do país. Aproximadamente 78% delas vivem na zona urbana, ou seja, mais próximas dos bens de consumo e expostas à comunicação publicitária estrategicamente dirigida a segmentos específicos em diversos tipos de meios.
A princípio, esse tipo de comunicação era voltado ao público adulto, porém, entre as décadas de 1970 e 1980, a publicidade brasileira assumiu o surgimento deste novo target4– o infantil – e, desde então, ações diretas e indiretas buscam seduzir a criança e torná-la consumidora de bens e serviços. Cabe chamar a atenção que este fenômeno ocorre ao mesmo tempo em que a televisão passa a destacar, em sua grade, a programação específica para o público infantil, em shows como Topo Giggio, Vila Sésamo e, posteriormente, o Clube da Criança e o Xou da Xuxa. Dessa maneira, a criança deixa de ser interesse exclusivo dos pais e educadores, passando a ser alvo tanto da mídia quanto da propaganda e do marketing, conforme afirma Sampaio (2000).
Na nova realidade social que se instituía, a criança encontra – ou lhe é designado – seu lugar na economia. Na lógica do capitalismo tardio, a ela é oferecido seu novo papel: consumidor ativo. Seu status agora é de cliente que opina, exige e consome, não necessariamente dependente de um adulto. Assim passa a ocupar a mira das estratégias de fomento ao consumo, dentre as quais, a principal é a propaganda.
Essa segmentação, ocorrida com a criança e com outros grupos, é uma característica da sociedade pós-moderna. A infância passou a ser um agrupamento coletivo que incorporou a cultura do consumo, a qual é entendida por Featherstone (1995) como a ênfase no mundo das mercadorias e em seus princípios de estruturação. A expansão desta cultura de consumo e sua manutenção são garantidas pela mídia, principalmente na publicidade, o mais notável meio de comunicação de massa de nossa época (Baudrillard, 2007).
Contudo, conforme discorre Jean Baudrillard (1997), a publicidade ultrapassou este simples propósito: da informação à persuasão e, hoje, à “persuasão clandestina”, pois manipula o objeto (imagem e mercadoria), que passa a carregar legendas e valores subjetivos e individuais, não inerentes a si mesmo. Este é denominado por ele “mercadoria-signo”, um dos postulados mais importantes para a compreensão da cultura de consumo. Sobre isto arrima Featherstone (1995):
O consumo, portanto, não deve ser compreendido apenas como consumo de valoresde uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos
Featherstone, 1995, p. 122
Trata-se, então, de um processo semiótico no qual a publicidade – com sua linguagem, estilo peculiar e caráter efêmero e cíclico – motiva e retroalimenta a sociedade de necessidades. Neste processo, também está incluída a criança que, devido à sua condição de pessoa em desenvolvimento, torna-se mais vulnerável a ele.

Mr. Garcin, Spider Eye, #700
Entendendo ser a publicidade – concatenada com a mídia – o principal agente de fomento da cultura de consumo, partiremos para a argumentação, com enfoque na comunicação de massa dirigida às crianças, contemplando alguns conceitos que permeiam a problemática, tais como: sociedade, infância, economia, consumo, mídia e ética na comunicação.
É a partir dessa complexa realidade social contemporânea que tecemos as análises contidas neste artigo, ao longo do qual levantaremos algumas hipóteses na tentativa de compreender e revelar de que maneira o consumo infantil é induzido pela publicidade dirigida a essa faixa etária.
Sociedade e Cultura5 de Consumo
Ao longo do século XX, diversas orientações filosóficas contribuíram, com suas observações e teses, para o estudo do consumo enquanto fenômeno inerente à sociedade contemporânea. É nesse contexto que se compreendem as reflexões de Lipovetsky (2000) sobre a pós-modernidade, enquanto termo que designa um estado de cultura. Esta, por sua vez, é compreendida como sinônimo de cultura de consumo. De sua parte, Bauman (2000: 90) afirma que “a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição de consumidores”, ou seja, põe em evidência um habitus6. Nos termos de Baudrillard:
À nossa volta existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana
Baudrillard, 2007:15
Sobre esse aspecto, Bauman (1999: 88) pondera: é necessário consumir para viver ou o ser humano vive para poder consumir? Prossegue afirmando que a cultura da sociedade de consumo envolve, sobretudo, o esquecimento, não o aprendizado. Assim a capacidade de consumo dos indivíduos vai além de necessidades naturais ou daquelas originadas por certas circunstâncias; também a durabilidade física dos objetos do desejo não é mais exigida. Tudo o que aparece é apenas efemeridade da moda.
Nessa mesma linha de análise, Baudrillad (2007: 208) afirma que a sociedade de consumo produziu seu próprio e único mito: o consumo – uma linguagem de que a sociedade se utiliza para se comunicar consigo mesma, uma única realidade objetiva que marca seu pensar e falar e que representa uma mudança de paradigmas em relação à sociedade moderna.
Antigamente bastava ao capital produzir mercadorias, o consumo sendo mera conseqüência. Hoje é preciso produzir os consumidores, é preciso produzir a própria demanda e essa produção é infinitamente mais custosa do que a das mercadorias
Baudrillard, 1985:16
Assim sendo, tudo passa a ser parte da esfera de produção: as atividades de lazer, a arte e a cultura foram incorporadas à indústria cultural e, de igual modo, os objetos ganham importância quanto à sua quantidade, e não necessariamente quanto a sua necessidade e usualidade. É neste momento que o valor de troca da mercadoria suprime seu valor de uso, e ela se torna livre para adquirir outras tantas associações e ilusões culturais que lhe são vinculadas. Na publicidade, reside a capacidade de elaborar tais associações, fixando imagens de romance, exotismo, desejo, beleza, realização e vida boa nos bens de consumo oferecidos por ela.
Baudrillard também enfatiza a lógica da mercadoria, sendo característica de sua crítica o uso da semiologia para sustentar o argumento de que o consumo consiste em uma manipulação ativa de signos que, por conseguinte, leva ao surgimento da mercadoria-signo, conceito que abole a distinção entre a imagem e o seu referencial real por meio da manipulação midiática.
Isso significa que, para essa acepção, tudo está maquiado de maneira a ocultar a face real das coisas; afinal é o artificial que predomina. “Por toda parte vivemos já numa ‘alucinação’ estética da realidade” (Baudrillard apud Featherstone, 1985: 122).
Além disso, para Baudrillard (2007), na atualidade, o consumo obedece a uma lógica própria; por isso, não há, no ato do consumo, uma função ou uma necessidade objetiva.
É o seguinte o princípio da análise: nunca se consome o objeto em si (no seu valorde uso) – os objetos em si (no sentido lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal, quer demarcando-o do respectivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior
Baudrillard, 2007:60
Encontramos nesse recorte o aporte para a compreensão do sistema simbólico que envolve a mensagem publicitária; legendas que nos remetem a um mundo irreal; que se adaptam ao target e estabelecem um diálogo simbólico entre desejos e objetos.
A publicidade realiza o prodígio de um orçamento considerável gasto com o único fim, não de acrescentar, mas de tirar o valor de uso dos objetos, de diminuir o seu valor/tempo, sujeitando-se ao seu valor/moda e à renovação acelerada
Baudrillard, 2007:42

Cecíllia Dequech, sem título, 2014
A Mídia e a Criança em Perspectivas Pós-Modernas
Segundo Santaella (1996: 30), a mídia é produtora de cultura, da mais nobre à mais popular. A autora afirma que, na cultura, tudo pode se tornar um fenômeno semiótico e que, portanto, a cultura das mídias se configura enquanto um objeto semiótico.
Em uma crítica mais apocalíptica, Baudrillard já prenunciava, em meados da década de 1990, a supremacia das mídias no controle da informação e sua transmissão como produto de consumo. Em decorrência disso, ocorre o esvaziamento do sentido das coisas e a perda da capacidade de o indivíduo ser ator de sua história (Saisi, 2006: 174).
[…] a massa constitui uma estrutura passiva de recepção das mensagens dos meios de comunicação, sejam elas políticas, culturais ou publicitárias
Baudrillard, 1985:23
Além disso, a mídia se torna um instrumento de criação da realidade. Caminha-se rumo a universos em que o mundo social é descrito/prescrito pela mídia. A televisão se torna o árbitro do acesso à existência social e política (Bourdieu,1997 apud Saisi, 2006)./p>
A televisão tem sido apontada como a grande protagonista das movimentações em torno da formação social individual e coletiva. Nela observa-se, por exemplo, a redução do distanciamento, já apontada por Postmam (1999), entre a infância e a idade adulta – crianças se vestem como adultos; as brincadeiras se modificam, bem como ocorre a inclusão precoce no mercado de trabalho, entre outros aspectos.
(…) a televisão destrói a linha divisória entre infância e idade adulta de três maneiras, todas relacionadas à sua acessibilidade indiferenciada: primeiro, porque não requer treinamento para aprender sua forma; segundo porque não faz exigências complexas nem à mente nem ao comportamento, e terceiro porque não segrega seu público […]. O novo ambiente midiático que está surgindo fornece a todos, simultaneamente, a mesma informação. Dadas as condições que acabo de descrever, a mídia eletrônica acha impossível reter quaisquer segredos. Sem segredos, evidentemente, não pode haver uma coisa como infância
Postman, 1999:94
De sua parte, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD/IBGE) de 2005 demonstra o aumento da presença de mídia associada à elevação da renda per capita, o que reforça a afirmação de Sampaio (2000) de que o consumo de mídia por crianças está relacionado à renda familiar.
De acordo com dados da Pesquisa (IBGE, 2005), os domicílios com rádio somaram 88%. Já o percentual de domicílios com televisão aumenta continuamente, passando de 74%, em 1992, para 91,4%, em 2005. O microcomputador está presente em 80% dos domicílios com renda superior a cinco salários mínimos, sendo que 17.195.796 de crianças entre 10 e 14 anos de idade acessaram a internet pelo menos uma vez, por meio de computador, em algum local, o que representa 11,3% do mercado de internet no país.
Essas estatísticas reforçam o argumento de que a mídia já encontra seu lugar no cotidiano da criança, cuja constituição enquanto indivíduo perpassa sua interação com os meios social e comunicacional. Assim como o adulto, a criança é exposta à linguagem, normas, cultura e abstrai estas funções cognitivas e sociais do meio que a cerca de forma natural. No âmbito comunicacional, crianças (e adultos) são expostas ao “monólogo” da mídia que se contrapõe a essa interação mencionada.
Para compreender a criança de hoje, suas relações com sua família, com a escola, com os outros, deve-se considerar a modelagem individual e coletiva que a televisão exerce sobre as atitudes. Por trás das formulações das crianças se revelam aspectos entre os mais perturbadores do mundo atual. A maneira como as crianças se adaptaram à televisão, se inseriram nos modelos que ela impõe, são os maiores testemunhos do poder das mídias como fator de massificação
Borges, 2004 apud Lurçat, 1984:86
Assim sendo, por se tratar aqui de uma busca por uma definição que relacione a criança e o consumo ao material publicitário, utilizaremos a classificação feita pelo instituto de pesquisa mercadológica Ibope Media Quizz que, em estudo demográfico encomendado pela TV Morena (afiliada da Rede Globo em Campo Grande) para formulação de seu Informativo de Audiência (2006), categoriza a infância como o intervalo etário entre 4 e 14 anos, sendo esta a única distinção estabelecida.
Essa pode até ser uma classificação discutível do ponto de vista da teoria comportamental social ou emocional, a qual propõe categorias etárias mais específicas.
No entanto, é no nível das representações da infância que encontramos o interesse desse tipo de classificação. Em outras palavras, a infância ali abordada representa a infância funcional para a mídia e para a publicidade – abaixo desta faixa etária, sua influência é menos significativa; acima ocorre a migração para outro segmento.
A perda de sentido da infância já foi postulada por Postman (1999) e reiterada por Baudrillard, que compreende este processo como algo diretamente ligado às formas de informação dos mass media (Baudrillard, 1991: 104.
Não há mais afirmação da infância, posto que não existem sequer as condições psíquicas e simbólicas da infância, que perde até mesmo a chance de superar-se e de negar-se enquanto tal. Desaparece como fase da metamorfose do ser humano. Ao mesmo tempoem que perde assim o próprio espírito e a singularidade, a infância torna-se uma espécie de continente negro
Baudrillard, 1999, p.67

Robert Bradford, Toy Angel, 2009
A criança e o consumo
Antigamente, o mercado não via “valor econômico” na criança; posteriormente, passou a percebê-la como influenciadora do adulto no ato de compra e, hoje, a compreende como um consumidor e cliente. Um fator que fomenta este fenômeno é o novo modelo familiar – não nuclear ou provinciano: ociosidade da criança em demasia – quando não, o tempo é consumido com serviços de esportes e lazer –, a criação terceirizada dos filhos, redução da prole e consequente aumento da renda familiar.
Essa nova estrutura familiar propicia o adiantamento ou iniciação da criança na cultura do consumo, ou seja, esta condição lhe é posta pela própria família em suas práticas cotidianas. Complementando esta afirmação Zygmunt Bauman comenta:
A maneira como a sociedade atua, molda seus membros, é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. A norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel
Bauman apud Tavares, 2004: 128
Cabe lembrar Resende (1984) que discorre sobre o consumo infantil e a realidade individual da criança afirmando que “o consumo infantil, geralmente acrítico e passivo, sem dúvida terá decisiva interferência na representação que a criança formará da realidade” (Rezende, 1984: 4).
Segundo Santos (2000), a programação comercial de propagandas é vista, pela maioria das crianças, como pequenos programas na grade da emissora. O autor complementa afirmando que a propaganda é inserida no contexto do entretenimento e, por isso, a predileção das crianças por comerciais com humor, independentemente do produto anunciado.
Como consumidora, a criança assume três papéis: o de potencialmente consumidora que vem adquirindo os valores de consumo e se apropriando dos signos veiculados pela propaganda – ou seja, receptora das experiências de outrem trazida a ela desde bebê, quando passa a acompanhar seus pais nas compras cotidianas ou, mais adiante, participando das atividades pedagógicas escolares as quais, eventualmente, incorporam as iniciativas de propaganda e marketing, como aquelas que se veem nos meios de comunicação de massa.
O segundo papel se refere à criança consumidora que decodifica, transforma os signos em algo não inerente ao objeto, na busca por algo que não se configura como a necessidade material real. Pode ocupar este papel não apenas quando possui capital para compra, mas quando é capaz de inferir diretamente e imperativamente – como a propaganda o faz –, na aquisição de bens materiais.
Há dez anos, segundo estudo realizado em 2003 pelo InterScience, apenas 8% das crianças influenciavam fortemente seus pais na decisão de compra. Hoje, 49% participam deste processo de forma intensa e, segundo este mesmo estudo, daqui a dez anos, 82% influenciarão fortemente seus pais em suas compras
Matta, 2007
Segundo pesquisa realizada pela agência de publicidade Young & Rubican, as crianças, na faixa etária entre 0 e 14 anos, movimentam R$ 1,3 bilhão por ano (cerca de 0,3% do PIB brasileiro) em mesadas administradas por elas mesmas, consumindo pequenos objetos e lazer (Sampaio, 2000: 152-153).
Como exemplo dos investimentos em comunicação comercial para crianças, citamos dados da indústria alimentícia Kellogg´s. Em 2006, a empresa vendeu US$10,9 bilhões e gastou US$ 916 milhões só em publicidade (Idec, 2007). E não é novidade que a publicidade e o marketing infantil funcionam. Somente a Rainha dos Baixinhos, como é conhecida a apresentadora de programa infantil, Xuxa, movimentou desde 1987 mais de 10 milhões de bonecas e 15 milhões de pares de sandálias (Sampaio, 2002).

Ichikawa (7 anos),
Travel of a Stag Beetle, 2010, Japão
Mais recentes, há os indicadores do consumo de tecnologia por crianças de 10 a 14 anos, divulgados pelo IBGE (2005), os quais sinalizam que a telefonia móvel vem se voltando ao público infantil e hoje soma 5,9% do mercado, o equivalente a 3.312.157 usuários nesta faixa etária analisada pelo instituto de pesquisa.
Há, também, a atuação da criança como catalisadora do consumo de terceiros, papel a ela destinado quando sua função é de simulacro – utilizada na promoção de produtos cujas propagandas são direcionadas imediatamente às crianças, mas que visam a atingir aos adultos.
Publicidade e criança
Para Jean Baudrillard, a publicidade é o mais notável meio de comunicação de massas da nossa época. É a grande artífice das narrativas pós-modernas, com seu afã de consumo e seu visceral vazio subjacente. Neste sentido, complementa Martínes (2003) em sua tese focada na crítica de Baudrillard:
A publicidade, como já o sabemos, comunica um mundo de total inessencialidade. Sua mensagem é completamente conotativa, pura sedução, que não é o mesmo que engano ou alienação do sujeito […] o objeto termina “nos querendo” mas seu jogo é perverso. Se a publicidade persuade não é somente para vender, senão para através da compulsão de compra obter nossa adesão ao consenso social. O que todo este sutil entrelace esconde – sempre para o Baudrillard pós-estruturalista – é uma estratégia de poder radicalmente nociva
Martines, 2003:69
Para Baudrillard (1991:13), portanto, a publicidade não tem qualquer relação com a realidade: é puro simulacro, simulação – cheia de sedução. A sedução é aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade – não que seja a mentira, mas que leva à ocultação da verdade intrínseca. A sedução é aquilo cuja representação não é possível, visto que nela há distância do real (Idem: 69).
Como a sedução nunca estaciona na verdade dos signos, mas sim no equívoco e no segredo, inaugura um modo de circulação secreto e virtual, uma espécie de iniciação que só obedece à regra de seu próprio jogo. Ser seduzido pela publicidade é ser desviado da verdade que se operacionaliza na função real do objeto.
Os apelos que a publicidade elabora, a partir da possível superação de necessidades que se instalam na incessante busca por satisfação individual, serão encontrados em um código de signos e diferenciação efêmeros (Baudrillard, 1985: 47). A criança está incluída nesta teorização; ela é parte do universo do consumo, ela está livre da invisibilidade, pois este é um tempo no qual os segmentos se definem, e outros tantos surgem no emaranhado complexo social em que se constitui a coletividade atual. Baudrillard afirma ser este um momento de libertação de todos os domínios: a pós-orgia (1990: 9). É neste instante que a infância também perde seu sentido clássico.
As crianças e os jovens de 4 a 17 anos assistem, em média, a 3,5 horas por dia de televisão, o que nos conduz a uma estimativa de pelo menos 40 minutos de propagandas assistidas, muitas das quais dirigidas especialmente a elas mesmas (Canela, 2006: 54). Tais comerciais fazem uso da infância para ofertar produtos às crianças, mas não somente isso, ela – a criança – também é posta como comediadora de um discurso dirigido ao adulto. Ou seja, além da propaganda dirigida exclusivamente à criança, a publicidade também se vale da empatia que os adultos terão com uma peça publicitária protagonizada por crianças. De igual modo, as campanhas voltadas ao público adulto encontram lugar no imaginário de crianças. É, sem dúvida, uma aproximação do mundo da criança ao do adulto.
Vale mencionar que a participação de crianças em produções publicitárias surgiu em decorrência do seu reconhecimento como público de referência no mercado consumidor.
Em 1952, foi veiculada a primeira propaganda com um elenco infantil no Brasil. Até a década de 1980, essa participação se limitou a campanhas de produtos alimentícios. Contudo, hoje, crianças vendem de seguro de vida a carros. Segundo Sampaio (2000), depoimentos de publicitários indicaram quatro principais razões para sua presença na mídia:
1) a criança ouve outra criança, ou seja, ela é particularmente sensível à interpelação de outra criança; 2) a criança tem um forte apelo emocional ou, nas palavras do criativo, ela tem um “apelo mágico” que emociona o adulto eo sensibiliza; 3) a criança pode contribuir para o rejuvenescimento da marca; 4) a criança tem empatia com os anunciantes, favorecendo a aprovação dos comerciais
Sampaio, 2000:152
Sobre as crianças pensamos, ainda, ser este o período apropriado para aquisição de saberes relativos à vida. Momento em que ela está aberta, curiosamente sedenta de novas experiências. Assim sendo, acreditamos que a publicidade se torna uma dessas experiências mais representativas ao firmar padrões físicos, estéticos e comportamentais, estabelecendo-se a partir de um mecanismo psicológico de projeção-identificação.

Tinho (Walter Nomura), two Sisters, 2013
Questões Deontológicas e Legais
Da ética para a estética. Nestes termos se resume a ordem dos padrões morais da sociedade contemporânea – a sociedade de consumo. A mídia teve um papel estratégico na transformação e na criação dessa estética que dá origem a sua própria ética: “Eis a ética da estética: o fato de experimentar junto algo é fator de socialização” (Maffesoli, 1996 apud Contrera, 2002).
Se o ser humano atual tende a ser individualista e centrado na experiência do consumo, evidente que isto irá se projetar em sua experiência com a ética e a moral.
No campo da publicidade e propaganda, cabe-nos refletir na maneira como a ética exerce força sobre os profissionais da área e de que modo são orientados à razão e à moral. Neste aspecto, remetemo-nos à normativa existente, criada pela categoria dos publicitários, e às leis brasileiras sobre o assunto.
Em 1957, no Rio de Janeiro, durante o I Congresso Brasileiro de Propaganda, foi estabelecido o Código de Ética dos Profissionais da Propaganda, proposto pela Associação das Agências de Propaganda e ratificado pela Lei Federal n° 4.680, de 18 de junho de 1965. Em 1978, na terceira edição do mesmo evento, é instituído o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, documento norteador das ações de fiscalização do Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária).
Em sua Seção 11, Art. 37°7, o Código traz as noções de respeito a crianças e jovens. Ainda assim, este estatuto social não impede que os abusos ocorram, pois ele não possui caráter coercitivo.
De acordo com diretrizes estabelecidas pelo Código, cabe destacar as alíneas ‘e’, ‘f’ e g’ do Art. 37º que estabelecem, respectivamente:
e. não se permitirá que a influência do menor, estimulada pelo anúncio, leve-o a constranger seus responsáveis ou importunar terceiros ou o arraste a uma posição socialmente condenável;
f. o uso de menores em anúncios obedecerá sempre a cuidados especiais que evitem distorções psicológicas nos modelos e impeçam a promoção de comportamentos socialmente condenáveis”;
g. qualquer situação publicitária que envolva a presença de menores deve ter a segurança como primeira preocupação e as boas maneiras como segunda preocupação (Ibidem).
Como apontado por João Matta, professor de marketing infantil da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em entrevista concedida ao Jornal da Gazeta, em 14 de março de 2007, é evidente o desinteresse da publicidade em se atentar aos direitos à infância. Segundo ele, “existe uma necessidade, uma reflexão nesse processo criativo para fazer essa campanha criativa ser sempre criativa, mas ser criativa com ética, com valores, com reflexão da educação”
O professor complementa: “os publicitários devem sim buscar meios de encantar as crianças para que tenham vontade de comprar o produto, como ocorre nos anúncios para o público adulto”. Mas admite a necessidade de um comprometimento com a ética. Ele afirma que “o mercado já busca evitar o estímulo ao consumismo infantil”
Os argumentos dos defensores da propaganda infantil são elaborados com fulcro no consumo. Dizem que a responsabilidade pela formação da criança é da família e da escola (a qual deve oferecer programas de educação para mídia) e que, acima de tudo, a propaganda e o consumo devem ser e são democráticos, símbolos da liberdade.
Com aporte em Baudrillard, identifica-se um discurso denominado de patafísico:
Ciência das soluções imaginárias, ciência da simulação e da hiper-simulação de um mundo exato, verdadeiro, objetivo, com suas leis universais, incluindo o delírio daqueles que o interpretam segundo estas leis.
Baudrillard, 1985, p.20
Em 1º de setembro de 2006, o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária recebeu novas regras relativas à ética para os anúncios de alimentos e bebidas destinados ao público infanto-juvenil. O texto, conhecido como Anexo H, estabelece critérios diretos para ações dirigidas a crianças desta categoria de produtos.
No Caderno 4, apresentado na internet no site do Conar, e atualizado frequentemente, o assunto “Crianças” apresenta 34 casos, um dos maiores portifólios temáticos julgados pelo Conselho. Vale refletir, portanto, que o número de casos pode demonstrar a desatenção por parte dos profissionais quanto a aspectos em torno de suas produções, o que, supostamente, poderia ter origem em uma precária formação ético-acadêmica.
Além da autorregulamentação, existe o controle social exercido por organizações da sociedade civil. Destacam-se, entre outros, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a Agência de Notícias do Direito da Infância (ANDI) e o Instituto Alana.
Além disso, a sociedade conta com leis que limitam a mensagem publicitária, mecanismos de compensação legais criados posteriomente à autorregulamentação e que demonstram uma provável ineficiência deste mecanismo, conforme já sinalizado.
Desde a década de 1990, aparatos legais vêm buscando atender às necessidades de limites na comunicação comercial. Destacamos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); o Decreto nº: 99.710/90 que ratifica a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; a Lei nº: 8.078/90 que estabelece o Código de Defesa do Consumidor (CDC); a Lei nº: 8.884/94, sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica; e a Lei nº: 9294/96, que regula publicidades de produtos nocivos.
Em março de 2009, outros dispositivos ainda tramitam no Congresso Nacional à espera de aprovação e sansão presidencial, a saber: o projeto de lei nº: 2733/08, que iguala a cerveja às demais bebidas alcoólicas, o que levaria a restrições em sua propaganda; o projeto de lei n°: 5921/01 que proíbe a publicidade dirigida à criança e regulamenta publicidade dirigida a adolescentes, e o projeto de lei n°: 6080/05 que restringe a publicidade de alimentos e bebidas capazes de gerar obesidade.

Lara Roseiro, “Se é possível está feito, se é impossível há-de fazer-se”, 2010
Conclusão
Vivemos um novo momento. Não como uma referência temporal, porém como espaço de novas relações e definição de instâncias sociais que marcam significativamente esta nova ordem – a pós-modernidade, que se contrapõe ao moderno em todas as suas manifestações: filosóficas, sociais, econômicas, etc.
Na década de 1970, estudos sobre os temas sociedade, infância, economia, consumo, mídia e ética na comunicação deram origem ao pensamento social pós-moderno. Destacam-se, entre tantos, os postulados de Baudrillard, Jameson, Bauman e Lipovetsky. Tais teóricos são unânimes em atribuir grande força à publicidade, ao teorizar o surgimento da cultura de consumo como a marca da sociedade atual.
Pensar na pós-modernidade é uma tentativa de trazer à luz tudo o que se refere à cultura de consumo, à constituição simbólica das coisas e à comunicação de massa na forma da linguagem publicitária.
Portanto, pode-se afirmar que uma matriz propulsora do consumo, o objeto ideal e revelador do cerne da sociedade, é encontrada na linguagem imperativa da publicidade contemporânea e em todos os outros significados carregados por ela – os quais possuem um objetivo central, como afirma Toaldo (2007): promover o consumo de produtos e serviços. São mensagens dispostas por toda parte, em diversos meios, no cotidiano das crianças e adultos, associadas ao luxo, erotismo, beleza e fantasia.
O objeto de fato estudado aqui é a criança e ela não está alheia a todos esses aspectos. Ela é parte de tudo. Aliás, se tornou um target desejado pelo mercado, que já a entende como uma consumidora de bens e serviço.
Nesse sentido, grandes empresas têm investido fortunas na produção de publicidade infantil e outras ações de marketing com a intenção de trazê-la para o consumo – potencial consumo, consumo direto ou catalisadora do consumo, tal como descrito anteriormente. Estas ações geralmente são concretizadas em ambientes midiáticos que vêm tomando um espaço relevante no desenvolvimento biopsicossocial da criança.
Um efeito desse processo é que a mensagem publicitária tende a se tornar, simultaneamente, democrática e homogeneizadora. Assim, o adulto pode se projetar nas alegorias infantis, como já indicado por Postman (1999), e a criança pode almejar o lugar do adulto. Além disso, é preciso considerar que, devido à maneira como a criança se relaciona com a publicidade, o consumo infantil pode ter decisiva interferência na representação que a criança forma da realidade (Rezende, 1984).
Em outras palavras, empatia, estrategicamente manipulada, tende a concretizar a formação e a produção do segmento de crianças consumidoras. Isso se torna um problema, uma vez que tal intenção não recebe o devido aporte nos mecanismos de autorregulamentação dos profissionais de publicidade, tampouco na legislação brasileira vigente. Esse processo, estritamente comercial e pouco educativo, vem sendo sistematicamente condenado pelas instituições sociais de proteção à infância e ao consumidor, terminando classificado como um desrespeito à criança; tal crítica, contudo, é descartada no meio publicitário, ao ser entendida, por alguns profissionais e suas organizações, como exageros ideológicos.
Desse modo, pode-se dizer que, no atual cenário, a infância vem perdendo seu lugar e que, cada vez mais, o pensamento mercadológico, evidenciado nas ações publicitárias, busca assegurar o lugar da criança como “unidade consumidora”.
Acredita-se, finalmente, que tais reflexões podem ser relevantes enquanto instrumento de crítica, com vistas ao aprofundamento do debate e futuros ajustamentos da mídia e de sua programação comercial aos moldes respeitáveis de valorização da infância em nossa sociedade contemporânea.
Nossos agradecimentos por autorizar sua publicação pelo CIEN Digital
Referências Bibliográficas
ANDRÉ, Alberto. Ética e códigos da comunicação social. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2000.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
BAUDRILARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2007.
. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o segmento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990.
. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991.
. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1997.
. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1991.
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A criança responde!
by cien_digital in Cien Digital #17, ENTREvista

Bill Gekas, Joker’s child, 2011
Nina Krivochein
Atualmente com onze anos, Nina comanda o projeto itinerante Autores Mirins em escolas no Rio de Janeiro e em todo o país.
Com a proposta de incentivar a escrita, a leitura e a aquisição de cultura literária, desde os sete, ela publica em seu blog resenhas e críticas de cinema, teatro e livros infantis. São dela também, os livros A vaca que não gostava do pasto (Editora Vermelho Marinho, 2011) e A menina que tinha cães invisíveis (Faces Editora, 2013). Como repórter-mirim, ela se dedica a assuntos do universo infantil, na revista eletrônica Nice For Kids.
CIEN Digital: – Como foi que você pôde se pensar uma escritora? Como surgiu o seu interesse pela literatura, que leva você a querer ler, comentar e escrever histórias sobre crianças?

Nina Krivochein
Nina: – Eu comecei a ter vontade de ser escritora quando a minha mãe lançou o seu primeiro livro, Fragmentos do Desencontro. No dia ,subi numa cadeira e disse para todos que o próximo lançamento seria o meu e estavam todos convidados!
Todos acharam fofo, mas não me levaram a sério. Então, eu cheguei em casa e escrevi o meu primeiro livro: A vaca que não gostava do pasto.
Sempre tive contato com o livro e quando eu era bem pequenininha e ainda não sabia ler, minha mãe lia o livro para mim e depois relia. Então, ela fechava o livro na metade e pedia para que eu mudasse o final. Então, comecei a perceber que alguns livros tinham erros e que outros poderiam mudar e, desde então, critico os livros, sejam eles bons ou ruins!
CIEN Digital: – De que maneira escolhe a capa de seus livros e imagens para o blog? Como é o processo criativo: primeiro você escreve e depois a ilustradora desenha seus personagens? Você opina sobre as ilustrações? Em geral, as imagens dos personagens correspondem àquilo que você imaginou ao criá-los? Se há diferença, o que você faz? De qual personagem você gosta mais? Alguma representa você ?
Nina: – No meu primeiro livro, eu quase não participei, mas no segundo, A menina que tinha cães invisíveis, eu participei mais. Os cachorrinhos invisíveis, por exemplo, eu queria que eles fossem pontilhados, mas Atlan Coelho, o ilustrador, desenhou igual a fantasminhas e negociamos para que fossem como ele desenhou, só que com patinhas! A Bruna, personagem do livro, na história eu escrevi que ela tinha os cabelos castanhos, mas ele desenhou a Bruna com o cabelo ruivo e como eu gostei muito, acabei mudando a cor dos cabelos dela na história. Nem sempre a imagem do personagem é como eu imaginei, mas eu acabo gostando dele como é.
Eu não gosto mais nem menos de nenhum personagem. No meu coração, gosto igualmente de todos, inclusive os personagens dos livros que ainda não foram publicados: A formiga Fifi e o Tigre Enzo, Bete, a Barata, A senhorita Redundância e o Senhor Pleonasmo, O padeiro Pão Duro e o mistério das crianças enfarinhadas. A história da Bruna aconteceu comigo, e por isso acho que ela me representa.
CIEN Digital: – Como você escolhe o tema de seus livros?
Nina: – Na verdade eu não escolho os temas, porque segundo a teoria da mamãe: nós não escolhemos o tema, ele é que nos escolhe! Escrevo histórias de coisas que me chamam a atenção, igual ao livro da vaquinha, que escrevi por causa de uma visita que fiz à fazenda da minha tia e notei que o cercado das vacas era muito pequenininho e achei que elas pudessem se sentir tristes.
CIEN Digital: – Constantemente, a mídia divulga novos modelos de tablets, celulares e jogos eletrônicos, seduzindo crianças, adolescentes e até adultos para seu “consumo”. Muitas pessoas passam horas de seus dias diante de seus aparelhos eletrônicos. O que você acha que leva crianças e adolescentes a preferirem os aparelhos tecnológicos em vez da leitura ou escrita de um livro, ou mesmo a brincar e conversar com os amigos?
Nina: – Eu acho que é uma questão de limites. Vejo que os pais entregam um aparelho eletrônico como única diversão para crianças e elas ficam sem acesso aos livros desde pequenas. Eu acho que jogar demais emburrece, porque nós, crianças, ficamos no automático, clicando várias vezes na mesma coisa sem pensar em nada, e aquilo vai te viciando, te viciando, te viciando. E depois você só quer saber daquilo. E você esquece das coisas boas de verdade, como conversar com seus amigos, brincar, correr e até ler.
CIEN Digital: – Você posta sua agenda de compromissos em seu blog. Há muitas atividades decorrentes de sua vida de escritora, do projeto Autores Mirins, de resenhas, etc. Você tem problemas com o tempo? Dá tempo de fazer os deveres escolares? Como reage quando não consegue fazê-los? E sua família? E a escola? Os joguinhos eletrônicos – você fala deles em seu blog- ocupam muito de seu tempo? Que tempo você tem para brincar?

Nina Krivochein, A menina tinha cães invisíveis, Faces Editora, 2013
Nina: – Eu tenho um combinado com a minha mãe de só fazer a visita do projeto uma vez por mês, para que eu não canse e não atrapalhe meus estudos.
Para fazer minhas resenhas não tenho problemas, pois eu escrevo na sexta e só publico na segunda para ter o fim de semana todinho só para rever a resenha.
Eu não tenho problemas com o tempo porque é tudo organizadinho. Tenho hora para ler, para escrever, para estudar, para descansar, para almoçar, para brincar. E também para os joguinhos eletrônicos!
Normalmente, eu consigo fazer tudo, mas quando não consigo é um perrengue total, e embola tudo! Pois faço uma coisa na hora da outra e não dá tempo de fazer as outras!
Como meus pais trabalham em casa, com a minha família tenho interação total, a gente faz todas as refeições juntos, estudamos juntos, nos divertimos e até discutimos de vez em quando. E como decidimos não ter empregada, ainda colocamos a mesa e arrumamos a cozinha juntos.
Sempre que eu faço resenhas, ganho uma hora de tablet. Na rotina, tenho uma hora por dia.
CIEN Digital: – Você vê alguma diferença nas histórias sobre crianças contadas por um adulto e nas escritas por uma criança?
Nina: – Eu acho que as histórias das crianças têm um ponto de vista que os adultos não têm mais. Por exemplo, o arco-íris, as crianças pequenininhas podem ver como uma magia dos unicórnios, e alguns adultos primeiro veem como um fenômeno meteorológico. Eu vejo muita diferença, porque uma história escrita por uma criança é um ponto de vista de uma criança. E a história escrita por um adulto é outro ponto de vista, completamente diferente.
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As conversações com adolescentes: A arte em contraponto ao império das imagens
by cien_digital in Cien Digital #17, LABOR|a|tórios

Leila Danziger, É noite, 2009
Laboratório: Trocando em Miúdos • Belo Horizonte (MG)
Elizabeth Medeiros, Lisley Braun Toniolo, Margarete Miranda, Rachel Botrel
Em nosso texto, desejamos investigar se existe um contraponto da experiência com a arte ao império das imagens,que se desenha na contemporaneidade. Para tanto, lançaremos mão das Conversações com adolescentes de 13 a 16 anos, de uma escola pública municipal, situada nas imediações da Comunidade da Ventosa, área de alta vulnerabilidade da cidade de Belo Horizonte1. Buscaremos fazer uma leitura do que disseram os adolescentes sobre a visita à exposição de Leila Danziger, por ocasião do XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, ocorrido em novembro de 2014, intitulada: “O que desaparece, o que resiste”.
Em um primeiro momento de nosso trabalho com aquela escola, realizamos uma Conversação com os professores que transmitiriam a proposta aos alunos e os convidariam à visitação. Em um segundo instante, ocorreu a ida ao local da exposição. Por fim, a Conversação com os meninos, para que pudéssemos extrair os efeitos daquela experiência sobre eles. O que desapareceria, o que resistiria daquele encontro com a arte?
A proposta da Conversação, como dispositivo da psicanálise, visa recolher o que cada um diz do que foi vivido, que ressoa no outro, particularizando ou mesmo singularizando a experiência coletiva. O relançar das pulsões, tomando a via das palavras, pode apontar novos caminhos e formulações.
Estranhar e seguir adiante: seria possível copiar a obra de arte?
O que convocaria os adolescentes de 13 a 16 anos a seguir em frente, levando a decisão de percorrer a exposição?
“Uns ficaram lá fora, outros entraram, deram uma voltinha e saíram, e outros permaneceram para ver a exposição”. Os que seguiram, justificaram seu ato como orientado pela “curiosidade”, como o adolescente W:
Vi aquele tanto de jornal, nó, saí da escola pra ver esse tanto de jornal? Eu posso passar numa banca e ver aqueles jornais! Mas eu queria saber o que era o jornal no chão, uma obra assim com um tanto de jornal, coisa que a gente ia jogar fora, ela usa pra fazer poemas, artes… (Fala de W)
Esse adolescente estranha e se deixa impactar pelo que aquela obra de arte relança: o que seria descartado faculta a transformação em arte. A arte invalidada poderia, inicialmente, ser comprada, consumida aos montes numa banca de jornal. Resistiu, porém, a um primeiro estranhamento. Após refletir, sentiu-se desafiado e decidiu: “Fiquei lá pra saber por que tinha esse tanto de jornal lá”.
Na adolescência, o sujeito, às voltas com o estranhamento do real do corpo que muda, lida com certo embaraço e mal-estar. Construir um perfil, inscrever sua diferença, haver-se com o inassimilável do corpo que se transforma, nem sempre será tarefa confortável. Na contemporaneidade, sob o império das imagens, veicula-se o chamamento a um sujeito universal, com as diferenças tamponadas pela ciência, pelo gozo. Diversas respostas sintomáticas podem então advir, como a recusa, a indiferença ou a adesão massiva aos objetos. Há também aqueles que apostam na construção do novo e se enlaçam ao saber, como o caso do adolescente citado, que questiona e segue adiante.

Leila Danziger, da série “Pallaksck. Pallaksch.”, 2007-2010
Cabe-nos, como psicanalistas, interrogar: do universal ao singular, que possibilidades as Conversações ofertam aos sujeitos de nossa época?
Miller (2008) nos ensina a distinguir o universal como “aquilo que vale para todos”, que ora entendemos como o generalizável das ofertas das redes sociais e das tecnologias. Do universal para o particular, ele esclarece: “Aquilo que nos é particular é o que temos em comum com alguns. O particular é o que permite formar classes clínicas. É o que se assemelha de um sujeito a outro” (p. 59-60). E o singular? Segundo os argumentos de Miller (2008), seria o peculiar da substância gozosa, que culmina no conceito de sinthoma, como resto absoluto de cada um, “ali onde o comum apaga” (p. 60).
Alguns daqueles jovens que se dispuseram a percorrer as obras de Leila Danziger dão mostras de uma busca de particularização da experiência, e, não resistindo à tentação, procuram replicar a técnica da artista: “tentei fazer em casa também”. Mas, algo se esvazia na busca de similaridade especular, e se deparam com a frustração: “a gente fica triste, ela faz tão facinho…”, diz a adolescente S. Ao que seu colega intervém: “mas deve ter sido difícil pra ela fazer também…” Continuam: “quando ela tirava o durex, saía tudo, eu só queria saber como que ela fez. Eu tirava e não saía nada; foi tentar copiar e deu merda”, declara J.
O que haveria de peculiar na arte que resistia à cópia? Miquel Bassols (2015) nos lembra da operação de reversibilidade da arte, desde o século passado, que vagueia de sua experiência de sacralização do gozo com a imagem, para o seu avesso, que provoca o despedaçamento da imagem do corpo. Para ele, a arte contemporânea pode, então, revelar o mais íntimo de quem a vê, no mais exterior do império das imagens: “mostrar o que não se vê, mostrar o próprio olhar como o objeto que só aparece como ponto cego de representação”.
Os adolescentes distinguiram as especificidades subjetivas da artista, mobilizados pela incerteza que a impossibilidade da reprodução incitava. Outra vez, a arte produzia neles furos pelo deslocamento especular, apresentando um virtual não mais unificado. Refletiram: “ela deve ser muito paciente, ela é cuidadosa e paciente”. Outro jovem intervém: “ela estava desocupada”. Ao que a adolescente K retruca: “eu acho totalmente o contrário, eu já acho totalmente ao contrário, ela foi cuidadosa, ela se entregou pra arte dela, ela viu na folha de jornal o que ninguém viu”. A jovem busca o esboço de uma conclusão, presumindo os efeitos singulares na relação da artista com sua obra.
No transcorrer das Conversações, os adolescentes debatem e levantam o contraponto das consequências das imagens consumidas nas redes sociais e a arte.
As redes sociais: “quem tem muita curtida vira pop star!” E repete…
Eu tenho que existir na rede social. Quando eu não existo na rede social, eu passo a não existir na sociedade. Eu tenho que estar na rede social pra todo mundo me ver. Eventos, festas, competição de quem tem mais amigos. Quando ganhamos poucas curtidas nos sentimos excluídos. A curtida te dá um lugar de popularidade. A imagem do perfil está mais próxima da mídia, se você não tem curtida, está excluída (Fala de S).
Por que a compulsão da busca do olhar do Outro social? A vivência imaginária em massa seria uma tentativa de substituir a carência do olhar particularizado, que estearia um lugar do sujeito no mundo, “implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”? (LACAN, 2003, p. 373).

Leila Danziger, Para ninguém e nada estar, série Diários Públicos, 2006-2010
Debora Nitzcaner (2014), diz: “Do século XXI, podemos apreender o que significam as variedades de oferta de gozo; porém, há uma dificuldade, não é praticável o sem igual. Não estamos mais na época do imaginário depreciado em relação ao simbólico; é o imaginário uma vez que ele nos dá as coordenadas fundamentais para viver nesse mundo” (p. 198).
Esses adolescentes caminham dizendo dos seus modos de funcionamento contemporâneo, que chegam a ganhar versão particularizada ou sintomática, até, nas Conversações: “Às vezes acordo sobressaltado e olho depressa no celular – que está comigo na cama – pra ver se é alguém postando ou confiro quantas curtidas tive”, diz J. Momento em que K intervém, também revelando algo seu: “Você não fica chateadinha quando tem somente duas curtidas?” E esclarecem: “A imagem do facebook é para os outros, é pra preencher um vazio, o vazio da aceitação. Mais do que amizade, uma insegurança. Aí, se você tiver tantos amigos… Pela foto eu finjo uma coisa que não sou. Quem tem muita curtida vira pop star”. Outro diz: “Se postar de tal jeito e ganhar muitas curtidas, você faz outra vez. A gente dá uma maquiada na foto, pode ser feia, você vai no aplicativo, coloca um símbolo e fica esperando: já curtiram? Torna-se repetitivo. Um vício”
Sim, “fingir”, colocar um véu imaginário que transfigure o real e possibilite certo tipo de laço com o Outro, ainda que virtual? A jovem K pondera: “Fútil, né? Se você parar pra pensar…”. Demarcamos, naquele momento da Conversação, o descompasso entre o sonho de ser pop star e o vício que repete, insiste na mesma imagem. Provocados, os adolescentes se reportaram à experiência da exposição e enunciaram: “Na arte você pode ser você mesmo. Você expressa você mesmo. Ela (a artista) colocou pra quem quiser ver, tem gente que vai olhar e pensar – “até eu faço isso”, mas do jeito que ela fez é diferente”, conlui S.
Tatuar a palavra no corpo: uma solução que busca significação?
Outro ponto é destacado pelos jovens da experiência com a obra de arte de Leila Danziger. Refere-se a uma instalação em que um vídeo apresenta imagens acompanhadas da palavra pallaksch 2. A adolescente K disse ter ficado tão impressionada que tatuaria pallaksch em seu corpo. O que não poderia “desaparecer” na relação com a imagem despedaçada do corpo adolescente, que buscava uma inscrição unificadora nas minúcias do real do corpo, vivificado/mortificado pela tatoo? Aquela palavra emprestaria uma ficção de verdade à adolescente em uma tentativa de significar a relação do falasser com o mundo? Segundo eles, a palavra pallaksch queria dizer “sim” e “não”. Disseram também que poderia significar “não ter uma voz e só aceitar sim e não”. O jovem T introduz: “Talvez algo relacionado ao nazismo. Era sim e não. Você não podia falar nada, você só recebia ordem e acabou”.
Deslocam da história da guerra para suas experiências atuais: “Hoje existe a liberdade de expressão, mas, se você atinge alguma coisa superior, com certeza vão te calar”. Inscrever a palavra no corpo seria, portanto, uma resposta possível diante do fazer parte de uma cultura que amordaça o sujeito? Não pudemos explorar com eles, entretanto, naquele momento, quem seria essa “coisa superior”, esse Outro que faz calar.
O rap, a escrita: resposta possível
Na sequência da Conversação, o jovem W, expressa sua construção:
“Peguei a fita branca, queria escrever uma letra de música que eu compus. Eu li o jornal todo primeiro, tentei tirar os escritos, não deu. Aí eu escrevi uma letra à mão, já não lembro de cor – falava sobre a guerra, sobre a cultura de hoje em dia, que tá muito fraca”. Contesta:
Lá fora a cultura deles é vista como diferente, melhor. Dos povos que não são brasileiros. Nós aprendemos inglês, eles aprendem uma língua avançada além do português. Eles não têm a preocupação de aprender o português, porque não é valorizado, não é reconhecido. (Fala de W)
E interroga: “Por que o inglês é conhecido no mundo todo, e não o português? É como se o Brasil fosse desvalorizado”.
Quis inscrever algo seu, de valor, e escreveu um rap que colou, então, na porta do seu guarda-roupa. Pedimos que nos enviasse. Ele escreve a partir do que a obra de arte lhe causou, singularizando a experiência.

Leila Danziger, da série “Pallaksck. Pallaksch.”, 2007-2010
O Museu do jornal
Ano passado
Fui ao museu
Foi aí
que tudo aconteceu.
Chegando lá
Vi uma papelada,
Entrei e pensei:
Olha que palhaçada!
Depois de uns minutos
Vi em uma tela
Uma moça artista
Mais que a cinderela.
Tirar palavras do jornal
Pra mim, aquilo era sensacional!
Achei que era mágica
Porque a letra sumiu
Não acreditei
Quando vi aquilo no Brasil.
Os adolescentes, ao dizerem de sua experiência com a obra de arte, nas Conversações, deram mostras de sua importância como maneira de resistir às circunstâncias universalistas do império das imagens que os poderiam calar. Tal demonstração firma a posição dos participantes do CIEN de seguir em frente.
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NITZCANER, D. (2014). Imaginário. In: MACHADO, O. ; RIBEIRO, V. L. (org.) Um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum.
1 Os professores da Escola Municipal Salgado Filho dão valor especial ao trabalho envolvendo as artes, por apostarem em seus efeitos “restauradores” na educação das crianças e adolescentes. Alguns projetos são ali desenvolvidos utilizando-se dos recursos da literatura, artes plásticas e ações no dia-a-dia, como a “Campanha do lixo”. Adotam o viés reflexivo, sempre com uma chamada ao olhar e ao dizer. Em 2011, um trabalho literário dos alunos intitulado “A África que existe em mim” ficou entre os dez melhores da Rede Municipal de Educação. “Desafios? Muitos.”, ressalta a professora de Língua Portuguesa, Fernanda Flores, coordenadora do trabalho, na abertura do prefácio do livro, que traz em seu interior artigos e ilustrações dos meninos. À escola, nossos agradecimentos pela parceria com o CIEN.
2 Expressão retirada pela artista da poesia “Tübingen, Janeiro”, de Paul Celan (1961)

O real do sexo, a imagem do corpo e seu consumo na adolescência
by cien_digital in Cien Digital #17, LABOR|a|tórios

Luiz Vargas (a.k.a. Tridente), Headzzzz, série desc(arte)s, 2010
Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe” • Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia (resp.), Amanda Nunes1
Uma adolescente posta no Facebook uma fotografia de sua própria genitália, tirada de pernas abertas. Provocação, transgressão de leis morais, tentativa de ferir o pudor, violação de tabus, indagação dirigida ao Outro sobre o que é uma mulher – são muitas as possibilidades. O que se sabe é que, em grande rede social, com esta imagem, ela torna público, o íntimo.
O ato obsceno de expor a sexualidade fica fixado na imagem que toca, afeta, causa malestar na equipe pedagógica do colégio em que estuda. Ela se aproxima de jovens do mesmo sexo, fazendo supor uma escolha pela homossexualidade, causando assim um duplo malestar. Consideram uma “escolha precoce”, no sentido de que é desejado que ela, mais tarde, dirija seu desejo para um homem.
A diretora solicita ao laboratório que realize um trabalho com a turma e ressalta “a forma como lidam com a imagem do próprio corpo e seus cuidados”. É comum ao discurso pedagógico identificar as turmas com um nome dado a um “sintoma coletivo”. Somente casos isolados são apontados nesta experiência. Há um rapaz na turma que faz xixi e fezes na roupa, mas em nenhum momento isso aparece nas conversações. Nem a foto postada.
Entre berros e agitação, falar de amor.
A turma responde agitada à apresentação das participantes do laboratório e da proposta das conversações (de três a cinco encontros), na medida em que também é dito o porquê de estarem ali. “O que pensam sobre disso?” é um convite a tomarem a palavra, na primeira conversação. Mesmo aos berros, surge o tema do amor.
Na passagem lógica da adolescência, “a queda dos ideias, o abandono das identificações parentais e o gozo indizível se presentificam na estranheza com o próprio corpo”2. Comumente relatam que o encontro com o real do sexo angustia e traz o sentimento de solidão. Estes adolescentes querem falar de amor e de quando o amor falta.
Para Jorge, é cada um por si, nos momentos em que acontece alguma coisa. Desapontada, Sabrina diz que são colegas, e não amigos. Uma participante do laboratório aponta que, como ela, outros também não devem estar escutando o que é dito. Marcelo responde, em tom agressivo: “nós não gostamos de escutar e nem de sermos escutados, queremos apenas falar.”
Sem forçar um dizer, quando a oferta do dom da palavra é aceita, não se pode perder de vista o cuidado que isto requer. Nas experiências inter-disciplinares do CIEN, o limite para intervir considera os efeitos e o manejo da transferência nas conversações. É o momento de encerrar esta. Raquel e Marcelo dizem que não acreditam que o laboratório retornará, “ninguém aguenta esta turma, por isso, não volta”. “Por que vocês se fazem “não-aguentáveis”? – pergunta uma das participantes do CIEN, ao se despedir.

Fabio Baroli, Sem título, 2012, Série “Vendetta”
“Turma unida”, um véu sobre o impossível
Mal inicia a segunda conversação, um aluno diz: “pensamos que vocês não voltariam”. Estão menos barulhentos. “Buscam ser mais ‘aguentáveis’”?, pensam as participantes do laboratório.
Com um tom de deboche, Jennifer conclui que formam uma “turma unida”, mas somente quando compartilham biscoitos. Todos concordam e Marcelo comenta que a comida é como uma dívida para eles: se um alimento é dado, depois será cobrado. Biscoito, com biscoito se paga!
Pedro e Roberto querem falar sobre os jogos da Copa do Mundo, mas a maioria da turma enfatiza o lado da corrupção e da miséria, são “contra a Copa do Mundo”. Jennifer reclama da falta de hospitais e serviços públicos: “e se um parente meu precisar?”
“As tormentas da puberdade” é o nome freudiano para um impossível, o encontro da ternura pré-genital com a corrente sensual, sobre o mesmo objeto da pulsão, que Freud 3 descreve, fazendo poesia: “é como a conclusão de um túnel cavado através de ambos os lados”. Para Lacan, há duas formas de dizer sobre o impossível: a relação sexual não existe, A mulher não existe. A “turma unida” vem velar este impossível.
Dificuldade escolar e desresponsabilização
A diretora do colégio procura as participantes do laboratório. No Conselho de Classe, os professores estavam preocupados. Os alunos “chutaram o balde”, ninguém “quer nada”.
As notas ruins são o tema da terceira conversação. Marcelo, Gustavo e Rodolfo contam que estão “perigando”, acham muito difícil que alguém passe de ano sem ficar em recuperação. Angélica justifica que não entendem as matérias porque houve a mudança dos professores e não adianta reclamar com a diretora porque “ninguém escuta”. Uma participante do laboratório pergunta: “mas nenhum professor escuta vocês? O que fazem durante as aulas?” Mônica e Paula dizem que não se dedicam aos estudos, conversam em sala, não fazem dever de casa e não tiram dúvidas com os professores nas aulas. Ninguém comenta ou refuta. Alguns descrevem seus medos: repetir de ano, ficar de castigo, apanhar da mãe, não ter um bom futuro. Rodolfo e Marcelo acham que é melhor ser gari. “Mas até para ser gari é preciso estudar”, diz uma participante do laboratório.

April Maciborka, serie “Icons”, Photography, 2013
O colégio ideal.
Logo no início da quarta conversação, Rayana pergunta: “vocês vêm até quando? Podem ficar até o final do ano?”
Hoje não querem falar sobre estudos, as notas estão muito ruins e há a possibilidade de repetências. Retornam as queixas sobre professores. Alguns alunos querem sair da escola, por motivos diversos: Marcelo pela comida sem variedade que “não é tão boa”; Angélica porque a escola mudou e perderam com isso a oportunidade de estudar na universidade de graça (havia um acordo de bolsas com uma instituição privada); e Jennifer não gosta do uniforme, quer usar jeans. O colégio público aparece idealizado – gratuito, oferece alimentação, os professores ensinam e não há avaliação rigorosa. “Será?” é uma pergunta lançada para furar esta etiqueta.
Com a mudança do apoio financeiro do colégio, houve a demissão dos antigos e a contratação de novos professores, a mudança do projeto pedagógico e uma reestruturação que inclui perdas. Todavia, as conversações contribuem para esclarecer que isso permitiu à instituição prosseguir e que não há “tudo” em um colégio só, não existe O colégio. E cada um precisa dar de si para apreender o que é transmitido nas aulas.
A friendzone
O tema do namoro toma toda a quinta conversação. José – de todos, o que namora há mais tempo – pergunta: “a friendzone conta?”. Indagado sobre o que é isso, explica: “existem dois amigos e um deles começa a gostar do outro para namorar e faz o pedido, mas se o outro não aceita e diz que é só amizade entre eles, pronto! Ele fica na friendzone, na zona da amizade”. Inventam diversas formas para lidarem com os encontros e desencontros.
Um encontro, a mais.
Finalizadas as conversações, os alunos convidam as participantes do laboratório para um encontro “de despedida”. Um resto a dizer? Preparam tudo e se organizam em funções, desde quem serve o lanche até a limpeza da sala. Cada um fica encarregado de levar alguma coisa. Tranquilos, recebem “as convidadas” com alegria e pedem para as conversações não terminarem.
A demanda de mais uma conversação foi respondida levando em conta o trabalho que se faz único, a cada vez, na prática do CIEN. Para estes adolescentes, e tendo em vista a questão que formulam ao longo das conversações, era importante um sexto encontro com a palavra. Chegar ao momento de concluir não é garantido por um cálculo prévio de quantas conversações oferecer.
O desinteresse pelas aulas e a culpabilização do colégio é uma recusa às perdas que se fizeram necessárias na nova organização da instituição. E a parte de cada um? Durante o lanche, o momento de concluir: “se queremos passar de ano, temos que estudar”.

Toz (Tomaz Viana), insonia tropical, 2013
Ainda sobre a imagem no Facebook, para concluir
Por motivos outros, a última conversação com a diretoria e coordenação aconteceu um tempo depois. Puderam considerar, para além de particularidades, como está sendo difícil para estes alunos perder “O colégio” em que estudaram desde a creche. De fato, este em que estão cursando o último ano do Ensino Fundamental, é outro.
Realizando conversações desde 2009, o laboratório “A criança entre a mulher e a mãe” observa nesta prática que cada experiência traz um impasse e um imprevisto. Desta vez, foi o silêncio sobre a fotografia postada no Facebook. Que relação tem esta mostração da adolescente com a cultura contemporânea?
Miller4 situa a época freudiana da moral civilizada como o reino do Nome do Pai e ressalta que a época lacaniana dos Nomes do Pai, no plural, é o tempo em que o Outro não existe, época dos desenganados e dos errantes. E quando evoca a “clínica da pornografia”5 do século XXI, para falar sobre o inconsciente e o corpo falante, descreve a pornografia como um sintoma do império da técnica que não soluciona os impasses da sexualidade. A ordem simbólica já não é mais um saber que regula o real, mas um sistema de semblantes que se subordina a este, sistema que responde ao real da relação sexual que não existe.
No mundo virtual, o objeto está à mão. Neste sentido, estimula que todos sejam adictos, onde quer que o ser falante tenha acesso à internet. No campo da visibilidade, ver e ser visto são as duas faces do prazer escópico. No caso desta adolescente, em sua mostração, há uma imagem a ser consumida, inclusive por ela mesma, no retorno do circuito pulsional. Afinal, o corpo “é um mistério”, diz Lacan6 e “ tudo é exibição de corpo evocando o gozo”7 (p.121).
Referências bibliográficas
1 Atualmente, participam deste Laboratório Amanda Nunes, Ana Claudia Junqueira, Ana Martha Maia (responsável), Karina Guimarães, Luiza Sarrat Rangel, Marina Valle, Natalia Gomes, Simone Monnerat e Vanessa Carrilho dos Anjos.
Campo de investigação: a sexualidade feminina, a maternidade, a criança e o adolescente, a família hipermoderna.
2 MAIA, AMW. Entre fugas e errância, um lugar para si. Opção Lacaniana on line. Nº 8. 2012. P.2.
3 FREUD, S. (1976[1905]). “Três ensaios sobre a sexualidade”. Edição standard brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, p.213.
4 MILLER, J.-A. e LAURENT, E. (2005[1996-1997]). El Outro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós.
5 MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. Conferência apresentada no IX Congresso Mundial da AMP. Paris. 2014.
6 LACAN, J. (1985[1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.140.
7 LACAN, J. Op. cit., p. 121.

Desembolando o impossível: conversação sobre o impasse da sexualidade realizado em um centro de internação socioeducativo
by cien_digital in Cien Digital #17, LABOR|a|tórios

Sonja Alhäuser, Bloody Mary, 2005-2015
Laboratório: Trocando uma Idéia! • Belo Horizonte (MG)
Tatiana Goulart, Mariana Aranha, Andréa Guerra
O contexto
Trazemos aqui a análise da experiência de realização de conversações psicanalíticas em torno de impasses institucionais experimentados na lida diária de centros de internação, no qual jovens em conflito com a lei cumprem medida socioeducativa privativa de liberdade.
A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços nas discussões sobre os adolescentes infratores. Se antes, o direito era usado para vigiar, repreender e punir os adolescentes que infringiam a lei, hoje, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a aposta está em uma tentativa de ressocialização do adolescente em conflito com a lei, a partir dos eixos educação, família e trabalho. No SINASE (BRASIL, 2006), em seu artigo primeiro, parágrafo segundo, são expostos os objetivos das medidas socioeducativas: “I – a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; II – a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e III – a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei”.
São seis as medidas socioeducativas, indo do meio aberto ao meio fechado, conforme a reincidência e a gravidade do fato. O ECA abre a possibilidade de aplicação da medida socioeducativa, visando sempre a responsabilização do adolescente pelo seu ato infracional. No caso de aplicação de medida privativa de liberdade, a mais grave, o adolescente é acautelado e permanece interno em um centro de internação. Nele equipe de segurança, composta de agentes socioeducativos, equipe técnica, composta, em geral, por psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais, e equipe administrativa garantem os direitos constitucionais da proteção integral do adolescente, visando seu retorno ao convívio sócio familiar.
Os adolescentes do Centro de Internação que participaram das conversações aqui relatadas estão cumprindo medida com privação de liberdade por um período que varia de 06 (seis) meses a 03 (três) anos, e possuem, em geral, entre 12 e 18 anos. Eles foram convidados e aceitaram participar de “conversa sobre sexualidade”.
Entretanto, a metodologia da conversação psicanalítica possui características específicas. Ela parte da orientação psicanalítica lacaniana, tendo sido inicialmente instaurada na França no CIEN (Centro interdisciplinar de Estudos sobre a Infância), “criado com a finalidade de abrir o campo da investigação ao diálogo da psicanálise com outros discursos que têm incidência sobre a criança” . Psicanalistas iam às escolas ofertar a palavra às crianças que, concebidas como sujeitos desejantes, poderiam produzir novo saber sobre o discurso de sua época, no ponto em que este a afeta.
Em nosso caso, funcionamos a partir do Laboratório Trocando uma Ideia do CIENem parceria com o Projeto de Extensão Já É do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Trabalhamos com cinco encontros quinzenais, sendo o primeiro com a instituição que formula seu impasse na relação com os jovens. Essa conversação tem um valor diagnóstico de cernir o nome do mal-estar vivido no cotidiano de trabalho com os adolescentes. Nomeado o impasse institucional, realizamos três encontros com os jovens, seguido de um último encontro com equipe para encerramento do processo e recolhimento de seus efeitos.
Cabe destacar nesse processo ao menos três dimensões da metodologia que o orienta: (1) a relação com o saber, (2) a presença do psicanalista e (3) a diferença entre falação e conversação. Quanto à primeira dimensão, é importante localizar que operamos a partir da ideia de uma interdisciplinaridade em ato , entendida enquanto ação de diferentes saberes sobre um impasse, que não pretende constituir um saber totalizante ou verdadeiro sobre o embaraço vivido. Lembrando que consideramos o saber do jovem como mais um saber ali disposto. E, ao contrário da crença científica em um saber último sobre a verdade empírica de uma realidade, partimos do ponto em que o limite de um saber esbarra no limite do outro, mantendo-se tensionado o campo que resiste à consolidação de uma significação última. Dessa maneira, abre-se o campo para produção de saberes distintos, construídos pelos participantes da conversação, a partir de suas experiências singulares e do encontro na conversação, que acaba por desmontar verdades preconcebidas em relação ao impasse ali verificado.
Essa operação só se verifica dada a presença de ao menos um psicanalista na conversação. A ação do psicanalista presentifica-se a partir do ato de fala recolhido de cada participante em relação à causalidade de sua ação. Essa causalidade é tomada como ponto exterior e anterior a qualquer inclusão ou interiorização (LACAN, 1962-63/2005, p. 116) que se possa obter como resultado de um processo de constituição do sujeito, no caso individual, ou das forças em jogo, no caso dos processos institucionais ou civilizatórios. Ela não deve ser situada como análoga à intencionalidade de uma noese, racional, cognitiva, mas como o ponto perdido no elo civilizatório entre natureza e cultura e que, por isso mesmo, anima os corpos e coloca em jogo forças simbólicas para resolução dos conflitos daí decorrentes. O giro lógico, permitido pela presença de um psicanalista, é o de tomar a causa, não como finalidade a ser alcançada (télos), mas como ponto de perda (Merhlust) a ser tratado. E que, por ser irrecuperável, motiva as ações desde sua exterioridade.
Finalmente, sob um fundo transferencial , ainda que deslocado do contexto clínico estrito senso, destacamos a diferença entre uma falação vazia – na qual proliferam os arranjos imaginários, recobertos por assertivas genéricas – e uma conversação. Nesta, a responsabilidade pelo ato de fala é recolhida pelo psicanalista, a partir do ponto em que cada sujeito é tocado pelas palavras que ali circulam, visando a quebra da identificação dos elementos mestres que organizam o discurso em torno dos impasses evidenciados. Dessa forma, abalados ou desconstruídos, podem ceder lugar ao sem sentido e, assim, abrirem-se à surpresa de uma produção própria e singular de cada um dos participantes ali presentes. Assim, o efeito se conta um a um, não para todos.
Dessa maneira, a conversação psicanalítica difere radicalmente de uma conversa, já que orientada pela relação estrutural que a linguagem estabelece com o corpo diante dos impasses da civilização. Nesse sentido, o ato de fala concerne natureza e cultura ao mesmo tempo, ao dotar o aparelho da linguagem de um ordenamento do gozo , que condiciona os corpos a um aprendizado de convivência no laço social.
Esclarecidos nossos pressupostos na intervenção, conheçamos sua experiência.

Alzira Fragoso, 2014
O convite
Essas conversações foram realizadas entre Outubro e Novembro de 2013. Fomos chamados pela equipe de centro de internação para trabalhar com os adolescentes sobre um impasse: a sexualidade. Segundo a diretoria, havia uma oficina sobre isso, os adolescentes estavam agitados nesse trabalho e fazendo perguntas “embaraçosas” para a equipe de enfermagem.
Decidimos, então, em um primeiro momento, fazer uma reunião, sob a forma de conversação, com a equipe do centro para escutar mais sobre esse mal estar e convidá-los a participar das conversações. Nesse encontro, estavam presentes a diretoria, os técnicos, o advogado e a equipe de enfermagem.
As enfermeiras começam a nos relatar o quanto estava difícil para elas lidarem com esses adolescentes curiosos. “Eles querem saber tudo. Me perguntam no meio da oficina: você gosta disso. Eu, sinceramente, não sei o que dizer.” Uma colega concorda e diz que as perguntas são muito embaraçosas e diretas. Elas nos contam ainda sobre um movimento deles, proibido, com a prisão ao lado. “Aqui do lado tem um presídio feminino. Eles ficam trocando cartas com as meninas. Escrevem cada indecência!” Questionamos sobre essas indecências e elas nos dizem: “Ah, falam essas coisas…coisas que gostariam de fazer com elas.” Insistimos na pergunta sobre o que seriam essas coisas e a resposta vem imediatamente: “Ah, não tenho nem coragem de dizer”. Os técnicos compartilham desse incômodo em relação às cartas. “Por que a gente explica pra eles que não pode escrever essas coisas. É cada coisa! De horrorizar! Também não tenho coragem nem de falar”.
A partir dessa escuta, fazemos o convite para a equipe, também, participar das conversações. No entanto, os profissionais não aceitam. Justificam que os meninos ficariam inibidos com a presença deles e que poderiam atrapalhar na conversa. De toda forma, algo estava claro para a equipe da conversação: lá não seria um lugar de informação sobre a sexualidade, mas um lugar para tentar inventar algo novo a partir desse trauma que atravessa a todos.
As Conversações
Foram realizados três encontros conduzidos com a presença de três psicanalistas, dois agentes de segurança e cerca de 11 adolescentes. No primeiro momento, nos questionaram se poderiam perguntar sobre qualquer coisa. Respondemos que sim e eles disseram que isso era muito bom, já que as enfermeiras não respondiam ao que eles queriam saber.
Lançam a primeira pergunta: “é verdade que mulher gosta de pênis grande?” Relançamos a pergunta ao grupo: “então é o tamanho do pênis que interessa às mulheres? O que acham?”. “Uai, depende, tem mulher que gosta é de mulher. Hoje em dia é cada coisa que a gente vê, difícil de entender. Mulher gatinha com umas mulher feia, tipo caminhoneiro, zé”. Aqui um ponto vazio que permite reordenamento dos significantes mestres da civilização, que se abre à invenção.
Outro diz: “Mulher gosta é de uma boa conversa, de um desembolo. Tem que saber chegar e pá”. Um terceiro intervém: “Mulher gosta é de grana, carro, é isso que elas querem”, sendo logo retucado: “Nem toda mulher é assim, Zé, só se for as que você tá arrumando”. “As piriguetes são assim!”. Nossa intervenção aponta para a diferença das mulheres: “Ah, então quer dizer que as mulheres não são iguais?”.Novamente se acena a impossibilidade de uma regência única acerca do feminino, assim como acerca da tentativa desses jovens, cada um com suas crenças (tamanho do pênis, dinheiro, conversa…), de tamponar o impossível de saber, com o qual preferiam lidar alocando à mulher uma única demanda a qual deveriam atender, aplacando, assim, a angústia do encontro de cada um deles com o que encarnava para si o Outro sexo.
Neste encontro, fica claro o não saber sobre as mulheres e a angústia do que fazer com isso. Os adolescentes procuravam uma resposta única para todas que apaziguasse a angústia do não saber-fazer com o Outro sexo . Porém, o que foi respondido a isso é justamente que não há nem uma resposta universal, nem um manual ou breviário contendo todas as conjugações possíveis para esse encontro. Ao contrário, a cada encontro, corresponde uma construção, uma resposta contingente e singular. No final do encontro, um adolescente, noivo, encerra dizendo: “Cada uma é de um jeito. Eu vou lá e pergunto do que ela gosta, assim vejo o que vou fazer”.
O segundo encontro foi muito agitado e com várias conversas paralelas. Da ausência de um manual sobre como lidar com esse ponto traumático da incidência do sexual, proliferou o impossível de dizer, o traumático, na agitação dos corpos jovens. Muitos adolescentes voltaram a falar da vida no crime e de como cada um se vira com o corpo ali. Inicia-se, então, uma conversa sobre a escola. Um adolescente começa a dizer de sua volta à escola. “Até parece que eu preciso tá aqui pra conseguir estudar. Lá fora, não é tão fácil conseguir estudar. Agora eu já tô estudando. É muito doido. Lá fora é tudo mais difícil. Até parece que a gente tem que cometer um crime pra eles olharem pra gente”. Os colegas concordam.Outro retruca: “Eu sempre fui rebelde, mas agora não sou mais. Mas eles continuam me tratando como se eu ainda fosse. Aí eu vou voltá a aprontá pra eles verem”. Eum deles, então, revela: “Por que você acha que quando eu saí daqui eu vou sair do crime? Não! O crime é muito mais que isso. O crime é você ter malandragem pra saber aonde pode ir, como entrar e sair dos lugares, e isso eu não vou perder”.
A conversação acontece de maneira tensa, agressiva, com cada jovem tentando impor seu modo de operar no mundo como modelo para o outro e destituindo os demais. O agente de segurança tem uma entrada reguladora importante ao apontar que “cada um decide como vai viver ou como vai morrer. Não se pode impor sobre o outro o jeito de ser. E vocês têm opção de serem diferentes do que vêm sendo”.
De certa forma, testemunhamos nesse dia um saber-fazer com o corpo jovem e sexuado, a partir de um saber predeterminado pela lógica do crime. É quando um deles questiona porque estavam falando do crime, “se lá era lugar de falar de sexo”. Ao que um colega o responde: “aqui a gente fala do que quiser”. Abre-se, então, de maneira insistente, a fala de um jovem que, muito assertivo, deseja respostas bem objetivas sobre suas inquietações e dúvidas sexuais, como, por exemplo, se homem deve bater em mulher, se homem tem que transar muitas vezes. Os jovens recusam essa retomada insistente de temas explícitos sobre a excitação sexual e o corpo sexuado, retomando a discussão sobre o crime.

Mariana Mauricio, You II, 2012
Nossas intervenções aconteceram muito no particular, em relação a conversas de pé de ouvido, enquanto, no coletivo, incidiram sobretudo em relação a respeitarmos as opiniões diferentes de cada um. Para um jovem, tratou-se de legitimar sua solução de adiar o encontro com as mulheres nesse momento para estudar e retomar a vida fora do centro. Com outro, aconteceu no sentido de criar uma escansão entre “ser malandro e ser do crime”, apontando que é possível saber-fazer com a malandragem sem ser bandido, o que assinalava para construção de uma resposta singular sobre o masculino. Com o terceiro, não havia escansão ou interrogação que suspendesse suas certezas. Um outro jovem, o noivo, não retornou mais…
Assim, podemos pensar que as intervenções aconteceram no sentido de reconhecer as assinalar que os adolescentes têm produzido saberes e respostas diferentes para os diversos impasses que os atravessam, bem como a de assinalar que o saber do crime, além de não ser o único, pode não ser o mais efetivo para orientar suas decisões. Nesse segundo encontro, face ao impossível da puberdade, que atualiza o encontro traumático entre gozo e linguagem, presentificado no encontro com o Outro sexo, restaram as soluções singulares – inicialmente revestidas pelo semblante oferecido pelo saber do crime. Num primeiro tempo do encontro, parece que as falas em torno do crime velaram um real impronunciável através de frases prontas oriundas do seu discurso de ferro. Seu deslocamento, com a intervenção do agente e as colocações um a um das psicanalistas, parece ter dado lugar à emersão de algumas construções, soluções singularmente singelas, ainda que não definitivas.
No terceiro encontro e também último, apareceu a questão sobre o que é ser homem. Os adolescentes diziam do embaraço na relação com as meninas, onde a sua virilidade era colocada à prova: “A gente tem que satisfazer a mulher, tem que ir lá e transar várias vezes, senão elas contam para as outras, senão a gente fica falado”. Dizem que as meninas não são confiáveis, que armam “croca” para eles, emboscadas para serem pegos pelos rivais. “Véio, eu posso estar com uma gata linda, se ela me chama pra ir na casa dela, eu não vou. Ela é que venha na minha”. “Por isso que eu não namoro, não amo ninguém”. Perguntamos sobre este estatuto da mulher, que história é essa de não poderem confiar.
Os adolescentes respondem veementemente que algumas mulheres “são traidoras”, e que estas merecem ter “cabelo cortado, ser apedrejada, queimada”. Outras não são assim. Pois existem as “mulheres trepadeiras e as meninas para namorar”. Explicam que, com a mulher trepadeira, podem fazer o que quiserem, mas não teriam coragem de fazer com as namoradas, pois seria falta de respeito. Das namoradas, esperam fidelidade. “Tem coisas que a gente só faz com a mulher pra trepar. Mas ela não, né Zé?! Se ela tiver outro, ela morre”.
Diante dessa diferença irreconciliável entre os sexos, para a qual a radicalidade de outro impossível – a morte – é a resposta, uma intervenção imediata é feita: “Ah, então é um contrato entre homem e mulher?”. Um deles diz: “É sim. Eu tô aqui. A minha namorada pode ir no funk, mas se ela me traí, morre ela e o cara. Eu deixo ela ir, mas tem que me respeitar”. O outro já fala: “ah, não, Zé! Eu to aqui e a minha mulhé tem que fica em casa. Num tem essa de sair não. Tem que me esperar. Só pode ir comigo. Se eu ficá sabendo que ela saiu, dá briga”.
“Isso é ser homem?”, a pergunta é feita por uma das psicanalistas. “É, ué?!! Vou ficar de mané? Ser homem é você ser respeitado”. “Mas pelo medo?” Questionamos novamente, e o jovem esclarece: “Porque se você não faz nada vão ficar rindo da sua cara. E isso não pode. Homem é respeitado”. “Tem mulher que é traíra. Tipo assim: vc num se dá com um cara. Aí ela marca com vc num lugar. E combina com ele também. No mesmo lugar. Aí não tem jeito, vc tem que mostrar que é homem. Tem que brigar. Tem que ser respeitado. Se não, ninguém te respeita”.
“Mas, então, vocês vão na onda das mulheres?” Foi a nossa intervenção. “Uai?! A gente não pode ficar de otário, senão todo mundo monta em cima”. O outro relembra: “Mas tem mulher assim. E tem mulher séria também, mulher pra casar. Que a gente confia”. Um completa: “Lá mesmo na UFMG, tem um monte de mulher pra casar. Acho que eu vou estudar lá”. Nossa resposta: “há mulheres de diferentes tipos em todos os lugares. A questão é o que e como fazer com elas, não é?”.
O “respeito” parece emergir aqui como um novo índice do masculino, antes ausente, novo termo que comporta variações diferentes para cada um dos jovens acerca do que é ser homem. Entretanto, ele se revela impossível de unificar ou de apreender em um único sentido. Do embaraço face ao enigmático desejo das mulheres parece ter havido um deslocamento da pergunta, contida no excesso da experiência sexual que produzia o impasse institucional. Cada jovem toma para si a construção de uma orientação sobre o masculino entre o “mané” e o “respeitado”, daí surgem, a cada fala-efeito das intervenções alguns nomes singulares para o masculino. Afinal, como lembra a cantora “todo corpo que tem um deserto, tem um olho de água por perto” (Marisa Monte, A primeira pedra).

Tomie Ohtake, Sem tÌtulo, 1962, Ûleo sobre tela, 85 x 75 cm, ColeÁ„o da artista.jpg ARQUIVO 08-04-2011 CADERNO2 Pinturas Cegas – Instituto Tomie Ohtake FOTO DIVULGACAO
A torção
Nesse momento, percebemos um giro na questão dos meninos. Se, no primeiro encontro, eles se angustiavam com a demanda de cada mulher que eles teriam que satisfazer (o que quer uma mulher), neste eles nos apontam que a angustia passa por não saber o que é ser homem e o que fazer com isso. Concluímos esse encontro dizendo que existem várias formas de ser homem. Não seria preciso matar para não ser “mané”, mas cada um poderia construir sua maneira de se fazer “respeitado”, restando para cada jovem o campo singular de ocupação desse significante.
Houve uma redução das perguntas explícitas sobre o sexo anatômico para uma interrogação acerca da posição masculina no amor – que surge sob transferência – face à diferença sexual. E aí, cada um construirá sua resposta, despidos do excesso que o não saber-fazer com isso, antes, produzia. O que, nos pareceu, permitiu uma torção do gozo da falação com o objeto sexualmente explícito (que impedia a formulação de interrogações sobre o encontro sexual traumático) para uma questão acerca da causa que movimenta e inquieta os corpos de cada um desses meninos.
Do retorno institucional
Finalizadas as conversações com os jovens, retornamos à Instituição para dar um retorno do trabalho e recolher seus efeitos. A Instituição traz alguns pontos que consideramos relevantes.
As oficinas da enfermagem sobre sexualidade permaneciam, mas com uma diferença: antes da conversação, havia uma “cola” do grupo na resposta de uma liderança. Todos articulavam um discurso único sobre a sexualidade e as meninas. Puderam observar, numa oficina de sexualidade ministrada pela equipe de saúde, que foi possível interferir e fazer vacilar essa crença numa receita universal para lidar com o sexo.
A enfermeira observou que, nas oficinas de grafite, a única coisa que os adolescentes queriam desenhar era o corpo da figura feminina, de uma “mulher bem gostosa”. Acredita que, após as conversações, foi possível trabalhar outros temas, justamente porque os adolescentes puderam “esvaziar” e falar do que queriam neste espaço.
Outro ponto observado era de que a abordagem sexualizada às técnicas diminuiu. O olhar dos meninos sob as mulheres permanecia, enfatizam, mas as falas não eram grosseiras, sendo então possível transitar com mais tranqüilidade pelos alojamentos.
Por fim, a equipe nos relata que a nossa presença não foi sem conseqüências para os adolescentes e tampouco para a Instituição, na medida em que, através das nossas intervenções, puderam ouvir a provocação dos meninos de um outro lugar. Sentiam-se constrangidas com as perguntas pessoais que os adolescentes lhes dirigiam. E também eram provocadas com as falas de alguns que demandavam uma profissional do sexo para a oficina, pois elas, enfermeiras, não sabiam de nada e não respondiam a nada. Entendem que falar de sexo não é fácil para ninguém, e que talvez essa abordagem direta dos adolescentes seria uma tentativa de provocar, justamente para não se haverem com as questões difíceis da sexualidade.
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Conversação enlaçando a arte do cinema e da argila
by cien_digital in Cien Digital #17, Cine Cien

Cindy Sherman, Untitled, # 316, 1995, Edition 3/6
Laboratório Guarnicê • São Luis (MA)
Thaïs Moraes Correia (coord.), May Guimarães, Carmem Damous,
Maria de Lourdes Maia, Débora Lima Baese, Cláudia, Kassiane, Márcia Assunção
O laboratório Guarnicê (ef.)- março de 2010 a junho de 2013 – teve início com a leitura dos textos gentilmente cedidos por Rosário do Rego Barros e os que fomos ao longo desse tempo recolhendo dos boletins da EBP, das revistas “Arteira” bem como alguns textos iniciais sobre a História do CIEN, que aconteceu pela primeira vez na Delegação Geral MA de 1998 a 1999.
Nesse momento, em março de 2015, em que somos novamente chamados a voltar para esse lugar, nos perguntamos: O que de fato aconteceu ali, onde a presença do CIEN volta a ser demandada?
É comum aqui ouvirmos: afinal, o que é o CIEN? Não se trata de um ‘espaço terapêutico’, nos diz Judith Miller, por ocasião da V Jornada Internacional do CIEN, em 2011. As conversações que o CIEN provoca têm o objetivo de fazer emergir um saber não sabido, a partir do qual se produz um deslocamento das perguntas/certezas trazidas pelos profissionais, que insistem muitas vezes em reclamar de sua impotência. O laboratório provoca um descolamento dessa impotência.
No primeiro semestre de 2010, pensávamos em desenvolver uma atividade nas escolas da comunidade, mas a experiência acabou sendo outra – dirigida ao ICE onde chegamos a convite de Deborah Baese, que fazia parte do encontro de estudo de textos sobre o CIEN, que realizávamos na sala da DG-MA. Ela foi uma das fundadoras do ICE e também participou da formação deste laboratório do CIEN. Foi nos ofertado, a partir de agosto de 2011 até junho de 2013, o espaço de um enorme galpão, onde funciona o “Centro Comunitário Elita Pinheiro” (atualmente Fórum do desenvolvimento sustentável do Jaracati). Lá são desenvolvidas diversas atividades dirigidas à comunidade do Jaracati, que é carente em vários aspectos. Nesse bairro, havia um lixão que fornecia, para famílias daquele local e redondezas, uma fonte de renda. Porém, por ser um bairro bem localizado, que abriga vários órgãos públicos, atraiu para lá a construção do Shopping São Luís, de modo que muitas pessoas que habitavam a área se deslocaram para outras regiões e, das que ficaram, várias tiveram que buscar outras fontes de renda, como por exemplo, o tráfico acirrado de drogas. O bairro possui o estereótipo de ser violento, mas alguns membros pertencentes a essa comunidade, através dos diversos trabalhos sociais desenvolvidos ali, visam transformar essa imagem. Uma das pessoas envolvidas e empenhadas nesse objetivo é a moradora da comunidade e diretora do C.C.E.P., Márcia Assunção, que participou das oficinas durante esse período. Nesse espaço, também funcionava o telecentro/informática; brinquedoteca/espaço lúdico, oficinas de judô e o projeto leitura encena/teatro e leitura.
Após algumas conversações em torno dos impasses que ali se colocavam, surgiu a ideia de iniciarmos um trabalho envolvendo cinema e cerâmica. Essa proposta foi aceita por todos e, no ano seguinte, em 2012, foram montadas as oficinas de cinema, seguidas pelas de cerâmica, onde as crianças, após assistirem filmes e comentarem o que lhes chamou a atenção em cada película, faziam a cerâmica baseada no filme assistido. Essas oficinas foram sugeridas e coordenadas por Thaïs Moraes Correia e por May Ferreira, contando com a participação dos oficineiros, alternadamente.

Keisuke Yamada, “Darth Vader”, Banana Sculpture, 2011
Os oficineiros e educadores trabalhavam diariamente com as crianças e, em vários momentos, fomos convocadas para intervir em impasses, discutindo acerca dos problemas mais marcantes do grupo, onde a violência (dentro e fora de casa) sempre esteve muito presente. Frequentaram esses encontros em média 15 crianças e jovens na faixa etária de 8 a 14 anos, moradores do Jaracati.
Observamos um grande entusiasmo das crianças com o fato de poderem ser escutadas e também de terem direito a opinar – o que significava ter, enfim, voz ativa. Ao falar do que viam nos filmes, podiam articular algumas passagens com suas vidas, identificando-se com este ou aquele personagem. Algumas crianças tinham imensa dificuldade em falar e aquele foi um momento mais de ouvi-las do que falar. As brigas e roubos eram constantes entre as crianças e muitas eram as demandas, até de papel higiênico, por exemplo.
Também fizemos atividades com as mães das crianças. A primeira delas foi um café da manhã com o tema: “Violência dentro e fora de casa”. A presença das mães e avós foi grande. Além da violência física, havia uma indiferença generalizada e desinteresse para com as crianças, que eram vistas como um estorvo. As mães se apresentaram uma a uma, falando de seus filhos e fazendo algumas perguntas acerca de “como educar” e como dar “limites a seus filhos”. Como fazer, afinal, para envolver essas mães que deixam seus filhos com as avós, na escola ou na instituição, para fazerem uso de drogas?
Agora, no “só – depois”, revendo o que realizamos neste laboratório, percebemos que não poderíamos ter-nos deixado levar pelas demandas – tanto da coordenadora do Centro como dos pais/mães/avós das crianças – realizando um trabalho no corpo a corpo com as crianças e jovens como fizemos; e sim ter insistido em apenas escutar e/ou intervir junto aos profissionais que “cuidam” das crianças e jovens. As dificuldades e impasses giraram em torno de como controlar a inquietação e violência presentes nesse universo. Percebemos que a fixidez dos significantes – violência – roubo – estupro – crimes e drogas – acabavam por nomear essas crianças, que respondiam com angústia àquilo que seus corpos denunciavam. Sabemos que a palavra tem efeitos no corpo e que é possível uma mudança nesses corpos quando se deixa penetrar por um discurso que não é analítico, mas que busca orientar para um desejo que não seja anônimo.
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“17 Filles”
by cien_digital in Cien Digital #17, Cine Cien

Delphine & Muriel Coulin, 17 Filles, 2011
Sobre o filme de Delphine & Muriel Coulin, 2011
Cristina Drummond
Somos avisados de que a história que vamos assistir é baseada em fatos reais (que ocorreram em 2008, nos Estados Unidos, na Gloucester High School). O fato de o filme ser contextualizado na França nos indica que a questão que ele quer levantar não é local, e sim está presente por todos os lados em nossa contemporaneidade. Sabemos que a adolescência é o tempo em que o sujeito busca se separar de seu Outro e isso implica em que ele encontre novas respostas e que seu corpo seja colocado em questão de uma nova maneira. Se podemos tomar essa afirmação como um universal, como ele é tratado interrogado a partir de um acontecimento?
O filme se inicia com uma exibição dos corpos de várias adolescentes que estão indo para uma avaliação médica de rotina na escola. Tatuagens, corpos magros, risos, brincadeiras. Esse clima de rotina, no qual se pesa e se mede o corpo, é quebrado com a declaração de uma jovem à enfermeira, de que ela pensa estar grávida.
Dentro de sua mochila, um teste de gravidez e o gadget preferido pelas adolescentes: celular com fone para ouvir música. Na aula de educação física ela e as amigas se escondem no meio da corrida para enrolar a professora e fumar. Atitude típica e comum por todas as escolas do mundo. Nesse momento, ela conta da gravidez às amigas que tomam o fato como um desastre e pensam que ela deve abortar para não ficar gorda e ter que deixar a escola, nem tampouco ficar presa com uma criança e um trabalho de merda. Ela ainda não contou nada à mãe porque quer decidir sozinha. Ela diz às amigas que se sente diferente e que elas não podem saber nada do que ela experimenta.
Neste momento ela já se apresenta como aquela que sabe algo que as outras não sabem. É dessa posição que vamos acompanhar essa adolescente. Ela se coloca como uma exceção que tem acesso a um saber que as outras não têm.
Quanto ao pai da criança, ela diz que isso não tem nenhuma importância e que tudo foi um acidente de uma noite em que a camisinha rompeu. As amigas dizem que continuarão inseparáveis e ficarão ao lado dela. Aqui também a jovem se coloca como aquela que quer dar conta de sua experiência sozinha, dispensando a opinião da mãe, das amigas e do pai da criança. Ela busca se afirmar como responsável por seu ato.
A jovem vive num prédio popular, cozinha e come sozinha, já que o irmão não aparece e a mãe tem que ir trabalhar. É uma rápida visão da vida familiar. Não há pai, não se sabe o que aconteceu, e a mãe funciona como arrimo de família e se ocupa em sustentar a casa, sem tempo para cuidar de mais do que isso. Com as amigas ela come no refeitório e elas excluem uma colega da mesa. Essa colega tem nome: Florence, porque até agora todas as demais que formam um grupo de cinco, não são sujeitos nomeados nem separados. Fala dos enjoos com a comida que vão passar depois dos 3 meses e as amigas compreendem que ela vai dar sequencia à gravidez. Sua intenção é continuar na escola e ter uma vida que valha por duas: uma com o bebê e outra na escola, uma contabilidade que indica um plus de vida. Ela terá alguém que a amará por toda a sua vida. Ao mesmo tempo em que ela discute isso com as amigas, ela quer convencê-las, como também a si mesma, de que esse acaso é uma escolha por uma vida mais interessante e melhor.
O nome da jovem aparece na boca de Florence quando a enfermeira lhe diz que terá menstruação durante muitos anos, a menos que resolva ter dez filhos. Ela pergunta-lhe se Camille Fourrier está grávida. A notícia se espalha pela escola e Florence, que era rejeitada pelas colegas, buscando ser aceita no grupo, diz a Camille que também está grávida.
Ao conversar com sua mãe, esta fica furiosa com a notícia e julga a filha incapaz de cuidar de sua própria vida e até mesmo de seus peixinhos. Camille diz que se sente capaz de cuidar de um filho melhor do que a mãe. A mãe diz que teve que deixá-la sozinha porque tinha que trabalhar para sustentar os filhos e que ela havia crescido apesar de tudo. A mãe diz que ela pensa que é esperta, mas que ela é na verdade uma idiota e que desta maneira ela vai ter que deixar a escola. Camille diz que tem certeza de que não vai falar dessa maneira com seu filho, que vai cuidar dele e não o deixará sozinho. Ela supõe que vai ser uma mãe diferente da que teve e que desta maneira poderá ter uma família. A mãe diz que não quer se ocupar dessa criança, que quer viver. Camille diz que ela também quer viver, mas que essa é a última das preocupações da mãe.
Nesse sentido essas jovens nos apresentam as novas manifestações da impossibilidade do encontro entre os sexos, são falasseres que se defrontam com o furo do real, furo que deixa o Um sem o Outro. O modo de gozar na atualidade encontra seu fundamento na impossibilidade de escrever a relação sexual entre os seres que não se ligam pelo laço pai-mãe, mas apenas pela linguagem e pela fala. A ausência de relação sexual se apresenta, mais do que nunca, sem as vestimentas do pai e das exigências familiares.
A fala de Camille nos permite pensar que ter um filho se apresenta para ela como uma chance de ter uma família construída num molde distinto dos tradicionais e ao cuidar do bebê, cuidar de si mesma, ter uma vida separada do abandono que sente. O bebê vem como um objeto que supriria sua falta e resolveria as consequências de sua experiência de abandono e devastação. Entretanto, é interessante percebermos que esse bebê não se inscreve numa solução edípica, ele não é tomado como a metáfora do falo que poderia ser dado pelo pai, tal como Freud nos propõe. Ele é imaginado como um objeto que permitiria a ruptura da relação mãe-filha, sem uma mediação fálica.

Candido Portinari, Circo, 1941
Florence se oferece para ser a parceira de Camille no cuidado com as crianças e Camille aceita sua aproximação e que ela lhe pague uma coca-cola. As relações podem ser inscritas num mercantilismo ainda que de custo baixo.
Camille ainda não contou ao irmão e diante dessa questão de ter que enfrentar os representantes do sexo masculino, ela propõe às amigas de ficarem grávidas juntas. “Vamos ser livres, felizes, responsáveis”. Desta maneira elas permanecerão sempre juntas. Ela, na posição de exceção poderia fundar o grupo das novas mulheres, numa espécie de sociedade protetora do falo feminino.
Todas decidem que vão tentar engravidar numa festa. Ali Camille encontra o pai da criança. Quando ele lhe pergunta se ele tinha alguma coisa a ver com sua gravidez, ela responde que não. Sua tentativa é a de inscrever esse filho apenas no campo do feminino, uma decisão que dispensa a mãe e o pai, a repartição sexual. Quando a amiga pergunta se pode transar com ele, Camille responde que isso não tem nenhuma importância para ela, o que importa é que a amiga o faça. O mais importante para ela é que seu lugar de exceção, de A Mulher, seja reconhecido e sustentado pelas amigas. É essa a mascarada histérica que ela pretende bancar. A maternidade não se apresenta como uma consequência da contingencia do encontro amoroso, nem como um tratamento para o gozo feminino.
Na reunião dos professores, eles comentam o fato de várias alunas estarem engravidando. Um diz que isso é uma atitude típica das adolescentes que buscam se apropriar de seus corpos. Umas se tatuam, outras se mutilam, outras param de comer. Essa seria uma atitude de desafiar os pais que não concordam com essa decisão. Se esse ponto de vista tem seu fundamento de verdade, a adolescência realmente é um tempo no qual o falasser busca se relacionar de uma nova maneira de seu corpo, isso está longe de ser uma pura relação de apropriação. Se encontramos com frequência nesse momento da vida a presença de cortes, de automutilações ou de distúrbios alimentares, esses sintomas são índices de uma dificuldade e de uma angústia de difícil tratamento.
Perante a lei os pais não podem forçar as filhas a abortar e essa é uma situação em que as adolescentes são tomadas como responsáveis juridicamente.
Uma professora diz que é um progresso que as jovens possam dispor de seus corpos. Outra diz que isso é um passo para trás, já que essas adolescentes só terão como perspectiva de vida futura serem mães. Outro professor diz que é preciso compreender politicamente o gesto das adolescentes. Alguns querem convencer as adolescentes a tomar pílula e a enfermeira diz que elas estão muito certas do que estão fazendo. A pergunta é de se aos 16-17 anos podemos fazer uma escolha de tal ordem, se se é capaz de fazer uma escolha.
Essa é uma pergunta de difícil resposta, mas que deve ser colocada em cada caso particular, pois não há como responder pela condição de cada falasser poder se responsabilizar por seu ato. Na situação do filme é difícil determinar se o que cada uma delas escolhe é verdadeiramente ser mãe.
As adolescentes verificam o dinheiro que podem receber do governo e pensam que com ele elas podem se organizar e, sobretudo, ficarem livres das ordens maternas. O projeto é o de serem diferentes de suas próprias mães, já que por serem jovens serão mais próximas dos filhos. Não haverá choque de gerações e elas serão como irmãs dos filhos, uma grande família. Uma comunidade só de mulheres com seus filhos, ou ainda uma comunidade de irmãos.
De qualquer maneira, o saber dos professores parece insuficiente para orientá-los a intervir e a se posicionar na situação. O diretor passa um filme onde uma mulher está tendo um filho de parto natural e os alunos riem de certa maneira constrangidos. Podemos pensar que ele buscava mostrar a realidade da situação que elas teriam que enfrentar, mas o faz de maneira pouco clara como se ter um filho, ser mãe, fosse passar por um parto. Além disso, em nenhum momento a palavra é dada às autoras da decisão. As jovens, sem chance de fala, entendem que o que o diretor quer é assustá-las. A posição da escola é muito mais a de querer coibir a ação das adolescentes do que a de promover uma oportunidade de discutir o que se passa com elas, se perguntar sobre o que estaria em questão naquela situação, no lugar de incluir o que estava se passando num saber já pronto. Quanto às adolescentes, elas não sabem como usar um teste de gravidez e nem muito bem o que terão que enfrentar. Só sabem que juntarão suas moedas e que seguirão em frente em sua decisão. E que o saber oferecido pela escola não lhes serve para tratar do que acontece com elas.
Uma das adolescentes, que não consegue encontrar um parceiro, porque é mais jovem que as outras, oferece dinheiro para um colega e este aceita. Novamente o fato se inscreve de modo mercantilista, o que parece reduzir a situação a uma situação de compra. Nesse comércio, ninguém precisa saber exatamente o que compra nem o que vende e as personagens não têm ainda nome.
Camille faz um ultrassom e pode ver o bebê mexendo em seu ventre. Ela não quis saber o sexo da criança e essa visão é diferente do que ela e as amigas podem ver no livro. Ela conta à enfermeira que anteriormente ela não podia imaginar o bebê e no ultrassom foi esquisito porque ela o viu, e agora ela está morrendo de medo. Aqui podemos claramente ver como o discurso da ciência que antecipa as imagens da criança pode perturbar a estabilidade da jovem angustiando-a ao apresentar o bebê como um corpo real. Essa imagem tem um efeito muito diferente daquele provocado pelas imagens do filme projetado pelo diretor. A imagem do ultrassom concerne ao corpo de Camille, e lhe apresenta algo vivo e real de que ela ainda não tinha querido saber e que a angustia. A enfermeira diz que não tem outro jeito senão seguir em frente.

Mariana Palma, Untitled, 2013
Na comemoração de natal a mãe não a deixa beber e ela tem que contar ao irmão que está grávida. Ele pergunta brincando se eles terão um soldado ou uma desempregada, isto é, se a criança será como eles. O irmão oferece seu quarto para o bebê, mas a mãe diz que Camille tem a intenção de ir para um pequeno apartamento e isso será melhor para todos. Não fica muito claro de quem é a decisão, já que nada é muito discutido. O irmão lhe dá de presente um urso do Afeganistão onde ele luta na guerra e a mãe lhe dá um curso de direção. O irmão e a mãe lhe ensinam um pouco a dirigir para que ela não tenha que pagar tantas aulas. Dirigir um carro não a habilita a dirigir sua vida, ainda que pareça que irmão e mãe reconhecem que ela já pode dar um passo.
Os pais de Clementine, a jovem que paga para engravidar, estão furiosos com ela que ainda é muito jovem e infantil. O pai lhe diz que ela é influenciada por Camille e lhe pergunta se elas querem mudar o mundo. Clementine diz que quer tentar e que não quer ficar como seus pais, idiotas. O pai diz que não vai tolerar aquilo e que vai levá-la ao hospital para que ela faça um aborto, mas ela responde que a lei está do seu lado. E ela foge de casa. Ela quer ficar com Camille. Apesar de Clementine ser uma adolescente que conta com um casal de pais, seu pai se apresenta impositivo e sem nenhuma condição para orientá-la ou fazê-la refletir a respeito da gravidade de sua decisão. Ele quer decidir por ela como se ela ainda fosse uma criança, coisa que ela recusa.
A ideia das meninas é que seus pais, assim como o diretor da escola, querem lhes causar medo, para que elas continuem na mesma vida de merda deles. Esse medo provocado seria apenas o reflexo do medo que eles próprios teriam de mudar de vida. No lugar de se intimidarem, elas querem demonstrar que podem sustentar sua decisão e resolvem encontrar um lugar para ficarem juntas e decidirem sobre suas vidas. E invadem uma casa abandonada na praia. Clementine gosta de ver seus pais preocupados com ela, mas Camille diz que elas têm que se virar sozinhas, dispensar os pais.
O ultrassom de uma das meninas parece apresentar alguma alteração. Isso ameaça a todas, uma pequena diferença que, além disso, é mais um problema a ser encarado por um grupo tão imaturo e que enfrenta tão mal o desigual. Aqui o medo é real e sua causa não pode ser imputada a um adulto ignorante e de mal com a vida. É no corpo de uma delas que as coisas acontecem.
Clementine, com medo de enfrentar uma chuva de vento naquela casa precária, chama seus pais. Quando chega ali, Camille vê que a casa está abandonada e sai de carro com o irmão. Esse lhe diz que isso era só o começo do que iria acontecer, que elas não iriam conseguir manter o projeto de criarem seus filhos juntas. Ele lhe diz que o projeto dele também era o de sair daquela vida e que se viu atirando em pessoas que não haviam feito nada contra ele. E que ele se encontrou sozinho, sem ninguém para ajudá-lo.
O que o irmão de Camille aponta é a solidão dos uns que de alguma maneira está na base dessa solução sintomática de uma gravidez em grupo. Apesar de elas buscarem uma solução comum, temos no fundo uma solução que indica a pluralização dos sintomas que concernem à maternidade na contemporaneidade, e a consequência do fato de que a existência, que anteriormente era sustentada pela função paterna, se deslocar da exceção para as múltiplas soluções. Os sintomas da maternidade são múltiplos. A existência se encontra para além dos ideais e dos modelos de família preconizados como adequados e bem orientados para a procriação. É como se não havendo a exceção paterna, todas as existências se apresentassem como exceções. O Um se apresenta como o cada um sozinho.
Por isso o irmão de Camille é descrente na possibilidade de mudança, o que ele encontrou foi decepção e solidão.
Também assistimos atualmente às tentativas do direito de construir novas ficções jurídicas que busquem dar lugar a essas existências na lei, a essas soluções particulares que não se universalizam. O fato de essas adolescentes serem responsáveis juridicamente por suas decisões e contarem com o amparo financeiro do Estado, não garante que elas possam se responsabilizar por sua decisão.
Na televisão um jornalista interroga se o fato de 14 adolescentes estarem grávidas seria a consequência de uma crise econômica, do fato de a atividade pesqueira e industrial terem entrado em crise na cidade. É uma leitura que diz que essa decisão não está separada da falta de ideais e perspectiva de vida nos tempos atuais. A falta de oportunidades é também o que aparece no caminho que o irmão de Camille encontra ainda tão jovem e brincando de Amelie Poulin no meio de uma guerra fervilhante de mortes.
O diretor convoca os pais para falarem do assunto e diz que agora são 15 adolescentes grávidas. Diante da acusação de um pai de que ele é responsável, o diretor diz que ele não é responsável pela vida privada dessas alunas, em todo caso não mais que os pais. O fato de ele não ser responsável pela vida privada das meninas, e de não ser o pai delas, não o isenta da responsabilidade de tratar dessa situação. A enfermeira diz que quer instalar uma máquina de preservativos na escola, mas que o uso de pílula é de responsabilidade dos pais. O diretor quer que os professores aumentem o controle e obriguem os alunos a trabalhar. Ele também pretende excluir a jovem que é a cabeça do grupo pensando que isso pode ser uma maneira de provocar medo nas outras. Vemos aqui a dificuldade da escola e dos pais dimensionarem suas responsabilidades e o alcance da tarefa impossível de educar. O que a escola quer é que isso acabe e que o real fique de fora de seus muros.

Thais Beltrame, ninho – detalhe
(série ‘qualquer tempo que já passou pertence à morte’), 2010
A enfermeira pergunta a Camille porque ela levou as outras pelo mesmo caminho, se era porque ela se sentia só ou tinha medo. Ela diz que isso não tem importância. Que no início teve medo e que estava feliz por suas amigas. Ela diz que foi apenas a primeira e a enfermeira diz que algumas não vão conseguir sair dessa experiência, Clementine por exemplo. Camille pergunta se os adultos tiveram melhores ideias. A enfermeira que confessa não ter filhos, diz que lhes era oferecida a possibilidade de estudar e viver melhor. Camille diz que há nos adultos uma mentira de não perceber que a vida deles é uma merda. O que ela denuncia é uma repetição da falta de perspectiva e de desejo e um saber que não leva em conta um furo, um saber que tudo sabe e que não dá lugar para a subjetividade e as singularidades. Ela tem certeza de que elas têm que tentar outro caminho. Camille diz que essa conversa com a enfermeira acabou com as dúvidas que ela tinha a respeito de sua decisão.
Com certeza Camille não tinha nenhuma condição de saber a respeito de sua posição de bancar A Mulher, de ser a exceção e a conversa com a enfermeira que não tem filhos a desautoriza, assim como aos outros adultos a estarem na posição de serem modelos para uma identificação. A enfermeira não sabe nada sobre maternidade, já que ela não é mãe. E por ter não vivido isso em seu corpo, ela é desautorizada por Camille. É essa destituição da posição de ideal da enfermeira assim como sua experiência que fazem Camille ter certeza de sua decisão.
Júlia acusa Camille de estar com ciúmes porque Tom está apaixonado por ela. Elas levantam a blusa de Florence e descobrem finalmente que ela mentiu o tempo todo que estava grávida. Elas vão buscar Clementine para libertá-la. Cantam: viva o chocolate, a heroína e a vodca. Nem há lugar para o amor nem para o sentido. É como se nesse momento a autoridade e a lei estivessem diluídas e ausentes do mundo.
Agora os acontecimentos vão ser desencadeados para mostrar que a solução idealizada não pode ser realizada. Elas vão para a praia onde encontram os rapazes e ali continuam brincando com o fogo. Clementine perde o fôlego e Camille a leva de carro para sua casa. Mas depois Clementine lhe manda uma mensagem dizendo que seus pais não estão em casa e que ela perde sangue. Camille dá meia volta, mas tem um acidente. Ela avisa Clementine e tenta falar com as amigas, em vão. O carro não liga e ela avisa Clementine onde está. A ambulância chega. Camille teve um descolamento de placenta. Tom fica no quarto com ela. Mas não há retorno possível, o que foi decidido arrasta suas consequências.
Essa sequencia de fatos vem nos trazer o real que sempre irrompe ali onde não é esperado. A precariedade das adolescentes se apresenta, mas isso não invalida a decisão que elas tomaram.
Ninguém soube o que aconteceu com Camille depois que ela perdeu o bebê. Ela deixou tanto a cidade como sua mãe. Junto com o bebê ela perdeu seu lugar de exceção e fica impossível para ela permanecer no grupo. Ela continuou a fazer as amigas sonharem com uma outra vida, mas nunca voltou ao colégio. As adolescentes não criaram seus filhos juntos, mas continuaram a frequentar a escola. Tudo foi um sonho da adolescência, fruto de uma energia que ninguém pode conter. Afinal, mudar o que foi herdado é tarefa de difícil execução, sobretudo em tempos tão precários e com tão pouca esperança.
Nenhum happy end e o que encontramos no final também não é nada desastroso. As adolescentes continuam na escola, os bebês são cuidados e pouca coisa muda na vida daquela cidade. Um filme que poderia estar discutindo um fato único, nos mostra que todas as soluções são únicas, são tentativas de dar conta da precariedade do simbólico em nosso mundo. A maternidade é uma aposta, o grupo de mulheres que dispensam o homem é outra mais, o apoio no grupo dos iguais, encarnar a exceção ali onde não há ideal, o bebê como objeto tampão, a exclusão da vida, da escola e do saber, todas essas saídas são efeitos desse impasse dos falasseres encontrarem o como fazer sem o suporte de modelos que os orientem e, sobretudo, sem um lugar para a sua palavra.
Em nosso mundo, o falo se tornou um instrumento particular que serve simplesmente para marcar o fracasso, o ratear da relação. A única possibilidade é a de que as relações se façam pela fala e pela linguagem. Essa é a chance e a aposta da psicanálise.
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