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A originalidade da interdisciplinaridade do CIEN*

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Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
Cabaças, obra de Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem data
Cabaças, obra de Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem data

Agradeço a Paola e à comissão CIEN-Brasil o convite para participar desta manhã de trabalho, nesta mesa dedicada a fazer uma homenagem a Judith Miller relembrando os princípios do CIEN. Parabenizo a comissão por essa iniciativa. É sempre importante lembrar os princípios que orientam a prática do CIEN.

Minha fala hoje aqui foi inspirada não só pela leitura dos textos de Judith Miller que circularam nos laboratórios do Rio, mas também pelas conversas que lá tivemos no encontro mensal dos laboratórios. Nessas conversas senti a vivacidade da transmissão desses princípios pelos coordenadores do CIEN e o interesse entusiasmado dos participantes por sua orientação ao se darem conta de que se trata de uma prática inédita da interdisciplinaridade, que nem sempre é fácil de sustentar. Manter viva a originalidade da invenção do CIEN é uma boa homenagem que podemos fazer a Judith Miller.

Havia muito entusiasmo na conversa, mas também a apreensão de como é fácil resvalar na direção de uma prática convencional da interdisciplinaridade, onde o laboratório arrisca ser absorvido pelas reuniões institucionais e o que muita vezes nelas se instalam de soma ou competição de saberes, de controle, etc. São os riscos de quando o laboratório funciona, ou se reúne dentro da instituição. Outro risco é o da exterioridade persecutória, quando se reúne fora e se incluem profissionais com práticas diversas dentro e fora de instituições e que pode, às vezes, se reduzir a uma reunião entre psis. O cuidado da coordenação do CIEN, me pareceu seguir a orientação de Judith, quando diz que é preciso temperar o entusiasmo sem o apagar. Como fazer isso quando enfrentamos esses riscos, senão lembrando a dimensão da extimidade para poder buscar formas de fazê-la operar tanto em um caso como no outro. Temperar o entusiasmo é não se deixar cegar por ele e buscar inventar formas para lidar com as dificuldades sem deixá-las se instalarem, poder lidar com momentos de fracasso, acolhê-los para fazer deles a mola da invenção. Fazer operar a extimidade é uma das funções da presença indispensável de pelo menos um psicanalista no laboratório. Ou, melhor dizendo, de alguém que passou pela experiência da psicanálise como analisante e foi levado a lidar com o estranho íntimo que desacomoda e acossa, e por isso mesmo convoca à invenção que permite sair do convencional, do protocolar.

Ao dizer isso aqui a vocês fica passando pela minha cabeça minha experiência em laboratórios dentro e fora de instituições e todo o difícil manejo para garantir a extimidade necessária a realização da conversação.

Já podemos ver o que faz o inédito dessa prática pela sua marca de origem no Campo Freudiano, que foi muito bem indicada pelo hífen colocado por Lacadée entre o inter e o disciplinar, sempre lembrado por Judith. Podemos dizer que ele constitui um dos princípios do CIEN. Judith se refere a ele várias vezes como o traço de união, que convida à conversação. Mas essa sua função de ligação entre as disciplinas só acontece quando faz valer um intervalo e permite uma suspensão no saber para favorecer “um saber não saber” e poder acolher o novo, o diferente. Nas conversas do CIEN nos referimos a ele como um espaço vazio, o que pode ficar abstrato se não o articulamos às brechas que podem se abrir no saber pré-estabelecido, no saber comum que se alastra como uma praga sem poder ser interrogado. O vazio se realiza muitas vezes como tempo de espera, que não é passivo. Sustentar intervalo, permitir o vazio, escutar o que se diz sem saber, poder transformar isso em perguntas, é conectar cada um com os pontos de opacidade no seu desejo, em suas repetições sintomáticas.

Em nossa conversa no Rio, quando esse vazio foi interrogado, fomos levados a uma questão interessante e bem prática: como abordar outros profissionais com os quais desejamos estabelecer um trabalho interdisciplinar? Ou seja, como criar condições para a formação de um laboratório? Como se dá, ou como deve se dar esse trabalho preliminar à formação de um laboratório nas situações mais diversas em que isso acontece? Aí podemos apreender a importância deste hífen na maneira como nos dirigimos aos outros profissionais, trazendo nossas próprias perguntas e não respostas prêt-à-porter, o que permite que as dificuldades enfrentadas por eles se transformem em perguntas, em enigmas a serem trabalhado por todos. Com as perguntas colocadas na mesa se pode iniciar o jogo de trocas, onde cada um vai buscar o que construiu para responder a elas e o que restou opaco, difícil de entender e de lidar. O que vai acontecer a partir daí faz do não saber um ponto de abertura, e não de impotência ou desistência. A interdisciplinaridade que opera com a soma, o acúmulo de saber fecha as portas, tampona as brechas, os intervalos, não deixa aparecer o vazio criativo.

Vimos como esse hífen opera no trabalho para a constituição de um laboratório. Podemos nos perguntar como ele opera em seu funcionamento. É então que entra na originalidade da prática do CIEN o uso do corte e da dimensão temporal do a-posteriori. Autorizar-se a operar com o corte na conversação com os profissionais e também com as crianças e os adolescentes nos ensina muito sobre o que falar quer dizer. A fala corre o risco de se perder num blablablá, numa queixa, num desabafo sem consequências. O corte tem uma função decisiva para que cada um possa se escutar e escutar o outro, não a partir do que já estava cristalizado como saber sobre si e sobre o outro. O corte é um instrumento para se tirar consequências da fala e poder extrair dos ditos, que surgem muitas vezes como uma verdadeira avalanche, um dizer, que surpreende os outros, mas também àquele mesmo que fala. O corte faz intervalo e convoca o posicionamento de cada um no trabalho com uma questão que surge no coletivo, como sendo de vários, embora vivida de forma diferente por cada um. O corte é necessário sempre que nos abrimos para a contingência do encontro e queremos fazer dela não um atrapalho, um acidente pernicioso, mas o que tem chance de suspender a obrigatoriedade das respostas e dos caminhos já traçados.

A dimensão do corte traz consigo a do a-posteriori. Judith dava muita importância ao a-posteriori no qual se dá o tempo da escrita e da transmissão, mas também o tempo necessário para recolher os efeitos do que foi falado. Na minha experiência de laboratório em uma escola pública do Rio de Janeiro, onde fizemos conversação com os adolescentes e a participação de professores, se tornou indispensável, entre uma conversação e outra, um tempo para nos debruçarmos sobre o que tinha ocorrido em cada uma delas. Essa elaboração a-posteriori com os professores e participantes do laboratório era decisiva na forma de presença que tínhamos na conversação seguinte.

O tempo do a-posteriori é importante também para ficarmos atentos aos efeitos nos participantes da conversação: por exemplo, para estarmos disponíveis para escutá-los individualmente quando se dirigem aos coordenadores, ou para que os próprios coordenadores possam fazer essa oferta quando acharem necessário.

O manejo do corte traz também a questão de até onde ir nesse dispositivo de elaboração coletiva, para não se tornar um mostrar obsceno da dor de cada um que convoca um voyeurismo também obsceno. Trata-se de um manejo delicado e atento por parte dos coordenadores para poder extrair da forma como cada um se mostra em palavras, e muitas vezes em ato, o que faz sintoma. Trata-se de dar dignidade ao sintoma como uma forma de lidar com o que é opaco para cada um, com o que o ultrapassa no momento mesmo da conversação. Dar a chance de ser lido como sintoma e não como déficit, ou como degeneração devida às coordenadas de sua história, como, por exemplo, ser pobre, viver numa favela, ser negro, pertencer a tal família. A leitura baseada nesses fatores é o que infelizmente cerca as criança e adolescentes de hoje nas instituições onde circulam. Dar lugar ao sintoma como forma de tratamento do resto, daquilo que ultrapassa, que excede de forma totalmente sem sentido, e poder acolher esse resto como fator de divisão subjetiva, e não como um elemento a ser segregado é o trabalho civilizatório e anti-segregativo do CIEN, que Judith tanto prezava.

Por fim, queria trazer para nossa discussão a relação do CIEN com a Escola e com os Institutos que, aqui no Brasil, abrigam o CIEN. Usei a palavra abrigo. Mas não é só disso que se trata. O funcionamento dos laboratórios precisa de pelo menos um analista, ou melhor dizendo um analisante em formação. Não é à toa que em seus textos Judith não cessa de situar o CIEN em relação à Escola, que é o lugar onde se formam os analistas. Ela sabia o quanto a prática do CIEN fica difícil sem a Escola, e também o quanto as Escolas precisam do CIEN. Ambos situados no Campo Freudiano, como Lacan designou “o espaço conceitual e a nova prática que Freud inaugurou ao inventar a psicanálise. Nesse campo se encontram as Escolas de formação dos psicanalistas e as diversas instâncias responsáveis por tornar a psicanálise presente no mundo, atualizando-a para que esteja à altura das mudanças e dos novos desafios que essas mudanças trazem para a prática da psicanálise. Lacan criou, desde a fundação de sua Escola, as condições para que ela não fosse uma comunidade fechada. O CIEN, como dizia Judith, tem a função de ser um dos pontos de abertura para a reconquista do Campo Freudiano. Essa reconquista, como dizia Lacan, deve se dar primeiro em relação a cada um, na abertura de cada analista para aprender e se desacomodar no encontro com as outras disciplinas. A presença de um analista, indispensável no laboratório, também não visa nem a formação dos seus participantes, nem sua própria formação, embora seja uma prática que certamente tem efeitos de formação, que precisamos poder recolher. Achei importante o que disse Judith sobre a importância da presença encarnada do psicanalista, na medida em que ela abre para um além, para uma transferência com a psicanálise e sua aposta na enunciação, no dizer que surpreende e que favorece a invenção.

Surge um outro tipo de cuidado que temos que ter na prática dos laboratórios do CIEN: acolher o dizer e a enunciação sem fazer disso uma prática terapêutica. Aqui ganha toda importância o manejo do corte na prática da conversação e nas reuniões dos laboratórios.

Concluo com um dito da professora e diretora da escola pública onde o laboratório “Causar para não segregar” fez a conversação com os jovens adolescentes. Ela disse, em nossa reunião de conclusão, que aprendeu a fazer o corte primeiro em si mesma para não responder aos alunos com a mesma violência que sentia dirigida a ela. A partir desse corte sobre ela mesma é que conseguia escutá-los, descobri-los de outra forma e intervir de maneira a causar e não segregar. Daí o nome de nosso laboratório.

*Texto apresentado na VI Manhã de trabalhos CIEN-Brasil, O que falar quer dizer? Singularidade e diferença, hoje. Rio Janeiro, 23 de novembro de 2018
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