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Permutação da Coordenação: Falando com seus participantes!

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Fernanda Otoni Brisset, Nohemi Brown, Siglia Leão, Lucíola Macedo, Rodrigo Lyra,
Miguel Antunes, Ana Martha Maia e nota da Comissão de Coordenação e Orientação do CIEN Brasil (2014-2016)

CIEN Digital: Você acaba de permutar o trabalho de Coordenação do Cien no Brasil. Este intenso período de dedicação ao CIEN resultou em avanços de trabalhos dos Laboratórios, testemunhado em realizações de eventos e publicações. No que lhe inspirou a seguinte afirmação de Judith Miller:

Jasper Johns, The Critic Sees, 1962

Fernanda Otoni Brisset: Essa feliz expressão Charybde em Scylla, utilizada ai por Judith Miller, remonta à antiguidade e, geograficamente, refere-se ao estreito de Messina que passa entre a ilha da Sicília e o sul da Itália. Esse estreito trazia muitos perigos aos marinheiros que ao tentar sair dos turbilhões de água formados pelas correntes de uma ponta do estreito, encontravam com o perigo dos recifes, na outra extremidade. Conta Odisseia que Ulisses para escapar do canto das sereias, jogou-se nesse estreito, caminho ainda mais perigoso, tendo que enfrentar dois monstros terríveis, descritos na mitologia grega como Charybde e ScyllaCharybde, três vezes ao dia, engolia e regurgitava quantidades enormes de agua, tragando para a guela adentro navios e peixes. Scylla que, aparentemente, era uma ninfa belíssima, escondia, da cintura para baixo, tentáculos enormes em cuja ponta guardava a cabeça de cães raivosos ávidos para devorar navegantes. Daí a expressão “cair de Charybde em Scylla” para indicar situações cuja presunção de escolher um caminho sem perigos pode levar do mal ao pior. O que seria então esse Charybde em Scylla contemporâneo ao qual Judite Miller se refere?

Hoje em dia, o Outro não funciona mais como bússola. O simbólico não é mais o que era, inaugurando a geração dos desbussolados, sem um Outro a qual se crer, cujo vazio de saber abriu nosso mundo à soluções além Édipo, orientadas pelo real. Contudo, a ironia do contemporâneo daí se deduz!

O desmantelamento das pedagogias tradicionais e outras ordens, efeito desse novo tempo, gerou uma nova desordem. Esta foi tomada como um perigo a ser evitado pelos gestores das populações que aliaram-se ao cientificismo e burocracias administrativas para perseguir um caminho estreito, guiado por ordens de ferro, a fim de suturar o vazio real do corpo do Outro que não existe mais. Fábricas de falsas verdades e procedimentos seguem, a todo vapor e sem cessar, visando tal intento. Avaliam comportamentos, ditam protocolos, prescrevem manuais de condutas perseguindo a pretensão de garantir um contemporâneo sem risco. A criança foi tomada como objeto precioso de intervenção e cuidado e protocolos de controle de qualidade exigiu amordaçar o seu dizer em prol do saber maestral que a antecede. Não tarde, vimos como tal direção vai cair no estreito do impossível, que leva do mal ao pior: a mordaça do dizer faz ratear o enodamento do corpo vivo à língua que o habita.

Dos numerosos laboratórios do CIEN-Brasil podemos extrair a forma singular com que esse contemporâneo recai sobre a criança e jovens modificando sensivelmente a forma como eles falam e vivem o que se agita em seus corpos, o que também afeta a prática e discursos dos que cuidam deles. É justo aí, que o CIEN encontra o seu lugar e instala as conversações para que cada um possa encontrar palavras para transmitir os impasses que a criança não pode sair sem falar, a não ser através de posições sintomáticas, acontecimentos de corpo e passagens ao ato que recobrem o seu dizer. As conversações estabelecidas pelo CIEN com as crianças e jovens, bem como com aqueles que cuidam deles, resgatam o valor do dizer da criança como um saber autêntico que lhe é próprio e porta a verdade da qual sofre o infantil. Hoje, esse dizer está em perigo, está cada vez mais desacreditado, em prol das falsas verdades que amordaçam sua língua.

O CIEN é uma resposta da psicanálise responsável por lançar o discurso analítico lá onde navegam outros discursos, a fim de abrir porosidades, arranjar espaços para que a língua se livre das mordaças tecnocientíficas e fale livremente, abertos à audição do inconsciente, para que este possa ter um destinatário, conforme comentou Jacques-Alain Miller. Por essas vias, os laboratórios do CIEN testemunham as transformações quando as conversações abrem os tampões dos ditos distúrbios de conduta para dar vazão ao dizer da criança que ali foi recoberto e que demanda ser escutado. Navegar por esses mares da linguagem é preciso, não há o Outro da garantia, e por essas veredas aguardamos, por esse furo vivo, a enunciação de um saber singular, autêntico, que sabe bem dizer a palavra que não pode ser dita toda, mas cujo trauma a criança carrega em sua língua e busca um destinatário que suporte o impossível de sua transmissão.

‘As publicações são formas de proteção desse dizer’, como ressalta Judith Miller, pela força com que guardam e transmitem o saber recolhido no dizer da criança sobre seus impasses, as soluções inéditas que o transformam e subvertem, ao tomar por guia a língua viva que pulsa nos corpos das crianças e jovens falantes. As publicações transmitem o que esse dizer ensina aos laboratórios do CIEN sobre as variadas e singulares formas de habitar um mundo falante, dando seu testemunho de que é possível dispensar o asilo num certo tipo de contemporâneo que procura os estreitos sem riscos e encontra, desde que o mundo é mundo, o caminho que vai de Charybde em Scylla, a mil por hora, leva do mal ao pior.

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