Skip to content

Do real ao efeito simbólico: do ato ao desejo de saber

image_print
Hilma af Klint, De tio största, nr 3, 1907
Laboratório: Rekalque, aqui bate e volta • Belo Horizonte (MG)
Márcia Regina de Mesquita, Marcilena Assis Toledo, Paula Melgaço

O laboratório “Rekalque, aqui bate e volta”, ao propor a Conversação com adolescentes no espaço escolar, aposta nesta linha de trabalho que vem sendo desenvolvida no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN). Acredita-se que as crianças e os adolescentes falam e inventam diante de um real invasivo e traumático sendo possível uma mudança no sujeito. Segundo Brisset (2013) eles “falam, pensam, inventam moda por toda parte – na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais -, desde que haja pelo menos um dispositivo a escutá-los sobre o real de sua época e os impasses que lhe concernem” (BRISSET, 2013, p.19).

Apostando nos efeitos da circulação da palavra, realizamos a Conversação com adolescentes considerados agressivos pelos professores e gestores da escola. Durante a conversação, vimo-nos diante de algumas dificuldades que se apresentavam ao consentirmos com o “não saber” e permanecermos abertas às contingências. No primeiro dia da Conversação os adolescentes, cinco do sexo masculino e três do sexo feminino, se mostram muito agitados. Falam ao mesmo tempo, mexem uns com os outros, usam palavras agressivas, dão pontapés e batem nos colegas: falam “por meio de seus corpos, de seus sintomas” (BRISSET,2013,p.19). Ainda nas palavras da autora, “mostram, também, como são vivazes, quando querem escapar das garras do controle e fazem tumulto nas escolas, comportando-se como demônios, sempre que os mestres os tratam como ‘otários” ((BRISSET,2013.14).

Já na primeira Conversação, durante os intervalos das atuações dos corpos, eles começaram a se abrir à palavra, falando, cada um a seu modo, do real invasivo vivido na família, na comunidade e no próprio espaço escolar:

Os demais participantes também dizem do real que os afronta diariamente – da violência que vivenciam na comunidade como o tráfico de drogas, da violência da palavra entre eles na instituição, da violência da palavra de seus professores. Eles dizem se sentirem “maltratados” e “humilhados” principalmente diante da agressividade que vinha de seus colegas por meio dos apelidos, aqueles apelidos que tocavam no corpo como: Jonas: Chamar você de gorda.

E apelidos que tocavam na conexão do adolescente com o saber. Eles falam de seu insucesso no aprendizado e do constrangimento nas atividades escolares. O corpo do adolescente se manifesta quando o sujeito é colocado em xeque diante do saber:

Nessa Conversação, eles expressam em palavras o mal-estar diante das agressões sofridas. O corpo neste dia é contido pela palavra. Em outra Conversação, o mal-estar se apresenta quando os adolescentes se colocam também como os agressores e, então, dizem:

Nick Rands, ‘Hundreds and Thousands’, 2009

Nesse momento, surge a surpresa: o real que aparece nas Conversações, primeiramente atuado e expresso pelo corpo, agora bordejado pelo simbólico, vem apaziguar este movimento pulsional desenfreado que os adolescentes mostram através da agressividade. Agora, como efeito desse processo, o ponto de embaraço, de incomodo dos adolescentes, se apresenta como uma ação também praticada por eles mesmos. Daí, a surpresa ao se perceberem também como aqueles que maltratam e humilham.

A surpresa e o novo também tocam seus professores. No dia da devolução da pesquisa os professores falam sobre as mudanças daqueles adolescentes que participaram da Conversação. Até esse momento, para os professores, o nosso trabalho com os adolescentes não estava muito claro. Sabiam que se tratava de uma pesquisa e que, durante seis semanas, uma vez na semana, alguns de seus alunos tinham que descer para dela participar. Um dos professores diz: “eu não sabia a fundo”. Algo do inusitado provocado pelo não saber dos professores teve efeitos positivos.

Os professores solicitam, no início do trabalho, os nomes dos alunos  participantes da Conversação. Ao falarmos o nome de João, alguns professores se expressam com espanto, em coro “Nosso Deus”. A partir daí a palavra circula pelo grupo e alguns professores começam a falar das mudanças percebidas em João, como também de outros adolescentes. Joana, a adolescente “estourada”, “agressiva”, tem conseguido conter-se mais dentro da sala de aula. Jader, adolescente agressivo e com grandes dificuldades de aprendizagem, retido três vezes no sexto ano, apresenta mudanças: ”ele está mais tranquilo e consegue ler”. Ao sinalizar a tranquilidade do aluno, a professora aponta também para o bom trabalho que o professor de educação física tem feito com Jader.  Naquele momento o professor se surpreende e fala da alegria em escutar tal afirmação, além de ressaltar seu desejo em ajudar o aluno. Ele diz que não tem uma solução pronta “no hall na pedagogia”, ou seja, não há conhecimento teórico e nem manual didático que transmita ao professor o que fazer diante de tais situações. Por isso, muitas vezes, não sabia o que fazer e como fazer com esse aluno.

Outro professor, considerado bravo pelos adolescentes mas que também era amado pelos mesmos, surpreende-se a partir da fala da psicanalista que valoriza seu não saber. Na última Conversação com os alunos, ele não queria liberá-los.  Naquele dia, os adolescentes que apresentavam dificuldades de aprendizagem, inadequação de comportamento e eram agressivos, pela primeira vez estavam fazendo toda a atividade dada por ele em sala. Foi possível, então, para aquele professor e para os outros, constatarem os efeitos da palavra quando se abre espaço para sua circulação que ,através da escuta psicanalítica, pode promover mudanças. Nesse caso, não somente uma mudança de postura dos alunos em relação aos estudos, como uma nova posição assumida por alguns dos professores ali presentes. É importante salientar que a proposta não foi de entregar à escola alunos tranquilos, dedicados, ou seja, o aluno ideal. Um dos objetivos de nossa intervenção foi abrir um espaço para que os adolescentes buscassem outras saídas para lidar com o mal estar no contexto escolar. Saídas menos danosas, ao invés da agressividade que causava sofrimento tanto para o adolescente como para quem estava ao seu redor.

Destacamos, por fim, o caso de João. Durante as primeiras Conversações João solicita a palavra e a atenção a todo instante: corta a fala dos colegas e das pesquisadoras. Além disso, ao ser repreendido pelo grupo, ameaçava sair da sala e, para seus colegas, o melhor seria que realmente ele estivesse fora.

Na terceira Conversação inicia-se uma substituição sutil do ato pela palavra. João já não interrompia a fala dos colegas, não se mexia tanto e não se fazia de vítima o tempo todo, suportando ficar na sala até o encerramento. No entanto, demandava insistentemente ser escutado através de seus relatos que sempre traziam eventos chocantes. Considerando que a palavra opera transformações (SANTIAGO, 2009, p. 66-82), podemos pensar que João conseguiu aplacar a determinação pulsional do ato fazendo borda ao real através do simbólico ao falar de seus medos e aflições. Assim, ao fazer o bom uso do sintoma, usando agora a palavra e não o corpo, ele sai de um lugar onde aprender era algo de uma impossibilidade e se abre para o saber. Na última Conversação ele diz ter tirado “tudo nove” nas provas.

A Conversação propõe um espaço para o “bem dizer” que, em relação a João, favoreceu para que seu desejo de saber aparecesse. A esta possibilidade de mudança, soma-se também o desejo da professora de apoio em lhe transmitir algo. Ela começa acompanhá-lo mais de perto durante a realização da Conversação na escola. Os professores dizem que ele está mais calmo, menos agitado e aberto ao aprendizado. Destacamos duas falas distintas de João que podem ilustrar os efeitos apresentados pelo adolescente relacionados ao seu desejo de saber que pôde aparecer na medida em que o real começou a ser tratado pela palavra:


Referências Bibliográficas
BRISSET, Fernanda Otoni; SANTIAGO, Ana Lydia; Miller, Judith (Org). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. 206 p
________, Fernanda Otoni. Crianças falam! E têm o que dizer. In: BRISSET, Fernanda Otoni; SANTIAGO, Ana Lydia; Miller, Judith (Org). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Scriptum, 2013.p 11 – 19.
SANTOS, Tânia Coelho dos (org). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009, 192p
SANTIAGO, Ana Lydia Bezerra. Psicanálise aplicada ao campo da educação: intervenção na desinserção social na escola. In: SANTOS, Tânia Coelho (org). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.
Back To Top