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Apresentação do texto “Em direção à adolescência” de Jacques-Alain Miller

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Cayce Zavaglia, Sophie, bordado a mão, 2013
Ana Lydia Santiago

Intervenção de encerramento da 3ª Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança

O texto que me cabe apresentar hoje -̶ Em direção à adolescência, de Jacques-Alain Miller – é, em resumo, uma proposta de orientação para os trabalhos preparatórios para a 4ª Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança, prevista para acontecer em Paris, em abril de 2017. Consiste, pois, numa indicação de pontos cardeais para um estudo da adolescência.

A leitura desse texto permite-me dividi-lo em duas grandes partes, que designo Aspectos clínicos da adolescência e, mais especificamente, A adolescência na clínica do parlêtre.

I – Aspectos clínicos da adolescência

Pode-se considerar a tendência a se definir a adolescência como uma construção, independentemente de várias outras perspectivas de estudo possíveis ̶ a biológica, a psicológica e outras ̶ , como o aspecto epistêmico mais geral desse texto de Miller. Dizer que a adolescência é “uma construção” incorpora o espírito da presente época ̶ ou seja, uma vertente pós-moderna, segundo a qual tudo é construído, tudo é artifício significante.

A tese de Miller é a de que esta época nega o real, por representar um período muito incerto quanto ao real, que prefere conferir importância preponderante a signos. Que são signos? São semblantes, um misto de simbólico e imaginário. Sobre esse ponto, a originalidade de Lacan e da psicanálise resume-se a articular o semblante com o real. Levar em conta o real, o real da pulsão, esse é o ponto que se deve priorizar em qualquer pesquisa psicanalítica sobre a adolescência.

Na maior parte das pesquisas psicológicas, considera-se que, por se tratar de uma construção, a adolescência pode ser descontruída. Miller cita, a propósito, a obra Contra a adolescência: redescobrindo o adulto em cada adolescente, livro de Robert Epstein, psicólogo e jornalista americano, cujo título, ressalta ele, propõe um slogan simpático. Nessa obra, o autor defende a tese de que, na atualidade, são os adultos que criam a experiência adolescente e, assim, impedem os jovens de agir como adultos. Se, antes, os adolescentes conviviam com os adultos e os tomavam como modelo, hoje, os adultos levam os jovens a viver entre pares, segundo uma cultura que lhes é própria e susceptível a variações de moda e às mais diversas manifestações socioemocionais. Essa é a construção dos adultos para a adolescência, afirma Epstein. Resolver o problema consiste, então, em desconstruí-la.

Egon Schiele, Zwei sich umarmende Frauen, 1911

I.1 – O que é a adolescência para a psicanálise?

Tanto para Freud quanto para Lacan, a puberdade representa uma escansão sexual, um corte no desenvolvimento da personalidade. O tema central do terceiro ensaio, de Freud, antes referido, é este: quando a sexualidade tem início no período púbere, há uma supressão da diferença entre os sexos, a abolição das predisposições à posição feminina ou à posição masculina, o que implica consequências significativas para a sexualidade, que passa a incluir o outro sexo.

Essa supressão é um fato plenamente observável nas meninas. Elas, que, desde muito cedo, bancam a mulher e, para tanto, adotam uma posição adulta, demonstrando precocidade em relação à posição sexual, apresentam, no período púbere, atributos essencialmente masculinos. Toda a preparação presente no seu jogo lúdico – cuidar de bonecas, fazer “comidinha”, ir ao shopping, resolver problemas pelo celular, levar o cachorro ao pet shop e outros –, que constitui um exercício da posição feminina, desaparece, na puberdade, por trás de uma reivindicação viril.

No que concerne aos rapazes, em sua condição de meninos, sempre “às voltas com os mais inflamados tormentos da infância”, o adulto intromete-se marcando a puberdade. A propósito, considere-se o exemplo, reportado por Lacan, do teenager André Gide: aos 13 anos de idade, ele prometeu a si mesmo proteger sua prima Madeleine, de 15 anos, portanto dois anos mais velha que ele. Esse acontecido expressa a imiscuição do adulto na criança, a antecipação da posição adulta no menino.

Ainda na perspectiva da eliminação da diversidade entre os sexos na puberdade, deve-se atentar ao fato de que, nessa faseo narcisismo se reconfigura. É importante, pois, verificar os modos de articulação do Eu Ideal e do Ideal do Eu no desenvolvimento da personalidade, tal como elaborado por Freud, em “Introdução ao narcisismo”, e por Lacan, tanto no esquema R quanto ao longo de O Seminário, Livro 3, As Psicoses.

Bojan Jevtić, Kiss, 2015

Miller convida, então, seu leitor a precisar toda a mutação que ocorre na puberdade ̶ ou seja, a supressão da diferença entre os sexos, pela antecipação da posição adulta e pela reconfiguração do narcisismo.

I.2 – A contemporaneidade da adolescência

O que há de novo sobre a adolescência? O novo pode ser lido em função dos impasses dos adolescentes diante do individualismo democrático resultante da derrocada de ideologias e do enfraquecimento do Nome do Pai. Como se sabe, esse enfraquecimento tem como efeito uma desorientação, antes garantida pela ordem simbólica. No texto em discussão, Miller extrai de estudos clínicos sobre a adolescência produzidos recentemente por integrantes da AMP, os principais sintomas da adolescência no momento atual, de que trato a seguir.

  1. A procrastinação

    A procrastinação da adolescência não é um sintoma novo. No século passado, mais precisamente em 1923, Siegfried Bernfeld já a sinaliza e, neste século, Robert Epstein, já referido, bem como Philippe La Sagna, nosso colega da AMP, retomam esse tema. Este último afirma que, na adolescência, há “um sujeito, que está diante de várias opções possíveis e que as coloca um pouco à prova”.

    Miller relaciona tal conduta dos adolescentes à incidência dos aparelhos e instrumentos digitais, que se traduz numa singular extensão do universo dos possíveis. Há uma multiplicação do elemento do possível, das escolhas possíveis de objetos, que devem ser aferidos para se saber qual o melhor. Tal aferição pode, no entanto, se tornar uma indecisão infinita, cujo efeito implica o adiamento de qualquer opção para o mais tarde possível. Assim, conclui ele, a própria adolescência é uma procrastinação em relação à escolha de objetos.

  2. A autoerótica do saber

    A incidência do mundo digital curto-circuita a mediação do adulto no que diz respeito a acesso ao saber, que não está mais no professor ou nos pais, mas no celular que os adolescentes trazem no bolso ou em outros instrumentos digitais que eles têm à sua disposição. O saber não é mais do Outro nem relativo a desejos dele. Assim, não mais é preciso seduzir, ser obediente ou ceder à exigência do Outro e o saber passa a incluir alguma atividade, de preferência autoerótica.

  3. Uma realidade imoral

    Em outros tempos, os ritos de iniciação enquadravam o acesso à adolescência num registro sagrado, místico. Hoje, porém, os progressos da cogitação pubertária; o uso do pensamento abstrato, que, em linhas gerais, é a capacidade de pensar sobre coisas não concretas – como o amor, o futuro e as regras morais – e de estabelecer hipóteses sobre fatos imaginários, permite aos adolescentes avaliar diferentes alternativas e optar por aquela que mais lhes convém. Segundo Piaget, essa é uma característica dos jovens a partir dos 12 anos de idade.

    Marco Focchi, nosso colega da AMP, em um estudo sobre a adolescência, observa que, presentemente, os pensamentos abstratos conduzem à desidealização oriunda da queda do grande Outro do saber. A propósito, recomendo a todos assistir ao vídeo Aspirational – Kirsten Dunst Selfie Short Film Called Aspirational, de Matthew Frost, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=rwDbOmPQNx0, que é um exemplo desta desidealização, na atualidade.

    Consequentemente, não há sublimação, investimento da libido no saber valorizado pela cultura; em vez disso, observa-se uma “realidade degradada e imoral”. Como afirma Miller, esse aspecto encontra-se na origem das teorias do complô, que, por sua vez, incitam ampla adesão de estudantes e universitários. Tal adesão é indicativa do Outro com que os adolescentes têm que se haver ̶ um Outro degradado e nocivo, um Outro mau. A realidade imoral, portanto, concerne ao Outro do complô ̶ ou seja, a uma desconfiança paranoica em relação ao outro, visto como aquele que tem intenção de destruir o sujeito.

  4. Socialização sintomática

    Hélène Deltombe, também nossa colega da AMP, em O inconsciente da criança, obra recentemente publicada, ao estudar os sintomas que se articulam ao laço social ̶ entre eles, o alcoolismo, a anorexia/bulimia, a delinquência, o suicídio ̶, demonstra que tais sintomas podem se tornar, na adolescência, fenômenos de massa. Essa socialização do sintoma indica que a socialização dos adolescentes pode acontecer de forma sintomática, marcada pela pulsão de morte.

  5. “Outro tirânico” ou quando as demandas do Outro são tomadas como exploração, como ordens superegoicas

    Daniel Roy destaca duas formas de presença do Outro tirânico na vida dos adolescentes: de um lado, a demanda do Outro familiar ou escolar é recebida por eles como um imperativo tirânico; do outro, durante momentos de crise provocadas por adições, os pais e os educadores, na tentativa de protegê-los, instauram regras tirânicas. O autor enfatiza que a interpretação do desejo do Outro familiar ou escolar e o entendimento do desejo da sociedade de tiranizá-los impõem uma autoridade brutal aos adolescentes.

    Miller destaca, a propósito, os trabalhos de dois outros colegas nossos da AMP, que estudam a ocorrência na adolescência de fenômenos sintomáticos decorrentes de mutações da ordem simbólica e do declínio do Lugar do Pai.

  6. A destituição da “tradição”, que afeta, também, os pais

    Vilma Coccoz, de Madri, estuda casos em que os pais se fazem amigos de seus filhos, apenas porque já não sabem mais como ser pais, como exercer a função do Outro que orienta.

  7. Déficit de respeito

    Lacadée, de Bordeaux, destaca a “demanda de respeito” dos adolescentes como uma busca desarticulada do Outro. Ninguém sabe quem pode satisfazer tal carência, pois não há suposição no Outro. Miller traduz essa demanda dos adolescentes nesta frase interjetiva: “Como seria bom ser respeitado por alguém que respeitássemos!” E observa que esse lugar – o de quem merece respeito – está vazio.

II – A adolescência na clínica do parlêtre

As mutações da ordem simbólica – tema de estudo dos últimos congressos do Campo Freudiano –, o declínio do patriarcado ou a perda de potência da voz do Pai associam-se à quebra dos constrangimentos naturais promovida pela ciência, à medida que esta passa a manipular a procriação, a transmissão de saberes e o saber fazer.

Essa interferência da ciência no campo do saber acarreta, por via de consequência, a perda dos registros tradicionais, que ensinavam o que convinha fazer para ser homem ou mulher. Tais registros advêm tanto de religiões quanto do common decency – ou seja, a decência que, comum a todas as classes sociais, orientava as pessoas no sentido de como ser “uma boa moça” ou “um bom rapaz”.

Katsushika Hokusai. One Hundred Tales (Hyaku monogatari), 1830

Segundo Miller, a “tradição”, no ensino de Lacan, designa a religião judaico-cristã. As mutações da ordem simbólica pelo discurso da ciência vêm destruindo, portanto, as tradições dessa religião, deixando um vazio no lugar. É nesse vazio que, bruscamente, se inscreve outra “tradição”: a do Islã, que, então disponível no “mercado”, permanece intocada diante das mutações na ordem simbólica que ocorrem no Ocidente e chega ao mundo ocidental, tornando-se acessível a todos por meio da divulgação e da globalização promovidas pelos diversos canais de comunicação contemporâneos.

O que Miller assinala é que o Islã, por não se deixar intimidar pelo discurso da ciência, estabelece um meio de controlar a relação sexual e, assim, organiza o laço social sobre a não relação. Dessa forma, estatui o que é preciso fazer para “ser homem, para ser mulher, para ser pai, para ser mãe digna desse nome” . Enfim, a “tradição” islâmica não vacila em instruir, em propor normas que ordenam os sexos separadamente e de maneira altamente diferenciada. Cito Miller:

Ele [o Islã] faz da não relação um imperativo que proscreve, que proíbe as relações sexuais fora do casamento e de uma maneira muito mais absoluta que nas famílias, que são criadas com referência a outros discursos, em que, hoje, tudo é laxista, permissivo.

Na tradição do Islã, Alá não é um pai, é o Um absoluto, sem dialética e sem compromisso; é o Deus Um e único, que não “dá brecha” para historietas de romance familiar.

Em face da desorientação promovida como efeito do saber da ciência, o Islã desponta para os adolescentes como uma “boia de salvação” com vistas à organização do laço social com a não relação. Miller enfatiza que a “tradição” islâmica poderia, inclusive, ser vislumbrada como uma solução para o problema do corpo do Outro, não fosse o desvio a que deu origem: o Estado Islâmico. Eis o empecilho levantado por ele quanto a essa “tradição”: o Estado Islâmico é um discurso do Mestre que se apoia no Islã, mas implica consequências altamente destrutivas.

II.1 – A questão fundamental do corpo do Outro

Neste ponto, Miller retoma o terceiro ensaio de Freud sobre as transformações da puberdade e ressalta o problema da transição do gozo na adolescência. E aponta que, para Freud, no momento da puberdade, há uma mudança de estatuto do modo de gozo, que passa da satisfação autoerótica para a satisfação copulatória.

De acordo com Lacan, porém, isso não acontece. Considerando a proposta freudiana de que, nessa fase, todas as pulsões parciais ligadas às zonas erógenas se unificam em direção a um único objeto exterior, ele adverte que tal posicionamento é uma ilusão, que se conecta com toda uma ”mitologia do par perfeito”, em que os gozos se correspondem, juntamente com o amor e outras manifestações sentimentais. Por isso, o gozo é essencialmente autoerótico: goza-se da fantasia. Não há gozo do corpo do Outro, só o do próprio corpo. Mas a ilusão imaginária de se gozar do corpo do Outro embala o império das imagens.

Esse esclarecimento permite a Miller introduzir uma questão fundamental e, a meu ver, de grande atualidade: Pode o corpo do Outro se encarnar no grupo? O grupo, a seita, não dá certo acesso a algo do tipo “Eu gozo do corpo do Outro, logo faço parte”?

Keith Haring, sem título, 1984

Cantar junto não cria certa harmonia, não eleva o espírito, não é da ordem da sublimação? Assiste-se, no momento atual, a significativa proliferação de grupos: os chamados de “células religiosas”em que se pretende cultivar o espírito; os de mulheres, mães que desistem da vida matrimonial e dizem preferir o casamento com Deus para sustentar o cuidado com a prole; os de jovens que se reúnem, também em células, para orar, mas em que prevalece a prática da exclusão do diferente com base em critérios socioeconômicos. Há sublimação nesses grupos? A sublimação, informa Miller, não satisfaz diretamente a pulsão. Trata-se, então, de uma nova aliança entre a identificação e a pulsão? Essa questão parece-me central e concorde com a proposição de Lacan de que o desejo do Outro determina identificações entre sujeitos. Resta, assim, a pulsão que não se satisfaz por essa via.

Seguindo esse raciocínio, Miller interpreta as cenas de decapitação que o Estado Islâmico divulga pelo do mundo. Como ele esclarece, tais cenas se tornaram um bom marketing para a adesão de novos seguidores, como uma forma de aliança entre a identificação e a pulsão agressiva. Não se trata, de forma alguma, de sublimação. Nesse caso, está-se diante do discurso do Mestre:

Em S1, o sujeito identificado como servidor do desejo de Alá se faz agente da vontade. […] S1 é o carrasco; S2, a vítima ajoelhada; a flecha de S1 em direção a S2, a decapitação. Eu satisfaço essa vontade de morte.

No Cristianismo, impõe-se a “vontade de castração inscrita no Outro”, pois a relação é a de pai e filho. O processo resultante leva à castração do próprio sujeito, ao que Lacan descreve como o narcisismo supremo da causa perdida: “Eu me mortifico, eu me privo, eu me castro e eu sou grande porque sou devotado à causa perdida”.

No Estado Islâmico, não há pai nem filho. Trata-se, essencialmente, de vontade de morte inscrita no Outro. A relação está, portanto, a serviço da pulsão de morte do outro: “Eu corto a cabeça do outro e eu estou no narcisismo da causa triunfante”.

Nesse contexto, a proposta da desradicalização dos sujeitos submetidos ao discurso do Mestre revela-se uma ilusão. Não é possível descontruir essa construção, porque não se trata de semblante. Essa construção está ligada ao real do gozo.

Concluindo, afirma Miller: “Como eu acho que estamos lidando com o real, a conclusão política a tirar dessa consideração psicanalítica é que, face ao discurso do Estado Islâmico, a única maneira de acabar com ele é vencê-lo”.

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