Skip to content

Entrevista

image_print
Richard Butler, noisymouth, 2013
Hélène Deltombe[1]e Damasia Amadeo Freda[2]

A adolescência, tema ao qual o Campo Freudiano nos convida ao trabalho, nos é apresentada por Freud como um período traumático em que o jovem é colocado à prova: alguns enigmas de sua existência se atualizam. Nesse turbilhão e por vezes desespero, há uma abertura para novos arranjos e ajustes subjetivos necessários. Novos sintomas surgem como resposta ao real em jogo nesse momento de crise, delicada transição, que produz um despertar, como nos ensina a literatura.

Espaços de conversação tornam-se fundamentais pois cada saber abordará esses sintomas a partir do modo como define o real.

Investigar o adolescente hoje nos permite encontrar duas autoras, duas psicanalistas, que nos brindam cada uma com seu livro, referências para nossas pesquisas.

A primeira, Hélène Deltombe em Les enjeux de l’adolescence nos permite entrar em seu consultório, ela nos dá um testemunho de sua clínica com os adolescentes. Apesar dos impasses e dificuldades com o corpo e com a linguagem, o jovem – que está num momento decisivo entre a infância e uma aposta para o futuro -, pode através da palavra, no encontro com essa psicanalista, visitar a trama de sua existência e descobrir nela uma via singular de seu desejo.

A segunda autora, Damasia Amadeo Freda, em seu livro El adolescente actual, nociones clínicas, também nos demonstra sua experiência como psicanalista. Ela nos ensina como os adolescentes são os que mais manifestam o declínio da autoridade e do saber, e também nos revelam as temperaturas das modificações do amor: seus sintomas são paradigmas do real de nossa época.  Essa clínica, mais  que qualquer outra, nos coloca diante questões e invenções. As duas psicanalistas em seus livros transmitem diversos índices de que há algo novo na adolescência. E como a psicanálise é viva, atenta ao que faz exceção para cada sujeito pois não há nenhum método ou técnica válida para todos. Podemos retirar deles a lição de como é preciso – aos parceiros dos adolescentes -, não ceder sobre seu desejo e que uma aposta deve ser, a cada encontro com o jovem, renovada. Neste sentido, são livros que certamente vão interessar aos profissionais de disciplinas diversas!

CIEN Digital: Quais os desafios  da adolescência?

Hélène Deltombe: Para além dos traumatismos que cada um pode encontrar em sua existência – os acontecimentos marcantes, as palavras que ferem, as relações que perturbam, as violências – a adolescência é em si um período traumático pois se trata de arrancar-se de sua família e de preparar seu futuro. O adolescente, na incerteza e na angústia da solidão, é tomado pelos conflitos íntimos entre ideal, procura do amor,  vontade  de gozo, e ele se sente desorientado, o que favorece a formação de sintomas e as passagens ao ato. E ainda mais que, na puberdade, as pulsões se assinalam com violência e fazem vacilar o equilíbrio que o sujeito havia, mais ou menos, conquistado durante a infância, mas que era em parte imaginário, e não é mais suficiente para responder às questões essenciais: como deixar seus pais, como encontrar o Outro sexo, como assumir sua própria sexualidade, o que é o amor?

Marcel Broodthaers, La Tour Visuelle, 1966

Os adolescentes dos dias atuais  referem-se menos às gerações precedentes que aos seus semelhantes, aos quais preferem se conformar sob o modo de identificação, não somente pelos gostos comuns, formas de culturas compartilhadas, as modas, mas também por sintomas que correm o risco de não serem considerados como tais, nem pelo seu entorno nem por eles mesmos, enquanto dão ao adolescente o sentimento de uma identidade comum que os conforta nessa via.

A adolescência não é mais a revolta contra o pai que ela foi há tempos, os sintomas não se desenvolvem mais por identificação a um traço do pai, mas tomam a forma de epidemias, sobre o modo de identificações recíprocas no seio de uma faixa etária.

Certas adicções, como os jogos eletrônicos, são um exemplo; o alcoolismo e a toxicomania, que comportam o risco de um processo de marginalização, são um outro.

Os sintomas correm o risco de serem reduzidos a índices de pertencimento a uma faixa etária em lugar de se revelar como um apelo à escuta de um sofrimento íntimo.

Esse é, entretanto, desde sempre, o papel de um sintoma, na condição de que o adolescente não se perca numa procura desenfreada de gozo como único recurso contra a angústia, se abrigando em um grupo identitário que lhe evita de se situar como sujeito tendo questões para resolver, para discernir seu desejo.

CIEN Digital: O que um adolescente pode encontrar em um psicanalista?

Hélène Deltombe: Hoje, o adolescente está muito só em sua luta para encontrar seu lugar na sociedade. Com a falta de ritos de iniciação, o encontro com um psicanalista pode se constituir para ele em uma chance de encontrar o apoio transferencial necessário para se engajar na via de seu desejo.

Nesse encontro, o adolescente pode formular o que faz traumatismo para ele: os dizeres de seus pais, as pulsões que o transbordam, o peso do gozo do Outro. A questão que se coloca em cada caso é a de saber se subsistem marcas indeléveis, para encontrarmos uma forma de reduzir o peso mortífero; ou ainda, como transformar esse impacto por um esclarecimento mais justo sobre a existência, segundo os significantes do sujeito.

O discurso analítico suscita uma palavra própria para restituir ao sujeito sua parte de verdade e um saber sobre seu ser a partir do surgimento das formações do inconsciente – lapsos, atos falhos, sonhos. É uma palavra que segue o ritmo próprio do sujeito a fim de favorecer o encontro do real com a linguagem. A aposta a ser feita é aquela de uma entrada decisiva no laço social segundo a singularidade de seu desejo.

O real do gozo é esvaziado pelo processo de palavra que oferece o dispositivo analítico, que permite à linguagem furar o real, fazer efração no real em jogo para o sujeito em relação a um traumatismo, ou face ao gozo do Outro, ou ainda, quanto a seu masoquismo ou da pulsão de morte em jogo.

Quando o sujeito está em impasse com uma violência que não cessa de transbordar, o apelo pode ser feito à psicanálise para lhe permitir  se inscrever na linguagem, para tratar suas relações com os outros de um modo simbólico em vez de permanecer em um nível imaginário, onde as paixões se desencadeiam.

Ana Cristina César, do livro A teus pés, 1982

CIEN-Digital: O que a psicanálise aprende com os adolescentes?

Hélène Deltombe: Podemos compreender que seja difícil para um adolescente resistir aos chamados de identificação aos outros adolescentes, a vinculação a um grupo social efêmero quando ele desempenha o papel de uma tábua de salvação. Na puberdade, as pulsões se assinalam com violência e fazem vacilar o equilíbrio que o sujeito tinha mais ou menos encontrado durante o período de latência. Se o grupo que o adolescente pertence privilegia as experiências de gozo, acontece que o adolescente descobre a dimensão sexual na brutalidade das confrontações e das passagens ao ato cuja violência o afunda na confusão. São momentos de desaparição do sujeito que colocam em perigo sua relação com a linguagem.

Cada adolescente tem a necessidade de descobrir os laços possíveis  – diferentes para cada um – entre real, imaginário e simbólico, afim de viver uma sexualidade que favoreça a realização de si. A questão é de tentar « fazer a coalescência, por assim dizer, dessa realidade sexual e da linguagem », bem como Jacques Lacan o indica por essa fórmula concisa em sua Conferência em Genebra sobre o sintoma em 1975. Dessa forma, não é o pai enquanto tal que é o ator principal que permite ao adolescente se emancipar, mas muito mais seu engajamento na linguagem. O essencial é conseguir enlaçar o real em jogo com o imaginário e o simbólico através da linguagem.

CIEN-Digital: Quais diferenças a senhora encontrou entre o adolescente de hoje e o adolescente dito freudiano?

Hélène Deltombe: O processo de identificação ao semelhante  substituiu a identificação ao pai, tradicionalmente no centro da construção da personalidade. Classicamente, observava-se o adolescente se desligar da admiração pelo seu pai liberando-se de sua dependência,  identificando-se aos traços de sua personalidade. Esse processo não é mais possível em uma sociedade onde o pai não é mais uma figura exaltada, inclusive na infância.

Jean Cocteau, Porte du ciel, 1972

Até mesmo, o período do declínio paterno se foi. Não são mais os pais que hoje são derrubados, são os jovens que são excluídos. Não há acesso ao saber para um número crescente de jovens, exclusão do trabalho com o aumento do desemprego. Nota-se a ignorância, e mesmo o analfabetismo de um número importante de adolescentes, um aumento de desigualdades que resultam em um processo de segregação que tem cada vez mais precocemente lugar.

Constatando esse fenômeno, Jacques Lacan tirou as consequências subjetivas, sobre o plano teórico como sobre o plano clínico. Ele também indicou a conversão necessária a se fazer sobre o plano clínico passando de uma situação social onde prevalecia o Nome-do-Pai, a uma sociedade onde possam ser eficientes os Nomes-do-Pai, quer dizer, significantes, instituições, elementos de cultura capazes de constituir apoios fundamentais para os adolescentes.

Nessa conjuntura de carência da função paterna, os sintomas tomam uma nova forma. Nós os chamamos sintomas do laço social porque isso toca o laço com os outros: alcolismo, toxicomania, bulimia, anorexia, delinquência, suicídios, padrões de vestuários, modos de comportamentos, modos de expressão que acentuam os fenômenos de ruptura e de processo de marginalização dos adolescentes.

O analista não tem outra alternativa que aquela de se deixar guiar por essa demanda paradoxal, a de encontrar o bem-estar enquanto a forma de adicção adotada pode levar à morte. O desejo do analista não pode encontrar essa via senão articulando-se a essa procura, trata-se « de fazer do gozo uma função e de lhe dar sua estrutura lógica ».[3] Apesar do paradoxo que comporta uma demanda, trata-se de confiar na palavra, pois o processo da palavra no dispositivo analítico permite aos significantes surgirem. Há uma lógica do encadeamento do significante que vai ter prioridade sobre sua vontade de gozo.

« A linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo. É dessa função de furo que a linguagem opera sua tomada sobre o real. Não há verdade possível senão essa de esvaziar esse real »[4]

CIEN-Digital: O que há de atual na adolescência?

Richard Serra, instalação Ramble Drawings, 2015

Damasia Amadeo Freda: Há determinados comportamentos que falam de uma complexidade, de um agravamento na adolescência atual. Para tomar uma só via, podemos ver uma  gradação de comportamentos que, em definitivo, apontam para o mesmo. Por exemplo, as lesões que o adolescente inflige em seu corpo – as auto-lesões -, são marcas, pequenos traços, signos de algo que não sabemos bem, nem os psicanalistas, nem eles mesmos, signo do que é. Logo, estão também, o assédio ao semelhante e por pura diversão; um assédio que impacta o corpo do outro e que tem um nome: bulling. Que se trate de um acosso virtual ou de um ataque real, o fim é o mesmo: produzir dano no outro. Em outro extremo, temos a imolação de adolescentes na radicalização religiosa, a qual consiste na destruição total do corpo, o de quem se imola e o do outro ao qual se ataca com esse ato, um outro multiplicado e anônimo nesse caso.

Evidentemente, temos que diferenciar cada um desses comportamentos, mas todos tem um denominador comum: o dano do corpo. Há aí um índice de algo novo na adolescência que bem poderia se enquadrar dentro das características próprias do registro imaginário que, sabemos bem, hoje predomina sobre o registro simbólico. No caso da radicalização, pareceria tratar-se, também, de um chamado desesperado e extremo à re-instauração da lei, mas uma lei impiedosa e feroz.

É claro que também há outras características da adolescência atual, mas me interessa colocar em relevo essas porque são um signo da mudança de época e que os adolescentes encarnam lamentavelmente.

CIEN-Digital: Em sua experiência clínica, os adolescentes se nomeiam a si mesmos “adolescentes”?

Damasia Amadeo Freda: É interessante sua pergunta, e teríamos que estar mais atentos para ver se eles se nomeiam “adolescentes”. Não me é particularmente presente escutá-los falarem de si mesmos como adolescentes. Por exemplo, defender um direito ou justificar uma ação invocando esse nome. Por outro lado, é certo que a sociedade os nomeia “adolescentes”, é certo que o Outro os enquadra dentro desse nome. Mas é certo que dentro dessa categoria – que é uma nomeação -, se incluem os Nem-Nem, os diferentes nomes das tribos urbanas ou de manifestações que, por serem desconhecidas e recentes, rapidamente se catalogam com nomes de síndromes novas, como é o caso da afluenza. Trata-se de sub-nomeações dentro de uma nomeação maior que é a adolescência mesma.

Hernan Bas, Wine River (Fountain of Youth), 2010

É importante poder indagar com maior precisão sobre essa temática, porque vai na linha do que lhes dizia anteriormente a respeito do chamado a uma ordem. A nomeação é também uma forma de ordenar elementos semelhantes, é sem dúvida uma tendência ao ordenamento, e temos que estar atentos a sua vinculação e a sua instalação como possível substituição frente ao declínio de outra ordem, a patriarcal.

CIEN-Digital: O que é a adolescência para eles?

Damasia Amadeo Freda: A clínica e os exemplos anteriores mostram que para eles é um momento muito difícil, muito mais complexo do  que em outra época, porque está marcado por uma grande desorientação, da qual podem derivar ações erráticas, em omissões, mas também em soluções extremas, como é o caso da radicalização religiosa.

CIEN-Digital: E para a psicanálise, o que é um adolescente?

Damasia Amadeo Freda: Fundamentalmente, é a possibilidade de interrogar e investigar sobre as modificações da subjetividade da época. A adolescência de hoje está  nos dando a temperatura de um tipo de subjetividade muito mais abrangente do conjunto social. A adolescência nos dá a idéia de uma desorientação subjetiva que busca desesperadamente um norte, o qual não é tão certo que se possa encontrar facilmente.

Com respeito ao adolescente em si, a psicanálise pode ser um bom instrumento para ajudá-lo a encontrar uma orientação mais de acordo ao próprio desejo. Porque os desejos, os genuínos, muitas vezes se encontram aprisionados entre as palavras e por tal motivo não encontram uma boa forma para se expressarem. Então é questão de lhes dar a palavra para que esses desejos se expressem e encontrem melhor rumo.

Entrevistas e Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Sérgio de Mattos

 


Notas:
1  Hélène Deltombe é psicóloga, psicanalista, membro da École de La Cause Freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanalise (AMP).
2  Damasia Amadeo de Freda é psicanalista, membro da Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
3  Miller J.-A., « Une lecture du séminaire D’un Autre à l’autre », Revue la Cause freudienne n°65, Paris, Navarin, 2007, p.105.
4  Lacan J., Le Séminaire, Livre XXIII, Le sinthome, Paris, Seuil, mars 2005, p.31.
Back To Top