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Uma prática na escola – Efeitos do encontro com o CIEN

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Imagem: Alighiero Boetti
Mirta Fernandes

O encontro com o CIEN permitiu situar e nomear uma questão que rondava um trabalho de psicanalise aplicada, que vem sendo desenvolvido há alguns anos em uma instituição de ensino, Escola Alfa, a partir de demandas de palestras e grupos de conversa com alunos, professores, coordenadores e pessoal de apoio.

O ponto estrutural dessa prática com a equipe escolar orientou-se, desde o início, pela criação de um espaço de fala, escuta e reflexão acerca das angústias, dos impasses e questões que comparecem no processo de educação, envolvendo as relações entre pais/escola/alunos/professores, coordenadores e todos os outros profissionais que compõem o espaço escolar, incluindo o setor administrativo.

Não se tratava de ensinar psicanalise aos professores, mas evidenciar na prática educacional o processo de constituição de uma subjetividade e a função do professor como elemento fundamental nesse processo. Elemento externo à família, que pode dar lugar a novas formas de vínculos a partir de enlaçamentos diferentes daqueles dos padrões familiares.

Ao participar das reuniões mensais do CIEN e do laboratório “diga aí escola” (2016), o significante “conversação” interroga a analista. Como se distingue uma “conversação” de uma supervisão, de uma interpretação, de uma intervenção orientadora ou de uma transmissão de conceitos de uma disciplina para outra? Qual o lugar do psicanalista nesses encontros?

A escola em questão esperava da psicanalista uma resposta ou a psicanalista se colocava numa posição de saber, de orientadora? De que orientação se tratava? A introdução dos conceitos teóricos da prática da psicanálise na clínica pode ocorrer nesse espaço? Questões que já se formulavam e que encontraram eco e interlocução a partir desse encontro com o CIEN.

A interrogação que o significante “conversação” provocou produziu uma maior atenção nas intervenções, evitando que comparecessem os saberes universais, soluções, e que se sustentasse um ponto de enigma. Um ponto de opacidade, de incógnita, que ao circular permitisse e provocasse, em cada um, questões, dúvidas, podendo dar lugar a invenções singulares.

O recorte a seguir refere-se a um dos encontros onde compareceram queixas a respeito de uma turma do ensino fundamental 2. O que incomodava a todos, professores e coordenadores, era uma separação da turma em pequenos grupos que se segregavam entre si, criando um clima hostil que impedia o convívio e o processo de ensino. Não sabiam o que fazer.

Surge, durante uma reunião com a direção e coordenação pedagógica, a proposta de algumas “reuniões com a turma, nos moldes da reunião da coordenação”, ou seja, de uma conversa livre com a psicanalista e a professora coordenadora do segmento, de forma que escutassem e dessem um lugar à fala desses jovens.

Apresentada a proposta à turma, surgem inicialmente os “porquês” dos encontros, e a resposta vem dos próprios alunos trazendo questões que os incomodavam. Não era o processo de segregação apontado pelos profissionais que os incomodava. Os grupos que se constituíram na turma se comunicavam através de grupos privados no whatsapp.

Queixavam-se de uma menina em particular, Maria, como pivô dos problemas de relacionamento na turma e referiam-se ao fato de Maria mandar cartas e mensagens individuais no whatsapp. Nessas mensagens, Maria se desculpava por sua atitude de acusar os colegas, queixando-se de estar sendo rejeitada e prometia não mandar mais cartas. Essas cartas e bilhetes, no entanto, não cessavam. Interrogados sobre o que os incomodava, cada um responde de uma forma. Na medida em que cada um fala por si, surgem as posições individuais, diferenciando-se dos blocos que constituíam nos grupos de whatsapp.

Da posição que Maria se colocava, excluída e vítima, os colegas interrogam se não seria ela mesma que se excluía com sua atitude. Maria mente, inventando situações como, por exemplo, a de que a mãe está com câncer. Ana Clara diz que ela é um “empecilho”. Rayane a acolhia, era muito amiga, mas um dia Maria mandou uma carta, acusando-a de não ser sua amiga, e Rayane deixou de falar com Maria. Desde então, começaram as cartas de desculpa por seu comportamento agressivo, que não se modificava.

Convocam Maria a falar, já que se mantinha calada todo o tempo. Maria, com dificuldade, fala de sua história de vida, de ter vivido em abrigo, sofrido muito em outra escola, sendo discriminada por sua origem e cor de pele, negra. Faz menção ao incidente que deu início a essas cartas, e diz: “as cartas são uma maneira em que eu me sinto bem. Tenho medo de magoar as pessoas, assim eu escrevo” (…) “Eu não consigo parar de mentir…eu não controlo isso” (…) “Na outra escola eu precisava mentir para ser aceita… sofria bullyng”.

Após a fala de Maria, surgem queixas de Lucas, indicando que ele seria um outro excluído na turma. Sempre que se formavam grupos de trabalho, Lucas e Maria ficavam sem grupo.
A coordenadora que participava do encontro tomou para si, sem combinação prévia, a incumbência de anotar a reunião. A partir de suas anotações, recorto as intervenções da psicanalista:
Em que situação a turma se vê excluindo Maria e Lucas?

Felipe responde: “Maria tenta se enturmar escrevendo cartinhas e Lucas ri de tudo e não fala de seu desconforto. Lucas chamou uma menina de vadia e depois disse que não sabia o isso significava.”

Alguns tomam a posição de defender Maria e outros, Lucas, buscando justificar suas atitudes, apelando para uma verdade sobre as situações, sobre as falas de cada um, sobre os fatos. Também insistem que Maria fica usando sua história pessoal para justificar tudo, e Lucas se faz de bobo, como se não soubesse de nada, fingindo inocência.

“Não há uma história verdadeira… cada um tem sua própria versão sobre o que acontece…”, diz a psicanalista Ana Clara insiste em que Maria o tempo todo fica falando e revivendo sua história no abrigo.

“Todos temos nossas fragilidades…e será que não pensamos todos a partir de nossas histórias?”- nova fala da psicanalista ao final do encontro.

Num segundo encontro, relatam alguma mudança em relação a Maria. Mudaram também os lugares onde se sentavam, misturando-se entre si. Começaram a aparecer queixas em relação a outros colegas e situações em que uns incomodavam aos outros.

Esses encontros sustentaram um espaço de interrogação, um espaço de fala e de escuta de cada um, permitindo que a fragilidade de Maria fosse vista e respeitada como sua diferença e deslocando o “mal” concentrado em um sujeito para todos. Como cada um lida com o seu próprio “mal”? Dessa forma, Maria pode se perguntar sobre sua certeza de ser rejeitada, o que a atormentava, e alguns puderam falar de sentimentos recíprocos.

A posição da analista, orientada pelo dispositivo da conversação, promove uma circulação das falas individuais pelo espaço comum. Mais além do mal entendido da comunicação, a conversação convoca uma associação livre entre vários. Fala que pode ser acolhida como a manifestação de um pensamento singular que pode ou não enlaçar-se a outros. Não se trata de uma identificação de um com um outro semelhante, mas com a incógnita que o outro é para cada um e a própria incógnita que cada um é para si mesmo.

A conversação se distingue de uma intervenção clínica na medida em que não visa interpretar o sujeito. As intervenções comparecem como interrogações, visando um deslocamento das identificações, dos efeitos grupais que aprisionam o sujeito. Tal experiência de trabalho, trouxe-me como questão a posição do analista nas conversações. Poderíamos aproximá-la a do mais-um no dispositivo do cartel? Operar uma possibilidade de trabalho entre vários, a partir de um vazio de saber, permitindo a cada um, no encontro com o outro, conduzir sua questão a partir de sua singularidade.

O dispositivo da conversação evidenciou, como efeito dessa experiência, como cada um pode se localizar a partir de um impasse que se apresentou e dar algum tratamento ao seu mal-estar no convívio com os outros.

Também nas reuniões de coordenação, a dinâmica das reuniões sofre o efeito da experiência no laboratório do CIEN. Os professores passaram a suportar a interrogação de seu lugar de saber, desobrigaram-se de responder e garantir verdades inquestionáveis. Esse imperativo pôde cair e então comparecer o reconhecimento de um saber singular, da criança, do jovem, do professor, dos pais, em cada um dos envolvidos na difícil tarefa de educar. A partir de março de 2017 a Diretora pedagógica e as coordenadoras do fundamental 1 e 2 passaram a participar do laboratório “diga aí escola”.

A transmissão de um ensino se dá ao abrir espaço para um desejo de saber e criação de novos saberes. O “não saber” pode comparecer sem representar uma ameaça à autoridade e ao saber de cada professor e cabe ao psicanalista sustentar com sua presença os desdobramentos e as surpresas que surgem desse encontro.

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