EDITORIAL Mônica Campos Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um…
Surpresas da inter-disciplinaridade
Laboratório Digaí-Escola – CIEN-Rio – Anna Luiza Almeida, Franciele Gisi M. de Almeida, Gricel Hor-Meyll, Mirta Fernandes e Vânia Brito Gomes
Realizamos três conversações com coordenadores, psicólogos, assistentes sociais e educadores de um Projeto Educacional que trabalha com internos do DEGASE – RJ. Pelo laboratório Digaí Escola participaram as psicanalistas Mirta Fernandes e Gricel Hor-Meyll.
A partir destas experiências, que nos pareciam descontínuas, com longos intervalos entre elas, e da dificuldade em extrair no laboratório o ponto de impasse que se colocava como limite aos profissionais do projeto, retomamos uma questão que nos interessava há algum tempo: como recolher depoimentos dos diferentes participantes de uma conversação? Quais os efeitos e consequências de uma experiência, do ponto de vista de um profissional de uma outra disciplina?
Instigados por essas perguntas, provocamos, após as conversações, um encontro com as coordenadoras do projeto, o que produziu uma reflexão sobre a prática no laboratório, a presença do psicanalista e os efeitos da experiência inter-disciplinar. Esse querer saber sobre os efeitos e consequências dessa experiência permitiu que não só pudéssemos retornar ao que havíamos recolhido e fazer uma releitura, mas que pudéssemos também formular a importância de algo que sustenta a função Laboratório no CIEN: a inter-disciplinaridade.
Na primeira das três conversações realizadas, os professores partem de uma queixa, a frustração com os resultados do trabalho, pois a maioria dos meninos que tem passagem pela criminalidade reincide e retorna ao DEGASE. Surgem várias queixas sobre os agentes socioeducativos que trabalham com os meninos, mas os educadores concluem que os agentes também sentem o “peso do sistema”. Tanto os meninos quanto os agentes ficam “desumanizados” por estarem encarcerados. Alguém lembra que eles, os educadores, estão lá para tentar desestruturar o sistema “por dentro do sistema”, mas o resultado é tão pequeno, diante de tanto investimento, que a sensação é de impotência. Até que alguém constata, com surpresa, que eles passaram a maior parte do tempo falando dos agentes. Neste momento, decidimos encerrar aquela conversação. Marcar a perplexidade e a surpresa é o corte que relança algo para o próximo encontro.
No segundo encontro, há tensão entre alguns educadores e a coordenação do projeto. Perguntam-se por que tantos educadores vêm deixando o projeto. Há um incômodo com essa saída, que, segundo uma das coordenadoras, ocorre sem que nada seja dito previamente, impedindo que se tente resolver as questões. Os educadores começam falando das dificuldades no trabalho dentro do DEGASE, mas passam a identificar dificuldades no projeto e surgem queixas sobre os privilégios de alguns educadores. A coordenação do projeto propõe uma nova reunião, sem a presença do CIEN, para que possam discutir estas dificuldades. A implicação da coordenação seria um efeito da conversação? Mais uma vez, irrompe algo surpreendente, que fura a consistência da coordenação, instaura um incômodo e a convoca a trabalhar as questões que emergiram.
O terceiro encontro foi on-line, já durante a pandemia, para tratar da angústia dos educadores com a situação dos internos, diante da impossibilidade de atuar, presencial ou virtualmente. Dizem que sem a presença deles, os jovens teriam ficado “sem nada”. Para sustentar algum vínculo, planejaram enviar cartas aos internos, mas, embora muitos educadores tivessem se comprometido, poucos escreveram. Um dos presentes diz que não considera a ação efetiva, e que deveriam se mobilizar pelo desencarceramento: “Só temos um tiro e não podemos errar”. Colocamos esse ponto em questão, será que só tinham mesmo um tiro? E por que não podiam errar? Ao final do encontro, decidiram seguir com a ideia das cartas e que todos seriam bem-vindos para ajudar. O rapaz que a princípio foi contra, diz que vai participar.
Esse ponto surgido ao final da terceira conversação parece condensar uma questão que circulou nos três encontros. Uma relação com o ideal de “salvar os meninos”, “mudar o sistema”, que, ao não se efetivar, os deixava frustrados, impossibilitados de reconhecer e valorizar a importância do empenho de cada um. Ao interrogar a certeza “só temos um tiro e não podemos errar”, abre-se a possibilidade de uma aposta nos efeitos possíveis do trabalho. A exigência idealizada de serem os “salvadores” dos jovens e o imperativo que se coloca com “não poder errar”, afrouxa-se. A intervenção nesse ponto permitiu que essa fala tão consistente pudesse ser furada, colocando um intervalo entre tudo e nada, abertura para que o desejo de enviar as cartas pudesse ser relançado. Tomando a palavra, os integrantes fornecem significantes que facilitam a localização dos ideais do grupo e do impossível em jogo, o que possibilitou a aposta em ações próprias como a escrita das cartas, para manter os vínculos e sustentar o desejo de um projeto possível.
No segundo tempo do trabalho no Laboratório, agora com as coordenadoras, localizamos pontos diferentes dos inicialmente identificados por nós. Uma delas observa que na segunda reunião havia ficado muito mal com a saída de educadores, que lhe parecia repentina, mas naquele momento percebia que talvez não houvesse mesmo uma escuta. Nesse encontro, revela-se aos integrantes do laboratório uma posição de mestria não identificada anteriormente, o que possivelmente fazia obstáculo e não nos permitia extrair os pontos de deslocamento das conversações. Percebem que algumas pessoas, em geral caladas nas reuniões internas, falaram nas conversações. Acham que, ao promover as conversações, a coordenação sinalizava interesse e cuidado com os educadores, dando lugar também às próprias dificuldades, o que produziu uma maior aproximação com a equipe.
O testemunho das coordenadoras revela a importância da inter-disciplinaridade não só nas conversações, mas também no a posteriori das elaborações no laboratório. O material recolhido pôde receber leituras e sentidos não só a partir de uma prática orientada pela psicanálise, mas também de outras práticas. Isso pôde produzir uma experiência singular, diferente para cada um. O querer saber mais sobre as consequências da conversação enlaçou ao laboratório às coordenadoras do projeto, permitindo que se decantassem outros efeitos da experiência.
O efeito surpresa, onde emerge o inesperado, diferencia a prática e a função da inter-disciplinaridade no CIEN, pela troca de experiências no encontro com outros profissionais que se ocupam do mesmo objeto de trabalho com referenciais diferentes. Guardar um lugar de desconhecimento, de abertura para o imprevisto também no Laboratório, parece fundamental para fazer avançar essa prática inter-disciplinar.