EDITORIAL Mônica Campos Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um…
Do impossível do furo à contingência de um parkour
Laboratório Brota – CIEN-MG – Cristiane F. C. Grillo e Nádia L. Lima
Uma demanda da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte referente à evasão escolar provocou a criação de um Laboratório do CIEN: Brota – juventude, educação e cultura. Iniciamos o trabalho com os adolescentes e os professores de uma escola localizada na periferia da cidade. O trabalho orientado pela psicanálise lacaniana não objetiva restaurar o vínculo do adolescente com a escola, atendendo a uma demanda da política educacional, mas aposta na abertura de um lugar de conversação sobre os impasses e os enlaçamentos possíveis entre os adolescentes, o saber e a cultura.
As conversações com os professores permitem que os docentes possam falar dos seus próprios impasses, da sua relação com um certo ideal educativo, mas também com o desejo de uma transmissão. Em uma das conversações, depois de um ano de trabalho, a diretora da escola nos diz que aprendeu muito no Brota, sobretudo que o adolescente é o que a gente vê nele. Ela traduz, à sua maneira, a colocação de Lacadée[1] sobre o risco mais grave que um jovem corre, o de ser aprisionado em uma nomeação predicativa que vem do Outro.
Os adolescentes são convidados a participar das conversações e de ateliês no Centro de Referência da Juventude (CRJ). Os ateliês, de artes visuais, circo, dança, escrita, design, gastronomia e teatro, se pautam pelo desejo e pelo saber dos adolescentes. As conversações alojam a palavra dos adolescentes, produzindo enigmas e deslocamentos. A equipe, constituída por alunos e professores de diferentes cursos da Universidade, como medicina, psicologia, educação, artes visuais, dança e letras, alguns deles participantes do laboratório do CIEN, se debruça sobre as falas e invenções nos ateliês e nas conversações, como forma de elaborar e de construir continuamente esse trabalho inter-disciplinar.
Alguns adolescentes participam dos ateliês e das conversações de um modo peculiar. João interrogou uma psicanalista sobre o motivo dela trabalhar com esses meninos difíceis. Ela respondeu que não os acha difíceis e ele acrescenta vivamente: por isso eu gosto de vir aqui. João trabalha nos sinais de trânsito, fazendo malabares. Ele participava pontualmente dos ateliês e das conversações, dizendo: já fiz, já conversei. Aprendemos com ele que seu tempo era o do sinal, fugaz. Os professores relatavam que esse menino que ficava nos corredores da escola, passou a entrar na sala de aula, ainda que não permanecesse durante todo o tempo proposto.
Felipe, inteligente e provocador, hesitava em falar sobre a família, especialmente sobre o pai, que estava preso. Na conversação, ele tecia uma história familiar fragmentada: relatava que alguns dos irmãos eram na verdade primos, filhos de um tio assassinado por um policial. Ele dizia que mesmo assim queria ser policial e também psicólogo, porque tem muito jeito para ajudar os outros. Contudo, Felipe tinha muitas dificuldades para fazer amigos e justificava: eu perco o amigo, mas não perco a piada. No teatro, ele escolheu representar o coordenador mais querido da escola.
Leo abordou uma psicanalista depois da conversação para pedir emprego: preciso de dinheiro para comprar casa, carro e moto. Ela perguntou sobre sua vida e ele respondeu que a vida dele daria um livro. Ela questionou se ele gostaria de fazer esse livro e ele propôs começar do início da sua vida. Ele disse que nasceu em Belo Horizonte e que o pai não teve coragem para carregá-lo no colo. Leo interrompeu seu relato nesse ponto dizendo que a maçã que ele havia comido pesava como uma pedra no seu estômago (os adolescentes haviam comido maçãs que faziam parte de uma exposição de arte). Na semana seguinte, na conversação, ele falou da sua infância, da cena de um assassinato em frente à escola e de como a mãe o carregou para transpor uma poça de sangue. Posteriormente, ao longo das conversações, ele esboçou um projeto para seu futuro: queria ter uma vida boa, para compartilhar com uma mulher e um filho. Não queria ser muito rico, nem criminoso, nem pobre. Apontou uma moto que desejava. Disse que queria uma vida boa, com amor, mas não sem os objetos.
Observamos que os adolescentes participam, cada um com seu estilo, das conversações e ateliês, e que também erram pelo espaço, eventualmente nos procurando durante seus percursos, em um tempo delimitado por eles. Observamos seus deslocamentos espaciais e discursivos, o que emerge das conversações e o que retorna a elas.
Observamos também os atos, que escapam aos acordos estabelecidos. Em uma ocasião alguns adolescentes esvaziaram extintores de incêndios no CRJ. Interrogados sobre o ato, Pedro relatou que gostava de ver o pó se espalhar no chão, e Marcos alegou que o ato foi uma resposta à fala jocosa de outro adolescente: acenda meu fogo. Marcos falou então de seu impasse, alternando um discurso homofóbico com uma vida sexual marcada por experimentações homoafetivas.
Em uma tarde, Marcos deu socos na parede, fazendo três furos. Ele nos disse que não sabia que a parede era frágil (de gesso), mas não havia nada a dizer sobre o segundo e o terceiro furos. O adolescente se ofereceu para consertar a parede, o que não aconteceu. Ele faltou algumas vezes e retornou.
Este episódio convocou a equipe a falar sobre a forma como cada um foi tocado pelo furo, e sobre a proposta de um conserto. Colocamos tal impasse no centro da conversação da equipe inter-disciplinar. Concluímos que o deixaríamos sozinho diante do ato e da proposta de reparação, pois nos precipitamos em apagar o furo, ao invés de sustentarmos a vitalidade de um furo operante.[2]
Esse ato do adolescente apontava para um impossível de dizer. Concluímos que, ao invés de buscarmos tamponar o furo com um sentido, a aposta no real desvelado no ato poderia abrir o campo dos possíveis.
Assim, propusemos uma conversação sobre os destinos dos furos, pensando em intervenções artísticas, que não tamponam ou procuram explicar os atos. Marcos participou com entusiamo da intervenção de bricolagem e depois nos apresentou um projeto de ateliê de parkour, detalhando a etimologia da palavra e a história do movimento. Explica que oriundo dos subúrbios de Paris, o parkour consiste em percorrer um caminho cheio de obstáculos e ultrapassá-los. Ressalta que esse ateliê será importante para que os jovens possam superar obstáculos.
O adolescente pode então criar um percurso novo, nos mostrando como sabia fazer com os obstáculos (muros, etc.) e como podia transmitir esse saber-fazer. Nas conversações da equipe, do laboratório, pudemos também aprender certo saber fazer com uma exuberância pulsional que escapa ao sentido, deixa marcas e subverte cada proposta. O dispositivo da conversação interdisciplinar é uma forma de tratamento do real para que as respostas dos adolescentes possam tomar o valor de uma invenção.[3]
Vemos que para alguns não é a lei, ou as normas, os acordos simbólicos que operam. É necessária uma borda, mais do que um limite.[4] Algo que se interponha entre o adolescente e um ato destrutivo, mas também entre o adolescente e a nomeação que vem do Outro.[5] Aprendemos com os jovens a apostar neles, sempre, acolhendo as suas respostas como invenções diante do real. Do indizível, do impossível do furo, pode advir a contingência de um parkour, de um percurso singular e sintomático. A conversação pode acolhê-los como seres falantes, que às vezes não sabem que o são, podendo alojar a palavra e dar-lhe curso, para que seu ser de palavra brote! [6]