Laboratório Criar (em formação) – CIEN-SP - Eduardo Vallejos O Centro Interdisciplinar de Estudos sobre…
A criança na hipermodernidade: vinhetas de um laboratório em formação
Laboratório: A criança na hipermodernidade • Salvador (BA)
Mônica Hage Pereira
“As instituições são necessárias a partir do ideal do dever humanitário. Mas, há que precisar que este imperativo moral, esta chamada ao universal, se impõe quando o discurso do mestre já não pode tratar uma contradição.” (Laurent, 1998, p. 61.)
Quando “os restos impossíveis de tratar” insistem em perturbar a rotina de trabalho dos profissionais, o que fazer? Quando estes não sucumbem à impotência e consentem em deixar a experiência em aberto, ali, no espaço vazio que se instala, uma experiência do Cien poderá acontecer.
Foi assim que o laboratório A Criança na Hipermodernidade encontrou um lugar. Atuando no ambulatório infanto-juvenil do Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador, como psicólogas da rede pública de saúde, recebemos uma série de demandas de “normatizações” de crianças e adolescentes, principalmente quando eles não correspondem aos padrões escolares esperados. No entanto, alguns desses “pedidos” nos chamam atenção de uma maneira particular. Foi o que aconteceu com João, hoje com 9 anos. Nesse caso, a escola da Rede Municipal de Ensino veio nos procurar, em busca de uma orientação pois não sabiam “como deveriam lidar” com aquele aluno que “já na primeira semana de aula, havia agido de uma maneira extremamente agressiva, dirigindo-se ao pescoço de um colega.”
A partir desse impasse apresentado pela professora e do acesso que a escola nos deu, decidimos ir até lá na condição de laboratório do Cien, e propor a atividade das Conversações com os diversos profissionais que atuavam com aquele aluno.
Para a nossa surpresa, fomos convidadas a participar da reunião (regular) dos professores com a coordenação pedagógica. No primeiro encontro, nos deparamos com profissionais bastante angustiados e com muitos impasses frente a sua prática no ambiente escolar. Após apresentarmos a proposta de trabalho do Cien – onde logo tivemos que esclarecer que não se tratava de uma conferência, mas sim, de uma Conversação -, passamos a escutá-los e perceber que estávamos diante de profissionais que se deparavam com o impossível da sua profissão, como disse Freud ao colocar as tarefas de educar, governar e psicanalizar, como tarefas impossíveis.
Rapidamente, pudemos perceber que a questão inicial que nos tinha levado até lá parecia ter se dissolvido em meio a tantas outras. Elas vinham em série, como uma avalanche de angústias, impasses, dificuldades: “A grande dificuldade com a qual nos deparamos diz respeitoà dificuldade no processode aprendizagem dos alunos”, disse uma professora. “E porque?”perguntamos. As respostas foram várias e as falas iam se modificando: “os alunos que não querem estudar, perturbam toda a sala da aula…”; “mas esses representam apenas 20%”; “falta de respeito ao próximo”. “Os alunos são violentos, mas isso ocorre porque reproduzem o que vivenciam em casa, na família…”. “Os meninos ficam na rua, por falta de assistência da família…mas, de quem é a culpa? Da família?”“Não. As famílias também são vítimas…a questão está no sistema…na pobreza, na falta de condições sócio-econômicas, etc…o problema está no social”. “Muitas vezes, um menino não se alfabetiza e é cobrado em casa, pois tem que alfabetizar os pais…” “Eles dizem que virou otário quem gosta de estudar”. “O que importa é o ter, cada vez mais… ter celulares, tablets, etc”. E concluem que a escola precisa abrir um diálogo mais próximo com a família. Entre “a família” e “o sistema” pareciam, nesse primeiro momento, que buscavam um grande responsável por tudo aquilo que tanto os angustiava.
A palavra tinha sido franqueada, eles falavam, mas era preciso, como nos indica Laurent, estar advertido de que “apesar da conversação ser instalada pelo dom da palavra…o corte terá lugar e o gozo do blá-blá-blá ficará suspenso.” Era preciso intervir ali, para que cada um pudesse se escutar. Interferir para que cada um pudesse se escutar, mas “respeitando o impossível de dizer de alguns” foi um desafio para nós nesse primeiro encontro. O encontro foi finalizado com a frase de uma professora: “tem dias que tenho vontade de pegar a minha bolsa e ir embora!” Ao que pontuamos: “mas você ainda está aqui!” E completamos: “É curioso que em meio a tantos impasses vocês não desistiram! Estão todos aqui!” E com isso aproveitamos para marcar o próximo encontro e combinarmos que faríamos uma média de 5 conversações. A fim de delimitar um pouco o universo dos participantes, a coordenadora resolveu deixar que os professores pudessem decidir quem iria participar do trabalho. Para a nossa surpresa, aquela que nos disse da sua vontade de “ir embora”, quis retornar!
No segundo encontro, agora já com o grupo definido, éramos duas psicólogas do laboratório, cinco professores (dentre elas, a professora de João) e a coordenadora pedagógica. Iniciamos com o tema da agressividade e logo a professora de João colocou que o curioso é que ela vem observando que ele não é um garoto agressivo. E diz:
“Nós sabemos o que é um menino agressivo: ele não é; parece que a reação de agarrar o pescoço do colega foi uma forma que ele encontrou para reagir a alguma brincadeira que fizeram com ele; os colegas fazem gozação da maneira como ele fala, parecendo um boneco.”
A partir daí foram surgindo diferentes sugestões sobre a condução do caso de João, quer fosse quanto a sua pseudo agressividade, quer fosse quanto ao seu complicado processo de aprendizagem. Iam e vinham nas considerações, até que concluíram que “não é que ele não soubesse ler”, o problema é que ele “não estava querendo ler”, devido às risadas dos colegas. Talvez as mesmas risadas que o tenham levado a agir de forma violenta ou agressiva, em algumas situações. Sendo assim, deixaram em suspenso a ideia inicial de colocá-lo em um reforço escolar, questionando seus benefícios e malefícios.
Saímos desse encontro nos perguntando sobre o nosso trabalho e querendo muito levar todo aquele material escutado na escola para a nossa reunião com todos os participantes do laboratório. E nos perguntávamos: será que estamos mesmo atuando de acordo com os princípios do Cien? No início, parecia que seria difícil sustentar esse lugar vazio, o do não saber; o do saber-não-saber. Mas começávamos a achar que tínhamos conseguido, e estávamos convencidas de que isso se dava devido à nossa posição analisante. O motivo principal que nos fez pensar assim foi quando pudemos perceber que, ainda que imaginássemos que seríamos convocadas a responder do lugar de mestre, isso não aconteceu…ou se aconteceu, conduzimos com tal fluidez que fizemos a palavra circular. O lugar que ocupávamos era, ao mesmo tempo, êxtimo e de fundamental presença, pois ele sustentava o vazio de saber. Os efeitos foram recolhidos no terceiro encontro.
Começamos nesse terceiro dia com a professora de João nos contando sobre a melhora dele: “descobrimos que ele sabe interpretar textos!” “Na verdade, ele sabe muito mais do queeu imaginava…” E completou: “quando ele quer.”Miller (MILLER, 2012, p. 8) coloca que as crianças “sabem sempre mais do que imaginam os adultos, estes já cretinizados por sua educação consumada”. A professora relata ainda que João tinha o costume de dizer sempre que “odiava” alguma coisa. “Ele sempre fica repetindo: “eu odeio…eu odeio…” “Será que deveríamos perguntar a ele: “O que você não odeia?”, disse a professora. Digo a ela: “Parece que João vem lhe surpreendendo, não é mesmo”?
O interessante nesse terceiro encontro foi que as professoras começaram a apostar na ideia de que manejos singulares, um por um, por mais que possam parecer difíceis de serem feitos, já que estão em uma sala com muitos, poderão produzir efeitos surpreendentes. Percebemos isso claramente na fala de outra professora que tinha um aluno com diagnóstico de TDAH, dado por psiquiatra. Ela diz: “não, ele não é hiperativo. O que observo é que ele tem dificuldades para lidar com as emoções, dificuldades nos laços afetivos e sociais…ele não sabe lidar com frustrações…mas ele não precisa de limites, como fazemos com os meninos hiperativos. Ele precisa é de mais afeto. É preciso perceber a diferença…”
Ainda não concluímos o trabalho naquela escola. As férias chegaram, mas saímos de lá com o retorno já agendado! Do instante de ver, passamos ao tempo de compreender. Algumas reflexões podemos fazer. Como nos aponta Judith Miller (MILLER, J. 2007, p. 5) por mais formados que estejam os analistas…é próprio ao psicanalista saber que ele não sabe.” E o que percebemos no desenrolar das Conversações é que o fundamental para fazer acontecer essa experiência diz respeito à formação do analista, principalmente no que se refere ao seu percurso de análise. Saber-não-saber só é possível com um certo percurso analítico. Assim, como está no argumento da IV Tarde de Trabalhos do Cien, que acontecerá em novembro de 2014, em Belo Horizonte:
A formação do analista faz-se necessária para que o dispositivo da conversação interdisciplinar se constitua em espaço de expressão do desejo e da singularidade, capaz de fazer vacilar saberes e significados impostos pelo discurso do mestre contemporâneo.
Para concluir, quer seja uma invenção da criança, ou dos profissionais que com elas lidam, o Cien aposta nas invenções singulares de cada um para responder ao real do gozo. A aposta nesse dispositivo – das Conversações dos Laboratórios, é uma aposta de que na contingência de um encontro, possa surgir a contingência de uma invenção, possibilitando assim, no um a um, um laço possível com o mundo que o cerca.
Participam deste laboratório Amanda Nunes, Ana Claudia Junqueira, Ana Martha Maia (responsável), Claudia Amoedo, Karina Guimarães, Marina Valle, Natalia Gomes, Paola Vargas, Rafaella Tavares Tinoco, Simone Monnerat e Vanessa Carrilho dos Anjos.
Campo de investigação: a sexualidade feminina, a maternidade, a criança e o adolescente, a família hipermoderna.