Fernanda Otoni Barros-Brisset “Tá dominado, tá tudo dominado”1, canta o funk na língua dos adolescentes,…
Trauma – Blitz
Eric Laurent
Trauma é uma palavra que nos vem da Renascença, como Sinthome. O trauma se escuta melhor quando ressoa sua origem grega: trôma, a ferida. Lacan nos fez entender que é a ferida irreparável que faz lalíngua sobre o corpo. É o traumatismo do nascimento à língua.
O esplendor da origem há muito tempo foi cantado em poesia e valorizado pela filosofia. O avesso desse esplendor é o sol negro do trauma e seus efeitos de atração estranha, de buraco negro absorvendo misteriosamente toda energia no sentido que Jacques- Alain Miller deu à energeia no final de seu curso “O ser e o Um”. Ele é o buraco que bordeia a iteração do Um. Ele organiza a topologia do espaço na qual se situa o que nós chamamos sujeito. O trauma tem também relação com o múltiplo. Há o trauma do qual testemunha o autista, há aquele que Michel Leiris e seu “reusement”1. No seu caso, o traumatismo é aquele da enunciação. No ato da enunciação, há nomeação latente desse primeiro núcleo traumático. O traumatismo não é simplesmente a inscrição de um choque, ele é também o buraco produzido pelo ato de enunciação.
A citação que me agrada sobre o trauma – ferida é uma variação sobre o que Lacan chamava o parceiro “devastação”. O homem-devastação, para uma mulher, esclarece a devastação que acreditamos conhecer muito bem entre a mãe e a filha, ou a devastação que pode fazer uma mulher visando uma outra. A marquesa de Merteuil escreve ao visconde de Valmont: “Quando uma mulher golpeia no coração de outra, ela raramente erra em encontrar o lugar sensível, e a ferida é incurável .”
Se o trauma fosse um livro, seria um livro ou uma novela de Kafka. No “Um Relatório para uma academia”, o macaco torna-se homem ,traumatizando seu professor de humanidade, aquele que se apresentava como mestre da linguagem dos homens.
“Minha natureza de macaco escapou de mim frenética, dando cambalhotas, de tal modo que com isso meu primeiro professor quase se tornou ele próprio um símio, teve de renunciar às aulas e precisou ser internado num sanatório”.
Um Relatório para uma academia – Kafka
Se o trauma fosse uma música seria “Elektra”, ópera de Richard Strauss escrita com Hugo Von Hoff-mansthal antes da Grande Guerra, tragédia em um ato de uma violência e de um horror sem igual. A filha traumatizada pelo assassinato do pai grita seu nome e sua dor do mesmo modo que um rugido animal. Ela se segura no lugar de sua dor de existir e aí se consome. Como dizia o texto de apresentação da última Ópera montada por Patrice Chereau neste verão, no festival de Aix-en-Provence, o Elektra dirigido por Esa-Pekka Salonen “Richard Strauss fez uma ópera violenta e súbita, com sua partição vulcânica, seu ato único de espera febril depois de violência irrepreensível, sua imensa orquestra também refinada que desencadeia, e suas vozes de mulheres que cantam o desespero de uma família decomposta. A solidão do indivíduo e a violência íntima jazem no coração do trabalho teatral de Patrice Chereau. Era natural então, para ele, entrar na corrida louca de Elektra, a mulher cujo grito é um canto”. Se lemos a homenagem que Brigitte Jacques-Wajcman endereçou à Chereau no Lacan, Cotidiano, não podemos pensar que ele não a fez deliberadamente.
Se fosse um filme seria Cidadão Kane de Orson Welles, pela última palavra que pronuncia Kane antes de morrer: “Rosebud”. Qual é o trauma secreto que vem assim se nomear? É o que um critico do filme americano chamou “o maior segredo do cinema”. Welles considerava que ele tinha feito tudo para – esvaziá-lo de sentido . « We did everything we could to take the mickey out of it ».
Resta esta pura letra “Rosenbud”. De onde ela vem? Entre todas as respostas propostas e que o artigo de Wikipedia condensa muito bem, dois se destacam. Em seu livro de 2002, Hearst Over Hollywood, Louis Pizzitola relata que era o apelido dado à mãe de Hearst pelo filho de um casal de amigos íntimos daquela e rival em seu coração de seu próprio filho. Gore Vidal, sempre bem informado dessas coisas, declarou que Rosebud era o apelido dado por Hearst ao clitoris de sua amante, Marion Davies. O que foi confirmado por outros. Então: traumatismo da mãe ou da mulher, no que acreditar? Nos dois.
Se fosse uma peça poderia ser “Os espectros” de Henrik Ibsen. Lemos aí o traumatismo das teorias da hereditariedade científica do fim do século, soberbamente expostas. Os espectros em questão são as aves da desgraça que se fundam sobre uma família decomposta quando todo o discurso está deslocado. No nível dos servos, um pai quer prostituir sua filha, mas em uma casa de repouso para marinheiros dignos. No nível dos mestres, o pai morto teve uma criança com a empregada, que se torna- dama de companhia da mãe, e o filho da família retorna de uma longa temporada no estrangeiro, de onde ele fugiu e contraiu sífilis, para querer se casar com ela. O pastor desconsidera todos esses segredos uma vez que ele está no coração da intimidade da família e é um antigo amante da mãe. A fogueira das vaidades consome a riqueza e as boas intenções da herança deixada pelo pai no incêndio do hospício. E no ano anterior, Thomas Ostermeier dirige a cena da morte do filho nos braços da mãe como um eco à morte incestuosa da mãe no “Minha mãe” de George Bataille.
Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães