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Trauma – Blitz

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Klara Kristalova, ‘The Catastrophe’, 2007
Eric Laurent

Trauma é uma palavra que nos vem da Renascença, como Sinthome. O trauma se escuta melhor quando ressoa sua origem grega: trôma, a ferida. Lacan nos fez entender que é a ferida irreparável que faz lalíngua sobre o corpo. É o traumatismo do nascimento à língua.

O esplendor da origem há muito tempo foi cantado em poesia e valorizado pela filosofia. O avesso desse esplendor é o sol negro do trauma e seus efeitos de atração estranha, de buraco negro absorvendo misteriosamente toda energia no sentido que Jacques- Alain Miller deu à energeia no final de seu curso “O ser e o Um”. Ele é o buraco que bordeia a iteração do Um. Ele organiza a topologia do espaço na qual se situa o que nós chamamos sujeito. O trauma tem também relação com o múltiplo. Há o trauma do qual testemunha o autista, há aquele que Michel Leiris e seu “reusement”1. No seu caso, o traumatismo é aquele da enunciação. No ato da enunciação, há nomeação latente desse primeiro núcleo traumático. O traumatismo não é simplesmente a inscrição de um choque, ele é também o buraco produzido pelo ato de enunciação.

A citação que me agrada sobre o trauma – ferida é uma variação sobre o que Lacan chamava o parceiro “devastação”. O homem-devastação, para uma mulher, esclarece a devastação que acreditamos conhecer muito bem entre a mãe e a filha, ou a devastação que pode fazer uma mulher visando uma outra. A marquesa de Merteuil escreve ao visconde de Valmont: “Quando uma mulher golpeia no coração de outra, ela raramente erra em encontrar o lugar sensível, e a ferida é incurável .”

Se o trauma fosse um livro, seria um livro ou uma novela de Kafka. No “Um Relatório para uma academia”, o macaco torna-se homem ,traumatizando seu professor de humanidade, aquele que se apresentava como mestre da linguagem dos homens.

Mauro Espíndola, enthes paterctomizados, 2009

Se o trauma fosse uma música seria “Elektra”, ópera de Richard Strauss escrita com Hugo Von Hoff-mansthal antes da Grande Guerra, tragédia em um ato de uma violência e de um horror sem igual. A filha traumatizada pelo assassinato do pai grita seu nome e sua dor do mesmo modo que um rugido animal. Ela se segura no lugar de sua dor de existir e aí se consome. Como dizia o texto de apresentação da última Ópera montada por Patrice Chereau neste verão, no festival de Aix-en-Provence, o Elektra dirigido por Esa-Pekka Salonen “Richard Strauss fez uma ópera violenta e súbita, com sua partição vulcânica, seu ato único de espera febril depois de violência irrepreensível, sua imensa orquestra também refinada que desencadeia, e suas vozes de mulheres que cantam o desespero de uma família decomposta. A solidão do indivíduo e a violência íntima jazem no coração do trabalho teatral de Patrice Chereau. Era natural então, para ele, entrar na corrida louca de Elektra, a mulher cujo grito é um canto”. Se lemos a homenagem que Brigitte Jacques-Wajcman endereçou à Chereau no Lacan, Cotidiano, não podemos pensar que ele não a fez deliberadamente.

Se fosse um filme seria Cidadão Kane de Orson Welles, pela última palavra que pronuncia Kane antes de morrer: “Rosebud”. Qual é o trauma secreto que vem assim se nomear? É o que um critico do filme americano chamou “o maior segredo do cinema”. Welles considerava que ele tinha feito tudo para – esvaziá-lo de sentido . « We did everything we could to take the mickey out of it ».

Resta esta pura letra “Rosenbud”. De onde ela vem? Entre todas as respostas propostas e que o artigo de Wikipedia condensa muito bem, dois se destacam. Em seu livro de 2002, Hearst Over Hollywood, Louis Pizzitola relata que era o apelido dado à mãe de Hearst pelo filho de um casal de amigos íntimos daquela e rival em seu coração de seu próprio filho. Gore Vidal, sempre bem informado dessas coisas, declarou que Rosebud era o apelido dado por Hearst ao clitoris de sua amante, Marion Davies. O que foi confirmado por outros. Então: traumatismo da mãe ou da mulher, no que acreditar? Nos dois.

Se fosse uma peça poderia ser “Os espectros” de Henrik Ibsen. Lemos aí o traumatismo das teorias da hereditariedade científica do fim do século, soberbamente expostas. Os espectros em questão são as aves da desgraça que se fundam sobre uma família decomposta quando todo o discurso está deslocado. No nível dos servos, um pai quer prostituir sua filha, mas em uma casa de repouso para marinheiros dignos. No nível dos mestres, o pai morto teve uma criança com a empregada, que se torna- dama de companhia da mãe, e o filho da família retorna de uma longa temporada no estrangeiro, de onde ele fugiu e contraiu sífilis, para querer se casar com ela. O pastor desconsidera todos esses segredos uma vez que ele está no coração da intimidade da família e é um antigo amante da mãe. A fogueira das vaidades consome a riqueza e as boas intenções da herança deixada pelo pai no incêndio do hospício. E no ano anterior, Thomas Ostermeier dirige a cena da morte do filho nos braços da mãe como um eco à morte incestuosa da mãe no “Minha mãe” de George Bataille.

Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães

 


Notas:
1 NT: Michel Leiris, no conto “A Regra do Jogo” narra sua experiência na infância ao emitir das entranhas, como riso ou grito: “reusement”. Essa jaculação vem marcar a primeira lembrança de sua vida e marca sua relação à felicidade ou mais exatamente sua relação à infelicidade. Um de seus brinquedos cai, um soldado de chumbo ou de papel mache. Rapidamente ele o pega e para sua alegria não tinha quebrado, ele então exclama: “reusement”! Alguém mais velho retruca: não se diz “reusement” se diz “heureusement”. Nesse momento sua alegria é cortada, fica pasmo e entregue a uma espécie de vertigem.
2 NT: Clássico da literatura libertina de Chordelos de Laclos, As ligações Perigosas
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