EDITORIAL Mônica Campos Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um…
A família em questão![1]
Flavia Cêra
A família em questão! tema que reúne duas Redes sobre a Infância do Campo Freudiano, Cien e NR Cereda, chegou até aqui como um desdobramento do tema “Pais exasperados-Crianças terríveis”. Esse desdobramento se deu a partir das reuniões que mantivemos com o Bureau do Instituto da Criança – Ève Miller-Rose, Anne Ganivet, Daniel Roy -, com os colegas coordenadores das Redes na América e com as conversas entre mim e Nohemí Brown, que sempre estiveram atravessadas pelos trabalhos que acontecem nos Núcleos da NRCereda e dos Laboratórios do Cien. As redes Cien e NRCereda trazem, assim, o frescor do saber das crianças e dos adolescentes e recolhem um real que orienta a leitura do nosso tempo e do porvir. Como redes, ambas contam com a feitura, o desejo e a sustentação de muitas pessoas, de muitas mãos, muitas vozes, ouvidos, escritas.
Colocar a família em questão e, sobretudo, como uma questão para a psicanálise, é um exercício constante. As mudanças na cultura, nas leis, nas parcerias amorosas incidem diretamente sobre ela. Freud e, radicalmente, Lacan, acompanharam essas incidências da cultura ao lado dos romances, das ficções, das marcas contadas por cada um. Aí o horizonte da família se transforma e se amplia desde muito cedo para a psicanálise. Se com Freud tínhamos a ênfase nas tramas edípicas, com Lacan aprendemos a pensar a família além do Édipo, a partir de suas funções, de suas incógnitas e enigmas, de seus ditos e não-ditos, do desejo e do gozo.
Podemos acompanhar sua impressionante atualidade no texto de orientação de Daniel Roy[2] onde nos adverte que já não há mais universal para a família, que ela se inscreve em uma lógica do não-todo em que a criança tem um papel fundamental. A partir deste ponto perguntamos: entre os pais exasperados e as crianças terríveis, neste hífen, como a instituição família se articula hoje ou ainda, o que ela articula hoje? O que ela separa e o que ela reúne? O que ela transmite? Em quais mal-entendidos ela se funda? O que, quem, constitui uma família? Foi o que pretendemos recolher das Redes da Infância tanto no discurso analítico quanto no discurso inter-disciplinar; na clínica, nas instituições, na cidade.
Falar da família, no entanto, está longe de ser um assunto privado. A língua particular de cada uma delas se articula com a língua da cultura, enfrentando ou corroborando paixões políticas. Quanto menos consenso sobre a família, quanto menos universal, mais recrudescimento para restituí-la aos moldes patriarcais. No Brasil, vimos muito de perto – e veremos por bom tempo – como essa instituição pode ser capturada e manipulada politicamente para que exista em uma única forma, para que exista em uma única língua, em um único sentido. Cabe a nós, então, essa responsabilidade, que não deixa de ter sua inscrição política, de fazer ressoar as inúmeras formas de família que a clínica e as conversações nos ensinam, de aprender e depreender de cada uma delas o que faz família para cada ser falante.
As famílias e a experiência do Cien:
De modo que, para o discurso analítico, os assuntos de família são também assuntos do inconsciente[3]. Mas como se opera com isso (ou com o Isso) em uma conversação do Cien? Essa pergunta está sempre aberta. E é importante lembrar, como lembra Laurent, dos limites de uma conversação[4]. Talvez possamos nos orientar no Cien pelas mutações do laço e da própria ideia de família sobre as quais as conversações dão notícias, nos impasses sobre os quais os laboratórios são chamados para o trabalho. Dois lugares aparecem neste dispositivo: um de leitura, da interpretação que as instituições e outros saberes fazem da criança a partir dos significantes-mestres que regem os discursos, e das modalidades de crença que operam a partir deles. Mas, para isso, precisamos das conversações, do que elas podem produzir como localização e saídas. Às vezes, como produto, se decantam os S1 aos quais profissionais ou crianças estão submetidos, localizando assim o impasse, colocando o saber sobre ele em circulação para que cada um possa lê-lo reenviando, ao mesmo tempo, cada sujeito “aos seus assuntos”, para que se abra o caminho em direção a novas veredas quando se toma distância das identificações, das classificações e determinações pedagógicas, tecno-científicas, jurídicas, etc. O saber analítico não entra aí interpretando, nem mesmo como saber privilegiado, mas advertido de que tomar a palavra é colocar coisas em jogo, que o dom da palavra pode ser oferecido ali onde Isso não fala, e que temos o corte como instrumento para operar podendo dar sentido e ao mesmo tempo desconfiando da máquina de produzir sentido, operando por certa opacidade da língua. O Cien, portanto, não promove uma saída coletiva, um para todos, mas ele pode incidir em um coletivo “especulando sobre o sentido para obter efeitos de verdade”[5]. Para tanto, porém, precisamos de um consentimento, consentir com as surpresas da fala que perfuram os ideais de funcionamento, consentir com a equivocidade que a língua opera. Esse é um desafio constante para as conversações.
[1] Parte deste texto foi apresentada na abertura da atividade conjunta das redes Cien e da NRCereda no Brasil, A família em questão!, em novembro de 2022.
[2] ROY, D. Pais exasperados-Crianças terríveis. Publicado nesta revista.
[3] MILLER, J.-A. Assuntos de família no inconsciente. Revista aSEPHallus, n.4. Maio a setembro de 2007. Disponível em http://www.isepol.com/asephallus/numero_04/asephallus04.pdf
[4] LAURENT, É. Las partidas del Cien. Cuadernos del CIEN, n.5. Buenos Aires, 2004.
[5] LARENT, É. Retomar a definição do projeto do Cien e examinar sua situação atual. Brown, N.; Macêdo, L; Lyra, R. (Orgs.). Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência – Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.