EDITORIAL Mônica Campos Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um…
A localização do que não se vê[1]
Laboratório Encontro de Saberes – CIEN-SC – Gustavo Ramos da Silva e Patrícia Laura Torriglia
No retorno à modalidade presencial das conversações, em abril de 2022, uma novidade surge no Laboratório Encontro de Saberes cuja interface é a educação: a demanda era de conversação na turma de segundo ano com crianças de 7 a 8 anos. A Escola localiza uma “sexualidade exacerbada” por parte desses alunos. “Ficam se beijando e se tocando durante as aulas e no intervalo”. Aceitamos a demanda, porém com um certo receio, pois nunca havíamos feito conversações com crianças dessa idade, apesar de já estarmos nessa mesma escola há quatro anos. A Escola está localizada em um bairro pobre de Florianópolis e recebe muitos alunos da favela e da chamada ‘favela da favela’, uma região com altos índices de violência e precariedade. “Lá nem a polícia entra, só com autorização dos traficantes”.
Quando entramos na turma, todos estavam sentados, então pedimos para fazerem uma roda no fundo da sala, onde havia um espaço grande e aberto para brincadeiras. Lá todos nos sentamos no chão e a primeira coisa que escutamos foi a pergunta “quem são vocês?” Somos psicanalistas do CIEN. Explicamos a sigla e o interdisciplinar. “O que é interdisciplinar?”, a aluna mal conseguiu pronunciar a palavra inteira. Estávamos acostumados nas conversações com adolescentes a fazer dessa forma o primeiro contato e a apresentação do dispositivo. Percebemos que com as crianças teria de ser diferente. Algo novo se instaurou no Laboratório e o próprio não-saber se colocou nos animadores da conversação. O que fazer? Nesse momento uma outra aluna responde que “é tipo psicólogo, trabalha a cabeça, olha só o machucado que eu tenho”. Com isso, algo aconteceu aí, uma ligação entre a cabeça, o ‘racional’, e o corpo, com o que muitas vezes escapa de uma relação puramente racional. Os alunos sabiam de algo e isso nos causou surpresa ao não termos mais a apresentação usual da conversação. Essa surpresa possibilitou que algo ressoasse em nós para não cairmos na vertente do educar esse elemento de exasperação ligado à sexualidade. Como não cair na posição palestrante? O caminho pode ser percorrer a surpresa com o que surge e dar vazão a isso durante a conversação.
Uma agitação se instaura, pois cada aluno quis não só falar de seus machucados, galos, arranhões, acidentes, quedas e cortes, mas também mostrar aos integrantes do laboratório, ‘os psicólogos’, as marcas no corpo. Um agito corporal se manifesta, ecoando talvez essa “sexualidade exacerbada” e a necessidade de mostrar ao Outro o corpo. Se com os adolescentes a circulação da palavra se dá de uma outra maneira, muitas vezes permeada de silêncio e com uma atividade maior dos animadores para extrair algo do que se diz, com as crianças nos deparamos com o oposto: todos com as mãos levantadas, sedentos por falar, aguardando ansiosamente sua vez. Como escolher quem fala e em qual momento? Seguir a ordem da roda? Um impasse surgiu dentro do Laboratório. Em um outro momento, decidimos seguir a ordem de colocação da roda, assim não é preciso ficar cansado com a mão levantada e todos sabem que terão a oportunidade de ter sua fala escutada.
Cada um tinha uma história de acidente com marcas no corpo durante a pandemia, mas parece que a localização era ainda uma questão. Foi preciso um giro em torno desse significante. Uma das integrantes do Laboratório nasceu na Argentina e apresenta um sotaque diferente dos alunos. Começam a perguntar do idioma e do país. “Onde fica a Argentina no mapa?” Na segunda conversação, levamos um mapa da América do Sul e um Globo Terrestre, e essa integrante aponta no mapa o local de seu nascimento e conta um pouco a história do idioma espanhol. Todos atentos ao mapa.
A Escola está em uma região conhecida pela heterogeneidade de pessoas, seja de localidades e de sotaques. É o destino de veraneio dos argentinos e uruguaios. Com isso, apresentam muitos alunos de outras regiões do país, os quais pedem para que localizemos no mapa os respectivos estados de nascimento.
Quando chegamos para a próxima conversação, a coordenadora nos chama para falar se podíamos conversar sobre o bullying com essa turma, pois um aluno veio conversar com ela que estaria sofrendo bullying naquela sala. No dia, esse aluno não estava presente, mas decidimos introduzir o tema mesmo assim, uma aposta na localização do tema.
“O que é bullying? Vocês sabem o que é isso?” A resposta de alguns: “bullying é quando alguém fala alguma coisa e machuca a outra.” “Alguém já viu ou sofreu isso?” A resposta afirmativa vem agora com casos de violência fora da Escola. Um aluno toma a palavra e diz que teve de sair da última escola por conta do bullying, não aguentava mais, por isso veio para esta escola e aqui não sofre mais. Percebemos um menino negro sempre com a cabeça baixa, não respondia e parecia estar triste com algo. Um outro menino diz que o racismo também pode ser bullying. Concordamos com a afirmação e perguntamos se ele já sofreu ou presenciou racismo. Nesse momento, esse menino negro levanta a mão e conta das vezes em que sofreu, e até hoje sofre, racismo na vida. Um relato contundente e que tocou alguns colegas. A conversação termina com a intervenção de um integrante do Laboratório dizendo que nem todo machucado é visível no corpo, como nos tombos, quedas e empurrões. Muitas vezes uma palavra, um gesto ou um olhar podem deixar marcas no corpo, as quais, apesar de não serem visíveis no corpo, podem, ainda assim, causar muita dor. Com isso conseguimos cernir o impasse da sexualidade exacerbada, nomeá-lo com as tentativas de localização, mantendo, no entanto, o furo como motor da conversação.