Skip to content

As conversações: os atropelos, a pandemia e as novas possibilidades

image_print
Laboratório Encontro de Saberes – CIEN-SC[1]

O impasse e o atropelo

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, O menino e a arapuca, sem data

O Laboratório Encontro de Saberes, do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN), de Santa Catarina, vem realizando conversações quinzenalmente em uma Escola da Rede Municipal de Florianópolis desde julho de 2019. A demanda adveio porque alguns adolescentes estavam se cortando dentro da Escola.

Ao final do ano, nas reuniões presenciais do Laboratório realizadas após cada conversação, e denominada por nós de “decantação”, um modo de destrinchar os conteúdos imbricados nas conversações destacou-se para os integrantes do Laboratório: o significante “atropelo”. Em uma turma do sexto ano, os alunos começam a relatar os “atropelos” fora da Escola: de bicicleta, andando pelas ruas, do ônibus etc. Os relatos eram constantes, até que um integrante do Laboratório intervém dizendo: O que acontece fora da Escola? O que atropela? Na reunião de decantação, a partir da reflexão sobre a conversação realizada e os pontos que nos chamaram a atenção, chegamos à seguinte formulação: O atropelo da infância! Foi com base nisso que pensamos em uma atividade aberta com esse título e, quando estávamos elaborando, fomos atropelados pela pandemia do novo Coronavírus.

As conversações presenciais foram suspensas, assim como as aulas na rede municipal de Santa Catarina. Diante da nova e inesperada situação, ficamos algumas semanas sem nos encontrarmos, quando a orientadora educacional da mesma Escola entrou em contato demandando um encontro virtual para conversar sobre a situação dos professores e dos profissionais da educação diante da pandemia.

Como dar continuidade à pesquisa do Laboratório? Foi essa a pergunta que ficou ao conversar com a orientadora educacional e ao ouvir as queixas dos professores: “Medo da perda do emprego!”, “É férias ou quarentena?”, “Ensino remoto ou à distância?” e “Como mandar as tarefas aos estudantes sem levar em consideração a desigualdade? Afinal de contas, muitas crianças só se alimentavam realmente dentro da Escola.”

Em uma das conversações realizadas com os professores, eles manifestaram o desejo de que, “no retorno”, nós do CIEN pudéssemos “ir aos pequenos também” (crianças com idade escolar abaixo do quinto ano do Ensino Fundamental). Tal demanda surgiu de uma professora participante da primeira reunião de professores, que ocorreu de modo presencial, no ano de 2020.

A escola, ainda antes da pandemia, começou a implementar os “Territórios Brincantes”. Metodologia importada da Educação Infantil que visa possibilitar a apropriação de conceitos de forma lúdica, por meio de interações em espaços planejados e estruturados de uma fração do mundo adulto. Realizado também para as crianças e adolescentes do Ensino Fundamental a partir do trabalho na prática de conteúdos curriculares, de modo interdisciplinar, facilitando a introjeção dos conhecimentos.

Nas conversações on-line algumas questões se colocaram: “Como será o retorno? A criança estará com saudades e vai querer nos abraçar, como lidar com isso? A gente não pode dar um abraço? E a máscara? É uma questão do olhar: perceber a si e aos outros.” Localizou-se aí uma demanda pela conversação do Laboratório para tratar desse novo impasse surgido: a normatividade em um lugar onde se pressupõe que seria impossível. Após alguns minutos a orientadora diz: “o professor também deve ser um ouvinte, estar em um outro lugar.”

Nas últimas semanas a orientadora educacional envia uma mensagem manifestando o desejo de incluir o CIEN no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da Escola onde realizamos conversações. O PPP é um documento orientador e registra as práticas da Escola e deve ser atualizado anualmente mantendo-se vivo e fidedigno. A orientadora é uma das articuladoras do Programa Saúde na Escola (PSE)[2] – o qual tem como pressuposto a formação integral dos estudantes – articulado à saúde mental. Encontra nas conversações do CIEN uma correspondência significativa com as ações do referido Programa. Nesse sentido, ela considera importante citar o CIEN como ator, “nós estamos lá”. O PSE não é só “dela”, por isso gostaria de colocar ênfase na continuidade do trabalho das conversações com a Escola, mesmo diante da pandemia. Um integrante do Laboratório aponta aí uma questão de escrita ao dizer que não é necessário estarmos no PPP para estarmos na Escola. Há, portanto, um desejo de continuidade e de um certo protagonismo da conversação entre o CIEN e a Escola. “Fazer algo no outro e ele fazer algo em mim, ter reverberação, se isso não é conversação, não sei o que é”, afirma a orientadora educacional.

Seguimos com a pesquisa na Escola tendo em vista a realização dessa atividade sobre o atropelo da infância.

Uma nova demanda na pandemia

Durante a pandemia surgiu a demanda de uma outra Escola, agora da Rede Particular da cidade de Lages, em Santa Catarina.

Mediante uma conversação on-line entre a coordenação do CIEN, a coordenação pedagógica e a direção dessa Escola, escutamos relatos de muita pressão em relação às aulas remotas, angústias e sobrecarga de trabalho. “Eles tiveram que se adaptar de um dia para o outro com as tecnologias, em jornadas duplas ou até triplas, se pensarmos nos trabalhos domésticos e na educação em casa dos próprios filhos”, afirma uma das coordenadoras pedagógicas. Outra coordenadora relata o medo de alguns profissionais de serem demitidos e de como recebem áudios de pais reclamando. Os professores e coordenadores são alvos de “descargas” das angústias dos pais. Relatam sobre a adaptação dos alunos e continuam queixando-se dos pais. A diretora da escola afirma “Precisamos ouvir esses pais, aliviar as tensões.” Ao invés de uma conversação com os professores, que aparece no primeiro momento, surge a demanda da direção, com uma certa urgência, de uma conversação on-line entre a coordenação pedagógica, o CIEN e os pais. Assim, apareceram-nos algumas questões: como as crianças estão vivenciando esse momento? O que os pais podem formalizar?

Como a Escola poderia fazer um laço com essas famílias? A coordenadora levanta um impasse: “Quais são as saídas para esse tempo?” Aparece uma certa tensão entre a Escola e os pais. A coordenadora pedagógica da educação infantil (crianças de 1 a 6 anos) relata que o aproveitamento das atividades encaminhadas é inferior a 50%. Um impasse? Como proceder com as famílias?

A coordenadora toma a palavra, enquanto mãe de dois filhos gêmeos: “parece que estou no divã, falei coisas que não tinha falado com ninguém”. Uma mãe afirma que o filho não quer voltar para Escola, pois ele nunca teve o pai em casa como estava acontecendo. “Eu não quero que o Coronavírus vá embora”, diz essa criança.

Uma mãe revela sua angústia com o filho único: “não estou preocupada com o conteúdo, isso ele repõe depois, mas a falta de convivência não tem como repor. Ele não tem irmãos, primos… E não deixo ele na tv, tablets.”

Silvio Jessé, Mucugê-Bahia, sem título, sem data

Algo inesperado acontece nessa mesma conversação, reservada aos pais, quando uma aluna do 7o ano, inscrita com o nome da mãe, abre a câmera e pede a palavra: “Meus pais não puderam estar aqui, mas eu só queria agradecer aos professores de arte e filosofia que têm sido muito importantes nesse momento para minha saúde mental.” Diante de tal depoimento, surge uma questão: Como um dispositivo de conversação pode circular em um modelo on-line, sem ver quem fala? Afinal de contas, a imagem não aparece, só a voz. Esta se apresenta como uma presença, estamos no on-line, na janela. Em tempos de tempestades, diversas adversidades, cada um na sua janela, na sua singularidade tentando se equilibrar em seu barco.

O barco é a metáfora utilizada por uma das mães ao dizer sobre o que pensa deste momento: “Eu vejo o Coronavírus como uma tempestade, e cada família está em um barco. Ou seja: a tempestade está para todos, porém cada família tem um barco diferente, alguns é um iate, com muitas possibilidades, e em outros o barco está furado.”

Observa-se que as experiências vivenciadas pelas crianças, familiares e professores, durante a pandemia foram diversas: em uma, a ideia de manter um vínculo com a “realidade” via Escola, como se as aulas por vídeo, o contato visual com os professores, fossem o vínculo com a realidade interrompida pelo novo Coronavírus; em outras experiências surgiu o relato de muitas crianças desejarem continuar em casa, pois antes os pais, por conta do trabalho fora de casa, permaneciam muito tempo longe delas. Ou seja: como lidar com as alteridades perpassadas pela pandemia?

Nossa última conversação foi com os professores da educação infantil – “os mais prejudicados” – segundo a direção da Escola. A coordenadora toma a palavra e lança a questão: “Como estamos e qual o papel da Escola neste momento?” As professoras então relatam um sentimento de culpa, pois interpretam a saída das crianças da Escola como responsabilidade delas. E se interrogam: “O que não fizemos?”, “É um balde de água fria”, diz uma outra professora. Nesse momento, uma profissional do administrativo da instituição toma a palavra e diz que é ela quem recebe as ligações dos pais comunicando a saída do filho da Escola. Cada dia são duas, três ligações. Encontramos um sofrimento muito grande nesses profissionais da educação infantil, os quais têm de lidar com a saída das crianças, o aumento da jornada de trabalho e a própria instabilidade no trabalho.

“Como vão ficar as crianças?” É a pergunta que antecede o impasse: “Como nós professores vamos ficar?” Tomando a conversação como um dispositivo em que o movimento inter-disciplinar pode possibilitar a abertura de um espaço para a invenção, por meio de soluções singulares, seja das crianças, dos adolescentes, dos pais ou dos profissionais que circulam nas instituições, continuamos com os efeitos desse dispositivo on-line e seus embates com o Real, a pandemia do Coronavírus.


[1] Integrantes do Laboratório: Adriana Farias Pereira, Ana Maria Alves de Souza, Fernanda Martinhago, Gustavo Ramos da Silva (responsável pelo Laboratório), Patrícia Laura Torriglia, Soledad Torres e Valesca Lopes (coordenação CIEN-SC). Colaborou com a escrita do trabalho: Marcia Frassão (coordenação CIEN-SC).
[2] Este Programa compõe uma política nacional, que iniciou em 2007, com a finalidade de contribuir para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica, por meio de ações de prevenção de doenças, promoção de saúde e atenção à saúde. Dentre as ações do PSE, destacam-se as mais relacionadas ao campo da saúde mental, como: a avaliação clínica e psicossocial, prevenção e redução do consumo do álcool e uso de drogas e a educação permanente em saúde (BRASIL, 2007). Referência: BRASIL. Presidência da República. Decreto Nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Institui o Programa Saúde na Escola – PSE, 2007.
Back To Top