EDITORIAL Mônica Campos Caros leitores, é com alegria que chegamos ao 25º Cien digital. Um…
Sobre qual humanidade falamos?
Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR[1] – Karina Veiga Mottin[2] e Willie Anne Martins da Silva Provin[3]
Diante do impasse que encontramos, do que qualifica o sujeito enquanto humanidade e tendo como horizonte a restituição do lugar do saber autêntico da criança, o Laboratório Ciranda de Conversa (CIEN/PR) propôs a conversação sobre o filme Meu nome é Ray[4] através da realização de uma atividade Cine-CIEN on-line, na noite de 19 de novembro de 2020, tendo como convidada a psicanalista Flavia Cêra[5].
Tendo como base as reflexões levantadas por Daniel Roy em seu texto “Quatro perspectivas sobre a diferença sexual”[6], a conversação possibilitou a reflexão conjunta entre os profissionais das diversas áreas presentes acerca da diferença sexual no espaço escolar. A conversação mostrou a importância de estarmos atentas (os) ao que as crianças sabem da diferença sexual, do que querem ou não saber a respeito e do que podem ou não podem saber. Foi possível identificar as diversas formas com que a escola, enquanto instituição consolidada que é, reproduz e mantém seus valores e como isso influencia e norteia as próprias discussões e reflexões a respeito da diferença sexual dentro de seus muros. Os participantes refletiram sobre a questão de como a escola é um espaço de disputa entre os valores hegemônicos existentes. Algo entre o incômodo de educadores em trazer para o cotidiano escolar a reflexão acerca dos direitos humanos em uma perspectiva ampla, e o saber médico como uma poderosa instituição utilizada para legitimar a violência ou o que se denomina como império do biológico.
A imagem deste artigo é referente à cena que se passa logo no início do filme. Ray, um adolescente trans que vive à espera de que seus pais assinem os papéis que o autorizarão a começar o tratamento hormonal para a transição de gênero, está na escola e entre uma aula e outra, precisa ir ao banheiro. Ele pede aos amigos que avisem a professora de matemática que ele chegará atrasado na aula, sai andando com pressa pelos corredores da escola e no caminho passa em frente ao banheiro. De um lado uma placa com uma mulher desenhada, do outro, o desenho de um homem, e no meio um cartaz mostra o que parece ser a sombra de um casal com uma criança, com a legenda “CONSERVE HUMANITY”. Ray segue seu caminho, sai da escola, atravessa a rua e vai até um café usar o banheiro. O que tem esta imagem e o que ela nos diz? Os símbolos que esta cena evoca foram resgatados no debate deste filme. Além da violência simbólica sofrida por Ray, devido ao fato de não conseguir usar nenhum dos banheiros da escola, o cartaz ali fixado levanta a questão dos supostos riscos que a “humanidade” estaria correndo quando as normas de gênero são questionadas.
A teoria da filósofa Judith Butler[7], que já havia sido debatida em momentos anteriores pelo grupo, também nos serviu como base para refletirmos de que forma as normas de gênero, que são impostas à sociedade como “naturais”, provocam a exclusão de corpos que não se conformam ao sistema heteronormativo. Mais ainda, o próprio estatuto de humanidade é colocado em cheque quando não há identificação ao binômio masculino/feminino. Butler ressalta que a noção de “pessoa” e de “humano” no Ocidente é constituída por conceitos estabilizadores de sexo, gênero e sexualidade, que por sua vez são construídos discursivamente por relações de poder. Nesse sentido, não se encaixar naquilo que é definido como “homem” ou como “mulher” significaria estar à margem da humanidade ou mesmo destruir as bases daquilo que se acredita ser a sua fundação – a saber, o sistema binário de gênero. Enfatizou-se que a noção de performatividade introduzida por Butler permite trazer diferentes sujeitos e realidades, antes apagados pela matriz heterossexual para o campo do inteligível. Portanto, a questão do enfrentamento da exclusão, como esta retratada na cena citada, é um ponto central na teoria de Butler.
Durante a conversação, discutiu-se como a escola, fechada em si em grande parte de sua existência, quase nunca possibilita espaços de escuta nem de conversa. Isso faz com que a palavra não circule dentro do espaço escolar, resultando num grande sufocamento das emoções. Contra isso, crianças e adolescentes precisam ser percebidos como aqueles que entram no discurso analítico como seres de saber e não somente como seres de gozo. Seus saberes devem ser respeitados como aqueles de sujeitos em pleno exercício, pois eles são sujeitos em pleno exercício e não sujeitos a vir [8], como ocorre aos olhos da pedagogia. Sem considerar isso, ao longo da história, determinados grupos sociais construíram diversos modos de conceber o tempo e o espaço na escola. É possível verificar as marcas da escolarização, inscritas nos corpos dos sujeitos e como elas são feitas por meio de mecanismos discretos e múltiplos, atuantes nas práticas rotineiras e comuns no ambiente escolar. Dessa forma, todos os sentidos são treinados e os corpos são escolarizados, em um processo sutil e continuado.
Para que possa haver o movimento contrário a este é importante observar a construção da diferença no espaço escolar, compreendendo como é poderosa a sua forma de propagação na sociedade, sendo a escola um dos seus alicerces. Perceber os meios pelos quais se constrói essa diferença é reconhecer a existência das relações de poder dentro da escola e os motivos pelos quais os sujeitos e seus corpos são fabricados, por meio de relações de desigualdades. Dessa forma, conscientes desse funcionamento escolar, é possível unir forças e meios para a desconstrução deste modelo vigente, comprometido com a manutenção da divisão social. Só então será possível trabalhar e interferir para a sua transformação e a sua subversão. É nessa brecha do espaço escolar que o Laboratório Ciranda de Conversa busca discutir, junto aos educadores, a singularidade e a dignidade de cada sujeito.