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Um moebius lacaniano[1]

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Anna Aromí
Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

Gostaria de agradecer à Nohemí Brown, por embarcar nessa sua aventura, do outro lado do mundo. Tive que aceitar porque, nos anos em que estive trabalhando no CIEN, dirigindo a revista ‘El Niño’ com Judith Miller, aprendi muito, não só sobre as crianças, mas sobre a psicanálise como tal. Agradeço também à equipe que traduziu os textos para o espanhol; graças ao trabalho minucioso, pude acompanhar muito bem a apresentação.

Vou começar apontando o enquadre deste encontro. Um encontro CIEN-CEREDA, me parece uma proposta original e um ato importante para o Campo Freudiano e para a AMP. Por quê? Porque, no fundo, o que está sendo colocado em jogo na proposta é captar algo do real da psicanálise. Trabalhando com crianças ou com adolescentes, fazendo conversações em uma escola … poderia parecer que no CIEN, estamos longe do passe, poderia parecer que estamos longe da psicanálise pura. E, no entanto, com esta jornada intermediária, com este encontro CIEN-CEREDA, vocês estão colocando em ato, o que eu chamaria de um moebius lacaniano. E isso está na Proposição de outubro:[2] Lacan fala ali, da psicanálise em intensão e em extensão, fala da psicanálise pura e da psicanálise aplicada. Contudo, para ele, nunca se tratou de um binário. É sempre um moebius, ou seja, uma torsão, uma volta do mesmo, bordeado a partir de ângulos distintos.

Recordo-me bem das palavras de Jacques-Alain Miller, no momento do surgimento do CIEN, porque tive a sorte de estar lá.[3] O CIEN nasceu com esta frase: para a psicanálise com crianças, temos o CEREDA, mas não temos nada para o que as outras disciplinas dizem sobre as crianças e sobre o que a psicanálise poderia conversar com elas. Nesse momento o CIEN surge como um centro inter-disciplinar.

Com este significante “inter-disciplina”, abriu-se o campo da extensão a partir da psicanálise com crianças, convidando a fazer funcionar este moebius, esta banda de intensão e extensão, que é onde podemos verdadeiramente captar algo do real da psicanálise. Porque, se há um real na psicanálise com crianças, o CIEN e o CEREDA o abordam de ângulos diferentes e com dispositivos diferentes. Mas, o real é o mesmo assim como nosso desejo de aprender também o é. Por isso, de alguma maneira, tanto um quanto o outro são laboratórios, laboratórios para fazer a psicanálise avançar.

Então, o que aprendemos com esses textos? Vou um pouco rápido, para deixar tempo para a conversação. A primeira coisa que chama a atenção desses textos são os efeitos que as fotografias podem produzir. O que uma fotografia pode chegar a desencadear! No caso de Eloá, encontramos a fotografia do pai vestido de mulher, que o pai envia para a mãe, dizendo “tenho uma relação com um homem”, com o que essa mãe deve ter se perguntado o que ela teria sido, até então, para seu marido. Se o que ele buscava era “relacionar-se com um homem”, quem ou o quê ela fora para ele? Isto está no caso, embora não dito explicitamente, e me parece ser o equívoco, o nó do assunto.

Depois, encontramos o que uma fotografia desencadeia também no caso de Alice, que esteve experimentando os vestidos da histeria: ser a inocente, a sedutora… mas, quando alguém a toma, o faz verdadeiramente e lhe envia a foto do nu, isso a deixa completamente surpresa e exposta. O que se descobre é que, na realidade, ela tem brincado de sê-lo, o falo. Ela brincava de ser o falo e alguém lhe mostrou que ter o falo é outra coisa. E aí, algo se desvelou.

Dou pinceladas, provocações para que vocês possam intervir. Tentaremos produzir uma conversação, na medida em que nos seja permitido pelo Zoom.

Retomemos Eloá. O empuxo à mulher que Margarete nos propõe no título, poderíamos não o centrar unicamente no filho, mas abri-lo como um leque, porque algo disto está no pai, não digo um empuxo à mulher psicótico, mas há algo…. como dizer…? minimamente, há um vestir-se de mulher e tomar um homem como partenaire, do lado do pai. E, que, por alguma razão, quer mostrar à mãe, produzindo nela um efeito de interpretação e de horror.

É algo que nos ensinam todos esses casos, nos ensinam algo de mulheres que se horrorizam. Mulheres assustadas… de certas consequências de seus próprios atos ou de certas consequências de seus próprios percursos, porque a mãe de Eloá havia sido parceira deste homem durante anos.

Então, me parece que Eloá nos ensina de entrada, que o sexo não é algo que venha enganchado no corpo da criança, não é algo que vem parafusado ao corpo. Como o caso do pequeno Hans, que sonhava com a torneira da banheira parafusada em seu corpo no lugar do pênis. O sexo não vem assim. É algo que se produz, que o parlêtre elabora. E Eloá dá provas disso, quando se apresenta com esse aspecto um pouco andrógeno, um pouco desorganizado… assim como estão desorganizadas suas relações com as palavras e com os objetos. Tudo está desorganizado.

Margarete se empresta para se fazer para nós do fio condutor do trabalho dessa criança. Pareceu-me algo original, porque Eloá faz um trabalho muito importante, há mudanças fundamentais em quatro anos, não apenas na maneira de apresentar-se, que vai se definindo, mas também no final quando acaba com o traço simplesmente do cabelo e da voz, o cabelo e a voz, quando a apresentação inicial era uma verdadeira desorganização. Então, as coisas foram se decantando, depurando e a criança está muito melhor. Mas, como isso foi produzido? Como isso foi possível? Isso também me evocou o caso do Pequeno Hans, de Freud, porque Margarete relata o caso, mas não foi ela quem o atendeu, foram outras colegas que trabalharam sucessivamente com a criança e contaram a Margarete, que supervisionou um pouco a coisa ou, pelo menos, foi quem alinhavou o caso para nós. Parece-me importante assinalar que, embora a criança tenha trabalhado com várias pessoas, nem por isso podemos dizer que foi uma prática entre vários.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

O fato de que várias pessoas atendam sucessivamente uma criança, não faz desse trabalho uma prática entre vários. A prática entre vários é outra coisa, é um trabalho em uma instituição onde toda a instituição está comprometida, onde todos estão em transferência com a psicanálise e as crianças circulam nesse ambiente transferencial no qual qualquer um pode se tornar seu parceiro em dado momento. É uma prática da contingência. É preciso ler Antonio Di Ciaccia, ou os colegas belgas e italianos, que têm muitos anos de experiência. Então, não é uma prática entre vários, tampouco é uma análise nos moldes de uma criança que fala com um psicanalista … Aqui é outra coisa, é outra dimensão, o que produziu efeitos terapêuticos notáveis.

Eloá é uma criança que inventa, inventa soluções, inventa jogos e inventa também seu tratamento. Minha hipótese é que essa criança inventou sua maneira de trabalhar, falando com alguém orientado pela psicanálise. E com eficácia! As estagiaire foram suficientemente dóceis para segui-la e Margarete soube orientá-las o suficiente, para que se pudesse produzir os efeitos obtidos ao final. O que poderíamos nos perguntar aqui é se cada criança não inventa sua maneira de se analisar e, do que se trata, é de segui-la em suas invenções.

Outro ponto importante a destacar é que é possível que uma criança esteja em uma posição de abandono do Outro, ou seja, que sua mãe não se ocupe dela, não lhe dê banho, não a lave e que a deixe um pouco abandonada, mas isso não significa obrigatoriamente que a criança consinta, em todos os casos, em se identificar com esse abandono; esta criança não consente, pelo menos não completamente. Ele se queixa com a brincadeira de boneca que cheira mal e que tinha que tomar banho – está falando dela, é claro. Quer dizer, o Outro dá as cartas, mas o sujeito ainda tem que pegá-las. Nesse ato que se produz no inconsciente, uma escolha forçada está em jogo no sujeito, através da qual teremos um melancólico, caso a criança pegue a carta do objeto dejeto.

Neste sentido, me parece muito interessante, isolar o recorte do jogo do pênis. Essa criança não tinha acabado de sair de dentro da boneca e então aparece o pênis, “você viu o menino?”, é uma afirmação dele: “não sou uma menina”. Havia brincado de boneca, havia se apresentado como uma bailarina e, no final, pergunta ao outro “você viu o menino?”, “você me viu?”, “você me notou?”

Um dos trabalhos apresentados hoje retoma a frase de Eric Laurent, “a internet muda a forma de gozar”[4]. A Internet mudou o modo de gozar, e eu acrescentaria, inclusive, que antes que a Internet mudasse o modo de gozar, os filmes de Hollywood mudaram a maneira de beijar. Tem um filme do Giuseppe Tornatore sobre os beijos, Cinema Paradiso – não sei como se chamava aqui no Brasil – que é uma beleza. Não podemos imaginar como as pessoas se beijavam antes de Hollywood, mas, seguramente, depois de Hollywood, as pessoas se beijam como nos filmes ou pelo menos tentam. É o poder do imaginário sobre o gozo e sobre o corpo.

Eloá vem com o impacto da fotografia de seu pai, através de sua mãe, e sente que precisa colocar uma moldura no seu trabalho pela internet, ou seja, que não é suficiente que haja a imagem e haja a tela como filtro para a coisa; ela precisa adicionar uma moldura, uma caixa, para se proteger melhor. A última questão com que termina o texto de Margarete é se o encontro de Eloá com o gozo feminino será pacífico. Ela anuncia que pode não o ser e, de fato, me parece provável, mas a grande questão é: para quem o encontro com o outro sexo é pacífico, alguma vez? Porque o que vemos é que para o pai não foi, para a mãe não foi e nos trabalhos que ouvimos, também não. Assim, o encontro com o outro sexo é algo que justamente não é – pacífico – nunca. O desejo não é a paz.

Valin Branco, 2021. Curva de moebius clássica, em cedro, madeira de demolição.

Vamos agora entrar no trabalho de Soraya. Uma boa maneira de começar é marcando, como avançamos em uma pequena reunião preparatória com Flávia e Nohemí, que as conversações que o CIEN propõe e sustenta – Soraya disse muito bem – não fazem interpretação. As conversações do CIEN não são um tratamento, não são uma terapêutica, não se trata de interpretar ninguém ali. Dito isso, é preciso afirmar que não são uma conversação qualquer, não são uma conversação como as outras, como esses… como se chamam? Tertúlias! Encontros. Os encontros do rádio, televisão, blábláblá. Ali, não acontece nada, em geral não tem nada de interessante, no fundo, eles são feitos para adormecer o staff. As conversações do CIEN têm a particularidade de ter uma espinha dorsal – a ideia da espinha dorsal é de Flávia – têm uma espinha dorsal, que é a psicanálise. Portanto, por esse simples fato, pelo fato de que os que coordenam ou sustentam as conversações são, antes de tudo, analisantes orientados/as pela psicanálise, isso dá a essas conversações uma orientação precisa que não é como as outras, e os efeitos que elas produzem também podem ser diferentes.

O caso de Alice, que Soraya nos apresenta, nos faz voltar a encontrar com o horror das mulheres ou, pelo menos, com o susto das mulheres diante do falo, como algo que vem lhes dizer: “você pode pensar que o é, mas outra coisa é quem o tem”. Essa seria uma primeira questão e a segunda, como diz Lacan, é captar que o falo é algo que se interpõe, é paradoxalmente o que impede a relação sexual.

No trabalho de Soraya, há uma frase a destacar: “posicionar-se nas redes sociais como um eu sem corpo”, porque diz algo do momento atual, agora quando, em todo o Campo Freudiano, a única maneira de trabalhar com os colegas e com os pacientes é com Zoom, Skype ou telefone. Ainda não sabemos os efeitos disso tudo, estamos fazendo a experiência, ou seja, os estamos usando sem saber os efeitos que produzimos. Não sabemos quais efeitos de formação irão se produzir, se é que se produzem; não sabemos quais são os efeitos de relançamento do desejo; poderemos entender tudo isso depois. Então, me parece que essa ideia de “eu sem corpo”, é preciso recortá-la, porque tem um valor de ensino. O que Alice nos ensina é que talvez as redes sociais favoreçam um eu sem corpo, mas não sem o inconsciente. As redes sociais não tamponam, não impedem que o inconsciente surja: é o que acontece com Alice ao receber a foto.

Outra foto que revela! Desta vez, revela a dérobade[5], a fuga da histeria, como se dissesse ‘isso não funciona comigo’, mas que se denuncia, fica claro que ali havia um desejo em jogo, precisamente, que o falo estava em jogo.

Por último, antes de entrar na conversação, eu diria que, neste exercício de moebius entre CIEN e CEREDA, há algo que nos toca como psicanalistas, nos toca no íntimo do nosso desejo de analistas. Parece-me que o que esses trabalhos têm em comum é que eles nos ensinam algo da ética analítica. Ou seja, que não poderiam ser realizados, se não estivessem apoiados na firme convicção, como diz Lacan no Seminário 7, de que o analista não sabe o que é o Soberano Bem[6]. E isso, trabalhando com crianças, é totalmente imprescindível.

Se trabalhássemos pensando que sabemos qual é o bem para uma criança, fosse numa conversação do CIEN ou num trabalho analítico com uma criança, se pensássemos que sabemos o que lhes convém, os efeitos que vimos não teriam sido produzidos, nem os efeitos terapêuticos, nem os efeitos de ensino. Esta é a hipótese que lhes proponho e agora vamos conversar e escutar as de vocês.

 

Transcrição: Daniela Nunes Araújo
Tradução do texto estabelecido pela autora: Mª Cristina Maia Fernandes
Revisão da Tradução: Paola Salinas

[1] Texto elaborado pela autora a partir da transcrição da sua fala no VI Encontro dos Núcleos da NRCereda no Brasil – “Os Impasses do sexual e os arranjos da sexuação”, na Mesa “NRCereda e CIEN: Sobre a Diferença Sexual”, em 11 de março de 2021, via Zoom.
[2] LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[3] AROMÍ, A., “La alegría del Niño”, El Niño nº 10. Barcelona, febrero de 2002.
[4] LAURENT, E., Jouir d’internet. Conversation avec Eric Laurent, La Cause du dèsir nº 97, Navarin Editeur, novembre 2017. Disponível em português: Laurent. Eric. Gozar da internet. In: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da EBP-MG, n. 12, agosto de 2020. http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/gozar-internet
[5] NT: evasão, fuga.
[6] LACAN, J., O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
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