
Editorial – Outubro 2016
by cien_digital in Cien digital #20, Editorial

Alexandre Sequeira
Maria Rita Guimarães
Caro leitor e amigo do Cien Digital,
Este número que agora lhe oferecemos, consagra-se a nos levar por trilhas poéticas e, às vezes, também tortuosas, ao redor dos significantes convocados pelo tema da adolescência: desejo, solidão, laço social. São significantes presentes nos títulos do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano – Adolescência, idade do desejo , cujas informações você encontrará no link: http://www.encontrobrasileiro2016.org e da V Manhã de trabalhos do Cien Brasil, Adolescência, Solidão e Laço _ informações, além do site, aqui mesmo! Fazemos-lhe o convite para que se agende já, inscreva-se e esteja conosco em São Paulo em novembro deste ano.
Você decide por onde começar o percurso, mas uma pista é você se deixar guiar pela frase de Jacqueline Dheret, nossa entrevistada: A marca da adolescência é o mais fora da norma de cada um que emerge e que ainda não tomou a forma de sintoma.
Até encontrá-la, leia Biografia não autorizada de um jovem infrator, escrita por nosso querido consultor Célio Garcia, sempre atento e dedicado aos temas dos jovens, sobretudo naquilo que podemos situar como “fora da norma de cada um”. É o ponto essencial do trabalho feito pelo CIEN. O texto de Síglia Leão é orientador em relação à ética dessa prática que visa a possibilidade de abertura ao desejo do sujeito em questão.
A precipitação das mudanças corporais, tudo aquilo que se desorganiza pela irrupção pulsional, evoca o lugar privilegiado que assume o corpo na passagem pela puberdade/adolescência, mais além da importância do espelho. Alexandre Stevens considera várias modalidades de Fazer-se um corpo na adolescência, valendo-se de Joyce, Rothko e Balzac. Parada obrigatória!
LABOR(a)tórios de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo apresentam as reflexões que sustentam o desejo circulante na prática do CIEN. É nesse espaço de entusiasmo rigoroso e levando em conta as soluções aliviadoras e/ou mortíferas/adormecedoras, que os adolescentes inventam para irem da solidão estrutural ao laço social/sexual, que os trabalhos de Ely Silva, Nádia Laguárdia /Claudia Generoso e Margaret Diniz, cada um à sua maneira, devem ser lidos em Contribuições. O Cien Brasil compreendeu logo de início que a narrativa fílmica sempre flertou com o tempo de travessia do ser falante, no intuito de presentificar o sintoma que a adolescência pode incarnar em nosssa sociedade. Cinecien se ocupa de trazer para o debate as manifestações sintomáticas manifestas no despertar da sexualidade e quais os discursos presentes na abordagem do gozo em foco. XXY é um filme argentino, de 2007. Trata-se de Alex, adolescente de 15 anos, que possui os caracteres primários masculinos e femininos: a intersexualidade é seu segredo assim como o de sua família. Comentários sobre o filme e sobre a Conversação que se seguiu à exibição? Vai lá, na rubrica Cinecien! E também se fala de XXY no Ponto de Vista, texto que costura a proposta de pesquisa do Cien em andamento no semestre – O que é ser homem? – tecendo os pontos : eleição de sexo, eleição de gozo.
Boa leitura!
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V Manhã de trabalhos do CIEN Brasil: Solidão e Laço na adolescência
by cien_digital in Cien digital #20, Eventos

V Manhã de Trabalhos do CIEN-Brasil: Solidão e Laço na Adolescência
Argumento
Solidão e Laço. Dois termos opostos, antinômicos. Um, negativo; outro, salutar. Não, não foi essa visada que levou o CIEN a elegê-los como tema de nosso próximo encontro.
Dentre os muitos paradoxos da experiência humana que a psicanálise ajuda a abordar, esse talvez seja o mais crucial para a adolescência: um bom laço só é possível quando respeita e sabe acolher a solidão de um jovem. As ideias, sensações e experiências corporais que parecem radicalmente estranhas ao social são, ao mesmo tempo, a bússola de nossa aventura na vida.
Um laço sem solidão equivale ao anonimato na multidão, ao apagamento do brilho e da criatividade juvenis. A solidão sem laço, por outro lado, é a perdição, o desamparo, o flerte com o fim da vida.
Esses dois polos da experiência adolescente são certamente bem conhecidos de todo aquele que desejou escutar a juventude.
Como escapar deles? Que cruzamentos entre solidão e laço são possíveis para os jovens? Como ajudá-los a inventar um bom encontro se sua vida tornou a tarefa especialmente difícil?
Fundado na psicanálise de orientação lacaniana, mas ao mesmo tempo destinado a explorar suas fronteiras, o CIEN se dedica ao trabalho com jovens fora do terreno da clínica. É desses ambientes heterodoxos que teremos notícias na Manhã de trabalhos do CIEN-Brasil.
Das Conversações realizadas com jovens e com equipes interdisciplinares dedicadas a trabalhar com eles, chegarão desafios e soluções contemporâneos. Os Laboratórios do CIEN foram convocados a partilhar e debater aquilo que têm garimpado sobre os seguintes eixos temáticos:
- Como as novas tecnologias e as redes sociais impactam a costura entre solidão e laço?
- Que usos e desusos das línguas têm sido inventados pelos jovens na tessitura de seus laços e na tradução de sua solidão?
- Como a adolescência cria e experimenta as novas permissões e exigências destinadas aos corpos?
Esperamos vocês para discutir esses temas, apaixonantes e fundamentais para nosso tempo.
Envio dos trabalhos
Aguardamos a experiência dos laboratórios do CIEN até o dia 15 de outubro, para o e-mail brasil.cien@gmail.com.
Cada comunicação deverá conter até 6000 caracteres, incluindo espaços e notas, na fonte Times New Roman, tamanho 12.
- Comissão de coordenação e orientação do CIEN-Brasil: Nohemí Brown (Coord. Geral), Lucíola Macedo e Rodrigo Lyra
- Comissão adjunta: Paola Salinas (Coord.), Mônica Campos, Mônica Hage e Vânia Gomes
- Comissão da equipe de mídias: Miguel Antunes (Coord.)
Orientações para Inscrição:
- Valor: R$ 60,00
- Realizar depósito identificado na conta:
- Banco Itaú
- Ag.: 4540
- Conta Corrente: 02333-2
- CNPJ: 02.804.439/0001-00 (se precisar)
- Enviar ao e-mail brasil.cien@gmail.com:
- Comprovante de depósito
- Nome Completo
- Instituição/Vínculo (professor,estudante, etc.)
- Sua inscrição será confirmada por e-mail.

Biografia não autorizada de um jovem infrator.
by cien_digital in Cien digital #20, Traço de União

Janaína Tschape, Dust Particles, 2010
Célio Garcia
Nasce uma criança.
Parto natural, dores terríveis.
Havia escutado na barriga da mãe (eles não vêm, mas escutam) “me inclua fora dessa”.
A criança se destinava assim a ser um jovem infrator.
Lembrar-se ia da frase aderindo a ela.
Descobrindo o corpo achou o sexo.
As “minas” ficariam para mais tarde
Esgueirando-se ao longo do muro que o separa da escola
Conversando com seus botões, próximo da escola, disse para si mesmo.
“me inclua fora dessa”.
Não tem nada a ver.
Em vez de pai que já se foi, padrinho que permanece como chefe da boca de fumo estável, dá segurança e proteção quando a barra é pesada.
Demais, ameaça de morte.
É dura a vida quando se trabalha de aviãozinho.
É dura a vida quando se trabalha de aviãozinho.

“Howling for You” © Renata de Bonis/Reprodução
Segunda parte.
Encontro com o sistema socioeducativo.
Um dia, aviãozinho caiu na malha da policia.
A polícia toda malhadinha, história de camuflagem, onde se faz tocaia.
Um programa como o “Fica vivo” articulado de uma maneira sutil com a psicologia serve de tocaia.
Varias vezes fui chamado para falar sobre o Fica vivo.
Desde a primeira vez estranhei o título do programa.
Na mesma época a Bienal de São Paulo teve como lema “Como viver juntos”; me perguntei se poderia mudar o nome do programa; ao invés
de “Fica vivo”, “Como viver juntos”.
Tal como queria a curadora Lyzete Lagnado da Bienal de São Paulo.
Um dia passou no Conselho da Casa.
Todos tinham o direito a falar, o jovem infrator também, mas não conseguiu dizer nada do que queria. Faltaram as palavras. Havia o costume do instrutor sair para comprar sanduiche depois do lanche, antes de dormir.
Também comprava- se fuminho.
O Serviço de segurança era formado por gente boa talvez próximos dos jovens infratores.
Recuperar quer dizer através do PIA. O pia é impiedoso. Eles piavam para preencher o PIA.
Jovem Infrator algum pretende mexer com tais coisas.
Arrependimento e culpa.
Havíamos passado da periculosidade da época do Código de Menores, FUNABEM e FEBEM para a noção de recuperação por culpa e arrependimento.
Eis-me aqui, antigo Conselheiro da FUNABEM no Rio de Janeiro nos anos sessenta.

Sheila Hicks Fetera II, 2011 Plumes and cotton
Terceira parte.
Existe um índio em uma região entre o Peru e o Estado do Acre“isolado” causando preocupação à Funai. Como ele foi parar lá? Ninguém sabe…
Desgarrado. Forçado pelas circunstancias da natureza? Forçado pela perseguição do branco? Escolha do índio?
Isso revela uma polarização, um antagonismo rechaçado entre os índios “pacificados” e os isolados, refletindo toda uma perspectiva cultural, antropológica e social, contemplada por uma concepção de modernidade que não admite mais o “selvagem” como parte de sua engrenagem. Quanto mais o
filme se imanta das memórias e dos causos contados pelos personagens, quanto mais se embrenha na densidade soturna da floresta e do rio, quanto mais revela uma miscelânea de etnias, de feições de povos e culturas, mais somos confrontados com uma realidade que nada tem de heróica ou exotizante, mas somos confrontados com o lado obscuro e selvagem que existe escondido, adormecido em cada um de nós.
Esta nota vou escrever em paralelo com o jovem infrator. Isolado como se fosse o mesmo destino do índio.
Minha documentação em se tratando do índio isolado é basicamente constituído pelo documentário “Paralelo 10”.
Silvio Darín, autor desse documentário,
Também o jovem infrator parece fazer a mesma escolha do índio, permanecendo isolado.
Como pode haver tal estranha escolha?
A FUNAI busca proteção do índio, tal como o ECA e o sistema socioeducativo. Nenhum sistema socioeducativo dá conta de tal escolha, nem a FUNAI. Como bem sabemos, o fracasso é total em se tratando do jovem infrator. O desafio é de monta.
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A Prática de Laboratório do CIEN: uma abertura para o desejo de saber.
by cien_digital in Cien digital #20, Traço de União

Paulo Nimer Pjota
Siglia Cruz de Sá Leão.
A prática dos laboratórios do CIEN aparece como uma resposta do Campo Freudiano às urgências e exigências que o mestre contemporâneo faz recair sobre as crianças e os adolescentes. O laboratório é o nome que damos ao espaço, à instância de encontro das diferentes disciplinas, cuja experiência torna-se inédita por ser sustentada pelo “não saber” – para tanto, apostamos na presença da psicanálise enquanto discurso que pode manter o lugar vazio e tirar consequências do desejo de saber.
Esta orientação promove inquietação nos profissionais das diversas áreas que se aproximam do CIEN, não por acaso. Afinal, o que está em questão é o próprio estatuto do saber na atualidade, em um tempo marcado pelo apelo ao utilitário, à produção de respostas generalizantes, “válidas para todos” e que sejam também tranqüilizadoras, rápidas. Saber(es) que vêm sendo progressivamente infiltrado(s) pelo discurso da avaliação, por práticas tecnológica/políticas, que têm, dentre outros, o efeito de silenciar o impossível de dizer que por ali se agita. Respostas prontas; sujeitos categorizados.
A aposta é que a interdisciplinaridade, tal como concebida no CIEN pode fazer frente a este fenômeno característico de nossa época e favorecer uma práxis que possibilite a emergência de um novo saber, que não o das categorias.
Uma prática da interdisciplinariedade que não é como outra qualquer, como aquela presente no cotidiano institucional – a multidisciplinar, ou seja, a reunião de várias disciplinas que possam dar conta do que acontece. Enfim, a interdisciplinaridade é uma prática distinta que carrega o traço de sua distinção na grafia da palavra inter-disciplinaridade[1], grafada com hífen, contrariando a norma gramatical, justamente para fazer marcar a abertura, uma abertura no opaco das disciplinas.
Nesta proposta, é o desafio poder sustentar esse hífen operador, esse lugar vazio, o que implica, nos diz Laurent, que não se trata de agregar a verdade de uma disciplina a outra, nem mesmo a psicanalítica[2]. Nenhum saber a mais, tampouco o da psicanálise a fechar a brecha do não saber aberta pelos pontos de impasse que enfrentamos.
No laboratório, este uso particular dos saberes, em uma conversação, promove uma “elaboração provocada entre vários”[3], de maneira que cada disciplina possa interrogar-se e ser permanentemente interrogada, pela outra, em seus pressupostos e teses. A aposta é que possa acontecer certo deslocamento do seu saber mestre, um certo “desarranjo nas identificações”[4] mais ou menos obscuras de cada um em relação ao seu próprio saber. É nesse ponto, muitas vezes, que pode surgir o saber da criança como uma bússola.

Arturo Herrera, Jack, 2010 Mixed media on paper
A experiência de um Laboratório
Nomeado “A Criança e as Ficções Jurídicas”, este laboratório centrou seu campo de investigação nos modos de incidência do discurso do Direito sobre a criança, os efeitos e impasses daí advindos. O termo “ficções jurídicas” designa as medidas de proteção às crianças e adolescentes, inspiradas e regidas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e que estão organizadas de maneira própria em cada país – no caso do Brasil, estão formuladas no ECA.
Este laboratório mobilizou a participação de profissionais de alguma maneira atravessados pelo discurso jurídico, em sua atuação junto a crianças e adolescentes: psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados e psicanalistas, profissionais estes com atuação no Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Publica, em ONGs de defesa dos direitos das crianças, em projetos sociais voltados ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, programas municipais de assistência social, instituições de saúde e de educação. Buscam o CIEN movidos por alguma inquietação, ansiosos por alguma resposta às dificuldades que enfrentam em sua prática cotidiana, ou interessados no intercâmbio com a Outra disciplina.
A conversação, que transcorre no interior do laboratório, acontece sobre um tema lançado à discussão, um texto-pretexto ou prioritariamente em torno de impasses que os profissionais enfrentam em sua prática cotidiana, oriundos não só dos atendimentos as crianças, mas também da aplicação de leis e normativas que se impõem e atravessam suas ações, provocando certo desnorteio – o foco principal é, pois, a posição do profissional frente às demandas que lhe são colocadas em um dispositivo jurídico.

Trisha Brown , Untitled (Montpelier), 2002 Charcoal on paper
Qual a medida?
Um adolescente de 14 anos é encaminhando à Fundação Casa após brigar na escola e no abrigo onde se encontrava. A medida era excessiva, desproporcional ao acontecido – a assistente social que acompanhava a família em um Projeto Social apresenta tal situação no Laboratório. O adolescente (na época, uma criança) e sua família começaram a ser atendidos por estarem em situação de rua, na “Cracolândia”. Os pais, usuários de drogas. A mãe, presa algumas vezes. Ele e os quatro irmãos acabaram abrigados. Após algum tempo, as visitas dos pais foram suspensas judicialmente, por descumprimento das regras do abrigo. O adolescente começou a manifestar “problemas de comportamento”, sendo descrito pelo coordenador da instituição acolhedora (que tentou transferi-lo diversas vezes) como agressivo e perigoso; e outras etiquetas passaram a compor seu “prontuário”: impulsivo, sedutor, dissimulado, hipercinético, delinquente, abusador. A partir da conversação no Laboratório, ficaram evidentes os significantes mestres institucionais, o ideal que se sobrepunha à prática de cada profissional, apagando seu saber-fazer, impedindo a criatividade no encontro com o outro. Imersos em protocolos pré-estabelecidos e em busca do comportamento padrão, é a gravidade suposta das ações do adolescente que sobe à cena; ele desaparece – não havia nenhum registro de suas falas na instituição. Os únicos dados eram psiquiátricos, apesar de ter sido atendido por diferentes profissionais, psicólogos e educadores.
A assistente social se surpreende com essa sua descoberta durante a conversação. Na própria instituição em que ele era tratado (a que ela trabalhava) e que tinha como uma das metas defende-lo da segregação a que poderia estar exposto nas outras instituições, repetia-se o mesmo, isto é, a segregação. O sujeito obliterado por práticas, que ao final, concluiu-se, estavam impregnadas pelo afã de seu controle, o controle social.
Conseqüência da conversação, a profissional vai evidenciando para todos os envolvidos no atendimento que ninguém sabia nada do adolescente – estava coberto de diagnósticos e pelo barulho dos acontecimentos em que se envolvia. O que se via era a medida que extrapolava; e à medida em que extrapolava, fazia-se ver.
A partir de sua posição única, “descompletada” de sua equipe, a assistente social fez-se destinatária, na contingência de um encontro com esse adolescente, da enunciação, por ele, de seu lugar de sobra: “os BOs sobram para mim”. Ele que sobrou com seus irmãos no abrigo, sem família, sem adoção no desejo do Outro. Partindo de seu campo de saber e lugar institucional, essa profissional lhe propõe então ajudá-la a separar as fotos de sua família para montar o álbum de um projeto do qual ele participava no abrigo: o “Fazendo História”. Ele topa, se alegra, se recompõe.
Sustentar esse encontro com o Real insuportável, que não se domestica, buscando um modo, o seu modo de fazer com o obstáculo, foi um dos efeitos para esta profissional concernida nesta situação. Assim, a própria orientação inter-disciplinar busca dar um sentido a esse real, diverso do universal, para que o trabalho continue.

Vânia Mignone
O tempo, a medida… Qual?
Em funcionamento desde 2004, esse laboratório encontrou, em 2015, seu tempo final. Como localizar esse tempo? Qual a medida?
Mantido o princípio da conversação inter-disciplinar, os laboratórios funcionam nos mais diversos tempos, estilos, locais. Há laboratórios pontuais, há aqueles mais perenes, há conversações feitas somente com os profissionais, há aquelas em que participam também as crianças e os adolescentes.
O que mantém o laboratório vivo são os impasses – sua coluna vertebral. Sem eles, o laboratório deixa de o ser; perde sua função. Se é função do laboratório arejar os saberes consolidados das disciplinas, quando os impasses foram se aquietando, restava escutar do que se tratava esse silêncio. A escuta levou a dedução do encaminhamento a ser dado: diferentes profissionais implicados com suas práticas, menos “asfixiados”, o laboratório ainda estava em funcionamento, mas já era o seu tempo final. Era o meu momento de concluir e sustentar que não daríamos consistência ali a outras demandas que levariam, equivocadamente, a fazer consistir uma disciplina, a da psicanálise.
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Fazer-se um corpo na adolescência
by cien_digital in Cien digital #20, Hífen

Clara Ianni
Alexandre Stevens
Escolhi apoiar-me em uma referência, à qual retornarei, que provém de um dos últimos seminários de Lacan, o seminário sobre Joyce, como temos costume de falar, ou seja, o Seminário XXIII, O Sinthoma[1].
Antes, porém, gostaria de colocar de uma maneira mais ampla a pergunta sobre o que é “fazer-se um corpo na adolescência”. Assim, se podemos colocar essa pergunta é porque há uma dificuldade com o corpo e a adolescência.
Naturalmente já temos um corpo antes da adolescência, contudo algo se modifica com o aparecimento da puberdade, mas não somente isso. Algo muda, sobretudo, com o que Lacan, no seu prefácio à peça de Wedekind, O despertar da primavera, chama de “o despertar de seus sonhos.”[2]
Não é a mesma coisa considerar que o corpo deve ser refeito porque há uma mudança biológica nele, ou que se refaz porque estes jovens sujeitos são levados a sonhar de outro modo “o despertar de seus sonhos”; o despertar de seus pensamentos é também o pensamento do Outro corpo.
É o que faz com que os adolescentes sejam levados a ter de abordar novamente essa questão sobre o corpo, em relação à qual eles organizaram, afinal de contas, um certo número de elementos, de fantasias, etc. O corpo como o corpo que se tem, aquele que se experimenta. Quando digo “que se experimenta”, isso quer dizer que goza. Não é apenas o corpo do qual se pode ter uma ideia, é o corpo tal como ele é experimentado. O que Lacan chama de gozo, é o que se experimenta.
Sabemos que Lacan nos levou a apreender o corpo como uma imagem. É a primeira forma do corpo no ensino psicanalítico, inclusive em Freud. É o que Lacan vai formular como o estádio do espelho. Temos também o corpo como simbólico, ou seja , tal como ele é tomado nos significantes da língua na cultura.
No seu curso do ano passado que se intitula “Falar a língua do corpo”, Éric Laurent aponta a esse respeito a disjunção do corpo e do vivo. O corpo, uma vez que incorporou o significante, ou seja, que entrou na linguagem, torna-se uma superfície onde o caráter de vivo ou de morto é secundário.

Marina Rheingantz
A sepultura nos mostra isso: em sepulturas – Lacan desenvolve essa questão em vários momentos – o corpo não se torna nenhuma carniça, mas pelo contrário, o corpo que a linguagem corpsificava, como disse Lacan com um neologismo, ganha um estatuto diferente do organismo. Em “Radiofonia” Lacan observa que “a sepultura antiga figura o próprio “conjunto”, a partir do qual se articula nossa lógica mais moderna.” O conjunto vazio das ossadas é o elemento irredutível pelo qual se ordenam, como elementos outros, os instrumentos do gozo – colares, copos, armas: mais subelementos para enumerar o gozo do que para fazê-lo reingressar no corpo.”[3]
Sabemos que aqui ele faz referência a mais moderna lógica porque para a lógica matemática, todo conjunto, quaisquer que sejam os elementos que o constituam, apresenta o conjunto de seus subconjuntos. Se você tem um conjunto com dois elementos A e B , os subconjuntos são {A}, {B}, {AB} e ∅ o conjunto vazio. O conjunto vazio é sempre ao final incluído em todo conjunto. É a partir desse conjunto vazio que Lacan vai formular o sujeito do inconsciente como tal. Portanto, o que ele situa na sepultura é o elemento conjunto vazio do sujeito como série de ossadas e elementos de gozo que o sujeito teve no curso de sua existência. O corpo é a série desses instrumentos de gozo.
A propósito, poderíamos nos perguntar se hoje, caso ainda se fizesse tais sepulturas, com o que seríamos enterrados: Iphone, tábletes…? Estes instrumentos não tomam um sentido particular, eles somente podem ser enumerados: pode-se apenas fazer a lista da série de objetos de gozo aos quais o sujeito se liga.
Isso dá uma indicação, uma primeira, sobre a questão do corpo na adolescência. Penso nos adolescentes, invadidos, às vezes, por tais objetos. Quando digo os adolescentes, somos nós, também: o iPhone, o táblete, etc, nós estamos permanentemente conectados neles. Mas um certo número de adolescentes está extremamente conectado e, além disso, frequentemente em várias máquinas ao mesmo tempo. Eu me coloquei a questão, aliás, – porque acontece que eu também tenho dois adolescentes – eu os vejo também estando ao mesmo tempo em frente da televisão, em comunicação com um amigo no iPhone e olhando no táblete como terceira coisa.

SHAHZIA SIKANDER, Practice makes perfect, 2011
Então eu me perguntava – eles não estão assim o tempo todo, fique tranquilo! – será que eles estão ligados demais, ou será que eles conseguem, graças a isso, se desligarem? Porque não é a mesma coisa que estar simplesmente vendo a televisão após o trabalho por toda a noite. Isso é uma ligação fixa. Não é a mesma coisa que ter sua série de objetos de gozo em que se pode passar de um a outro.
Se tomamos o corpo por seus troços de real do gozo, não se trata de lhes dar um sentido, trata-se de chegar a nomeá-los para os sujeitos adolescentes que estão muito agarrados, às vezes, a seus objetos ou a jogos, numa espécie de adicção. Ainda temos jovens que são extremamente fixados aos jogos de vídeo.Temos esta patologia, que aparece mais no Japão do que aqui, do jovem que se mantém completamente isolado em seu quarto, apenas com seus jogos. Nesses casos, o que se pode fazer? Nada além, justamente, de se interessar pelo objeto de gozo e fazer com que ele nomeie, desenvolva progressivamente o que lhe interessa nele. Para além da solidão que ele experimenta, fazer com que palavras sejam colocadas, palavras sobre essa série de traços de gozo vividos frequentemente com grande sentimento de solidão.
O corpo tem uma inclinação a querer gozar e é preciso aceitar ocupá-lo um pouco para poder fazer outra coisa. Escutava recentemente estudantes me dizerem como eles estudam. Há um deles que caminha quando estuda; outro que tinha parado de fumar e recomeça no momento da prova: isso o acalma. O corpo pede para ser acalmado, isto é, para ser ocupado, para que se possa, de um outro lado, pensar.
Portanto, “se fazer um corpo”; o que é um corpo? Como se pode aborda-lo?
Lacan destacou várias vezes que um corpo, não o somos, nós o temos. No discurso corrente, isso é evidente. Não se diz: “eu sou esse corpo”, se diz: “tenho um corpo”, “eu tenho dor em tal lugar”, etc. Fala-se do próprio corpo como de um “ter”. A propósito, Jacques-Alain Miller enfatiza que o temos tanto que é necessário se ocupar dele como de um objeto.

Leonardo Drew, Number 182, 2016
De fato as mulheres devem, de vez em quando, recompô-lo um pouco cada manhã, como uma imagem na frente do espelho, maquiando-se etc. Quanto aos homens, pelo menos para eles, há sempre um pedaço que faz o que bem entende e do qual eles não têm certeza se faz parte deles.
Lacan vai mais longe no Seminário sobre o Sinthoma , onde ele diz isto: “o falasser adora seu corpo porque crê que o tem”.[4] O falasser é um neologismo do último Lacan para falar , não mais do sujeito do inconsciente, do sujeito da fala que busca o sentido daquilo que ele diz, mas para falar do sujeito entanto que ele goza, para falar do corpo que goza como tal. Portanto, o falasser é você e eu, nesta dimensão onde o corpo nos captura. “O falasser adora seu corpo porque crê que o tem”. Ele crê que o tem, isso quer dizer que ele não o tem. Quando encontramos sujeitos que estão em grande dificuldade – penso em particular nos esquizofrênicos –compreendemos logo que um corpo não se o tem, necessariamente. Isto me evoca meu primeiro encontro em psiquiatria – eu fazia estágio naquele hospital havia uma semana – um homem com cerca de vinte anos me disse: “você vê lá, debaixo do armário, são meus glóbulos vermelhos”. Eu fiquei um pouco surpreso, devo dizer. E aos poucos compreendi a dificuldade que ele tinha para juntar um certo número de pedaços. Portanto, o corpo, crê-se que o tem, o que nem sempre é seguro.
A propósito, esta manhã, durante um pequeno seminário com os trabalhadores do Centro psicanalítico de Consulta e Tratamento (CPCT), um dos participantes apresentava o caso de um jovem que se sentia completamente atravessado por vozes estrangeiras que falavam mal dele. Mas o conteúdo das vozes contava bem menos do que o fato de que seu corpo era sem cessar invadido por alguma coisa estrangeira, ao ponto que ele dizia: “meu corpo não pertence completamente a mim, ele é outro”. Compreendemos bem que para esse jovem, seu corpo, ele não acredita que ele o tem, isso não está exatamente assegurado.
“O falasser adora seu corpo porque crê que o tem”[…] A adoração, disse Lacan, “é a única relação que o falasser tem com seu corpo.”[4] A adoração, isso quer dizer consagrar a ele um culto, é amor, mais precisamente o que se chama de amor próprio, quando se trata do amor de seu próprio corpo, do amor do corpo próprio. É a única “consistência mental” do falasser, disse Lacan. “Consistência mental” quer dizer que ela não é física. Aqui voltamos à questão de que se fazer um corpo na adolescência se não é tanto para responder à puberdade , é , ao menos, para responder ao que vem no mental, isto é, fora do físico como o “despertar de seus sonhos”. O que é do físico no corpo, sabe- se bem que isso, isso não consiste assim tão bem, isso escapa para todo o mundo progressivamente na existência. O que dá “consistência mental” é, com efeito, o amor-próprio do corpo, a ideia que se tem de seu corpo próprio e à qual nos seguramos.
Podemos relatar um caso particular de um adolescente que não se segurava nessa ideia. Um adolescente para quem isso escapa – o que escapa, não é seu corpo físico, mas é seu amor próprio.
É o caso de Joyce, na sequência que ele descreve, no Retrato do artista quando jovem[5], no qual ele conta como, retornando da escola discutindo com os colegas sobre os grandes poetas ingleses, – eles discutiam sobre os poetas como os jovens hoje fazem sobre os cantores. Eles discutem e ao final ele é espancado por seus colegas porque ele apoiou Byron, de quem os demais diziam que era herético. Discutem e ele é empurrado no alambrado de ferro com arames farpados; em seguida ele é abandonado ali, os outros vão embora. Ele se levanta e segue o mesmo caminho.

Luiz Zerbini, medusa, 2011
“Enquanto as cenas deste episódio cruel passavam com uma rapidez aguda na sua memória, perguntava-se porque não sentia raiva neste momento por aqueles que o tinham atormentado; ele não tinha se esquecido de um só detalhe da covardia cruel deles, mas suas lembranças não lhe despertavam nenhuma cólera. Todas as descrições de amor e de raiva que ele havia encontrado nos livros, pareciam-lhe desprovidas de realidade, mesmo naquela noite enquanto ele retornava titubeando, ele havia sentido um certo poder que lhe despojava desta cólera assim subitamente tecida tão facilmente como um fruto que larga a sua casca tenra e madura “.[5]
O que ele tinha sentido se perder, deslizar dele, não é seu corpo, mas o sentimento que ele tinha de seu corpo. Lacan disse: “a psicologia de seu corpo”. É seu amor próprio, é essa adoração do corpo. Precisemos com Lacan que não é um momento masoquista, quer dizer, não se trata de um gozo ruim. É, antes de tudo, simplesmente, a ausência de laços, de afetos que seguram o corpo. Mediante isto, todo o trabalho de substituição que Joyce vai fazer fabricando-se um ser de substituição, um nome próprio, consiste em reparar o que ele chama “a consciência incriada de [sua] raça”, ou seja , aquilo que vem fundar seu corpo como tal, sob a forma de seu trabalho da língua que torce a língua inglesa.
É uma solução, a solução de Joyce, uma maneira de se fazer um corpo, de se fazer um corpo fora do corpo. Fazer-se um corpo num trabalho sobre a língua. Existem outros exemplos de “se fazer um corpo” fora do corpo. Temos, por exemplo – Éric Laurent desenvolve isso – o pintor Rothko que faz um certo número de pinturas que são essencialmente constituídas por tiras de cores. Ele se aferrava muito a que tudo isso tivesse bom tamanho, ou seja, o tamanho do corpo. Demasiado grande aquilo não serviria para nada, demasiado pequeno seria uma redução da imagem do corpo que não conviria de forma nenhuma. Por isso pintava apenas telas do tamanho de um corpo. Além disso, Eric Laurent destaca que Rothko se esforçava muito para que suas pinturas fossem apresentadas em um espaço tal como se fossem encontradas no corpo de maneira frontal, muito rápido, para não ter espaço. Rothko explica bem que é preciso olhá-las de uma distância exata, de 85 cm, ou seja, que é preciso estar um pouco dentro, não se deve fazê-lo do exterior, trata-se de estar dentro. Eis um outro tipo de trabalho para se fazer um corpo fora do corpo. Um certo número de soluções são desse tipo.
Mas existe uma solução que não é necessariamente mais fácil e que eu tenho a fraqueza de considerar melhor. É conseguir adorar um outro corpo. “O falasser adora seu corpo” e, seja dito de passagem, essa pequena passagem de Lacan que comento, vocês encontram comentários sobre ela de Jacques-Alain Miller em seu curso “Peças soltas”. Jacques-Alain Miller nos apresentou uma leitura coerente do último Lacan. Esta adoração que Miller diz do Um corpo – ele escreve “Um” justamente para fazer aparecer como isto não é o outro – é evidentemente a raíz do imaginário. Ela nos lembra um pouco o estádio do espelho: o sujeito que se apreende como imagem, de início. Essa adoração do Um corpo é uma relação primária com o corpo que dá uma consistência imaginária ao sujeito, mas a ela se acrescenta o pensamento – o pensamento, isto não é a mesma coisa que a imagem – e pelo pensamento chega-se à adoração do outro corpo no encontro sexual com o que aquilo tem, então, de aleatório, já que se trata de um encontro. Sabemos que um encontro é sempre faltoso, é o que Lacan expressa, dizendo: “a relação sexual não existe”. Isto dito, a frase que ele diz: “a única relação que se tem com o próprio corpo é a adoração” quer dizer que, pelo contrário, se não há relação sexual, existe uma relação possível com o corpo. Mas a adoração do outro corpo é, portanto, uma certa maneira de se fazer um corpo na adolescência. Joyce tinha também uma mulher com a qual ele tinha excelentes relações, mas isso nem sempre era, necessariamente, suficiente. Para ele, não era.
Contudo, encontrei um excelente exemplo desta vertente “adorar o outro corpo” – o que constitui ao mesmo tempo, o corpo do sujeito – num romance de Balzac,[6] O Lírio do Vale. O sujeito que conta sua história a uma mulher diz: “Minha vida é dominada por um fantasma”. Na verdade, dois fantasmas porque há o de sua mãe que nunca o amou, criança deixada, colocada como pensionista na casa de uma governanta, seu irmão era o preferido, etc. E, enfim, pela primeira vez, na ausência de seu pai e de seu irmão mais velho, ele teve a oportunidade de ir a um baile. Isso acontece na época da Restauração e da chegada de Luiz XVIII ao poder. Ele não devia perder este baile porque a família devia estar representada ali. Então ele pode ir e ele está encantado com isso mas, ao mesmo tempo, ele está um pouco entediado, ele não sabe mais como se comportar. Em um momento, cansado na festa, ele se senta ao lado de uma mulher: “Enganada por minha aparência insignificante, uma mulher me tomou por uma criança que estava quase dormindo, e fica perto de mim. Imediatamente, eu senti um perfume de mulher. Meus olhos foram subitamente atingidos por dois brancos ombros arredondados sobre os quais eu queria me enroscar. Eu me levantei palpitante para ver o corpete e fiquei completamente fascinado por um colo pudicamente coberto por uma gaze”. Brevemente, há uma linda descrição das curvas, dos globos azuis, etc que eu vou pular. “Tudo me fez perder a cabeça. Depois de me assegurar que ninguém me via, eu mergulhava nestas costas como uma criança que se joga no seio de sua mãe e eu beijava seus ombros, enroscando minha cabeça. Esta mulher solta um grito perfurante que a música impediu de escutar, ela se virou, me viu e me disse: “Senhor!” Ah, se ela tivesse dito “meu pequeno homem, o que é que você está fazendo?” eu a teria matado, talvez, mas com este “Senhor” lágrimas quentes jorraram de meus olhos.[7]

Adriana Varejão, Plate with Claims
Essa é a forma como se constitui um corpo. Este “Senhor”, por si só, faz passar de repente da infância à idade adulta. É uma época em que não há nenhuma certeza de que já existia a adolescência. Eu acho encantador este “Senhor”, que vem com uma única palavra circunscrever para nós toda a questão da adolescência. Como esta mulher “petrificada por um olhar animado de uma santa cólera” vai se tornar profundamente idealizada e será o fantasma que vai dominar sua vida. É uma outra coisa que é um pouco mais romântica na qual ele poderia talvez se aliviar. Verdade é que nesse “Senhor”, ele adora seu próprio corpo por ter adorado o Outro corpo. Ele se constitui e imediatamente ele se olha: “Ela se foi […] senti, então, o ridículo de minha posição. Só então, somente compreendi que eu estava vestido como um macaco de um saboiano, eu senti vergonha de mim”. Ele estava vestido de uma forma que não estava mais na moda, nos salões da época. E isto mostra que o desprezo vai com a adoração, é o preço da adoração, digamos. E quando é do outro corpo que se trata, o que vai de início é a equivocação, porque não se pode nunca deixar de se enganar nesses assuntos.
A equivocação que não exclui, aliás, que o desprezo ali retorne. Ele se faz assim um corpo a partir de uma palavra que lhe retorna do outro, de quem ele adora o corpo. “Senhor” nos aparece em uma dimensão significante, isto significa, mas é mais além. Quer dizer: levando este rapaz para o divã, não temos tanto que lhe pedir para associar sobre este “Senhor”. Este “Senhor” é um S1 sozinho que, de um só golpe, marca. Vemos, de fato, que ele pode imediatamente dizer: “ela teria dito meu pequeno homem”, porque ele teve a ideia de que ela chegou perto dele porque ele tinha ainda um ar de criança. É nessa medida em que é mais além do significante que isto vem marcar, como um significante que bate ou, se vocês quiserem, como um dizer, um dizer que se dá a ler sobre seu corpo, que faz ato.
“Fazer-se um corpo” na adolescência passando pelo outro corpo, é talvez a melhor solução. A dificuldade é que se trata evidentemente de se confrontar com o outro, o outro sexo especialmente. Isto não é o mais simples e vocês sabem que Lacan desenvolve, no prefácio de O despertar da primavera, estas duas figuras que Wedekind coloca em cena sobre o teatro que são os dois adolescentes, os dois rapazes, Moritz e Melchior. Um dos dois escolhe o suicídio pelo temor de se confrontar ao outro sexo e assim Lacan diz: “ele ao se excetuar”[8] e, no fundo, ele se perde ao se excetuar. E que o outro, Melchior, vai se defrontar com o outro sexo, aliás, com alguns infortúnios, mas é com a condição de aceitar, diz Lacan, ser “Um-entre-outros” que ele poderá encontrar um caminho, com o homem mascarado que vem lhe dizer como ele deve cuidar de seu corpo.
Certamente, há outras formas de “se fazer um corpo” na adolescência, outras formas que não se separam necessariamente da anterior.
Eu gostaria de fazer uma pequena ressalva sobre a adolescência: é uma construção, o termo “adolescência”. Nós o observamos bem neste “Senhor” que basta a ele sozinho. Então, a adolescência que se prolonga, não iremos encolhe-la, mas vemos que é uma construção. Existe um autor americano que se chama Robert Epstein que escreveu um grosso livro que se intitula The Case Against Adolescense, que podemos traduzir por Contra a adolescência. Ele observou coisas muito certas. Aliás, não há tantos problemas com os adolescentes no mundo quanto há nos países mais desenvolvidos que fazem da adolescência uma coisa longa e importante, quer dizer, nos Estados Unidos e Europa. E mais ainda, diz ele, mais colocamos leis que limitam os direitos e deveres dos adolescentes, mais temos crises de adolescência. Epstein tem uma análise muito clara da coisa. Dizemos: “Por que é que limitamos o que um adolescente pode fazer? – Porque ele não é ainda totalmente responsável”. E os adultos, eles são verdadeiramente responsáveis? Um adolescente não pode dirigir e não pode beber. Nos Estados Unidos, eles não podem beber antes dos 21 anos, é extremamente restrito. Na prática, eles contornam a lei. Epstein interroga as atitudes dos adultos: vocês viram o número de pessoas que dirigem tendo bebido? Por que os adolescentes fariam pior? Se eles não são responsáveis, é porque não lhes dão a responsabilidade. Ele faz também observações absolutamente extraordinárias, ele diz, por exemplo: “Por que os adolescentes não podem ir à guerra mais cedo? O que seria da França se Joana d’Arc não tivesse podido ir? Existem também exemplos formidáveis: por exemplo, algumas cidades nos Estados Unidos querem impedir os adolescentes antes dos 20 anos de fumar porque é perigoso e eles não são conscientes do perigo. Por outro lado, eles podem se alistar para ir à guerra no Iraque a partir dos 18 anos. Lá eles podem ter consciência do perigo. Ele observou um certo número de paradoxos que temos em nossas sociedades a respeito desta responsabilidade dos adolescentes.

Jean Dubuffet
Dito isto, o que é surpreendente, é que ele tem a ideia de que seria necessário controlar as capacidades de cada um e o vemos vir com testes para todos, incluindo os adultos. Vamos ver quem pode fumar, quem pode ir à guerra, quem pode dirigir. Vamos medir tudo… Por outra parte, quando falamos sobre adolescência o de que falamos é do que não podemos medir, é o que não é mensurável. E esta dimensão, a do gozo, lhe escapa.
Por exemplo, outra maneira de abordar o corpo: o esporte que tem evidentemente toda a importância na adolescência. Um certo número adora o esporte. Há muitas coisas no esporte que são colocadas em jogo. Marie-Hélène Brousse fez um trabalho[9] sobre isso, que é extremamente interessante, há alguns anos, mostrando o lado do gozo fálico do esporte em relação com a pulsão de morte. Gozo fálico porque se trata de ser o melhor, mais forte que o outro, é a vertente competitiva que flerta sempre com a pulsão de morte.
Ela chegou mesmo a dar um exemplo formidável, quando veio fazer uma conferência sobre este tema na Bélgica: ela tinha supervisionado uma equipe na qual havia um jovem esportista de quem haviam tirado um órgão. Este jovem homem retornou alguns meses mais tarde e ele é então melhor que os outros. Um outro aluno vem se encontrar com ela, lhe dizendo: “Você não acha que eu faria bem sendo operado também?”. Vemos aí a pulsão de morte aparecer sem máscara.
Existe um outro aspecto do esporte. Em uma Jornada da ACF Bélgica sobre o esporte, Katty Langelez evocou a vertente “gozo místico” do esporte, gozo feminino, uma vez que Lacan associa gozo místico e gozo feminino. Um outro gozo, então. Ela se apoiou sobre uma obra de Philippe Mengue. Há um bom exemplo disto em Imensidão Azul. Neste filme, dois homens fazem mergulho livre. Um está totalmente na competição: ele quer ser aquele que desce mais baixo e, em seguida, ele morre por tentar superar o outro que desceu um pouco mais. O outro não está na competição de forma alguma, mas adora descer porque encontra nisso um gozo singular que não tem absolutamente nada a ver com a competição. Ele não procura ser mais forte que o outro. Somente, de fato, ele desce mais facilmente, mais longe, e ele é tomado pelo gozo de participar do mundo das profundidades, até o ponto de também permanecer nele. É um gozo absolutamente distinto do gozo fálico, competitivo. Aí o corpo é tomado numa espécie de “infinitude”. Vocês têm evidentemente numerosos exemplos de práticas em que os sujeitos podem jogar intensamente com a pulsão de morte, notadamente no wing suit, estas pessoas que fazem pára-quedismo sem pára-quedas, com combinações em forma de asa e quase tocam nas montanhas. Muitos praticantes morreram. Mas jogar com o limite tem também a dimensão de “se fazer um corpo”.
Para concluir com uma questão muito atual, pensei numa outra face desta questão no malestar de um certo número de adolescentes que se expressam sob uma forma extremamente particular e violenta, no que chamamos de terrorismo jihadista. Muitos são adolescentes, não todos. Eu não tenho a ideia de que haja uma figura clínica que seria o modelo do jihadista. Sabemos, ao contrário, como é a cada vez, muito diferente para cada um. Mas eu li no Le Monde um artigo sobre uma série de jovens francesas adolescentes, de 14 a 19 anos, que se radicalizaram. Podemos falar do “narcisismo triunfante do terrorista” como evoca Jacques-Alain Miller. Mas outra coisa me tocou nesta radicalização. Elas se radicalizaram pela internet, em contato com um “recrutador” na Síria e elas mesmas em seguida se colocam em contato e conversam entre si. Essas adolescentes vêm de famílias que não são absolutamente religiosas. Uma entre elas se converteu, as outras vêm de famílias muçulmanas, pouco ou não praticantes, e nada em seus meios as incentiva nisso. Há uma pequena dimensão “revolta”, em uma entre elas ao menos, que quer partir porque seu pai recusou que ela use um véu, quer dizer que sua família não era muito religiosa. E o que eu achei interessante é como elas podem dizer que elas encontram aí o software mágico, o « Um » que decide tudo, pelo qual tudo é regrado. Ou seja: como nos vestimos, como comemos, a vida cotidiana e em qual caso podemos ter relações sexuais. No fundo, há aí um sentido perfeito.

Martin Kippenberger, James Dean 1989
Contudo, isso não quer dizer que nada transborde porque elas têm entre elas, ao mesmo tempo, discussões totalmente adolescentes. Por exemplo – apenas retiro três frases – uma dentre essas diz: “Há aqueles que querem fazer tudo, como a cantora Rihanna, e eu quero fazer tudo como Mehah”. É sinistro e, ao mesmo tempo, é uma fala muito autêntica de adolescente ao nível identificatório, ao nível de procurar suas identificações. Ela diz isso à polícia, isso tem um lado provocador. Mas existem conversas que são formidáveis, por exemplo: “Você viu aquele?” Elas falam sobre “irmãos”, isto é, recrutadores. “Você viu aquele, seus sapatos? – São formidáveis, são da marca tal”. Uma outra diz: “E você viu,ele era bonito demais com seu fuzil”, etc. É bastante espantoso porque, quando lemos isso, estamos ao mesmo tempo em um outro mundo e estamos totalmente no modo de uma conversa entre adolescentes. É isso que surpreende: não é descolado, é apenas um pouquinho descolado – e que muda tudo, claro, com um atalho surpreendente sobre a forma de se fazer um corpo.
Assim, uma dentre elas, com idade de 14 anos, desenvolve brevemente, em quatro frases, seu projeto de vida: “Agora eu estou casada, moro na Turquia com meu marido e, mais tarde, com mamãe [porque ela escreve para a mãe dela]. Vamos criar nosso filho que irá nascer no Iraque, nada mais bonito, e ele será uma criança crente e, um dia, você vai atender um telefonema dizendo que eu morri, é isso”. Acho isso surpreendente porque conheço adolescentes que respondem à pergunta: “O que você quer fazer na vida?”, dizendo, às vezes. com dificuldade: “Encontrar um rapaz muito simpático, casar, ter filhos”, ou é dito outras vezes, de forma muito caricatural – penso aqui no Courtil – adolescentes que têm poucos referenciais na vida, mas que se colocam como referencial: um marido, filhos ou até um filho, um marido – não é sempre no mesmo sentido.
Mas, no caso anterior, não é mais a adolescência que se restringe a uma única palavra, “Senhor”, mas é na adolescência que se fixa todo um projeto de vida, em três palavras: casamento, filhos, falecimento. É bastante surpreendente como forma de se fazer um corpo mas, apesar disso, é uma maneira de faze-lo para si. Evidentemente, acho que não temos oportunidade de intervir porque elas não vêm falar sobre isso. Isso certamente virá, mas trata-se, aqui, de uma discussão entre adolescentes.
A Alexandre Stevens os sinceros agradecimentos de Cien Digital pela amabilidade em permitir a publicação do presente trabalho.
Tradução: Ana Martha Maia e Maria Rita Guimarães
Revisão: Cristina Drummond
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ENTREvista: Jacqueline Dheret
by cien_digital in Cien digital #20, ENTREvista

Doug Aitken, MORE, 2013
Cien Digital : O que você encontra de essencial como marca da adolescência em sua prática no CIEN?
Jacqueline Dheret: Na adolescência, a experiência do mais singular é o que está mais em evidência e o mais íntimo, o mais fora da norma se manifesta então, as vezes ruidosamente. Procuro, nas conversações que temos no Cien, acentuar, tornar legível, este ponto: é preciso que o adolescente possa se subtrair de uma compreensão anterior. Ser interpretado pelo Outro deprime, convoca mais à inércia do que à revolta.
Restam nesse caso, os gozos imediatos que adormecem. A marca da adolescência é o mais fora da norma de cada um que emerge e que ainda não tomou a forma de sintoma.
Cien Digital : Há no Brasil um movimento pela diminuição da maioridade penal, de 18 anos para os 16 anos. Em sua opinião o que está em jogo nessa idéia?
Jacqueline Dheret: Lembro-me da revolução na opinião pública, em julho de 1974, quando o presidente Giscard d’Estaing reduziu a idade da maioridade civil e legal para 18 anos. Uma reivindicação legítima das gerações jovens, recusada pelos mais tradicionalistas. Na época, eu trabalhava na “Aide sociale à l’enfance” – Assistência social à infância -, organismo público que atendia aqueles que não têm família. Idealisticamente era a favor! Mas via os efeitos que esta medida iria provocar, iríamos dizer aos jovens que eram atendidos: agora se virem! Vocês são maiores. Hoje, eles assinam contratos de trabalho por um ano, o que na situação social atual prolonga a dependência desses jovens em relação à família, inclusive para aqueles que ainda estudam, nos contentamos em dizer: “Na maioridade, cada um tem que se virar!”
Cien Digital : Falamos de uma solidão moderna como uma situação onde o sujeito se encontra sem ideal, sem o Outro. Isso coloca em jogo uma nova solidão, um gozo solitário. Quais são as chances do adolescente, nos dias hoje, fazer laços?
Jacqueline Dheret: A solidão sempre houve e ela é de estrutura. A tentação dos ideais é ao contrário, muito presente nos adolescentes que podem ter o sonho de encontrar uma estabilidade em uma nomeação ou, sou isso, aquilo, etc. Na Idade Média, na tradição do Ocidente, casava-se depressa a jovem adolescente… Davam-lhe um Outro, consistente! Na época da inexistência do Outro, percebemos melhor que, ao procurar o que lhe corresponde, o adolescente se perde. Como fazer com o seu corpo, com o do outro? Nenhum Outro pode responder e preocupo-me principalmente com os movimentos que visam reconstituir Outros consistentes, na época do sem o Outro lacaniano. Os adolescentes têm muitos recursos para inventar laços e não lhes faltam contingências para criá-los. Saibamos ficar atentos a isso!
Cien Digital : O que a prática do CIEN lhe ensina como psicanalista?

Ana Maria Pacheco, Terra ignota 1994
Jacqueline Dheret: Na França, os clínicos que se referiam a Freud nos anos 70 estimavam que essa idade da vida não era um momento favorável para encontrar um analista. Era a época de uma certa ortodoxia que Lacan soube abalar. A relação com o real está no cerne do encontro do psicanalista com o adolescente: se pensamos em “crise” e particularmente, “crise de autoridade”, se tomamos as coisas a partir da idéia ericksoniana do desenvolvimento, ignoramos o sujeito implicado nesse momento de “delicada transição”. Sempre gostei de atender adolescentes e minha experiência no Cien, escutar os profissionais que também trabalham com eles, – professores, médicos, educadores, juízes de menores, etc… -, ajudou-me muito a modificar minha maneira de fazer no meu consultório. É a oportunidade que conta! Muitas vezes quando alguém me fala de um adolescente que preocupa seus pais e os que convivem com ele, me disponho a atendê-lo. E quase sempre funciona, às vezes por muitos anos… Não ousaria fazê-lo antes de ter aprendido com o Cien! Tento fazer com que meus encontros com um jovem possam fazer contenção ao vazio que o atrai ou ao agir que se apresenta com frequência como uma solução. O ato permite alojar o que do pulsional não consegue se articular ao inconsciente estruturado como linguagem.
Freud dizia que “a libido se fixa no médico” e não é evidente, na adolescência, que esse ponto de real faça signo do sujeito que sabe.
Aprendo muito nas conversações interdisciplinares que mantemos no Cien, sobre o que os adultos podem fazer para que os fenômenos de gozo encontrem um modo de se enodarem ao simbólico e passíveis de serem vividos.
Cien Digital : Segundo J.A.-Miller em seu texto “Em direção à adolescência”, os jovens tem aderido à causas triunfantes, em que há uma aliança entre a identificação e a pulsão agressiva. Porque os jovens procuram uma saída por esse tipo de laço?
Jacqueline Dheret: É uma maneira muito exata de dizer as coisas. A adolescência é passional, e o eu, na adolescência, se desfaz. Daí, talvez a proposta de J.-A. Miller de falar da adolescência como momento de construção. Tínhamos ao contrário uma tendência em falar de desconstrução! É um ponto clínico essencial que pode ser esclarecido pelo texto de Lacan: A agressividade em psicanálise. Freud já tinha a ideia de que o Eu é uma organização passional.
Cien Digital : Nesse mesmo artigo, Miller diz que a única maneira de acabar com esse tipo de discurso do Estado Islâmico é vencê-lo. Como você entende essa orientação?
Jacqueline Dheret: Sobre esse último ponto, é preciso distinguir o propósito do discurso daqueles que invocam o Estado Islâmico, dos jovens que podem ficar tentados a se juntarem a eles. Encontramos alguns deles. Os primeiros se apresentam como guerreiros, mas estão a serviço de uma organização criminosa. São bárbaros que devem ser combatidos. Eles se embriagam com a identidade de mártir que eles propõem aos outros. E é claro, eles encontram alguns deles: os mais jovens, os mais frágeis podem ser atraídos por esses convites para se tornarem heróis.
Tradução: Márcia Bandeira
Revisão: Cristiana Pittella de Mattos
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As vantagens de ser invisível
by cien_digital in Cien digital #20, LABOR|a|tórios

Nadia Taquary
Margarete P. Miranda e Teresa Mendonça – Laboratório Trocando em Miúdos
Trata-se de um texto originado de uma Conversação com jovens, no CINE- CIEN Minas, em 23 de março de 2016. Essa experiência possibilitou o levantamento de três pontos, a partir dos quais o filme “As vantagens de ser invisível”, recoloca em cena o despertar da adolescência.
O nojo e o furo no sexual
Ai! Que nojo! Expressão extraída do instante em que a jovem T, de 17 anos, assistia ao filme e se deixa tomar pela cena do beijo entre dois rapazes. Por tratar-se de uma adolescente do século XXI, em que a diferença sexual tem sido questionada pelos jovens, interrogamos o estatuto de tal inflexão.
No início do século passado, Freud (1905- 1989) traz o conceito de “asco”, sinonímia do nojo, como um dos agentes reguladores do “recalque”, assim como a “vergonha” e a “moral”, ressituados definitivamente, na puberdade.
Sobre a sexualidade dos adolescentes, Lacan (1974-2003) alude ao “pudor”, vocábulo próximo à “vergonha”, como elemento que priva o sexual. Faz menção ao véu que encobre: “Que o véu levantado não mostre nada” (p.558). Em sua passagem ao público, a sexualidade se exibe como gozo proibido, portanto. Consenza (2016), referindo-se a Lacan, destaca que é nessa tensão entre o “tempo do véu” (existe relação sexual) e o “tempo do trauma” (não existe relação sexual), que os adolescentes vivenciam a experiência da sexualidade.
Perguntamos: O nojo de T, acionado pela cena do filme, faria ligação a que, por trás do véu, há A Mulher que não existe?
A Conversação dos jovens e o estranho da sexualidade
Quando interrogada em sua reação de nojo, na Conversação, T desdobra os dizeres: O que mais me tocou foi o beijo entre os dois: Achei estranho… Sua fala nos remete ao “estranho” e “familiar” freudiano, quando o sujeito se defronta com a própria imagem.
Sobre o objeto olhar e a função escópica, Lacan (1964-1996) diz que o sujeito diante do quadro é um expectador que depõe algo de si na tela. É a própria mancha no quadro sobre a cena que inclui o sujeito.
Interrogamos: Aquela imagem cinematográfica despertou em T o “estranho” da não relação sexual?
Na Conversação, a adolescente insiste em um ponto: Mas, eu não tenho preconceito! Destacamos, então, que algo merecia ser pensado: Por que a reação e expressão de nojo se não havia preconceitos? A voz do Outro poderia estar sendo interpretada como exigência tirânica, como alude Miller (2015). Fez-se silêncio por instantes.

Daniela Busarello
O que é adolescência e teria esta, um fim?
Em tempo de concluir, W disse: Adolescência é o tempo de errar e aprender com os erros. Aí a gente vira adulto, ganha responsabilidade. T retrucou: Penso que a adolescência pode não ter fim, porque a gente erra e aprende a vida inteira, surpreendendo-nos.
No filme “As vantagens de ser invisível”, Stephen Chbosky privilegia a cena da travessia de um túnel pelos adolescentes. Freud (1905-1989) faz referência ao túnel perfurado em ambas as extremidades, na puberdade, admitindo, porém, que alguns ficam retidos em fase libidinal anterior. Daniel Roy (2016), aponta o caráter contraditório da metamorfose freudiana da puberdade que, devido a lógica das pulsões parciais, está “semeada de emboscadas”. Diz, então, que “não há verdadeiramente saída possível do túnel” (p.1). Neste sentido, podemos dizer que a adolescência não tem fim?
Prevalece, na adolescência, um inacabamento do sujeito em que “a possibilidade de escolha é preservada mais do que tudo” , diz La Sagna” (2016, p.2). Miller (2015) usa o termo “procrastinação” para distinguir um adiamento próprio ao sujeito adolescente, especialmente na contemporaneidade, diante das várias opões de escolha.
Aqueles jovens, quando interrogados sobre as possíveis saídas da adolescência, esboçaram alguns sintomas: Para fazer parte do grupo, alguns fumam maconha. Eu não! Diz S. Para T, a gravidez na adolescência é uma forma de ganhar responsabilidade e virar adulto.
Ao final, diante do vazio do não saber dos analisantes esclarecidos do CIEN, T interpela a participante: E para você, o que é adolescência?
A construção desse texto demonstra que levamos a sério sua indagação.
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A conversação é uma ferramenta de trabalho do Cien
by cien_digital in Cien digital #20, LABOR|a|tórios

Christian Rosa, This is the Next One, 2013
Vânia Brito Gomes
Os laboratórios do Cien-Rio colocaram uma questão que foi trabalhada em dois encontros esse ano: Quais as diferenças e aproximações entre uma supervisão clínico-institucional e o dispositivo da conversação? A prática de alguns laboratórios se dá em instituições que demandam uma supervisão clínica, supervisão de um projeto etc. Como se introduz nessas práticas a conversação?
Nessa visada, a primeira diferença apontada foi a função de cada uma delas. A supervisão clínico-institucional visa dar uma orientação para um caso, uma construção que orienta a clínica ou a condução de um projeto institucional. Na experiência da conversação diz Lacadée[1], não há uma preocupação terapêutica, mas trata-se de abrir possibilidades para que um saber inédito possa ser dito por aquele que se aventura nessa aposta. Lacadée[1] precisa que o que se recolhe das conversações são vinhetas práticas.
A diferença de “papéis” do psicanalista em cada uma delas também foi marcada. Na supervisão, ao analista é suposto um saber e, dessa forma, sustenta a hiância própria do inconsciente para convocar cada sujeito no processo singular de construção.
Na conversação o analista encarna o que chamamos de um vazio, um não-saber que possibilita que cada profissional das diferentes disciplinas possa colocar em seus termos o que está em jogo no impasse que se apresenta. Há uma aposta de que nos diferentes discursos há brechas e de que, nesses intervalos, pode-se produzir algo novo.
O Laboratório Pipa avoada[2] trouxe um fragmento de uma supervisão clínico-institucional em uma “Casa Viva”, uma casa que abriga meninas adolescentes, para pensarmos:
A queixa trazida pelos educadores e técnicos é de que as meninas não conseguem seguir as “regras da casa” e são frequentes as brigas e quebra-quebras. Um dos profissionais dá exemplo de uma menina que quer usar o celular para jogar, fora do horário permitido. A supervisora interroga se o uso que a menina quer fazer, jogar, está incluído nas regras, e concluem que isso não estava escrito.

Harding Meyer, o.T., 2016
Essa abertura, “não está escrito na regra”, é o ponto a partir do qual seria preciso inventar. A supervisora chama a adolescente para falar. A menina diz que quer jogar no celular para ficar sozinha, está se sentindo mal com suas “regras”. Esse significante traz um mal estar no corpo, as regras menstruais, o que em uma casa de meninas nunca havia sido discutido.
A partir da inclusão desse algo novo, propõe-se uma conversação com as meninas para dar lugar a esse mal-estar no corpo feminino. “Regras” parece ser o significante que conecta mas também o que separa o trabalho da equipe e das meninas. Os desdobramentos da conversação com as meninas são interessantes pois passam a incluir uma regulação própria, “respeitar a tensão da outra”.
Essa intervenção, dar lugar à fala da adolescente, no a posteriori indica um ato, pois produz efeitos na equipe também. É tomado como uma surpresa, e interroga de outra forma o imperativo universal “as regras tem que ser cumpridas”. A palavra circula e os deslocamentos possibilitam um novo trabalho, aparecendo os limites e como cada um flexibiliza suas próprias regras.
Miller[3] indica que em uma conversação não se trata de produzir uma “enunciação coletiva”, mas uma “associação livre coletiva”. Nessa vinheta vimos que houve uma operação para dar lugar a esse funcionamento.
Reconhecemos aí uma virada, e nos perguntamos se esse segundo momento da reunião de equipe já não seria uma conversação. Essa foi uma surpresa para os participantes do Cien também. Localizar como em uma supervisão algo opera e insere a conversação como uma ferramenta de trabalho.
Mais do que traçar diferenças, levar adiante essa interrogação nos fez avançar na aposta da conversação, abrindo um campo de possibilidades de laço com outros discursos, não sem, é claro, como o Cien ensina, a solidão de cada um deles.
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O social, a política da psicanálise e o trabalho do Cien [1]
by cien_digital in Cien digital #20, LABOR|a|tórios

Tatiana Stropp
Cláudia R. Reis [2]
A experiência em dois laboratórios do Cien – a primeira[3] que aconteceu nos primórdios da fundação do CIEN no Brasil e a segunda, no laboratório aFinarte, em funcionamento em Ribeirão Preto, desde março de 2013 – me possibilitou vivenciar os efeitos da prática da conversação nos laboratórios e nas instituições. O desejo de pesquisar o percurso do Cien tomou forma no cartel “Garoupa de Olhos Abertos ou o Real na Instituição”, destacando nesta pesquisa, a inserção da psicanálise no “social”. Por ocasião do XIX Encontro Brasileiro, a presidente do Campo Freudiano, Judith Miller, fala das mulheres, da política do Cien e do Passe, cito: “penso que o Cien é uma das maneiras de inventar uma modalidade que valoriza o trabalho que eu chamei de modo genérico, social e pode permitir que cada um se dê conta que a impotência pode ser superada a partir do momento que alguém se interessa verdadeiramente por cada caso”[4]. Anuncia ainda sua alegria por, durante a Jornada do Cien[5], estar prevista uma intervenção de uma Analista da Escola, visando tratar o modo como o Cien contribuiu para sua formação e como o articulou à função de A. E.
A inserção da psicanálise no social comparece como uma antiga questão, acompanhando-me desde os anos iniciais de formação, quando ouvia: “ou se trabalha com psicanálise ou em instituições”. Ainda sem ter encontrado a orientação lacaniana, observava os especialistas das diferentes disciplinas tentando dar conta dos impasses que emergiam nas instituições, bem como, na maioria das vezes, o fracasso daí advindo.
Com a constituição do cartel, surgiu a possibilidade de recolher, nos primeiros textos de orientação do CIEN, pontos significativos à questão que me propus pesquisar. Lacadée afirma, no momento de fundação do CIEN, em 1996, que a relação da psicanálise com a interdisciplinaridade precisava ser revista e faz uma convocação para reconquistarmos esse conceito, movê-lo de lugar. Toma por base o que anunciava Lacan sobre os caminhos do discurso do mestre que, apoiado pelo discurso universitário, conduzia os avanços da ciência, mas também, contribuía para a segregação. Lacadée ilumina as bases do conceito de disciplina, fazendo um traçado interessante das modificações sofridas por ele ao longo do tempo. O autor parte da designação que o conceito tinha no século XII: um chicote usado para flagelar-se, dando acesso à auto-crítica; passa pelo sentido de instrução e direção moral; torna-se arte, estudo; é também regra de condução e, finalmente, inclui a disciplina que o sujeito se impõe a partir dos significantes que articula à sua existência e o representa para o Outro. Por esta via, o sujeito tenta dar um suporte ao seu ser e se produz um efeito de significação em resposta ao real em jogo na sua existência. Aqui a ciência desempenha um importante papel de tentativa de produzir suplência às modalidades de respostas e o homem encontra-se fragmentado entre as diferentes disciplinas. A idéia do CIEN é que as disciplinas de orientariam de algo novo, se por trás desta realidade complexa de produção de respostas cada vez mais especializadas, se colocasse a céu aberto o real em jogo, pela via de uma questão para o sujeito. Segundo Judith Miller, as disciplinas, ao tentarem dar conta das questões que emergem no real, acabam por contorná-lo.

Washington Silvera, Série Natureza Morta Camuflada (vaso e pêra), 2012
Alexandre Stevens faz uma intervenção, onde destaca que não cabe inventar novas instituições mas inventar lugares para receber o real impossível de suportar. Segundo ele, o sujeito precisa da análise para encontrar a direção que convém ao seu sofrimento e questiona se as instituições e os profissionais vinculados aos diferentes discursos não precisariam do espaço que o Cien proporciona para acolhimento dos impasses.
Assim, o Cien se ocupa dos efeitos de irrupção do real e o discurso analítico deve fazer-se parceiro, oferecendo a possibilidade de praticar “a associação livre no coletivo”[6], conforme se refere Miller à pratica da conversação. Esta permite que não se fique preso ao discurso universitário possibilitando às pessoas reconhecerem algo diferente. É importante acolher os impasses para que novas saídas sobressaiam.
Enquanto as especialidades tentam fazer de maneira que a instituição funcione como ideal, o dispositivo do Cien se coloca como um simples motor de ação. Laurent fala da importância de se ofertar um lugar ao qual possam se dirigir[7]. Observamos nos laboratórios a redução da consistência do discurso do mestre contemporâneo, a desamarração do saber totalizador e, assim, a permissão da existência de um intervalo para a invenção.
O aFinarte se constitui num espaço onde profissionais de diferentes instituições levam seus impasses para as conversações inter-disciplinares. Recentemente, uma participante falou de um “amadurecimento” na forma de pensar o serviço. Achava que tinha que resolver os problemas, “uma posição muito resolutiva” e que “aprendeu a não se frustrar com isso, a trabalhar com uma expectativa mais baixa, valorizar pequenas coisas, como por exemplo, um menino que sorri e antes não sorria. Não precisa ser um flash, pode ser uma luzinha.”
Em minha prática, o impasse estava ligado ao “que fazer” com algumas demandas recebidas na clínica: o atendimento de casos nomeados como “difíceis” dentro das instituições. Aceitar, tocaria no ponto do “saber fazer”, em contraposição ao profissional da instituição que ficaria do lado da impotência, idéia que não me agradava. Recusar me causava incômodos.
O convite feito aos profissionais a participar do laboratório, a fazer uso da palavra para levar os próprios impasses, foi a saída por mim construída. Em lugar de me colocar como potente frente ao que me era demandado, convocava o sujeito a se haver com os próprios embaraços, propondo-me um lugar despojado de saber, ou seja, a sustentação de um lugar vazio. Conquista subjetiva importante para mim.
Desde 1953, em seu texto Discurso de Roma, Lacan estimava que a psicanálise teria um importante papel na direção da subjetividade moderna, fazendo frente ao movimento da ciência de construção de um saber totalizador, que contribui para a multiplicação da segregação. Desde os primórdios do Cien, é justamente o enfrentamento da segregação que está em jogo. Lacadée aponta o quão preciosas são as contribuições daqueles que se dispõem, dentro das suas profissões, a fazer uma análise da segregação. Considera que inúmeras são as disciplinas que podem nos esclarecer sobre os pontos atuais do mal-estar na civilização. O Cien não tem a pretensão de frear o processo de segregação, porém, pode questionar. Não procede através de considerações abstratas, mas por descrições de resultados precisos. Aparece como uma formidável ferramenta para permitir que a psicanálise reconquiste seu lugar no campo social.
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Algumas palavras sobre o trabalho do laboratório “O Saber da Criança”. Campinas, SP [1]
by cien_digital in Cien digital #20, LABOR|a|tórios

Sandra Cinto
Cláudia Regina Santa Silva
Emelice Prado Bagnola
Participantes do laboratório “O saber da criança” apresentaram, em 2015, ao coordenador de um abrigo municipal, a proposta de uma conversação com as crianças e os adolescentes institucionalizados.
Questões relevantes à instituição foram levantadas, por ele, naquele momento: o abrigamento, a separação de irmãos, o abandono, a tensa relação entre os cuidadores diretos e a equipe técnica, os impasses nos temas da alfabetização, sexualidade e saúde mental.
A proposta não foi acolhida, não era o momento de uma conversação com os meninos. Do encontro do laboratório com o coordenador, surge um impasse: Qual é o efeito de oferecer a palavra à criança? Esta questão orientou todo o trabalho seguinte.
As reuniões passaram a acontecer com maior participação de profissionais da rede infanto-juvenil de Campinas: um abrigo municipal e um CAPSinfantil.
Na conversação, surgem perguntas:
Por que ofertar uma escuta para a criança pode ser tão delicado?
Como a palavra das crianças afeta as disciplinas?
E mais, as disciplinas[2] permitem ser afetadas pela palavra da criança?
A diferença de escutar uma mesma criança ou adolescente no abrigo e na instituição de saúde mental tornou-se, por um determinado tempo, questão central. Pôde-se localizar que a diferença reside na distinção de equipes e propósitos entre ambas as instituições. O que move a escuta no abrigo? E no tratamento?
Algum tempo depois, os profissionais começaram a trazer, para as conversações, a experiência de assembleia implementada com as crianças. Dali, pode-se extrair os impasses vividos acerca daquilo que poderia ser falado no abrigo. Percebemos nas conversações que as falas das crianças muitas vezes angustiavam os adultos e esses tentavam achar respostas, dar soluções, pois difícil era sustentar um não saber.
O saber do adulto sobre a criança, o saber do médico, o saber do coordenador obstruíam a experiência em jogo de se interessar, todos ali, pelo que sabe a criança.
O “saber não saber” introduz um intervalo nas ações e rotinas das crianças. Operar a partir desse lugar vazio permitiu a abertura de perguntas entre elas, dando a possibilidade de construções de respostas autênticas e singulares.
Foi possível verificar que não obstruir o Real em jogo, trazido por cada criança ou jovem, também pode afetar diretamente os adultos. Deslocamento de impotência para interesse.
Ao invés de resolver, acompanhar o desdobramento de uma pergunta como esta: “o juiz vai deixar eu voltar pra minha mãe?”, tem diferença.
Quando nos colocamos neste lugar de escutar a criança, entra em jogo o adulto, o que foi traduzido por – escutar a criança pode significar para o adulto ter que sair de sua “zona de conforto”.
Neste caso, um pequeno deslizamento que pode resultar num interesse também inédito do profissional, querer saber sobre sua questão particular. Algo do diploma e do discurso das disciplinas instituído tanto no abrigo como no Capsi vacilou.
A escuta também requer uma disponibilidade de estar ao lado. Estar ao lado, em alguma medida, pode contribuir com a passagem de olhar para a criança como um objeto à possibilidade dela advir como sujeito com necessidades e também desejos.

Iuri Sarmento
A pergunta sobre quem tem a atribuição de escutar gera tensões. Seria a psicóloga do abrigo ou do Capsi a mais indicada para tal? Na conversação, relembrar o nome do laboratório permitiu localizar em tal questão o apagamento do saber da criança, do sujeito criança, quando não se percebe com quem ela quer falar ou para quem ela dirige suas palavras.
A aposta consiste em deixar, para a criança, inventar um saber sobre si. Abrir espaço com a criança para a pergunta: “com quem você quer falar sobre isso?” Mesmo que a criança não consiga responder… ela pode colocar perguntas, implicar-se com sua história e, porque não, também com o seu sintoma.
Essas foram as construções possíveis a partir do impasse levantado de entrada: “Qual é o efeito de oferecer a palavra à criança?”.
Percebemos também que se colocar disponível à escuta das crianças angustia. As respostas a essa angústia apareceram de maneira singular, desde buscar uma análise, mudar de área ou de posição, de cargo no trabalho da instituição, bem como recuar do laboratório, responder com um saber enrijecido e moral.
Mas, também há quem retorna e sustenta o trabalho a cada reunião do CIEN marcada, reiterando nossa aposta nesse dispositivo recém aberto.
Ao notar esse ponto – a angústia de escutar alguns temas trazidos pela criança ou adolescente – nasceu a ideia de utilizarmos o documentário de Mariana Otero “A Céu Aberto” como tela de fundo, que poderia abrir questões sobre o que é singular da criança em um trabalho orientado pela palavra.
O trabalho na cidade destacou a palavra como um giro possível ao que pode ser uma etiquetagem, deste trabalho novos integrantes se apresentaram para o laboratório, vivificando a aposta.
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