ISSN 2178-499X
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Mães em Crise[1]

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Livro de Sônia Gomes na exposição ‘A Tara por Livros’, da Galeria Bergamin

Juliana Motta, Cristina Marcos. Participantes: Clara Ratton, Beatriz Bissoli, Lucas Anselmo Lopes, Laila Sampaio, Marconi Martins da Costa Guedes, Renata Mendonça, Rhayane Medeiros.

 

O Laboratório “Mães em Crise” acontece no Instituto Raul Soares – FHEMIG, um hospital manicomial público. A equipe do IRS, ao longo destes anos, sustenta um trabalho a partir do caso a caso, a favor da luta antimanicomial, reescrevendo sua história a cada vez, de acordo com os impasses que vão surgindo. Colocando no centro do trabalho institucional o ato da palavra, mais precisamente, o ato que cria a palavra. Segundo Viganó (1999), a proposta é repensar o lugar da palavra a partir de um diagnóstico de um discurso trans-clínico que diz respeito à posição subjetiva diante da castração e centrada sobre a letra do gozo.

Essa é a posição adotada pelo IRS, que através dos vários espaços de linguagem como sessões clínicas, assembleias de pacientes e técnicos, apresentação de pacientes e outros, disparam modificações nas condições da massa institucional, operando mudanças dos discursos, operando a passagem da lógica da segregação à saída do um a um, restaurando o Outro da palavra e mudando o instituído.

Citando Zenoni (2000):

… é a psicose que nos ensina sobre a estrutura e que nos ensina sobre as soluções que ela mesma encontra para fazer face a uma falta central do próprio simbólico. É na escola da psicose que nos colocamos para aprender como praticar (ZENONI, 2000, p, 19).

Os Laboratórios do CIEN[2] nascem, como sabemos, de um impasse, de uma questão que possa ligar seus participantes pela falta, criando um desejo de trabalho. Tem como orientação a “oferta da palavra” um lugar em que a palavra possa circular e, que cada um com sua experiência possa trazer para o trabalho uma miudeza, uma preciosidade que possa orientar seus participantes a cada vez, criando soluções ou saídas para as questões e impasses que surgem no trabalho com crianças, adolescentes ou aqueles que estão ao seu redor.

“Mães em crise” nasce com a pergunta: “De onde operar o encontro das mães com seus filhos, crianças e adolescentes, durante a visita hospitalar?” Essa pergunta se constitui a partir dos casos clínicos, de uma instituição que possui 29 leitos femininos.

Decidimos, então, que as conversações seriam entre os técnicos, pois verificamos, nos fragmentos relatados abaixo, que havia um mal estar nas equipes diante dos encontros das mães com seus filhos e com as gestantes em crise.

Inauguramos esse Laboratório com uma conversação aberta, a palavra foi ofertada para vários profissionais da rede pública de Belo Horizonte, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e outros, que se interessavam pelo tema, inaugurando, também, o CIEN-Minas In loco[3].

A conversação[4]

Um ponto que surgiu neste encontro pôde orientar os profissionais, possibilitando a estes lidarem com as mães e gestantes de um novo modo, é o esvaziamento do ideal da maternidade para escutar o caso a caso e, assim, encontrar uma medida possível. Uma das participantes relata que a família exige de uma das pacientes que ela cuide de seu bebê, mas verificamos que ela foge e busca a ajuda da equipe por ouvir que precisa matar seu bebê. É somente fora do ideal materno que essa mãe pôde proteger seu filho, é deixando de cuidar dele que ela pode mantê-lo vivo.

Outro ponto: é necessária uma relação mais próxima com a rede pública, uma conversa entre os vários, pois, sabemos o quanto uma gravidez pode agravar a crise de uma mulher. Essa conclusão se fez a partir do caso Hera. Ela é recebida no Instituto Raul Soares em sua segunda gestação. O seu horror aos movimentos do bebê em sua barriga leva essa moça de 21 anos a passagens ao ato graves para ela e para o bebê, atos que são insuportáveis para a equipe e que só foram apaziguados quando uma maternidade concordou em fazer o parto antes do tempo previsto para o nascimento da criança. Assim, concluímos que um trabalho se faz presente, pois é preciso esvaziar o ideal da maternidade em todo o âmbito da rede pública.

“De onde operar o encontro das mães com seus filhos, crianças e adolescentes, durante a visita hospitalar?”

Essa questão surge quando uma criança de 3 anos vai visitar sua mãe, na visita ela reconhece a mãe, mas a mesma fica transtornada, em um choro compulsivo. A criança deixa de reconhecê-la e corre para o pai novamente e fica perplexa, em “pânico”, como relatou a psicóloga que acompanhava o caso e a visita. Uma das responsáveis intervém na cena, pega o rosto da interna e diz: “você é mãe, não deixe seu filho te ver assim” e ela se acalma imediatamente. Tanto a frase, quanto pegar no rosto da interna, uma contenção no corpo, como nos diz outro participante da conversação, fazem uma borda naquilo que transbordou no encontro desta mãe com seu filho, assim, a visita pode transcorrer após essa crise da mãe. E, esse fato, propicia a pergunta do Laboratório, pois causa angústia na equipe do IRS e o impasse se instaura.

Na conversação nos perguntamos: As crianças podem visitar suas mães na instituição? Qual idade, momento que isso é possível? A criança deve ser consultada?

Podemos dizer que as perguntas podem nortear uma resposta e que essa resposta só pode existir no um a um dos casos, mas como vimos na conversação, alguns pontos podem ser orientadores. Como: escutar qual a função da criança para a mãe. Pois, um segundo fragmento surge neste encontro e nos mostra uma mãe que é orientada pela maternidade, ela cuida de sua criança de sete anos, mostrando-nos que ela tem uma função para essa mãe, assim, a mãe pôde recebê-la sem maiores transtornos para a equipe.

Quando separar a criança da mãe?

Uma das participantes da conversação traz um caso do IRS em que, após o nascimento do bebê, já em casa, essa mãe entra em crise, não por causa do filho, mas por medo do irmão que poderia fazer algum mal para o seu bebê, ao ser internada ela só se organiza, se acalma na visita do bebê; assim, foi organizado um quarto para a mãe e para ele no hospital. Durante uma semana a equipe cuidou desta mãe e deste bebê tendo um efeito fundamental sobre o caso. Podemos afirmar que o importante para uma criança é o investimento do Outro sobre ela, um investimento no plano do desejo, um desejo que não seja anônimo. Feito, neste caso, claramente por essa mãe.

O surgimento deste caso na conversação também nos orienta, pois, a questão não é a falta física da mãe, mas qual Outro está fazendo um investimento no plano do desejo sobre a criança e quando a falta deste Outro pode ser realmente radical. Quem está fazendo esta função neste momento pode ser a mãe ou um Outro.

Essa conversação e os fragmentos mencionados pelos participantes, demonstrando-nos a experiência de cada um, colocaram esse Laboratório ainda mais a trabalho, pois o que norteia o CIEN é o inter-disciplinar, esse hífen que aponta para a falta do saber a priori, assim, concluímos que não é possível estabelecer regras, mas, nos perguntarmos sempre por uma medida no caso a caso.

Outra questão se apresentou “uma criança pode ver a mãe em crise” e uma participante respondeu “a mãe já está em crise em casa por isso ela vem pra cá, a criança já vê a mãe em crise”, outra afirma “mas, aqui é diferente… não é só a mãe que está em crise, é um outro local, pessoas em crise, não é o ambiente da criança”, “então, as visitas devem ser em local adequado, fora das alas”, “isso já acontece”. Localizamos que uma visita deve ser guiada, não só para a mãe, mas, para a criança, pois, nos vários fragmentos relatados pela equipe, o local era fora das alas, mas, a preocupação passava mais pela paciente e não pela criança, como foi o caso de uma denúncia de que a “criança levaria drogas pra mãe”

Nesse Laboratório, a oferta da palavra se dirige para os técnicos, os trabalhadores que são causados não somente pela estrutura psicótica, mas pela maternidade e pelo encontro destas mulheres tanto com a gravidez quanto com seus filhos, pois eles estão marcados por uma transferência de trabalho dentro de uma instituição onde o savoir-faire das categorias profissionais insistem em ofertar soluções protocolares sem que o traço do sujeito possa dar rumo às intervenções. Além de ser uma instituição que tem o seu saber construído sobre uma saúde mental que não pressupõe e nem está às voltas de um outro lugar, que é a maternidade e a gravidez.

Os técnicos na conversação precisaram se perguntar sobre o lugar da maternidade e gravidez e rever o ideal que envolve esse acontecimento. “Precisamos esvaziar o ideal de maternidade” disse um dos participantes, pois, apesar de todas as passagens ao ato que ocorrem nesta instituição, “lidar com uma gravidez e as passagens ao ato desta mãe foi muito difícil para a equipe”. Nesta subversão institucional, nesta operação que causa uma descontinuidade no discurso burocrático das regras, normas e protocolos do serviço, algo novo surge a partir da palavra do paciente e, agora nas conversações, a partir da palavra dos trabalhadores do hospital causando um giro nos discursos que constituem a operação lógica do trabalho cotidiano.

Assim, uma das participantes deste encontro, ao concluir o que seria a conversação deste Laboratório, afirma que a conversação pode abarcar várias equipes e profissionais e trazer as miudezas, as “preciosidades na circulação da palavra, escutar aqueles que trabalham no dia-a-dia”.

 

 


Referências Bibliográficas
KAUFMANNER, Henry. “Um relato imperdoável”. In: Revista de Psicanálise, (14), São Paulo: Clin-a, p.113-117, 2015.
VIGANÓ, Carlo. “A construção do caso clínico em saúde mental”. Revista Curinga, (13), Belo Horizonte: EBP-MG, p.50-59, 1999.
ZENONI, Alfredo. “Qual a instituição para o sujeito psicótico”. In: Revista Abrecampos-Instituto Raul Soares – FHEMIG, vol. 1, Belo Horizonte, 2000.

[1] Conversação do Laboratório “Mães em Crise” responsáveis: Juliana Motta, Cristina Marcos. Participantes: Clara Ratton, Beatriz Bissoli, Lucas Anselmo Lopes, Laila Sampaio, Marconi Martins da Costa Guedes, Renata Mendonça, Rhayane Medeiros.
[2] Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança.
[3] Atividade do CIEN-Minas, uma conversação aberta na instituição que o Laboratório se reúne.
[4] Conversação feita no IRS em 23/05/2018. Responsável: Juliana Motta. Apresentação: Rhayane Medeiros, Animadora da conversação: Ana Lydia Santiago. Responsável pelo CIEN-Minas: Aline Mendes.
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Editorial

by cien_digital in Cien Digital #22, Editorial

Hilma af Klint

Siglia Leão – Editora

 

Caro leitor,

Mais um Cien-digital está aí, na rede.

Esse número se apresenta justamente no auge de um tempo fervoroso, em que o discurso é comandado pelo racismo e pelo ódio à diferença, em que a palavra está ameaçada em sua livre circulação. Ou ainda, tempo de um discurso à parte, onde não há palavra, reina a pulsão.

Nesse contexto, como contingência ou interpretação precisa de um momento já anunciado, o tema da VI Manhã de Trabalhos do Cien-Brasil cai muito bem. Seu argumento, que abre esse Cien-digital 22, incide justamente sobre a fala, a singularidade e a diferença; sobre o dizer do sujeito, sobre o ato e a palavra. “Como cada criança e cada jovem pode constituir e sustentar seu lugar frente à intolerância?” é uma das perguntas norteadoras dos trabalhos a serem apresentados no próximo dia 23 de novembro, no Rio de Janeiro.

E qual o estatuto da palavra no CIEN? Outra pergunta norteadora da VI Manhã e principal fio condutor dos diversos textos deste número, que buscaram cingir o que da Conversação faz efeito. Sob esse crivo, convido-os inicialmente à leitura inspiradora e elucidativa do texto de encerramento da Conversação Internacional do CIEN 2017: Os laços sociais e suas transformações, na rubrica Hífen. Ali, Juan Carlos Indart nos brinda com pontuações sobre o estilo de conversação do CIEN, ressaltando que ela produz, nas “encruzilhadas” de um grupo, um deslocamento, uma transformação, compondo um estilo “através do qual se consegue dissolver a tensão pulsional no imaginário”; “uma conversação na qual se intervém para não deixar cristalizar um S1”. Ainda, em suas perspectivas para o Cien, J-C Indart aponta para a “dignidade singular”. Já Beatriz Udenio recupera uma indicação de Alejandro Daumas para precisar o lugar dos laboratórios, “uma cozinha, onde coloca-se a mão na massa, suja-se, e não o palco das “celebridades”.

A partir de então, o leitor pode deliciar-se nas diversas cozinhas brasileiras. Do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, os diferentes Labor(a)tórios testemunham suas experiências e relatam os desafios diários da vida em um abrigo, na escola, no hospital e instituições afins, perguntando-se: como inventar saídas próprias e originais diante dos obstáculos? Como não ser afastado de sua mais intima diferença? Como dizer do próprio desejo, do mais particular no meio da massa? Como operar uma saída da estereotipia institucional? Como trazer os alunos para o laço com a escola? O que se pode diante de impasses resultantes da política do paratodos? Quais as conseqüências para os profissionais de escutar a voz singular de uma criança? E respostas vão aparecendo, sendo tecidas na medida do um a um, quando o arriscar-se toma corpo. Arriscar-se a ir além do que “reza a cartilha”, apostar no savoir-faire de cada profissional e incluindo os desvios do protocolo, permitindo que as questões ecoem fora dos termos tecnocráticos.  Ou ainda, como nos diz Emelice Prado Bagnola, em uma bela construção de seu encontro com o CIEN, na rubrica Contribuições: “permitir que as normas tirassem uma folga para que a experiência com a subjetividade pudesse realizar um plantão de forma singular”.

Na rubrica Historia do Cien no Brasil, Mônica Hage também fala de sua entrada no CIEN, seu instante de ver e as elaborações que se seguiram, com a aposta no corte. O traço da política do Cien seria fazer dos restos, corte na rotina do trabalho dos profissionais, “deixando a experiência aberta, em suspenso a um tempo de compreender” e “inserir a conversação nessa abertura”.

Em Órbita, dois textos nos remetem ao entorno do CIEN, a experiências afins que brotam na cidade, que podem nos tocar e de onde podemos extrair ensinamentos. Na contra-corrente da estrondosa massa midiática, Jon Russo nos fala de sua prática audiovisual interessada no dizer da criança e de sua tentativa de recolher um saber de cada uma delas. Ele nos leva, no passo a passo da criação, a entrar num outro tempo.

Já Ana Lydia Santiago, a partir da rede Zadig, fala da lógica contemporânea do racismo, como apontou Lacan, que “consiste em rechaçar no Outro um modo diferente de gozo”. O convite a diluir a tinta do discurso racista por meio da palavra está lá. Aponta-nos uma arma potente: a conversação. A ‘associação livre coletivizada’ como um discurso que, ao acolher a trajetória singular de uma vida, resiste às ideologias, utopias, ideais e práticas que gravitam em torno da uniformização dos modos de gozo.

Por fim, remeto-os à ENTRE-vista de Daniel Roy sobre a especificidade do CIEN, sua relação com as outras instâncias do Campo Freudiano e sobre nossa VI Manhã. Ele nos lembra que a “coisa violenta” existe para cada um dos seres falantes e retoma Lacan para dizer que “nas instituições onde há ‘em situação variável, uma relação baseada na liberdade’, constatamos que as passagens ao ato são finalmente muito raras”.

Que nos tempos que se aproximam, o CIEN resista, em sua extensão, como um avesso real da vida contemporânea. Que sua vigência permaneça vigorosa!

Boa leitura!

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Chamada para Evento – Argumento

by cien_digital in Cien Digital #22, Eventos

Comissão de coordenação e orientação do CIEN-Brasil: Paola Salinas (Coord. Geral), Mônica Campos Silva, Mônica Hage e Vânia Gomes.

 

Em 2008 a Manhã de trabalhos do CIEN-Brasil teve como tema “A oferta da palavra hoje: quais as respostas do CIEN?”, indicando uma tendência generalizada no uso da fala como instrumento de transformação e ação. Em uma perspectiva utilitarista aliada à ciência, essa oferta da palavra foi tomada, no mundo, como instrumento de eficácia, buscando uma previsibilidade do sujeito e a produção de respostas pré-concebidas. Como consequência constatava-se que o mal-estar, o enigmático, inerente ao humano, não encontrava um lugar.

Frente a isso o CIEN se posicionava com “A oferta de dispositivos onde a palavra pudesse se tornar, pela forma como é escutada, um instrumento de criação de respostas e de abertura de caminhos inéditos – ou ainda, como indicou Judith Miller, o inconsciente pudesse no mundo contemporâneo, tornar-se audível”[1]. Isto é, que pudesse ter um lugar no discurso.

As conversações inter-disciplinares dos Laboratórios do CIEN, em seu trabalho ao longo destes anos, nos mostram não só os efeitos do encontro de diferentes pontos de vista, do que cada um pode se servir do outro, mas também do que colocamos em jogo quando falamos: os limites, as contradições, os pontos de ruptura e paradoxalmente… o que faz laço. Não se inserir na lógica da resposta padrão ou da normatização faz aparecer a diferença em seu sentido amplo e a singularidade como modo de solução ao impasse que ali se apresenta.

Dez anos depois, propomos nessa VI Manhã de Trabalhos do CIEN Brasil retomar essas questões: O que falar quer dizer? Buscando recolher nas experiências, entre as contradições dos efeitos de falar e do uso que se faz desse dizer, como os jovens e crianças se apresentam na sua singularidade? Qual a forma que cada um encontra para expressar suas diferenças em nossos dias e poder responsabilizar-se por elas? O que ouvimos dos seus dizeres, das suas invenções?

É possível apostar ainda hoje em uma boa forma de dizer, mesmo quando não há um discurso articulado para representar um sujeito? Ou seja, quando um lastro simbólico, social e afetivo vêm a faltar, deixando o sujeito sem um enganche que lhe permita representar-se ainda que pela oposição? Quais as consequências quando se retira essa aposta na palavra? O que a violência que se apresenta nas crianças hoje quer dizer?

A partir da prática dos Laboratórios, abordaremos os desafios e os recursos construídos em cada experiência do CIEN. Os testemunhos nos permitirão discutir sobre os seguintes eixos temáticos:

1- Em que apostamos quando propomos uma conversação do CIEN nos dias de hoje? Como reintroduzir o lugar da palavra e sua função? A partir do que se fala, quais os pontos de opacidade que se apresentam para cada um e os efeitos na fala que circula?

2- Singularidade e Diferença – A presença, em nossa época, de reações extremas diante da singularidade de cada um e seus diferentes modos de satisfação, nos faz perguntar sobre o ato e a palavra. Como cada criança e cada jovem pode constituir e sustentar seu lugar frente à intolerância? Como a violência nas crianças ou dirigidas a elas podem ser lidas?

Envio dos trabalhos
Aguardamos a experiência dos laboratórios do CIEN até o dia 15 de setembro, para o e-mail brasil.cien@gmail.com
Cada comunicação deverá conter até 6000 caracteres, incluindo espaços e notas, na fonte Times New Roman, tamanho 12.
Inscrições: www.encontrobrasileiro2018.com.br

 


[1] PITELLA, C.; TELLES, H.; REGO BARROS, M.R.C; PAVONE, T. (Comissão de Coordenação e do CIEN-Brasil 2007/2011). Apresentação da Manhã de trabalhos do CIEN-Brasil Cien Digital, n 5. Novembro de 2008, pg. 4.
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Conversação Internacional do CIEN 2017 – Os laços sociais e suas transformações[1]

by cien_digital in Cien Digital #22, Hífen

TIRO na Cabeça. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14755/tiro-na-cabeca>. Acesso em: 23 de Set. 2018. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060

Buenos Aires, 12 de setembro de 2017
Mesa de Encerramento

 

Beatriz Udenio:

Toda conversação tem um começo e um final. E chegamos ao final. Assim como foi reiterado durante o trabalho desta jornada, talvez tenhamos a sorte de sair um pouquinho transformados pelo encontro. Diria que existem sinais de que algo assim irá acontecendo.

As pontuações e perspectivas ficaram ao encargo de nosso assessor de fato, Juan Carlos Indart, que vem nos acompanhando há muito tempo com sua presença e intervenções. Alguém que se refere ao trabalho do CIEN com grande generosidade, citando-o como exemplo da incidência, não só desejável ou possível, mas concreta da psicanálise no mundo contemporâneo.

Assim, situarei uma lembrança que presta tributo a um certo estilo, que é o estilo do CIEN. É difícil falar de um estilo quando se trata de uma instância, pois, no campo psicanalítico, estamos mais acostumados a falar de estilo ligado ao singular, ao sinthoma. Minha referência, neste caso, será trazer e compartilhar uma lembrança da Sra. Judith Miller, quem desde o início do CIEN nos acompanhou, balizou e sustentou o nosso trabalho.

Ao longo dos anos, apoiamos nossa orientação nos ensinamentos e referências de Jacques-Alain Miller, Éric Laurent, e na leitura de textos esclarecedores de Sigmund Freud e Jacques Lacan. E, de tudo isto, aprendemos que existe algo valioso na maneira em que cada um, no CIEN, sustenta estas expressões de um modo original, ali onde se perde a autoria – como indicava Foucault. Em relação a isto, Judith Miller contribuiu muito ao cuidar do que considerava a boa maneira de fazê-lo, localizando a responsabilidade no compromisso de trabalho assumido por cada um. Uma anedota permitirá situar melhor esta pincelada e que diz muito bem o que vivenciamos nesta conversação. Durante uma jornada, há anos, num diálogo ao lado, Judith surpreendeu-me ao comentar sobre alguém que apresentava um trabalho naquele momento: “Esta pessoa só trabalha para si mesma, só quer ser célebre”.

Aprendi muito com esta intervenção de Judith, pois, para entrar na cozinha dos laboratórios, aquelas mencionados por Daumas, é preciso sujar-se. E se não o fizermos assim, não estamos entrando na cozinha. Nas cozinhas do CIEN não se admitem celebridades. Trata-se muito mais de despojar-se de toda expectativa de tornar-se célebre. E esta mulher devia saber do que falava, porque viveu e sustentou fortes convicções em uma época na qual o culto à personalidade era algo cunhado em torno de figuras muito “célebres” – que deixaram suas deploráveis marcas no mundo. Lacan faz uma referência a isto no Seminário 17. De modo que o CIEN não é um lugar para celebridades, nem para o culto a nenhuma personalidade. E não sei como o conseguimos, mas cada um com sua modalidade consegue somar-se a isto. E de imediato podemos ressoar algumas frases cruciais, sustentar alguma chama relacionada àquilo que nos interessa, segundo o jeito de cada um.

Seja como analisantes esclarecidos ou sabendo do impossível de ensinar, vamos nos enfiando na cozinha, cada um à sua maneira. Então, retomando a ideia de Alejandro Daumas, ao falar da alegria, podemos dizer que por não ser célebres e por não querermos sê-lo, podemos celebrar de outra o trabalho no qual nos juntamos em torno de uma brecha, de um furo que não se fechará nunca – isto Lacan nos ensinou – de uma hiância, que representamos no hífen, o hyphen que suporta e protege este lugar vazio, e, em cada sujeito, neste trabalho entre vários, entre muitos, sem celebridades.

Bom, agora sim, a palavra de Juan Carlos Indart para as Pontuações e Perspectivas

Juan Carlos Indart: Estou aqui outra vez com vocês convidado por Beatriz Udenio, mas este “outra vez” não tem tanta frequência que me impeça de usar algumas das belas expressões forjadas no CIEN, e dizer, por exemplo, que estou me “incluindo desde fora” … e vamos ver se conseguimos nos abrir ao desconhecido do Outro.

(Risos do auditório)

J.C. Indart: Não é muito cômoda para mim esta posição de fazer um encerramento com pontuações e perspectivas, porque costuma ser uma posição que inclui resumos e generalizações. Um lugar muito ruim para o que aqui foi suscitado: a singularidade, o detalhe, a diversidade…

Beatriz Udenio: Foi por isto que te convidamos!

J.C.Indart: Mas, por que é preciso fazer pontuações e imaginar perspectivas?

(Risos do auditório)

Beatriz Udenio: Para que você subverta isto!

C. Indart: Então devo dizer que, na minha singularidade, aproveitei este convite para vir vigiar.

(Risos do auditório)

J.C. Indart: Porque a última vez que participei no CIEN foi aqui em Buenos Aires… Já faz quanto tempo?

Beatriz Udenio: Em 2013.

J.C. Indart: 2013, bem, 4 anos. Nessa oportunidade estive muito entusiasmado com a tarefa dos laboratórios do CIEN…, mas com dúvidas se este estilo de trabalho poderia durar e perseverar …, sobretudo com a diversidade de países, de cidades, de grupos e de pessoas que articula. De maneira que, após vigiar, uma pontuação que posso fazer e testemunhar que, após 4 anos, este estilo persevera e se sustenta explicitamente em quase todos os trabalhos apresentados hoje.

Para dizer isto é preciso dizer algo sobre este estilo, inicialmente, da maneira mais abrangente possível. É um estilo de conversação, mas, o incrível, o que persevera, é que nestes dispositivos as pessoas dos laboratórios do CIEN que escutam – cômoda ou incomodamente – intervêm na conversação sem entrar nunca em uma rivalidade imaginária por causa das identificações. Quando se trata de temas que suscitam – para situá-lo rapidamente – o colocar-se sob algum S1. Ou inclusive, poderíamos dizer, quando se trata de responder politicamente segundo o que se entende por política no discurso comum. Observem que se trata de intervenções que induzem a um deslizamento, a um deslocamento, a sair do lugar segregativo e mortífero. Não devemos nunca esquecer que, em um grupo, em última instância, diante do insuportável, diante desse “não sei que fazer com o outro”, a resposta que o habita é: matá-lo e/ou suicidar-se. Contra esta inclinação o que encontramos nestas experiências do CIEN é que nessas encruzilhadas um deslocamento, uma transformação do tema, um desvio, compõem sempre o estilo através do qual se consegue dissolver a tensão pulsional no imaginário. Quando isso acontece, pode aparecer aquilo que insistiram em chamar de “conversação plena”, porque certamente nem sempre uma conversação chega a este ponto.

Por isto, assinalo que, quando no CIEN se diz “conversação”, não é uma conversação qualquer. É uma conversação na qual se intervém para não deixar cristalizar um S1. Beatriz insistiu nisso, porque é só quando cada um pode arriscar-se a colocar um pouco em palavras a sua singularidade, – isto é inventar – e por isto uma conversação só e plena quando existem tais invenções. Quatro anos depois comprovamos que os efeitos deste dispositivo ocorrem e, portanto, sua vigência continua vigorosa. É assim que começaram, e em uma diversidade de situações distintas – escolas, grupos para drogaditos, centros comunitários, escolas de teatro, e muitas outras instituições – onde se recebem crianças e adolescentes. Existe, pois, uma inserção variada em diferentes instituições sociais, o que nos faz imaginar o CIEN, em sua extensão, como um avesso real da vida contemporânea.

Quando acontece o que poderíamos chamar de o máximo do alcance do dispositivo – o nó do dispositivo completo, não só o primeiro passo – temos em alguém que não é predizível, em alguém que pode ser a criança problema, mas poderia ser seu docente, ou outros que participam da conversação, a recuperação de uma ‘dignidade’. Tomo esta expressão que Alejandro Daumas utilizou, uma vez que parece excelente para descrever o máximo possível de se alcançar. Isso! Mas quando existe “isso”, creio que uma perspectiva é centrar-se nisso como trabalho a apresentar, como um testemunho “d’isso” que deve oferecer-se a uma teorização, como uma pérola que pode servir muito aos outros, não só às pessoas do CIEN. Observem que, em algumas ocasiões, “isso” aparece com dados precisos e suficientes para sua consideração psicanalítica, mas, outras vezes, os que apresentam dão testemunho de um trabalho, de que algo ocorreu, mas ainda não se entende bem como teve tal alcance, essa conquista.

Bem, agora, em perspectiva, isto que chamo alcance máximo do que se pode aspirar implica que, na conversação, em uma ou em mais de uma, alguém atravesse esse momento novo, inédito, que podemos chamar de dignidade singular, e creio que no que tange à perspectiva, “isso” terá que ir sendo situado com a noção de sintoma. Vocês dizem isto de muitas maneiras: divisão subjetiva, surgimento de um desejo, apaziguamento de um gozo, todas formas de indicar “isso”. Mas, se ocorre dizia Daumas, será fundamental ir provando aos poucos que se trata da última noção de sintoma presente no ensino de Lacan.

Eu gostaria de trazer alguns exemplos sobre isto. Já mencionei em uma intervenção durante a conversação: o caso desse menino que mente em um jogo e ganha sempre, e não se consegue modificar nada pelo fato de que lhe digam que mente, ou que descobriram, ou que tem que dizer a verdade, ou que assim não se joga. É uma mentira bem sintomática e a conversação possibilita que a coisa deslize de um modo muito diferente ao que seria colocar-se como um espelho na sua frente para localizá-lo: “ou você diz a verdade ou não jogo mais com você”, ou, “com este menino não sei o que fazer, ele trapaceia”. Quando isso desliza um pouco e aparece isto “faço isso porque não quero ficar como um tonto”, algo novo acontece. Porque não é um passar por tonto de alguém com fortes ideais constituídos, e que não suporta um efeito de castração, de – ᵠ, uma vez que lhe custa um pouco aceitar que às vezes se perde e às vezes se ganha. É inútil buscar isso. O que ele chama “ficar como um tonto” significa perder toda imagem de si no laço social e assim resolveu isto com este sintoma.

Isto permite entender que, quando lhe foi exigida “a verdade”, se retira do jogo e permanece um pouco deprimido e fechado, até que alguém vai buscá-lo dizendo que não pretende julgá-lo, nem nada neste estilo, mas, que pondo a mão no seu ombro diz que é “para falar sobre o que te acontece”.

E o convida a jogar outro jogo – porque o jogo que o menino jogava não está lá – dizendo-lhe: “Vou te ensinar o truco – um jogo argentino, rioplatense, no qual efetivamente as cartas estão cobertas, nas apostas pode-se mentir e enganar ao outro em relação ao que se tem ou não se tem. E acrescenta: “Vamos jogar isto que é um jogo no qual se pode mentir”, ao que o menino responde: “Nisto eu sou bom!”

Neste caso vocês têm a função de uma mentira sintomática contra a mentira como defeito na lei kantiana, que obriga a “dirás sempre a verdade”. Não só poderia tornar-se um bom jogador de truco, como também poderia transformar-se em um grande diplomata … ou em um político … psicanalista seguramente!

(Risos)

Lacan foi um grande seguidor dos ensinamentos de Balthazar Gracián – um jesuíta a quem admirava – porque assinalava que não há caminho de santidade possível se não se sabe mentir e que dizer a verdade é muitas vezes o pior. Então, observem este funcionamento através do qual ele consegue reinserir-se e obter um lugar, pois seu desejo foi escutado: Sim! E se sustenta absolutamente naquilo que havia sido sua solução. A chance que ele tem é de que agora em vez de não fazer laço com “isso”, ele possa com “isso”, em outro dispositivo como o truco, passar ao outro que pode ganhar ou perder sustentando sua imagem corporal com o sintoma “mentiroso”.

Em outro caso, tem um menino que fuma e não lhe dizem: “Não tens que fumar”. Deslocam a questão dizendo-lhe que isto tem consequências e que assim não poderá treinar um esporte. Também aqui se observa o efeito de uma conversação, onde se fala com este jovem e o qual se respeita tanto ao ponto de deixá-lo só com sua decisão em um campo induzido de desejo. No texto sobre este caso o colega que o apresentou deixou algo fora, por exigências de concisão. Mas, logo depois ao ampliá-lo, em nossa conversação, disse o que me parece fundamental saber, é que o menino chapado continuava comparecendo aos treinos dos demais, ele ficava olhando. De modo que durante uma semana continuou chapado e olhando. De repente já não se apresentou assim e integrou-se no treino. A gente depois pergunta por que diabos houve um acatamento subjetivo a uma norma qualquer? Evidentemente que não foi por ter aderido a um princípio kantiano do estilo “não fumarei jamais” ou “fumarei sempre”, mas, tampouco foi por ter assumido um princípio aristotélico, do tipo “fumarei com moderação”. Podemos comprovar que ele inventa algo assim “alguns dias sim, outros não”, mas porque sente gozo no corpo, como imagem de si um corpo esportivo. Vemos, uma vez mais, que é para sustentar um imaginário corporal que ele renuncia aos excessos do gozo da droga.

Tem também aquele menino que pensa que deveria ser levado a um centro de saúde mental e que, em vez disso, termina incorporando-se em uma escola de dança. Mas não se trata de “dançaterapia”, nem de orientar de modo geral as pessoas para que realizem atividades “saudáveis” para o corpo, assim como a dança ou outras. Trata-se de saber que ele já havia conquistado isto como sintoma. Em um estado de máxima degradação, onde já não tinha nada, numa solidão completa, ele havia se inventado como bailarino, solução que usou, mais ou menos profissionalmente, até que desmoronou. De maneira que é através de seu sintoma que ele faz laço.

Temos, então, um sujeito que consegue usar seu sintoma ‘esporte’ para fazer laço social e apaziguar o gozo da droga, e outro que consegue isso com seu sintoma ‘mentiroso’ e temos ainda outro que consegue isso com seu sintoma ‘bailarino’.

Nos momentos em que se é e se está aí com seu sintoma singular e por definição usando-o, estes são, na minha opinião, momentos de ‘dignidade’, que o dispositivo da conversação do CIEN faz nascer, resu(s)cita.[2]

Isto é o que considero o ganho maior a ser obtido nos dispositivos do CIEN. Mas há também situações nas quais não verificamos isto. Constatamos, sim, que há divisão subjetiva, um deslocamento da posição em que se estava, uma saída da impotência podendo começar algo. Mas, sem que haja uma conclusão sintomática, e sim uma abertura a um novo tempo de compreender.

Quando estamos nesse ponto, é preciso que tenham cuidado; não tomem como fato que a prática do dispositivo impede que desemboquem na religião. Frente aos protocolos, perante o frio das normas burocráticas, o surgimento de um momento de piedade, ou de caridade (que poderia encontrar-se, por exemplo, nessa vice-diretora que se jogou no chão para segurar a criança desesperada) é de fato uma grande mudança. Assim o é a partir do ponto de vista de uma vice-diretora que se guiava somente pela boa práxis e o protocolo, mas não sabemos de antemão se vai na direção que nos interessa.

Nestes casos, que também foram apresentados de forma muito resumida, foi excluído algo que me parece essencial. Uma das professoras se joga no chão para ver uma criança que não falava quase nada e que só se enraivecia e batia, e ao fazer isto não busca contê-la piedosamente; ela vê nesse contato que existe uma possibilidade de trabalhar com esta menina com certos métodos de psicomotricidade, que conhecia, e que se lembra. E é esta intervenção singular, exercícios de psicomotricidade, o que permite uma mudança incrível nessa menina. Esta é, sem dúvida, a parte que nos interessa, a invenção e seu saber, e não a complacência de ter sido piedosa com a menina.

Em outro caso, o da biblioteca, ainda não se vê bem, parece … Neste caso, trata-se da vice-diretora, para quem pode ser mais difícil jogar-se no chão, entretanto para ela foi um momento de grande divisão, frente ao qual teve a ideia de dar-lhe um espaço próprio, convidando-a para um encontro na biblioteca. Mas não temos mais dados para saber se na biblioteca foram rezar juntas pela fé, pela esperança e pela caridade ou se prosseguirão na direção da singularidade do sintoma que nos interessa. É nesta linha que lhes digo quando me parece pleno o êxito de um laboratório do CIEN. Nem sempre acontece e é preciso buscá-lo, tê-lo como um horizonte.

Também advertiria que é preciso ter cuidado com as experiências que estão vinculadas a grupos que têm uma prática artística, como é o caso de um trabalho de um laboratório com um grupo de teatro. Para localizar onde um laboratório pode intervir com a conversação, posso advertir de um risco que correm, – este é o opaco papel que me cabe – de deslizarem àquilo que se fez em demasia, o psicodrama, pois as mudanças que se diz obter, como sair das inibições e atravessar não sei que coisas tendo como base a representação de personagens no teatro. Isto não tem nada a ver com conseguir algo no real, pela via do sintoma. Isso verificou-se nas loucuras que ocorreram com o efeito do psicodrama e do uso do teatro com intenções terapêuticas. Por isto, é necessário fazer um esforço para ver como seria possível realizar nesta experiência uma articulação mais precisa.

E quando os efeitos do estilo CIEN, além do que é convocado a produzir em relação à infância, também têm a ver com todas estas divisões subjetivas que são produzidas nos docentes, ou nos médicos, ou no pessoal da saúde mental, quando rapidamente intervêm na conversação produzindo um efeito de renovação neles. Isto também acontece com os próprios responsáveis pelo Laboratório, então … o nome que daria … à essência deste estilo … não sei se devo dizê-lo Beatriz …

Beatriz Udenio: Diga …

J.C Indart: É uma prática sem valor.

(Silêncio do auditório)

C Indart: E isto não se suporta! Alejandro já não estava suportando muito bem, fazendo-se de filósofo político, declarando que a escola é medieval e que se extingue…

(Risos do auditório)

C. Indart: Fazer grandes profecias sobre aonde iremos parar com isto… crer na história… nossa prática não vale nada para isto… a história não saberá para que servimos. Se com a palavra buscamos regar o broto da singularidade que o mercado arrasa, devemos aceitar o preço a pagar, ou seja de que o valor de nossa prática é o de não ter valor. Não há que se atormentar com problemas que o Laboratório não pode resolver. Conseguir instantes de uma mudança subjetiva como os que estamos discutindo, pois bem, é “isso”: não há seguimento, nem tratamento a longo prazo, nem nada nesse estilo; é um exemplo do que Lacan pedia da psicanálise: conseguir ser uma prática sem valor.

Assim diria, preste atenção nisso, pois a conversação também introduz, de imediato impossíveis para seus participantes; e também podem introduzir impossíveis para os próprios laboratórios, e é preciso aceitar que algumas situações talvez não cheguem a produzir “isso”.

A reflexão sobre o que está acontecendo com o Outro dessa escola, na qual se descrevem todos alunos fazendo grunhidos e instaurando ativamente um paradoxo esquizofrênico, o de “queremos aula – não deixaremos dar nenhuma aula”, se propõe um pouco como um limite. Alunos organizados com o grunhido e capazes de utilizar o que nós adjudicamos ao grande Outro, que não cuida da singularidade e que se rege por horários fixos e protocolares como o máximo do negativismo… Assim, quando uma professora põe o corpo para tentar ensinar, é o grupo que lhe diz: “nós nos guiamos pelo protocolo e não é seu horário”. O que acontece aí? É uma situação de ruptura extrema do laço. E é preciso ver sob quais condições se poderia inventar algo … não sei o quê. Mas é preciso aceitar também que podem haver situações onde a conversação não consiga nada, ou podem dar de cara com os mesmos grunhidos, ou o mesmo desafio ao Outro desta pequena tribo, este pequeno bando.

Para concluir: se a conversação pode acontecer – pode acontecer! – quando conta com todas vantagens das quais já falamos, é porque tem seu impossível e seu real. Assim, o que queria lhes dizer é: sigam em frente! Minha perspectiva, a que considero como sendo a melhor para o CIEN, é a de que se interessem pelos ganhos do sintoma, como sustentação para um sujeito instalar-se na vida, no mundo, no laço social. Muito obrigado.

(Aplausos)
Tradução: Glacy Gonzales Gorski
Revisão: Paola Salinas

 

 


[1] Este texto está em trabalho de edição para publicação em espanhol em “Cuaderno Nro 8 del CIEN”. Los lazos sociales y sus transformaciones”, em Buenos Aires. Agradecemos a Hernan Villar e Beatriz Udenio pelo envio do texto para publicá-lo em português.

[2] No original, jogo com o equívoco de suscitar novamente.

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ENTRE-VISTA COM DANIEL ROY

by cien_digital in Cien Digital #22, ENTREvista

Inside and Out, 1964, Melvin Edwards. Welded steel. 12 x 8 3/4 x 5 3/4 in. Collection of Susan and David Lawrence. © Melvin Edwards

Cien Digital, setembro de 2018, por Paola Salinas

 

Cien Digital: Diferentemente do Brasil, na França o Institut de L’Énfant (I.E. – Instituto da Criança) reúne o trabalho das três redes: CIEN, CEREDA e RI3. Gostaríamos que você nos contasse um pouco como se dá a articulação entre essas três redes e quais os pontos de aproximação entre elas. O que pode ser recolhido como uma especificidade do CIEN nesse contexto? Ademais, o que uma rede pode extrair como ensinamento da outra, a saber, o que uma pode ensinar à outra?

Daniel Roy: Cara Paola, obrigado por suas perguntas para o CIEN Digital Brasil, elas me dão a oportunidade de esclarecer alguns pontos que concernem ao Instituto da Criança (I.E.). O IE foi criado por J.-A.Miller no contexto da criação da Universidade Popular Jacques-Lacan (UPJL), que deu uma maior extensão à UFORCA (as Seções Clínicas), situando-as explicitamente sob o nome de Lacan; o IE veio se juntar à UFORCA na UPJL a partir da proposta que nos foi feita por J.-A.Miller para unir as forças do CEREDA, do CIEN e das instituições do RI3 para fazer valer diante da “opinião esclarecida” a posição da orientação lacaniana concernente à psicanálise com crianças. Esse movimento não é portanto a priori, mas se constitui na eficácia de cada passo dado. Para nós, o primeiro passo foi dado por mim quando propus a J.-A.Miller organizar uma Jornada de Estudos sobre o tema “Medos das crianças”, reunindo essas mesmas forças. Nesse mesmo passo, ele compôs o comitê de iniciativa do I.E. que se ocupou de organizar essa primeira Jornada, em torno de Judith Miller, com Jean-Robert Rabanel, Alexandre Stevens e eu mesmo. Nesse mesmo tempo lógico, nos pediram para considerar a questão das publicações e cada rede decidiu colocar um fim à sua publicação específica para privilegiar a elaboração comum, o que se concretizou pela criação da coleção La Petite Giraffe, com edição Navarin, que publica as obras ligadas às Jornadas do I.E. Cada rede então atravessou uma certa forma de perda para se reunir com as outras, e isso foi, algumas vezes, duramente ressentido por alguns de nossos colegas. O desafio é aquele da psicanálise mesma, que só pode sofrer por associar-se com outros discursos, os quais têm, sem exceção, como combustível um, ou alguns, significantes-mestres. E “criança” é um significante extremamente poderoso em nossa civilização, com diversas declinações. O psicanalista que recebe crianças numa cura se depara assim com os significantes da família e suas encarnações nos pais presentes. Faz parte do trabalho dos grupos do CEREDA demonstrar, pela via do caso, a eficácia da psicanálise face às dificuldades encontradas e as saídas possíveis pela via do sintoma. O psicanalista que intervém na instituição é confrontado com a pluralidade dos discursos que acompanham a criança nas situações atuais e a invenção do sintagma “trabalho entre vários” no contexto do RI3 responde a esse real. O CIEN é, no que lhe concerne, tomado por uma outra realidade “fascinante”, aquela da infância em perigo e aqueles que o precederam neste trabalho suscitam nosso respeito; entretanto, a “ação beneficente” da psicanálise não pode ser da mesma ordem que a ajuda samaritana ou a ação militante, mesmo se ela não denuncia os semblantes.

Neste contexto a especificidade do CIEN é dar a conhecer o modo como psicanalistas participam dessas ações  com outros profissionais da infância, sem dar consistência a esses semblantes. Certamente, tanto para uns quanto para outros, a perspectiva fornecida por J-A Miller sobre o fato de o gozo ser primário ajuda muito no sentido de manter os ideais a certa distância, mas não é inútil estar entre vários para isto!

Cada rede pode ser ensinada pela maneira como os outros têm que “fazer com” o ponto de real, ao qual os praticantes se confrontam pela modalidade particular de sua ação; é por outro lado assim que uma certa “fraternidade” se estabelece entre todos nós … não é, querida Paola?

Assim, parece-me possível em cada país visar esse estilo de fraternidade, quaisquer que sejam os meios institucionais criados pela circunstância, é assim que vejo o espírito do Campo Freudiano.

CIEN Digital: Sobre o tema da Manhã de Trabalho no Brasil – O que falar quer dizer? singularidade e diferença hoje, lhe pedimos um comentário sobre dois pontos:

  1. O estatuto da palavra no CIEN, onde o principal dispositivo é a conversação. Podemos ainda considerá-la como uma ferramenta de ação em face ao que é colocado como um imperativo de satisfação?

Daniel Roy: Quando comecei a trabalhar no hospital-dia de Podensac, antes dele se tornar uma instituição associada no RI3, escrevi um breve texto intitulado: “Vamos aprender o que falar quer dizer”. E criei “reuniões de palavra” e entrevistas “entre vários.” As crianças autistas foram, então, nossos mestres, que rapidamente nos ensinaram que em primeiro lugar “falar quer gozar” e que é disso que eles tinham que se defender. O que veio a ser chamado de “conversação” em vários grupos do CIEN, entendo mais como um “convite”, feito pelos psicanalistas envolvidos com outros profissionais, para trocarem a partir de um ponto de real frequentemente desconhecido dos participantes e que escapa nos discursos O que aprendi durante os 10 anos que coordenei o laboratório CIEN na Bulgária é a importância de se fazer existir esse furo central dos discursos, lá onde se aloja o sintoma da criança, que é a nossa única bússola. Assim, estritamente falando, não há estatuto especial da palavra nos grupos do CIEN: encontra-se aí, como em todo lugar, o duplo valor da palavra, por um lado de comando e por outro lado de surpresa, e é essa última que privilegiamos, nos vários tropeços da língua. Isso às vezes leva tempo …

CIEN Digital:

  1. A criança e jovem violentos, assim como a violência direcionada a eles, são fenômenos recorrentes no cotidiano das instituições pelas quais eles circulam. A violência excluiria uma relação com a palavra? Seria isso o que está implicado no ato violento? Entendemos que não, a palavra não vem como remédio para a violência, que precisaria ser extirpada, mas qual articulação é possível a fim de que a singularidade e a diferença – subtítulo da Manhã de trabalho do CIEN Brasil -, possam ter um lugar?

Daniel Roy: A sua leitura do tema “Crianças violentas” proposto por J.-A. Miller é bastante pertinente, e faz eco à diferenciação que ele faz no texto dele de orientação, entre o que é sintoma e o que não é sintoma em relação ao ato violento. Sabemos que “a coisa violenta” existe para cada um dos seres falantes e Lacan nos ensinou a estrutura da passagem ao ato. Nas instituições onde há “em situação variável, uma relação baseada na liberdade” (Lacan J., “Alocução sobre as psicoses da criança” Outros escritos, p. 360), constatamos que as passagens ao ato são finalmente muito raras. No entanto, também fazemos a constatação de que há grupos e ideologias que estabeleceram a passagem ao ato violenta como uma lei e me refiro aqui ao final do texto de J.-A. Miller “Em direção à adolescência”[1] quando ele evoca/faz referência a “uma nova aliança entre a identificação e a pulsão, especialmente […] a pulsão agressiva”[2], dando acesso, no grupo, às panelinhas, à seita para um “eu gozo do corpo do Outro do qual faço parte”[3][3]. Como encontrar um lugar para a singularidade nesta identificação massificante e mortal? São as respostas a esta delicada questão que esperamos da próxima Manhã de Trabalho do CIEN-Brasil, para a qual envio-lhes meus votos de sucesso.


Tradução: Diva Rubim Parentoni
Revisão: Cristiana Cardoso Pittella

[1] MILLER, Jacques Alain. “Em direção à adolescência”. In: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, Edições Eolia. Março de 2016, nº 72.
[2] Idem, p. 28.
[3] Idem, Ibidem.
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Quando o diferente toma a palavra

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Itamara Ribeiro

Bárbara Snizek Ferraz de Campos[1] e Renata Silva de Paula Soares[2]

 

Se a sala de aula é palco de diferentes impasses, o Laboratório Ciranda de Conversa[3] se norteia pela aposta de que as crianças e adolescentes, ao serem escutados em suas posições de sujeitos, podem inventar saídas próprias e originais para suas questões singulares. Sabemos que acolher a diferença é mais do que uma proposta de inclusão escolar, é dar voz ao estranho no outro e em si próprio. Porém, na medida em que as práticas educativas visam a normatização do gozo da criança, correm o risco de dar suporte ao empuxo de tentar calar as vozes dissonantes, fazendo a diferença retornar sob a forma de ameaça. O adestramento do gozo, em nome da “educação”, pode levar à segregação, uma vez que toma a forma de um ideal normatizante que impede a invenção[4]. Promover conversações inter-disciplinares em torno de questões como estas é um desafio para o CIEN, em sua aposta nas invenções das crianças, sujeitos que podem encontrar suas próprias soluções.

O dispositivo da conversação, ao fazer circular a palavra, aposta que falar faz diferença, ou seja, pode criar reflexão e espaço para que algo novo possa ser dito. A conversação é a “possibilidade de favorecer a enunciação que permite, para aquele que se aventura nessa aposta, na qual nada está garantido – não uma preocupação terapêutica, em todo caso – que um saber inédito possa ser dito.[5] Entretanto, é de suma importância ressaltar que “o dom da palavra é um dom ali onde isso não fala[6], ou seja, é preciso levar a sério a consideração da causalidade psíquica. “Para operar um desajuste das identificações que coloque em jogo o saber e fazê-lo circular, é preciso conservar um véu sobre o objeto a. O véu sobre a causa em jogo define o objetivo do grupo.”[7] Colocar um limite à associação livre, finalizá-la bruscamente é também uma maneira de não aceitar os princípios diretivos, de não aceitar funcionar “em nome de”, pelo bem-estar da instituição em geral, pelo discurso dominante. Ou seja, a conversação não investe na ideia de que falar alivia, mas ao contrário, parte do princípio que existe “gozo do blá-blá-blá[8], assim, o corte pode ter um efeito sobre o gozo, podendo colocar os sujeitos a trabalho.

Apresentamos um recorte de uma conversação realizada com uma turma de uma escola municipal de Curitiba, localizada em uma comunidade muito específica da cidade, uma favela atravessada pela pobreza e pelo tráfico intenso de drogas. São alunos do 5° ano, idade entre 10 a 14 anos, considerados “impossíveis” pela coordenação e professores da escola. Expostos a um cotidiano de violência e segregação, alguns são refugiados, outros são carrinheiros ou crianças em situação de vulnerabilidade social com vivência de rua.

No decorrer de nossos encontros não eram raros os relatos de tiroteios, assassinatos e embates entre policiais e traficantes, nos quais as crianças eram espectadoras atentas, quando não parte dos conflitos. Entendemos a escola como um local central da construção da infância na comunidade, na medida em que acolhia as crianças e suas famílias na amplitude de sua vivência, como um ponto de ancoragem na experiência social da favela. Ou seja, a escola, no cotidiano, não era um abrigo idealizado onde as crianças podiam aprender e desfrutar de suas infâncias, mas uma parte da totalidade de sua experiência social. Ao pensar dessa forma, o Laboratório pôde acompanhar esses sujeitos a um ponto outro de elaboração de sua subjetividade.

Logo em nosso primeiro contato, as professoras se mostraram apreensivas, entre outras demandas, com um aluno, o Joaquim. Ressaltaram que era “diferente, estranho”, mesmo tendo rendimento escolar razoável. A preocupação estava relacionada à interação social do menino, que se relacionava de forma impulsiva com os colegas, ora batendo, ora apanhando. Iniciamos as conversações sem lançar um olhar diferente para Joaquim, mas atentas à circulação de palavras entre as crianças. Logo que o tema do bullying surgiu, ele foi dado pela turma como exemplo de um aluno que tanto fazia, quanto sofria bullying. Se para eles, bullying era “bater, xingar, dar apelidos”, o fato de o terem apelidado de “Juca, Joca, Nariz de Pipoca” lhes parecia revelador, a prova concreta do bullying. Expuseram que seu grande incômodo era o fato do menino imitar animais, em momentos inoportunos e fora de contexto. Por sua vez, ele tentava ser participativo interrompendo os colegas, usando seu corpo para se aproximar das participantes do laboratório e gritando. Percebíamos que os outros alunos falavam de Joaquim sem lhe “passarem a palavra”, como se ele não estivesse presente na roda ou como se ele não tivesse entendendo muito bem o que estava se passando. Melhor dizendo, os colegas falavam dele, mas não falavam com ele. Era notável como o menino “respondia” batendo nos colegas ou gritando. Em um dado momento, interviemos passando a palavra para Joaquim. Pedimos que ele falasse algo e sustentamos sua fala pedindo que os colegas lhes prestassem atenção. Ele se dirigiu para o meio da roda, mostrando alguns animais que imitava. Foi então que outro menino tomou a palavra para lançar uma questão à turma: será que Joaquim fazia bullying ou só se expressava de forma diferente? Disse: “Ele é diferente porque imita animais. Mas é diferente chamar alguém de filho da puta e vai se foder de imitar animais. Qual o problema de ele imitar animais se nem está nos provocando?

Joaquim se colocava de forma estranha, revelando um modo próprio de relação à linguagem, com seus pares e com o mundo que o cercava. Seu comportamento parecia esquisito para os colegas e era tratado com estranhamento, sendo alvo de agressividade. Tendo em vista uma questão levantada por Miquel Bassols[9], indagamos sobre o vivo dessa experiência: “como se incluir, efetivamente, a partir da exceção”? Neste ponto, ressaltamos que a turma era atravessada pela agressividade: traziam na fala o que carregavam da vivência na comunidade, onde presenciavam cotidianamente fatos brutais mergulhados em uma sociabilidade que valorizava a violência. Entre as crianças, os assuntos acabavam sendo “resolvidos” por meio de empurrões e tapas. Suas palavras eram duras e as professoras se queixavam de seus comportamentos violentos. O menino Joaquim era nomeado como o agressivo, mas a truculência estava em todos os cantos da sala. Essa nomeação parecia ter uma dupla função: localizar a agressividade da turma e tamponar a diferença que Joaquim revelava com sua forma estranha de estar no mundo. Assim, quando as crianças puderam lançar uma pergunta sobre que ameaça estava lançada na imitação dos animais, elas puderam escutar suas próprias palavras sobre sua vivência violenta e a ameaça encarnada em Joaquim caiu. Quando a palavra circulou, novas possibilidades de relação se descortinaram para aquelas crianças, que inventaram uma nova maneira de se relacionar com as suas próprias palavras, e, consequentemente, entre si.  Um novo saber foi inventado.

No decorrer das conversações, as crianças passaram a tratar de sua experiência de imersão na violência da comunidade. Trouxeram a fragilidade da autoridade familiar em contrapartida com a autoridade estabelecida pelo tráfico na comunidade. Todos demonstraram conhecer e seguir os códigos do local, como se comportar para evitar conflitos e perigos quando os embates aconteciam. Enfim, puderam se questionar sobre seus lugares de sujeito em meio a uma estrutura social tão organizada em torno do tráfico. Já em um dos nossos últimos encontros, o assunto bullying voltou à roda, momento em que pudemos perceber uma mudança de posição em relação à Joaquim, ou melhor, em relação às diferenças. Uma das crianças disse: “ele é bem loucão, mas dá pra trocar uma ideia... ele tem o jeito dele. Ele é nosso parceirinho. Às vezes a gente zoa, mas é de boa.” Contaram que nomearam o mascote da turma, um pinguim de pelúcia, como “Pipoca”, em homenagem ao Joca Pipoca. O Joaquim sentenciou: “eu ia preferir Joaquim Junior, mas Pipoca também ficou bom”. O relacionamento entre os colegas era bem diferente do começo, pois as crianças interagiam com Joaquim de forma amigável e o acolhiam em sua singularidade. Contaram que o menino ficava bastante nervoso em algumas situações, mas que eles sabiam que gibis o acalmavam. Assim, eles diziam que já sabiam como agir nos momentos de crise de Joaquim, inclusive explicando às professoras sobre a importância das revistinhas para o menino. Nas conversações subsequentes, Joaquim encontrou um modo próprio de dizer o que desejava e os colegas, uma forma de o escutarem em sua diferença, como por exemplo quando discutiram sobre as pluralidades das formas do amor: ele explicou para a turma que “existe amor de vários jeitos”.

Em meio a um cotidiano atravessado pelos tiros e drogas, essas crianças, até então “impossíveis”, inventaram algo que parecia impossível: ousaram se questionar sobre a possibilidade de fazer diferente. Elas nos ensinaram que é preciso furar a barreira da pobreza e da segregação urbana, pois “quando o Outro asfixia o sujeito, trata-se, com a criança, de fazê-la regular esse Outro a fim de devolver à criança uma respiração.”[10] Eis o alcance do CIEN, um alcance que toma a criança como epicentro de sua própria invenção.


[1] Psicanalista, Especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Psicanálise – PUC/PR, Mestre em Antropologia Social – UFPR. barbarasnizek@gmail.com. Participante do Laboratório Ciranda de Conversa- CIEN-PR.
[2] Psicanalista Praticante, Correspondente da Delegação Paraná – EBP, Coordenadora do CIEN-PR. renataspsoares@gmail.com
[3] O Laboratório Ciranda de Conversa realiza conversações com os profissionais que atuam em instituições escolares, assim como com as crianças e adolescentes, possibilitando que coloquem em palavras as situações de impasses e mal-estar. Seus participantes são Andréa Neves, Bárbara Snizek Ferraz de Campos, Eugênia C. Souza, Flávia Cera, Fidelis Libero Grando Filho, Renata Silva de Paula Soares (responsável pelo Laboratório), Suely Poitevin, Valéria Beatriz Araujo, Willie Anne Provin.
[4] BASSOLS, Miquel “Trauma e Real, o que as crianças inventam”. In. BROWN, Nohemí, MACÊDO, Lucíola, LYRA, Rodrigo. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017, p.51.
[5] LACADEÉ, Philippe (2017) “A vinheta prática tal como ela se elabora no laboratório do CIEN”. op cit., pg. 93.
[6] LAURENT, Éric “Retornar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual”. op cit., pg 44.
[7] LAURENT, Éric op cit.,pg 46.
[8] LAURENT, Éric op cit.,pg 40.
[9] BASSOLS, Miquel (2017) “A singularidade da criança. op cit., pg. 88.
[10] BASSOLS, Miquel. (2017) “Trauma e Real, o que as crianças inventam”. op cit.pg. 56.
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Juntos, não misturados

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Ana Prata

Soraya Alves Pereira[1]

 

O Laboratório Juntos, não misturados surgiu de uma interação entre psicanálise e direito, e da oferta à conversação a crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente em São João Del Rei – Minas Gerais.

Pus-me a cantar minha pena

Com uma palavra tão doce,

De maneira tão serena,

Que até Deus pensou que fosse

felicidade – e não pena.”

Cecília Meireles

Viver junto e não se perder no Outro, dividir um espaço comum, com regras e tratamentos comuns e não ser afastado de si mesmo, de sua mais íntima diferença. Como “ser junto” sem se misturar uns nos outros, mantendo suas vontades, seus gostos, modos de ser, de sofrer, de estar no mundo?

Desafios diários da vida num abrigo que acolhe crianças e adolescentes que não encontraram na família, por motivos de penúria financeira ou emocional, condições mínimas de cuidado e proteção. A convivência tão próxima e os abandonos passados, tão intensos e devastadores, fazem com que se ligar a um Outro dentro da instituição seja, muitas vezes, a saída para uma vida possível.

As jovens adolescentes que tomam parte no laboratório Juntos, não misturados enfrentam a difícil tarefa de se descolarem das insígnias a elas atribuídas: abandonadas, presas do abrigo, pobrezinhas, fadadas a repetirem a história dos pais. Desejam ser mais que isso e não sabem que caminhos seguir.

Nas conversações falam da convivência no abrigo, e da falta de perspectiva de uma vida em família. Vivendo juntas, aprendem que é em meio à ruína do ideal familiar e do mito de um amor que tudo acolhe e suporta que precisam construir laços possíveis de afeto, dentro e fora do abrigo.

A cada encontro do laboratório, contam suas fantasias, escancaram seus ideais e encaram sua realidade. Compartilham a angústia de perceber, nas visitas das mães, o mesmo desnorteamento, as mesmas dificuldades que levaram ao abrigamento, e de como preferem a interrupção de tais visitas, por se sentirem assim muito mais leves.

Cientes da impossibilidade de retorno à convivência familiar, vêm construindo, junto ao promotor da Infância e Juventude e a operadores do direito a possibilidade de viverem, ao completar de seus dezoito anos, numa moradia comum, subsidiada pelo Estado – frequentemente omisso e distante dos direitos tão caros a toda criança ou adolescente carente de recursos financeiros e afetivos.

Interessante notar como essas jovens vêm compreendendo, nesse tempo de abrigo, o funcionamento da justiça; é bonito ver como aprenderam a se valer dos recursos jurídicos. A cada encontro do laboratório tomam a palavra, demandam saber a quantas andam seus processos, reclamam pela demora de solução e sempre demonstram satisfação e alegria ao serem ouvidas – falando ao mesmo tempo, se repetindo, mas percebendo os pequenos e grandes detalhes que diferenciam cada situação individual, aprendendo, aos poucos, a dizer seu desejo.

Notamos que o mesmo acontece quando estão na presença do juiz, do promotor, das assistentes sociais e psicólogas, lançam suas questões, recebem valiosos esclarecimentos e, ainda que estes sejam difíceis de ouvir, demonstram alívio e satisfação por serem escutadas.

Em nossos encontros, é notável como a abertura de um espaço para falar, sem um saber prévio que oriente a conversação e a possibilidade de escolher o que dizer, atrai e estimula a participação de todas. Quando as coisas se atropelam e uma repete a fala da outra, riem e brincam: “ficou tudo tão misturado que não dá pra saber quem falou primeiro”; quando o que lhes vem por dentro, cada uma à sua vez e, por conta própria, encontra voz.

Nesses momentos, percebem que mesmo tendo tanto em comum, são diferentes e que por isso podem ter idéias e opiniões diversas uma das outras, conseguindo falar sobre as situações vividas, cada uma sob sua perspectiva. Um bom exemplo é quando nos questionam sobre namoro e sexualidade na adolescência e, à abertura da questão para todas, começam falando ao mesmo tempo, ou repetindo o que outra acabou de falar, discutindo, brigando, concordando, e aos poucos vão colocando suas idéias, suas fantasias, seus receios.

A vida no abrigo, às vezes duradoura demais, favorece uma forte identificação entre elas, com seus efeitos uniformes e constantes, favorecendo, como nos lembra Freud em Psicologia das massas e análise do eu, “a falta de autonomia e de iniciativa de cada indivíduo.” (1921- 2011, pág 77)

E a importância de uma maior independência tem sido colocada no centro da conversa, tanto com as adolescentes quanto com a coordenação do abrigo. A autonomia, sabemos, esbarra nas muitas e variadas medidas de proteção que orientam o acolhimento e o cuidado e que oferecem condições dignas de vida, até então quase sempre desconhecidas. A subtração da singularidade é um dos preços a pagar. A vida comum, regida por normas coletivas, que preveem tratamento igualitário, baseia-se na premissa de que o que serve para um deve servir para todos, uniformizando os procedimentos e deixando que se perca a riqueza das mais diversas manifestações individuais.

Não desconhecendo as dificuldades nem a responsabilidade de um acolhimento institucional de crianças e adolescentes, sob cuidado e proteção integral, acreditamos ser possível individualizar o tratamento ofertado articulando a necessidade, a demanda e o desejo de cada um. Os caminhos que os levaram até o abrigo não são os mesmos, mas compartilham necessidades concretas, como as de acomodação, alimentação, educação formal e saúde, e que podem ser atendidas de forma global (o que é por eles reconhecido e valorizado de forma evidente). Por outro lado, há demandas muito particulares, que dizem respeito ao modo de ser de cada um, que tocam seu desejo e que é muito importante não perder de vista, pois é o que faz com que sejam únicos.

Na vida no abrigo, estarem juntas e não misturadas aparece todo o tempo, ora como identificação imaginária aos sintomas, ora com atuações de toda ordem. Ou, ainda, ao lado do simbólico, quando, por exemplo, criaram um programa de emagrecimento e solicitaram permissão à coordenação para participar de aulas de Zumba, que acontecem numa praça próxima, lançando os corpos numa dança cheia de ritmo e alegria.

Os encontros no laboratório do Cien testemunham esse movimento dos corpos, que se agitam em sofrimento, mas também dançam em sintonia com as músicas que cantam, quando o espaço forense, onde acontecem os encontros, se enche de gingado e alegre entusiasmo.

A aposta do laboratório é que, em torno da conversação, às voltas com as incertezas da vida, possam emergir pequenos e inusitados saberes, íntimos, particulares, que respondam – ao menos um pouco – ao grande enigma da existência: que desejo habita em mim e como fazer caber esse desejo no mundo. Esse encontro com o próprio desejo, para além do desejo do Outro institucional ou social é que tem surgido nas conversações, quando suas fantasias sobre o futuro e sobre a vida fora do abrigo encontram lugar.

Algumas jovens demandam participar de cursos profissionalizantes, almejando uma autonomia financeira na vida futura, outras querem estudar e chegar à universidade, todas pensando numa vida que abrigue seus sonhos. Falam em morar juntas depois de sair do abrigo, trabalhando e cuidando da casa enquanto continuam os estudos: “família não é só o que a gente teve um dia, família somos todas nós que moramos juntas, a gente pode continuar assim até fora daqui”

Assim, muitas vezes soltas e destemidas ante uma realidade massificante e massacrante, as jovens de nosso laboratório seguem escrevendo sua história. Ora se enlaçam num “todos juntos” que sufoca, quando não conseguem ter voz própria e alienam seu desejo, umas no desejo das outras, quando passam a querer e ter o mesmo.  Ora soltam um pouco os laços, deixando advir o que lhes é mais particular, num “todos juntos” que integra e partilha. Descobrem os pequenos prazeres comuns (como a dança), vivem a vida – essa que insiste em seguir em frente, deixando, quem sabe, antever de soslaio dias mais felizes.

 

 


Referências
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923).São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[1] Coordenadora do Laboratório Juntos, não misturados Cien – Minas Gerais. Psicanalista. Psicóloga da vara da Infância e Juventude da comarca de São João Del-Rei – MG. Mestre em Conceitos fundamentais e Clínica Psicanalítica: Articulações, pela UFSJ – Universidade Federal de São João Del-Rei. e-mail: sorayaalvespereira@uol.com.br
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Desejo e Laço no campo da educação

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Arjan Martins

Virgínia Carvalho[1]

 

A experiência inter-disciplinar e de conversação no campo da educação nos permitiu a criação do Laboratório “Docentes Doentes: deixe-os falar!”. O nome foi destacado da fala de um educador que sintetizou, nos dois termos, o significante de seu mal-estar. Diferente de uma vitimização dos docentes, doentes, a conversação era uma aposta de que, através da circulação da palavra, algo do desejo pudesse ser tocado.

Laurent é esclarecedor ao demarcar a diferença de uma roda livre para uma conversação já que, nesta última, “a primeira aposta é saber que quando falamos deixaremos de ficar aliviados” (LAURENT, 2017, p.42). “É uma aposta sobre o corte” e “o gozo do blá-blá-blá ficará suspenso” (Idem, p.43).

No Laboratório, pudemos testemunhar o surgimento de novas perspectivas e pequenos deslocamentos. Para além desse trabalho, e, a partir dele, houve um momento de conversação o qual gostaríamos de compartilhar. Ocorreu em uma sala de aula com professores de diversas escolas e disciplinas, numa turma de pós graduação. A proposta feita para o grupo, como ponto de partida, foi a de que apresentassem um impasse vivido no campo da educação. Extraíram como tema “gravidez na adolescência”, já que na instituição em questão foram três casos em um ano. No entanto, para realizar o trabalho, tiveram a ideia de entrevistar uma garota que não tinha engravidado: “Escolhemos Jéssica porque sabe tudo sobre sexo”.

Trata-se de uma jovem cujo namorado oferece o anticoncepcional e a lembra de tomá-lo. A professora fica muito impressionada, pois pensa que esse namorado é traficante e, em sua visão, “eles costumam não estar nem aí”. Enquanto a animadora da conversação tentava localizar melhor qual seria o impasse com que iriam trabalhar naquele encontro, a professora relatou ter feito para a jovem a seguinte questão: “que sonhos você tem?”. “Sonho em ser médica”, diz. Como Jéssica era uma “péssima aluna”, que não tinha o menor interesse pela escola, a professora não deu muita relevância. Pediu que ela falasse outros. E a professora segue no seu relato.

“Mas, por que não médica?” – interrompe a animadora, apostando numa conversação. “O que é isso? Como uma menina que é péssima aluna, vive numa favela e não tem nenhuma condição financeira pode se tornar uma médica? Não tem a menor chance!!!” – intervém acaloradamente outro professor. “Mas, espera aí, vocês são educadores! Como podem pensar assim? Então vocês não acreditam na educação!!!” – diz outro. Vários professores tomaram a palavra; outros se remexiam na carteira, incomodados, ou expressavam-se dizendo “é… não sei…”.

A questão sobre a função da educação foi destacada e um participante lembrou o caso de um sujeito que, ao dizer a seu professor que queria ser engenheiro, recebeu um “isso não é pra você” e a frase, nunca esquecida, serviu de impulso para esse engenheiro, hoje muito bem sucedido.

Quando utilizamos o significante “aposta” para dizer da conversação, é porque ela não pode ser definida a priori. Mesmo que se proponha um encontro com essa finalidade, pode ocorrer dela não se efetivar. Parece-nos que, naquele momento, algo de surpreendente aconteceu e tocou esses docentes, no sentido de desajustar as identificações que se apresentavam ali tão enrijecidas. Saíram questionando-se sobre o que poderiam fazer como educadores. E houve quem dissesse que o fato de Jéssica querer ser médica, mesmo que não venha a se tornar uma, poderia ser um jeito de reenlaçá-la à escola.

Mais do que uma desorientação quanto à função do educador na contemporaneidade, o grande impasse que esses docentes nos trazem é sobre como trazer os alunos para o laço com a escola. Ensinam-nos que não há como fazer laço sem desejo!

Para Laurent , o grande projeto do CIEN é o de “reintroduzir a causalidade psíquica em todos os lugares onde é eliminada” (op.cit, p.47). Essa é também nossa aposta nesse trabalho de inter-disciplinariedade com a educação.

 

 


Referências Bibliográficas
LAURENT, E. Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. In: BROWN, N; MACÊDO, L; LYRA, R. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência: experiências do CIEN no Brasil. BH: EBP Ed., 2017.

[*] Trabalho apresentado na Conversação Internacional do CIEN Americano, em Buenos Aires, 2017.
[1] Responsável pelo Laboratório “Docentes, doentes: deixe-os falar!”, do qual também participam Ana Lydia Santiago e Bruna Albuquerque.
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“Eles não deviam estar ali”

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Iris Helena

Laboratório Infância Errante (CIEN-Rio)[1]

 

No tempo da inexistência do Outro, quando o declínio do patriarcado promove uma verdadeira queda dos ideais, a ausência de referências deixa o adolescente mais propenso às condutas de risco. É o tempo dos desenganados e da errância, segundo Miller (1996-1997), questão já enunciada por Lacan (1938) desde seu texto sobre os complexos familiares.

Entre os temas de pesquisa do laboratório, a errância tem sido uma constante e deixa sua marca na nomeação: “Infância Errante”, principalmente a respeito da adolescência, essa “passagem lógica na escolha de uma posição na partilha entre os sexos, uma delicada transição em que o encontro com o real do sexo, comumente suscita angústia e solidão” (Maia, 2012).

Este é também o tempo em que a demanda de saber do sujeito adolescente – que era até então dirigida ao Outro, ao adulto que supostamente o detinha – passa a ser “formulada à máquina”:

“A fórmula que empreguei, o saber está no bolso, faz pensar no que Lacan diz do psicótico, que tem seu objeto a “no bolso”, e precisamente ele não necessita passar por uma estratégia com o desejo do Outro. Há, hoje, uma autoerótica do saber que é diferente da erótica do saber que prevalecia antigamente, porque ela passava pela relação ao Outro” (Miller, 2015).

O saber não está mais depositado no adulto, no professor cuja função era de mediador entre o sujeito e o saber. As informações, os amigos, podem ser obtidos na rede virtual, tudo está no Google!

Somado ao abandono das identificações parentais e à presentificação do gozo indizível que traz para o adolescente uma sensação de estranheza com o próprio corpo, está o saber no bolso. E se o sujeito não precisa mais passar pelo desejo do Outro, essa autoerótica do saber já traz um impasse desde o ponto de partida no trabalho das escolas hoje.

No sistema escolar, a evasão tem ocorrido ao longo do tempo por diversos motivos que incluem desde as dificuldades do aluno e sua família, até os impasses diante dos quais se encontram os profissionais que lidam com o sujeito em sua relação com o saber. Um ponto crucial é a distribuição dos alunos por turma, o que segue a norma do ano que será cursado e a idade em que se encontram. No entanto, o que se constata é que não raras são às vezes em que a repetição de ano impõe uma “inclusão” escolar que funciona mesmo como exclusão e leva à evasão. Tudo depende do manejo e de que modo são solucionados os problemas, em cada caso.

A partir da proposta do CIEN da oferta da palavra, e tendo em vista “O que falar quer dizer”, uma vinheta sobre esse tema ilustra um limite encontrado numa experiência em uma escola.

A presença de três adolescentes com quinze anos em uma turma de terceiro ano do ensino fundamental, em que a maioria tinha nove anos, trouxe um impasse para os profissionais de uma escola e assim foi dado início a um trabalho multidisciplinar com uma equipe constituída também de psicólogas e assistentes sociais. A transmissão de conhecimentos para alunos com idades tão diferentes e a possibilidade de convivência com a diferença foram um problema para a escola, já que o sistema educacional permitia a matrícula destes alunos.

O histórico escolar destes adolescentes era marcado por abandonos sucessivos. Dificuldades de aprendizagem, de saúde, de falta de sentido para investirem nos estudos eram fatores presentes. Suas presenças causavam incômodo em alunos e profissionais da escola, embora alguns estivessem dispostos a acolhê-los, por perceberem a delicada situação em que todos se encontravam.

Diante da impossibilidade de estarem em outro lugar, a proposta era construir algo que interrompesse o ciclo de abandono escolar desses adolescentes em relação às escolas pelas quais passavam.

A equipe multidisciplinar realizou grupos semanais com os três adolescentes com o objetivo de escutá-los em suas diferenças e programou um trabalho coletivo com toda a turma no qual fortaleceu o projeto de reciclagem, visando alguma mudança de posição. Revitalizar a horta e o esporte foram atividades sugeridas pela turma. Vários atravessamentos marcaram a viabilização deste trabalho. Todavia, apesar das dificuldades, discussões e estratégias também foram construídas de forma a levar a proposta acordada adiante.

Apesar dos poucos encontros com os adolescentes, alguns efeitos se apresentaram. Um deles foi o ciúmes da turma. O comentário foi que os adolescentes haviam “crescido” e que estavam “se achando”. Em uma conversação do laboratório, uma questão foi colocada: se trata de um efeito negativo ou uma forma de estes adolescentes aparecerem como sujeitos, já que foram para isso convocados?

O corpo docente também colocou impossibilidades para que os projetos coletivos fossem realizados, o que trouxe a necessidade de um novo planejamento do trabalho em que foram incluídas rodas de conversa com toda a turma. No entanto, dois acontecimentos ocorreram no espaço da escola e determinaram outra direção do trabalho, atravessando os planos acordados.

Primeiro, um dos três adolescentes teve uma “crise” que deixou todos assustados e temerosos de que ele viesse a tê-la de novo. A equipe de saúde da Clínica da Família do território foi contactada e acompanhou o caso.

E, segundo, logo em seguida ao primeiro, o mesmo adolescente entrou em conflito com outro adolescente da turma. Houve uma briga durante uma aula com agressões físicas e verbais, o que preocupou alguns responsáveis e determinou a decisão da escola de transferir os dois alunos. A resposta da escola foi “aqui não há lugar para vocês”.

Apenas um dos três adolescentes permaneceu estudando. Os demais, apesar de transferidos para outras escolas, não deram continuidade aos estudos.

No trabalho com os adolescentes, a equipe multidisciplinar acompanhava a situação geral e tentava marcar que também entre eles havia diferenças. Nesse processo identificou que um deles não estava gostando da escola e pedia para ser transferido. Também percebeu que o outro adolescente envolvido na briga parecia ter construído um laço com a escola, principalmente com a professora da turma. Ele a defendia e reclamava da indisciplina dos demais alunos durante as aulas.

As questões levantadas no trabalho desta equipe que se referiam a manter um dos adolescentes na escola, já que ele vinha frequentando o espaço com regularidade e construído um laço importante com os demais professores, não foram levadas em consideração na decisão da transferência dos alunos. Mesmo assim, foi dada continuidade ao projeto elaborado para esta instituição.

Em torno desta vinheta prática foram realizadas conversações com os participantes do laboratório Infância Errante e uma conversação no encontro de junho/2018 dos laboratórios do CIEN-Rio.

Do impasse inicial à transferência de dois dos três adolescentes para outras escolas, ficou para a equipe a pergunta sobre o manejo com os profissionais desta escola e com os alunos, assim como os efeitos do trabalho realizado.

O que fazer quando estamos diante de adolescentes numa turma de crianças? – este é um grande desafio para todos da rede de educação.

Conversar individualmente com os alunos é estigmatizar e “medicalizar”, no sentido de colocá-los sob o olhar da psicopatologia como sujeitos que apresentam “problemas” para permanecer na escola?

O que a instituição e os profissionais, inclusive a própria equipe multidisciplinar, podem fazer diante de impasses que resultam da política da “educação para todos” versus a singularidade de sujeitos para os quais é insuportável estar no espaço escolar?

Existe alguma forma de a escola acolher a todos os alunos em suas diferenças, e possibilitar que prossigam e concluam a formação escolar?

Uma questão fundamental surgiu nas conversações do laboratório: educar está entre os “impossíveis” apontados por Freud (1930), em sua leitura sobre o mal-estar na civilização.

A equipe se deu conta de que este impossível já estava posto desde o início e que nada havia a fazer no sentido de o solucionar, de o tornar possível. Restava somente contorná-lo.

“Eles não deveriam estar ali” foi a conclusão a que o laboratório chegou, ao final dessas conversações. E foi este o título dado ao cartaz elaborado a pedido do CIEN-Rio para a divulgação da conversação em que esta experiência pôde ser compartilhada com os participantes dos outros laboratórios.

“[…] Por que foram transferidos? Não deveriam estar ali? E onde, então, deveriam estar?” – pergunta o laboratório, no cartaz de divulgação.

A questão da impossibilidade de educar apareceu também nesta conversação com os outros laboratórios. E a indagação sobre onde os três adolescentes deveriam estar foi lida como “será que eles queriam estar ali?” Os dois episódios – a “crise” de um deles e a briga entre dois – não seriam uma forma de expressarem que já não queriam estar na escola?

Lacan (1963-64) ressalta a importância do Outro como um lugar em que o sujeito se constitui como ideal, um lugar em que ele se vê e fala. Em suas palavras: esse “ponto de onde o sujeito se vê amável” (LACAN, 1973, p. 255). Ponto fundamental para o adolescente se referenciar, onde ele pode “se ver digno de ser amado, e mesmo amável por um Outro que saiba dizer sim ao novo, ao real da libido que nele surge” (LACADÉE, 2011, p.46).

Em outras épocas, comenta Lacadée, o adolescente sonhava com o amor e com o ideal (2017). Hoje ele sonha com o último objeto gadget, objeto descartável que fixa o desejo em uma demanda insaciável. A cada ano, surge um novo modelo no mercado e “o adolescente pode experimentar a si mesmo como esse objeto descartável, em função de como é visto, como um objeto sem destino. É sobre estas bordas que a violência pode se desencadear” (p.125). A violência de não ser escutado no desejo de mudar de escola, por exemplo, porque o adolescente pede que o Outro, mesmo que inconsistente, autentique sua palavra em sua busca do que Lacadée, inspirado em Rimbaud, diz: na adolescência o sujeito busca uma fórmula e um lugar.

Na proposta de se estenderem para o CIEN os dispositivos da palavra fora da sessão analítica, Laurent (2002)[2] sustenta que “o dom da palavra é um dom ali onde isso não fala” e que é necessário que a causalidade psíquica seja reintroduzida em todos os lugares onde a palavra é eliminada.

O laboratório segue na aposta da palavra e das invenções singulares de cada um, tanto as dos adolescentes, quanto as dos profissionais que, por estarem com eles nas instituições, precisam também inventar soluções para os impasses que surgem para todos.


Bibliografia:
FREUD, Sigmund. . “O mal-estar na civilização”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACADÉE, Philippe. O despertar e o exílio – ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011
___________________. Los sufrimientos modernos del adolescente. San Martín: UNSAM EDITA, 2017
LACAN, Jacques. . “Os complexos familiares na formação do indivíduo” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003
___________________. . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973
LAURENT, Éric. “El don de la palabra. Retomar la definición del proyecto del CIEN y examinar su situación actual”. II Colóquio do CIEN. El Niño – Revista del Instituto del Campo Freudiano, Barcelona, n. 10, 2002.
MAIA, Ana Martha. “Entre fugas e errâncias, um lugar para si”. Opção Lacaniana online. Escola Brasileira de Psicanálise. Nº8, 2012.
MILLER, Jacques-Alain; LAURENT, Éric. . El Otro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005
MILLER, Jacques-Alain.. “Em direção à adolescência”. In Opção Lacaniana, n 72. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, Edições Eolia, março de 2016.

[1] Participantes do laboratório: Ana Lucia East, Ana Martha Maia (responsável), José Alberto Ferreira (responsável), Keronlay Machado (responsável), Luciana Monnerat, Marcia Mendes e Natalia Muniz.
[2] Publicado em português: Laurent, E. Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. In: Brown, N; Macedo, L; Lyra, R. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência: experiências do CIEN no Brasil. BH: EBP Ed., 2017.
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O encontro com a criança na instituição: invenção e solidão.

by cien_digital in Cien Digital #22, LABOR|a|tórios

Camille Kachani

Cláudia Regina Santa Silva
Laboratório: O saber da criança – Campinas/SP[1]

 

O laboratório O saber da criança vem traçando sua caminhada na localização de impasses dos profissionais que, trabalhando em algumas instituições, ficam divididos entre o que é apresentado a partir de uma normatização e o que é dar voz ao singular. São instituições como escolas, unidades de saúde mental infanto-juvenil, estabelecimento de acolhimento de crianças e adolescentes, aos quais o laboratório tem acesso.

No percurso de nosso laboratório, durante os últimos anos, temos percorrido temas diversos, sobre os quais apareceram questões importantes. Hoje problematizaremos o tema aqui proposto, da norma e o singular: qual o efeito de se dar voz às crianças, sobretudo para os adultos que estão ao lado delas? Seria possível arriscar a hipótese de que às vezes se misturam com o que escutam, principalmente diante dos relatos das crianças, carregados de sofrimento? Escutar uma criança, seja na instituição de acolhimento ou na escola gera consequências, o que se dirá de se considerar, para além da escuta, o desejo do profissional de que o singular desta criança tenha um lugar? Uma aposta de que cada criança não se perca no anonimato das regras generalizadoras? A questão não gira em torno da existência ou não das regras e normas, que lá estarão com um papel a ser cumprido, mas, sim, de como a instituição vai ou não atendê-las.

De um lado, localizamos profissionais que respondem seguindo à risca a disciplina que detém um saber sobre o trabalho com a criança (Leis de diretrizes e bases da educação, conteúdos pedagógicos e cronogramas, orientações da assistência social, Sistema Único da Assistência Social-SUAS, e as próprias normas internas que cada instituição vai traçando). De outro lado, profissionais que arriscam ir além daquilo que “reza a cartilha”.

Momento importante para o laboratório O saber da criança, foi trazer para as Conversações a distinção entre universal e singular, diferenciando que o universal seria o que marca o “para todos”, o que está do lado da norma, da regra. O singular seria o saber ou a invenção de cada criança frente a esse Outro social.

Em recentes conversações abertas para a cidade (“A instituição de acolhimento é família ou não é?”[2], “Da universalização ao singular: o que nos orienta no encontro com a criança?”[3], “A agitação nos corpos dos adolescentes”[4], realizada em Ribeirão Preto em conjunto com o laboratório Afinarte.[5]), temos interrogado como se dá, nas instituições, o manejo do universal/singular, do “para todos” e do “um a um”, tanto para o adulto como para a criança. Interrogamos, ainda, os efeitos das intervenções do laboratório nas instituições e na cidade.

Um tanto de universal é necessário. No CIEN, não podemos deixar de escutar o saber das disciplinas que compõem um laboratório. Há saber constituído na psiquiatria, na pedagogia. Quem chega ao CIEN, chega com uma pergunta, um “não sei bem o quê”, mas sei que incomoda e me traz um mal-estar. Esse mal-estar, muitas vezes localizado como queixas que causam desconforto e até sofrimento, induz o “não saber”, motor de uma construção possível de solução para aquele sujeito.

O convite a falar, conversar sobre o mal-estar implica que o profissional muitas vezes se reposicione frente à disciplina que o marca. Mas não significa que esta marca da disciplina o deixe. Entendemos que uma professora entra professora em um laboratório e sai dele como professora… Contudo, apesar de inserida no universal da disciplina, seus traços de invenção própria podem ser localizados nas Conversações, que acolhem lampejos do singular existentes em sua prática com crianças. Isto requer que este profissional subjetive o que realmente o orienta nesta empreitada. Os momentos quando é possível escapar do discurso do mestre, permitem que o que é mais próprio de si e também do encontro com aquilo que é próprio daquela criança advenha, dando a chance a um novo saber. O sujeito, mesmo na norma, no universal, pode se abrir às questões, ao diferente. Muitas vezes o que angustia é olhar para aquilo que rompe um sistema, diria até um sistema fechado, que vem muitas vezes hierarquizado por instâncias que estão longe de seu alcance (leis de diretrizes e bases, LOAS -Lei orgânica da Assistência Social) e até mesmo a organização da instituição enquanto modelo que se reproduz a partir de um saber disciplinar.

Os impasses que surgem daí, trazem sujeitos interessados nesta abertura, naquilo que dentro de uma universalização pode gerar uma invenção própria naquilo que orienta o encontro com a criança. Um novo impasse caracteriza-se então: como, diante da possibilidade de escutar o que a criança tem a dizer, e que muitas vezes o que ela diz pode levar ao para além da norma, podem os profissionais transmitir essa invenção para uma instituição onde a maioria dos profissionais apresentam-se normativamente herméticos.

Nesse percurso, chegamos ao ponto que tem orientado as conversações no laboratório: Como manejar a solidão que vem aparecendo nos relatos de alguns participantes do laboratório, que tendo se interessado pelo traço singular da criança se deparam com instituições que têm dificuldade de escutar, e que não querem saber daquilo que é de cada um.

 

 


[1] Participantes do laboratório: Ana Tridico (professora) Lilian Matsumoto (enfermeira) Cláudia Santa (responsável pelo laboratório) Emelice Bagnola (enfermeira-psicanalista) Nataly Pimentel (psiquiatra) Mariza Silva (professora) Camila Morelli (psicóloga) Sibele Campos (psicóloga) Cristina Campos (professora) Eleida Campos de Faria (psicóloga) Daniel Salvador (psicólogo) Bianca Bedin (psicóloga).
[2] Conversação em 2016 com a presença do psicanalista Marcus André Vieira do Rio de Janeiro.
[3] Realizada em 2017 com a presença das psicanalistas Cláudia Reis e Glaucineia Gomes.
[4] Realizada em 2018 com a presença das psicanalistas Cláudia Reis e Cláudia Regina Santa Silva.
[5] Laboratório do CIEN, realizado na cidade de Ribeirão Preto. Responsáveis: Cláudia Reis e Silvia Sato.
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