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Fazer-se um corpo na adolescência

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Clara Ianni
Alexandre Stevens

Escolhi apoiar-me em uma referência, à qual retornarei, que provém de um dos últimos seminários de Lacan, o seminário sobre Joyce, como temos costume de falar, ou seja, o Seminário XXIII, O Sinthoma[1].

Antes, porém, gostaria de colocar de uma maneira mais ampla a pergunta sobre o que é “fazer-se um corpo na adolescência”. Assim, se podemos colocar essa pergunta é porque há uma dificuldade com o corpo e a adolescência.

Naturalmente já temos um corpo antes da adolescência, contudo algo se modifica com o aparecimento da puberdade, mas não somente isso. Algo muda, sobretudo, com o que Lacan, no seu prefácio à peça de Wedekind, O despertar da primavera, chama de “o despertar de seus sonhos.”[2]

Não é a mesma coisa considerar que o corpo deve ser refeito porque há uma mudança biológica nele, ou que se refaz porque estes jovens sujeitos são levados a sonhar de outro modo “o despertar de seus sonhos”; o despertar de seus pensamentos é também o pensamento do Outro corpo.

É o que faz com que os adolescentes sejam levados a ter de abordar novamente essa questão sobre o corpo, em relação à qual eles organizaram, afinal de contas, um certo número de elementos, de fantasias, etc. O corpo como o corpo que se tem, aquele que se experimenta. Quando digo “que se experimenta”, isso quer dizer que goza. Não é apenas o corpo do qual se pode ter uma ideia, é o corpo tal como ele é experimentado. O que Lacan chama de gozo, é o que se experimenta.

Sabemos que Lacan nos levou a apreender o corpo como uma imagem. É a primeira forma do corpo no ensino psicanalítico, inclusive em Freud. É o que Lacan vai formular como o estádio do espelho. Temos também o corpo como simbólico, ou seja , tal como ele é tomado nos significantes da língua na cultura.

No seu curso do ano passado que se intitula “Falar a língua do corpo”, Éric Laurent aponta a esse respeito a disjunção do corpo e do vivo. O corpo, uma vez que incorporou o significante, ou seja, que entrou na linguagem, torna-se uma superfície onde o caráter de vivo ou de morto é secundário.

Marina Rheingantz

A sepultura nos mostra isso: em sepulturas – Lacan desenvolve essa questão em vários momentos – o corpo não se torna nenhuma carniça, mas pelo contrário, o corpo que a linguagem corpsificava, como disse Lacan com um neologismo, ganha um estatuto diferente do organismo. Em “Radiofonia” Lacan observa que “a sepultura antiga figura o próprio “conjunto”, a partir do qual se articula nossa lógica mais moderna.” O conjunto vazio das ossadas é o elemento irredutível pelo qual se ordenam, como elementos outros, os instrumentos do gozo – colares, copos, armas: mais subelementos para enumerar o gozo do que  para fazê-lo reingressar no corpo.”[3]

Sabemos que aqui ele faz referência a mais moderna lógica porque para a lógica matemática, todo conjunto, quaisquer que sejam os elementos que o constituam, apresenta o conjunto de seus subconjuntos. Se você tem um conjunto com dois elementos A e B , os subconjuntos são {A}, {B}, {AB} e ∅ o conjunto vazio. O conjunto vazio é sempre ao final incluído em todo conjunto. É a partir desse conjunto vazio que Lacan vai formular o sujeito do inconsciente como tal. Portanto, o que ele situa na sepultura é o elemento conjunto vazio do sujeito como série de ossadas e elementos de gozo que o sujeito teve no curso de sua existência. O corpo é a série desses instrumentos de gozo.

A propósito, poderíamos nos perguntar se hoje, caso ainda se fizesse tais sepulturas, com o que seríamos enterrados: Iphone, tábletes…? Estes instrumentos não tomam um sentido particular, eles somente podem ser enumerados: pode-se apenas fazer a lista da série de objetos de gozo aos quais o sujeito se liga.

Isso dá uma indicação, uma primeira, sobre a questão do corpo na adolescência. Penso nos adolescentes, invadidos, às vezes, por tais objetos. Quando digo os adolescentes, somos nós, também: o iPhone, o táblete, etc, nós estamos permanentemente conectados neles. Mas um certo número de adolescentes está extremamente conectado e, além disso, frequentemente em várias máquinas ao mesmo tempo. Eu me coloquei a questão, aliás, – porque acontece que eu também tenho dois adolescentes – eu os vejo também estando ao mesmo tempo em frente da televisão, em comunicação com um amigo no iPhone e olhando no táblete como terceira coisa.

SHAHZIA SIKANDER, Practice makes perfect, 2011

Então eu me perguntava – eles não estão assim o tempo todo, fique tranquilo! – será que eles estão ligados demais, ou será que eles conseguem, graças a isso, se desligarem? Porque não é a mesma coisa que estar simplesmente  vendo a televisão após o trabalho por toda a noite. Isso é uma ligação fixa. Não é a mesma coisa que ter sua série de objetos de gozo em que se pode passar de um a outro.

Se tomamos o corpo por seus troços de real do gozo, não se trata de lhes dar um sentido, trata-se de chegar a nomeá-los para os sujeitos adolescentes que estão muito agarrados, às vezes, a seus objetos ou a jogos, numa espécie de adicção. Ainda temos jovens que são extremamente fixados aos jogos de vídeo.Temos esta patologia, que aparece mais no Japão do que aqui, do jovem que se mantém completamente isolado em seu quarto, apenas com seus jogos. Nesses casos, o que se pode fazer? Nada além, justamente, de se interessar pelo objeto de gozo e fazer com que ele nomeie, desenvolva progressivamente o que lhe interessa nele. Para além da solidão que ele experimenta, fazer com que palavras sejam colocadas, palavras sobre essa série de traços de gozo vividos frequentemente com grande sentimento de solidão.

O corpo tem uma inclinação a querer gozar e é preciso aceitar ocupá-lo um pouco para poder fazer outra coisa. Escutava recentemente estudantes me dizerem como eles estudam. Há um deles que caminha quando estuda; outro que tinha parado de fumar e recomeça no momento da prova: isso o acalma. O corpo pede para ser acalmado, isto é, para ser ocupado, para que se possa, de um outro lado, pensar.

Portanto, “se fazer um corpo”; o que é um corpo? Como se pode aborda-lo?

Lacan destacou várias vezes que um corpo, não o somos, nós o temos. No discurso corrente, isso é evidente. Não se diz: “eu sou esse corpo”, se diz: “tenho um corpo”, “eu tenho dor em tal lugar”, etc. Fala-se do próprio corpo como de um “ter”. A propósito, Jacques-Alain Miller enfatiza que o temos tanto que é necessário se ocupar dele como de um objeto.

Leonardo Drew, Number 182, 2016

De fato as mulheres devem, de vez em quando, recompô-lo um pouco cada manhã, como uma imagem na frente do espelho, maquiando-se etc. Quanto aos homens, pelo menos para eles, há sempre um pedaço que faz o que bem entende e do qual eles não têm certeza se faz parte deles.

Lacan vai mais longe no Seminário sobre o Sinthoma , onde ele diz isto: “o falasser adora seu corpo porque crê que o tem”.[4] O falasser é um neologismo do último Lacan para falar , não mais do sujeito do inconsciente, do sujeito da fala que busca o sentido daquilo que ele diz, mas para falar do sujeito entanto que ele goza, para falar do corpo que goza como tal. Portanto, o falasser é você e eu, nesta dimensão onde o corpo nos captura. “O falasser adora seu corpo porque crê que o tem”. Ele crê que o tem, isso quer dizer que ele não o tem. Quando encontramos sujeitos que estão em grande dificuldade – penso em particular nos esquizofrênicos –compreendemos logo que um corpo não se o tem, necessariamente. Isto me evoca meu primeiro encontro em psiquiatria – eu fazia estágio naquele hospital havia uma semana – um homem com cerca de vinte anos me disse: “você vê lá, debaixo do armário, são meus glóbulos vermelhos”. Eu fiquei um pouco surpreso, devo dizer. E aos poucos compreendi a dificuldade que ele tinha para juntar um certo número de pedaços. Portanto, o corpo, crê-se que o tem, o que nem sempre é seguro.

A propósito, esta manhã, durante um pequeno seminário com os trabalhadores do Centro psicanalítico de Consulta e Tratamento (CPCT), um dos participantes apresentava o caso de um jovem que se sentia completamente atravessado por vozes estrangeiras que falavam mal dele. Mas o conteúdo das vozes contava bem menos do que o fato de que seu corpo era sem cessar invadido por alguma coisa estrangeira, ao ponto que ele dizia: “meu corpo não pertence completamente a mim, ele é outro”. Compreendemos bem que para esse jovem, seu corpo, ele não acredita que ele o tem, isso não está exatamente assegurado.

“O falasser adora seu corpo porque crê que o tem”[…] A adoração, disse Lacan, “é a única relação que o falasser tem com seu corpo.”[4] A adoração, isso quer dizer consagrar a ele um culto, é amor, mais precisamente o que se chama de amor próprio, quando se trata do amor de seu próprio corpo, do amor do corpo próprio. É a única “consistência mental” do falasser, disse Lacan. “Consistência mental” quer dizer que ela não é física. Aqui voltamos à questão de que se fazer um corpo na adolescência se não é tanto para responder à puberdade , é , ao menos, para responder ao que vem no mental, isto é, fora do físico como o “despertar de seus sonhos”. O que é do físico no corpo, sabe- se bem que isso, isso não consiste assim tão bem, isso escapa para todo o mundo progressivamente na existência. O que dá “consistência mental” é, com efeito, o amor-próprio do corpo, a ideia que se tem de seu corpo próprio e à qual nos seguramos.

Podemos relatar um caso particular de um adolescente que não se segurava nessa ideia. Um adolescente para quem isso escapa – o que escapa, não é seu corpo físico, mas é seu amor próprio.

É o caso de Joyce, na sequência que ele descreve, no Retrato do artista quando jovem[5], no qual ele conta como, retornando da escola discutindo com os colegas sobre os grandes poetas ingleses, – eles discutiam sobre os poetas como os jovens hoje fazem sobre os cantores. Eles discutem e ao final ele é espancado por seus colegas porque ele apoiou Byron, de quem os demais diziam que era herético. Discutem e ele é empurrado no alambrado de ferro com arames farpados; em seguida ele é abandonado ali, os outros vão embora. Ele se levanta e segue o mesmo caminho.

Luiz Zerbini, medusa, 2011

“Enquanto as cenas deste episódio cruel passavam com uma rapidez aguda na sua memória, perguntava-se porque não sentia raiva neste momento por aqueles que o tinham atormentado; ele não tinha se esquecido de um só detalhe da covardia cruel deles, mas suas lembranças não lhe despertavam nenhuma cólera. Todas as descrições de amor e de raiva que ele havia encontrado nos livros, pareciam-lhe desprovidas de realidade, mesmo naquela noite enquanto ele retornava titubeando, ele havia sentido um certo poder que lhe despojava desta cólera assim subitamente tecida tão facilmente como um fruto que larga a sua casca tenra e madura “.[5]

O que ele tinha sentido se perder, deslizar dele, não é seu corpo, mas o sentimento que ele tinha de seu corpo. Lacan disse: “a psicologia de seu corpo”. É seu amor próprio, é essa adoração do corpo. Precisemos com Lacan que não é um momento masoquista, quer dizer, não se trata de um gozo ruim. É, antes de tudo, simplesmente, a ausência de laços, de afetos que seguram o corpo. Mediante isto, todo o trabalho de substituição que Joyce vai fazer fabricando-se um ser de substituição, um nome próprio, consiste em reparar o que ele chama “a consciência incriada de [sua] raça”, ou seja , aquilo que vem fundar seu corpo como tal, sob a forma de seu trabalho da língua que torce a língua inglesa.

É uma solução, a solução de Joyce, uma maneira de se fazer um corpo, de se fazer um corpo fora do corpo. Fazer-se um corpo num trabalho sobre a língua. Existem outros exemplos de “se fazer um corpo” fora do corpo. Temos, por exemplo – Éric Laurent desenvolve isso – o pintor Rothko que faz um certo número de pinturas que são essencialmente constituídas por tiras de cores. Ele se aferrava muito a que tudo isso tivesse bom tamanho, ou seja, o tamanho do corpo. Demasiado grande aquilo não serviria para nada, demasiado pequeno seria uma redução da imagem do corpo que não conviria de forma nenhuma. Por isso pintava apenas telas do tamanho de um corpo. Além disso, Eric Laurent destaca que Rothko se esforçava muito para que suas pinturas fossem apresentadas em um espaço tal como se fossem encontradas no corpo de maneira frontal, muito rápido, para não ter espaço. Rothko explica bem que é preciso olhá-las de uma distância exata, de 85 cm, ou seja, que é preciso estar um pouco dentro, não se deve fazê-lo do exterior, trata-se de estar dentro. Eis um outro tipo de trabalho para se fazer um corpo fora do corpo. Um certo número de soluções são desse tipo.

Mas existe uma solução que não é necessariamente mais fácil e que eu tenho a fraqueza de considerar melhor. É conseguir adorar um outro corpo. “O falasser adora seu corpo” e, seja dito de passagem, essa pequena passagem de Lacan que comento, vocês encontram comentários sobre ela de Jacques-Alain Miller em seu curso “Peças soltas”. Jacques-Alain Miller nos apresentou uma leitura coerente do último Lacan. Esta adoração que Miller diz do Um corpo – ele escreve “Um” justamente para fazer aparecer como isto não é o outro – é evidentemente a raíz do imaginário. Ela nos lembra um pouco o estádio do espelho: o sujeito que se apreende como imagem, de início. Essa adoração do Um corpo é uma relação primária com o corpo que dá uma consistência imaginária ao sujeito, mas a ela se acrescenta o pensamento – o pensamento, isto não é a mesma coisa que a imagem – e pelo pensamento chega-se à adoração do outro corpo no encontro sexual com o que aquilo tem, então, de aleatório, já que se trata de um encontro. Sabemos que um encontro é sempre faltoso, é o que Lacan expressa, dizendo: “a relação sexual não existe”. Isto dito, a frase que ele diz: “a única relação que se tem com o próprio corpo é a adoração” quer dizer que, pelo contrário, se não há relação sexual, existe uma relação possível com o corpo. Mas a adoração do outro corpo é, portanto, uma certa maneira de se fazer um corpo na adolescência. Joyce tinha também uma mulher com a qual ele tinha excelentes relações, mas isso nem sempre era, necessariamente, suficiente. Para ele, não era.

Contudo, encontrei um excelente exemplo desta vertente “adorar o outro corpo” – o que constitui ao mesmo tempo, o corpo do sujeito – num romance de Balzac,[6] O Lírio do Vale. O sujeito que conta sua história a uma mulher diz: “Minha vida é dominada por um fantasma”. Na verdade, dois fantasmas porque há o de sua mãe que nunca o amou, criança deixada, colocada como pensionista na casa de uma governanta, seu irmão era o preferido, etc. E, enfim, pela primeira vez, na ausência de seu pai e de seu irmão mais velho, ele teve a oportunidade de ir a um baile. Isso acontece na época da Restauração e da chegada de Luiz XVIII ao poder. Ele não devia perder este baile porque a família devia estar representada ali. Então ele pode ir e ele está encantado com isso mas, ao mesmo tempo, ele está um pouco entediado, ele não sabe mais como se comportar. Em um momento, cansado na festa, ele se senta ao lado de uma mulher: “Enganada por minha aparência insignificante, uma mulher me tomou por uma criança que estava quase dormindo, e fica perto de mim. Imediatamente, eu senti um perfume de mulher. Meus olhos foram subitamente atingidos por dois brancos ombros arredondados sobre os quais eu queria me enroscar. Eu me levantei palpitante para ver o corpete e fiquei completamente fascinado por um colo pudicamente coberto por uma gaze”. Brevemente, há uma linda descrição das curvas, dos globos azuis, etc que eu vou pular. “Tudo me fez perder a cabeça. Depois de me assegurar que ninguém me via, eu mergulhava nestas costas como uma criança que se joga no seio de sua mãe e eu beijava seus ombros, enroscando minha cabeça. Esta mulher solta um grito perfurante que a música impediu de escutar, ela se virou, me viu e me disse: “Senhor!” Ah, se ela tivesse dito “meu pequeno homem, o que é que você está fazendo?” eu a teria matado, talvez, mas com este “Senhor” lágrimas quentes jorraram de meus olhos.[7]

Adriana Varejão, Plate with Claims

Essa é a forma como se constitui um corpo. Este “Senhor”, por si só, faz passar de repente da infância à idade adulta. É uma época em que não há nenhuma certeza de que já existia a adolescência. Eu acho encantador este “Senhor”, que vem com uma única palavra circunscrever para nós toda a questão da adolescência. Como esta mulher “petrificada por um olhar animado de uma santa cólera” vai se tornar profundamente idealizada e será o fantasma que vai dominar sua vida. É uma outra coisa que é um pouco mais romântica na qual ele poderia talvez se aliviar. Verdade é que nesse “Senhor”, ele adora seu próprio corpo por ter adorado o Outro corpo. Ele se constitui e imediatamente ele se olha: “Ela se foi […] senti, então, o ridículo de minha posição. Só então, somente compreendi que eu estava vestido como um macaco de um saboiano, eu senti vergonha de mim”. Ele estava vestido de uma forma que não estava mais na moda, nos salões da época. E isto mostra que o desprezo vai com a adoração, é o preço da adoração, digamos. E quando é do outro corpo que se trata, o que vai de início é a equivocação, porque não se pode nunca deixar de se enganar nesses assuntos.

A equivocação que não exclui, aliás, que o desprezo ali retorne. Ele se faz assim um corpo a partir de uma palavra que lhe retorna do outro, de quem ele adora o corpo. “Senhor” nos aparece em uma dimensão significante, isto significa, mas é mais além. Quer dizer: levando este rapaz para o divã, não temos tanto que lhe pedir para associar sobre este “Senhor”. Este “Senhor” é um S1 sozinho que, de um só golpe, marca. Vemos, de fato, que ele pode imediatamente dizer: “ela teria dito meu pequeno homem”, porque ele teve a ideia de que ela chegou perto dele porque ele tinha ainda um ar de criança. É nessa medida em que é mais além do significante que isto vem marcar, como um significante que bate ou, se vocês quiserem, como um dizer, um dizer que se dá a ler sobre seu corpo, que faz ato.

“Fazer-se um corpo” na adolescência passando pelo outro corpo, é talvez a melhor solução. A dificuldade é que se trata evidentemente de se confrontar com o outro, o outro sexo especialmente. Isto não é o mais simples e vocês sabem que Lacan desenvolve, no prefácio de O despertar da primavera, estas duas figuras que Wedekind coloca em cena sobre o teatro que são os dois adolescentes, os dois rapazes, Moritz e Melchior. Um dos dois escolhe o suicídio pelo temor de se confrontar ao outro sexo e assim Lacan diz: “ele ao se excetuar”[8] e, no fundo, ele se perde ao se excetuar. E que o outro, Melchior, vai se defrontar com o outro sexo, aliás, com alguns infortúnios, mas é com a condição de aceitar, diz Lacan, ser “Um-entre-outros” que ele poderá encontrar um caminho, com o homem mascarado que vem lhe dizer como ele deve cuidar de seu corpo.

Certamente, há outras formas de “se fazer um corpo” na adolescência, outras formas que não se separam necessariamente da anterior.

Eu gostaria de fazer uma pequena ressalva sobre a adolescência: é uma construção, o termo “adolescência”. Nós o observamos bem neste “Senhor” que basta a ele sozinho. Então, a adolescência que se prolonga, não iremos encolhe-la, mas vemos que é uma construção. Existe um autor americano que se chama Robert Epstein que escreveu um grosso livro que se intitula The Case Against Adolescense, que podemos traduzir por Contra a adolescência. Ele observou coisas muito certas. Aliás, não há tantos problemas com os adolescentes no mundo quanto há nos países mais desenvolvidos que fazem da adolescência uma coisa longa e importante, quer dizer, nos Estados Unidos e Europa. E mais ainda, diz ele, mais colocamos leis que limitam os direitos e deveres dos adolescentes, mais temos crises de adolescência. Epstein tem uma análise muito clara da coisa. Dizemos: “Por que é que limitamos o que um adolescente pode fazer? – Porque ele não é ainda totalmente responsável”. E os adultos, eles são verdadeiramente responsáveis? Um adolescente não pode dirigir e não pode beber. Nos Estados Unidos, eles não podem beber antes dos 21 anos, é extremamente restrito. Na prática, eles contornam a lei. Epstein interroga as atitudes dos adultos: vocês viram o número de pessoas que dirigem tendo bebido? Por que os adolescentes fariam pior? Se eles não são responsáveis, é porque não lhes dão a responsabilidade. Ele faz também observações absolutamente extraordinárias, ele diz, por exemplo: “Por que os adolescentes não podem ir à guerra mais cedo? O que seria da França se Joana d’Arc não tivesse podido ir? Existem também exemplos formidáveis: por exemplo, algumas cidades nos Estados Unidos querem impedir os adolescentes antes dos 20 anos de fumar porque é perigoso e eles não são conscientes do perigo. Por outro lado, eles podem se alistar para ir à guerra no Iraque a partir dos 18 anos. Lá eles podem ter consciência do perigo. Ele observou um certo número de paradoxos que temos em nossas sociedades a respeito desta responsabilidade dos adolescentes.

Jean Dubuffet

Dito isto, o que é surpreendente, é que ele tem a ideia de que seria necessário controlar as capacidades de cada um e o vemos vir com testes para todos, incluindo os adultos. Vamos ver quem pode fumar, quem pode ir à guerra, quem pode dirigir. Vamos medir tudo… Por outra parte, quando falamos sobre adolescência o de que falamos é do que não podemos medir, é o que não é mensurável. E esta dimensão, a do gozo, lhe escapa.

Por exemplo, outra maneira de abordar o corpo: o esporte que tem evidentemente toda a importância na adolescência. Um certo número adora o esporte. Há muitas coisas no esporte que são colocadas em jogo. Marie-Hélène Brousse fez um trabalho[9] sobre isso, que é extremamente interessante, há alguns anos, mostrando o lado do gozo fálico do esporte em relação com a pulsão de morte. Gozo fálico porque se trata de ser o melhor, mais forte que o outro, é a vertente competitiva que flerta sempre com a pulsão de morte.

Ela chegou mesmo a dar um exemplo formidável, quando veio fazer uma conferência sobre este tema na Bélgica: ela tinha supervisionado uma equipe na qual havia um jovem esportista de quem haviam tirado um órgão. Este jovem homem retornou alguns meses mais tarde e ele é então melhor que os outros. Um outro aluno vem se encontrar com ela, lhe dizendo: “Você não acha que eu faria bem sendo operado também?”. Vemos aí a pulsão de morte aparecer sem máscara.

Existe um outro aspecto do esporte. Em uma Jornada da ACF Bélgica sobre o esporte, Katty Langelez evocou a vertente “gozo místico” do esporte, gozo feminino, uma vez que Lacan associa gozo místico e gozo feminino. Um outro gozo, então. Ela se apoiou sobre uma obra de Philippe Mengue. Há um bom exemplo disto em Imensidão Azul. Neste filme, dois homens fazem mergulho livre. Um está totalmente na competição: ele quer ser aquele que desce mais baixo e, em seguida, ele morre por tentar superar o outro que desceu um pouco mais. O outro não está na competição de forma alguma, mas adora descer porque encontra nisso um gozo singular que não tem absolutamente nada a ver com a competição. Ele não procura ser mais forte que o outro. Somente, de fato, ele desce mais facilmente, mais longe, e ele é tomado pelo gozo de participar do mundo das profundidades, até o ponto de também permanecer nele. É um gozo absolutamente distinto do gozo fálico, competitivo. Aí o corpo é tomado numa espécie de “infinitude”. Vocês têm evidentemente numerosos exemplos de práticas em que os sujeitos podem jogar intensamente com a pulsão de morte, notadamente no wing suit, estas pessoas que fazem pára-quedismo sem pára-quedas, com combinações em forma de asa e quase tocam nas montanhas. Muitos praticantes morreram. Mas jogar com o limite tem também a dimensão de “se fazer um corpo”.

Para concluir com uma questão muito atual, pensei numa outra face desta questão no malestar de um certo número de adolescentes que se expressam sob uma forma extremamente particular e violenta, no que chamamos de terrorismo jihadista. Muitos são adolescentes, não todos. Eu não tenho a ideia de que haja uma figura clínica que seria o modelo do jihadista. Sabemos, ao contrário, como é  a cada vez, muito diferente para cada um. Mas eu li no Le Monde um artigo sobre uma série de jovens francesas adolescentes, de 14 a 19 anos, que se radicalizaram. Podemos falar do “narcisismo triunfante do terrorista” como evoca Jacques-Alain Miller. Mas outra coisa me tocou nesta radicalização. Elas se radicalizaram pela internet, em contato com um “recrutador” na Síria e elas mesmas em seguida se colocam em contato e conversam entre si. Essas adolescentes vêm de famílias que não são absolutamente religiosas. Uma entre elas se converteu, as outras vêm de famílias muçulmanas, pouco ou não praticantes, e nada em seus meios as incentiva nisso. Há uma pequena dimensão “revolta”, em uma entre elas ao menos, que quer partir porque seu pai recusou que ela use um véu, quer dizer que sua família não era muito religiosa. E o que eu achei interessante é como elas podem dizer que elas encontram aí o software mágico, o « Um » que decide tudo, pelo qual tudo é regrado. Ou seja: como nos vestimos, como comemos, a vida cotidiana e em qual caso podemos ter relações sexuais. No fundo, há aí um sentido perfeito.

Martin Kippenberger, James Dean 1989

Contudo, isso não quer dizer que nada transborde porque elas têm entre elas, ao mesmo tempo, discussões totalmente adolescentes. Por exemplo – apenas retiro três frases – uma dentre essas diz: “Há aqueles que querem fazer tudo, como a cantora Rihanna, e eu quero fazer tudo como Mehah”. É sinistro e, ao mesmo tempo, é uma fala muito autêntica de adolescente ao nível identificatório, ao nível de procurar suas identificações. Ela diz isso à polícia, isso tem um lado provocador. Mas existem conversas que são formidáveis, por exemplo: “Você viu aquele?” Elas falam sobre “irmãos”, isto é, recrutadores. “Você viu aquele, seus sapatos? – São formidáveis, são da marca tal”. Uma outra diz: “E você viu,ele era bonito demais com seu fuzil”, etc. É bastante espantoso porque, quando lemos isso, estamos ao mesmo tempo em um outro mundo e estamos totalmente no modo de uma conversa entre adolescentes. É isso que surpreende: não é descolado, é apenas um pouquinho descolado – e que muda tudo, claro, com um atalho surpreendente sobre a forma de se fazer um corpo.

Assim, uma dentre elas, com idade de 14 anos, desenvolve brevemente, em quatro frases, seu projeto de vida: “Agora eu estou casada, moro na Turquia com meu marido e, mais tarde, com mamãe [porque ela escreve para a mãe dela]. Vamos criar nosso filho que irá nascer no Iraque, nada mais bonito, e ele será uma criança crente e, um dia, você vai atender um telefonema dizendo que eu morri, é isso”. Acho isso surpreendente porque conheço adolescentes que respondem à pergunta: “O que você quer fazer na vida?”, dizendo, às vezes. com dificuldade: “Encontrar um rapaz muito simpático, casar, ter filhos”, ou é dito outras vezes, de forma muito caricatural – penso aqui no Courtil – adolescentes que têm poucos referenciais na vida, mas que se colocam como referencial: um marido, filhos ou até um filho, um marido – não é sempre no mesmo sentido.

Mas, no caso anterior, não é mais a adolescência que se restringe a uma única palavra, “Senhor”, mas é na adolescência que se fixa todo um projeto de vida, em três palavras: casamento, filhos, falecimento. É bastante surpreendente como forma de se fazer um corpo mas, apesar disso, é uma maneira de faze-lo para si. Evidentemente, acho que não temos oportunidade de intervir porque elas não vêm falar sobre isso. Isso certamente virá, mas trata-se, aqui, de uma discussão entre adolescentes.

 


A Alexandre Stevens os sinceros agradecimentos de Cien Digital pela amabilidade em permitir a publicação do presente trabalho.
Tradução: Ana Martha Maia e Maria Rita Guimarães
Revisão: Cristina Drummond

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