II Conversação CIEN América - A criança violenta e a dignidade do sujeito São Paulo,…
SEGUNDA MESA DE CONVERSAÇÃO
II Conversação CIEN América – A criança
violenta e a dignidade do sujeito
São Paulo, 13 de setembro de 2019.
Coordena: Mónica Campos Silva (Cien-Brasil)
Anima: Flavia Cêra (Cien-Brasil)
Hernán Villar: Bom dia, quero agradecer o privilégio de representar a duas pessoas muito especiais que não puderam viajar nesta ocasião: vou ler o trabalho de um Laboratório do CIEN argentino formado por Victoria Aresca, que é assistente social e Vanessa Bernich, que é psicanalista.
O CIEN tem uma particularidade na Argentina e é que estamos integrados também como um departamento do Centro de Investigações do ICdeBa e sustentamos um seminário de investigação que este ano se chama “As experiências do CIEN”. É nesse contexto que mantemos uma viva interlocução com este e outros Laboratórios, já que os estados de trabalho dos mesmos são apresentados em nosso seminário.
Do “sem direção” ao “a todo ritmo[1]”. Apostas na
modulação do movimento
Laboratorio “Apuestas a la eficacia en los márgenes” (CIEN/Bs As/AR)
Victoria Aresca (assistente social) e Vanesa Bernich (psicanalista)
“Produzir a exceção não se faz por meio de grandes discursos sobre a excepção mas se trata de construí-la em ato.”
Éric Laurent[2]
A lógica institucional no Hospital para crianças nos confronta com um enquadre de normas, proibições e prescrições. Da mesma forma, o dispositivo de Urgências adiciona o imperativo de resposta imediata. Nesse cruzamento, como habilitar um tempo de espera para as intervenções singulares que incluam os tropeços como instância necessária? Um jovem nos interpela.
A poucos dias de completar 17 anos, Martin chega sozinho ao hospital, desesperado, com cefaleias e alucinações auditivas sem conteúdo preciso; somado ao consumo de sustâncias. Permanece na Urgência, em observação, onde é medicado e os sintomas cedem rapidamente.
Sem uma rede familiar que o acompanhe, seu primeiro tempo à espera de um encaminhamento para um abrigo fica marcado por um constante “ir e vir”. Expõe-se a situações de risco, imperando um empuxo cego, uma errância mais do que um percurso, uma sucessão de cenas marcadas pela expulsão e o desamparo. Enquanto isso, conhecemos um pouco de sua história da infância no Brasil, de pais desfalecidos e de percursos institucionais dos quais recorta modos de nomear-se sempre em relação à loucura.
Em uma de suas saídas precipitadas, confronta-se com a impossibilidade de sua mãe sustentá-lo; no retorno ele afirma: “me perdi”, “me achei só por momentos”. Inscreve-se uma diferença, cujo efeito se traduz no cessar das “escapadas”. Comprovação, em ato, da solidão e da perda; ponto de chegada que se faz possível ao ter podido suportar a partir da instituição “uma passagem ao ato circunscrita a um lugar”[3].
Inauguram-se movimentos, enraíza-se. Realiza atividades e arma circuitos pelo hospital. Chega sua carteira de identidade, grita “argentino” e pergunta quando poderá ir ao abrigo. Pede para contatar seu pai; também quer uma Bíblia. Isso ressoa em uma médica e ela lhe apresenta o “padre Cristian”, sacerdote do hospital, quem lhe oferece ser batizado. Aceita e diz “agora vou ter que fazer as coisas bem”. Sua presença se torna familiar. Há quem proteste: “será que ele acha que está num hotel?” e há quem consinta pequenas exceções, como o uso do computador pelas noites para entrar no Facebook. Por esse meio consegue contatar seu pai.
O laço com outros se desdobra ainda no vertiginoso da dinâmica da Emergência. A sua permanência lá não foi uma estratégia procurada, mas produto de discursos e práticas que confluem em um efeito de segregação. No entanto, orientados por pesquisar os arranjos que cada sujeito encontra, localizamos que nessa conjuntura Martin pode servir-se desse traço flexível do dispositivo de emergência para dar alguma forma possível a sua tentativa inicial de ir e vir.
Ou seja, por não ter um lugar onde estar na cidade, este garoto deambulava pelo hospital. O que fazia com que os médicos se queixassem: “o que esse garoto faz aqui?”, “ele acha que está em um hotel?”, “este não é o lugar para ele”. “Os protocolos sanitários existem para serem cumpridos, ele pode pegar alguma doença!”. Bom, toda uma série de questões que tornavam o trabalho muito difícil.
O pai começa a visitá-lo, mas é escorregadio com os profissionais. Quando algumas saídas com ele se concretizam, o pai chega tarde, discutem, desencontram-se. Ocasiões nas quais é preciso que as equipes suportem ser depositarias da sua raiva, que se decanta em desilusão. Expressa: “estou cansado de esperar e que não aconteça nada”.
Repara que “as vozes” aparecem quando está entediado. Ao conversar sobre aquilo ao que o conteúdo remete, se desvanecem; o que também acontece ao ler a Bíblia ou fazer algo que lhe interessa. Vão aparecendo outros modos de nomear o padecimento: entediado, cansado, zangado. Deixa de se nomear como “louco”.
Com cada vez mais clareza, sustenta que não quer passar as festas de fim de ano nem fazer 18 anos no hospital; reconhece que com seus pais não pode morar, mas que quer estar bem, “ser alguém para eles vejam a pessoa que ele é”.
A possibilidade de narrar-se ganha potência: conta que veio do Brasil há alguns anos e que desde então certas coordenadas nas quais tinha transcorrido sua vida foram abruptamente quebradas. Nesse momento seu pai, exaltado, decidiu que ele fosse morar com a mãe: “me mandou para casa dela de táxi e sem o endereço”.
Impõe-se operar com aquilo que insiste como afirmação desejante: a intenção de sair, estudar, trabalhar; a posição de aposta ameaçada pela inércia institucional. Compartilhamos essas questões na conversação do CIEN, onde se decanta a pergunta de como articular uma saída que o inclua e responsabilize.
Coordenou-se então seu ingresso num Centro Educacional que tem uma tradição de trabalho com pessoas em situação de vulnerabilidade, que responde rapidamente, convocando-o a tomar a palavra. Ele consente, entusiasmado, mobilizado. Em um fato inédito, o Hospital autoriza que ele possa sair todos os dias para ir à escola, e a partir do programa de Acompanhamento Terapêutico (AT) é possível alguém sair da instituição para acompanhá-lo.
Um novo obstáculo burocrático interrompe o curso do trabalho singularizado: é imposto o encaminhamento a uma instituição que não se encaixa no esperado para ele. Depois de um episódio de conflito em cujo contexto ele “escapa”, o seu reingresso é negado argumentando que ele “quebrou as regras”.
Desabrigado, ele volta à Emergência. Aposta-se em não o internar, sustentando sua atenção ambulatorial. Mas um dia ele chega sujo, confuso, diz ter dormido na rua e pede “me ajudem a encontrar um lugar para morar”. O marginal se torna mais cru. Tem 17 anos e 10 meses[4].
Martin retoma seu modo de estar no hospital, tranquilo e reflexivo. Publica no Facebook fotos na escola, com sua carteira de identidade e no pátio do hospital. Costuma adicionar a legenda “ATR” (em espanhol: “a todo ritmo”) e “digam o que quiserem”.
Sua equipe faz eco do desamparo que retorna dos circuitos formais e procura um lugar fora disso. Consegue-se o encaminhamento para um abrigo religioso. Propõe-se um “processo de adaptação”, reconhecendo a necessidade de um tempo lógico para passar de um lugar a outro. Embora seja um abrigo para maiores de idade, o diretor contempla a situação e o recebe.
Martin vai e vem sozinho do hospital ao abrigo várias vezes. Festeja seus 18 anos nos dois lugares. Diz que sente que “ter despertado” no hospital, que “aprendeu a ter sentimentos”. Um dia decide instalar-se no abrigo. Continua publicando no seu Facebook; uma foto o mostra em uma excursão com seus colegas, a intitula com a inscrição “tô por cima”.
Talvez se trate, como coloca Èric Laurent[5], de movimentos de passagem ao “regime da exceção”, entendida como “uma subversão do regime da proibição para todos”. Suspender os automatismos da pressa, suportar as irrupções e os vaivéns enlouquecidos até que advenha “ritmo”. Uma aposta ao despertar de um sujeito implicado na sua própria invenção.
Revisão da Tradução: Flavia Machado Seidinger Leibovitz
“Trevas” na educação?
Laboratório “Docentes-doentes: deixe-os falar!”
(CIEN-MG/BR)
Numa conversação com educadores, uma professora, Ellen, nomeou alguns alunos de “treva”. “Tem aluno que a gente reza todos os dias para ele morrer ou acontecer alguma coisa para que ele não esteja mais lá na sala” – essa fala foi feita em meio aos professores e não causou o estranhamento que esperávamos. Sentiu isso com Nicole, uma adolescente “agressiva” e “desafiadora”: “não consigo mais ter contato com ela por estar bastante esmorecida com toda a situação”. Qual seria a “treva” insuportável para essa professora, a ponto de ao mesmo tempo se “enfurecer” e se “esmorecer” diante dessa jovem?
Escuta-se muito sobre a cólera produzida, especialmente, pelos alunos indisciplinados. Não é incomum professores relatarem situações em que saem do sério, berram, jogam objetos, se indispõem com os alunos, por vezes chegando à agressão. Para Lacan (2005), a cólera “é o que acontece nos sujeitos quando os pininhos não entram nos buraquinhos”, quando, “no nível do Outro, do significante […], não se joga o jogo” (p.23, Seminario 10). A cólera indica uma ruptura e pode incitar uma resposta de violência, pois, como irrupção de um real, “a separação com o Outro pode levar a um curto-circuito onde a palavra falta ao discurso” (Site do IX Enapol, 2019).
Treva e esmorecimento
Se de um lado temos a cólera dos educadores, por outro, há o “esmorecimento” e o adoecimento diante dos casos considerados difíceis – aqueles que os angustiam, por não saberem o que fazer. O Laboratório realizou uma conversação sobre o tema e, nesta, gestores escolares apontam que sua função é a de sustentar os docentes para que não adoeçam. “Com isso, os gestores também adoecem”, o que se evidencia, inclusive, na alta rotatividade dessas funções, nas escolas de alguns dos participantes da conversação.
Não é raro os professores chegarem à sala da coordenação, em cólera, exigindo uma atitude. O pedido é o de retirar o aluno daquele contexto, tal como a ideia de Ellen, que embora “absurda”, não deixa de lhes ocorrer: “é a vontade que o problema desapareça”. E, em alguns momentos, a exclusão é a única solução encontrada, tal como ocorreu com Natan, expulso após uma orientação do Conselho Tutelar, porque a escola já não sabia mais o que fazer.
Natan batia nos colegas, nos profissionais e gritava dizendo “cala boca”, “deixa eu falar”. Não suportava o contato e vivia uma crise que se manifestava através de socos, chutes, beliscões, arranhões, mesas para o alto, furo na cabeça dos colegas com o lápis, etc. Crianças assustadas, professores procurando a gestão, indignados pelo que ocorria e a professora regente sem voz evidenciavam a dificuldade que representava esse aluno para a equipe, que adoecia diante da situação.
Seria Natan um “aluno treva” ou um aluno com uma questão psíquica a demandar urgentemente um tratamento para isso? “Pode ser”, diz Miller (2017), “que a violência da criança anuncie uma psicose em formação”. Na conversação do Laboratório, pareceu-nos que a criança mandava calar a voz que, por estar abolida do simbólico, retornava no real, tal como uma alucinação. Além de ressaltar a importância do tratamento à crise psicótica, inclusive com medicação adequada, chegamos a um orientador para as intervenções na escola, a partir da proposta de Miller (2017): diante da violência da criança, procede-se com doçura. Se o tratamento conseguisse conter essa crise, seria Natan um caso treva?
Caso treva?
Outro ponto levantado na conversação foi o de que um caso é considerado treva numa instituição e não em outra. Tal como Wallace, que chega na escola mordendo e batendo, mas que por não ter sido considerado treva, pode se colocar de outra maneira. Wallace vem com laudo de Transtorno de Espectro Autista (TEA) e com indicações de como a escola deveria proceder com ele, até mesmo sobre a expressão facial correta para se dirigir à criança. Diferente disso, a professora permitiu que o aluno a guiasse. Há uma ocasião em que ele deita no chão e ela se deita também, acompanhando-o. A intervenção da escola produziu efeitos tão importantes que, ao final do ano letivo, o neurologista questionou seu diagnóstico.
Por que um caso é treva em uma escola, mas não é em outra? Isso vai depender do sintoma de cada escola, que se refere a um modo de funcionamento próprio de lidar com as questões. Esse sintoma favorece algumas crianças ou pode se constituir como insuportável para outras. Poderíamos pensar, então, que o caso treva é aquele que questiona o sintoma da escola? Ou do professor? Seria quando a resposta sintomática, construída a partir da fantasia, não é suficiente para lidar com aquela situação?
Treva e angústia
“Treva é quando a gente não sabe o que fazer”, e, nesse sentido, seria interessante pensar que há “momentos treva e não alunos treva” – disse-nos uma participante da conversação. A pergunta, então, seria: o que fazer diante desses momentos? Seria a treva um dos nomes da angústia?
Lacan (2005) localiza que a angústia tem relação com o desejo do Outro, ao qual o sujeito tenta sempre responder. Que queres? Que quer ele de mim? E essa questão não se trata apenas de “que quer ele de mim?”, mas “que quer ele a respeito desse lugar do eu?”. Ele situa a angústia como um termo intermediário entre o gozo e o desejo e aponta que é “depois de superada a angústia, e fundamentado no tempo da angústia, que o desejo se constitui” (p.193). Frente a um “momento treva”, o que fazer? Lançar luz sobre o que não se sabe fazer ou sobre o modo com o qual se faz sempre e que se desestabilizou?
Se esses momentos trazem incômodo à escola, a ponto de que se busque eliminar a treva para que tudo volte a funcionar como antes, colocar a treva, esse “não saber o que fazer”, em questão, pode proporcionar uma reconfiguração na maneira de funcionar. Nesse sentido, o aluno treva pode trazer luz, a partir do momento em que explicita uma certa lógica. E Lacan (2005) nos indica que “só há superação da angústia quando o Outro é nomeado” (p.366).
Ao falar sobre a criança violenta, Miller (2017) pontua que há uma revolta da criança que pode ser sã e se distinguir de uma violência errática, aquela violência sem por quê. E essa revolta pode ser acolhida, afinal, o jovem se rebela contra o antigo para fazer surgir o novo. Com os “alunos treva”, poderíamos pensar que essa escuridão que se apresenta na angústia abriria o caminho para a dimensão do desejo, favorecendo uma invenção? Afinal, pode haver algo de produtivo nessa angústia se não a colocamos no armário (esmorecimento) e nem a deixamos tomar a cena, transbordando-se para a cólera.
Integrantes: Virgínia Carvalho (responsável pelo laboratório); Ana Lydia Santiago; Bruna Albuquerque; Danielle Vasconscelos; Fernanda Paolucci; Letícia Mello; Mariana Vaz; Paula Cristina Barbosa; Sabrina Rosa; Sérgio Porfírio.
Referências Bibliográficas
Lacan, J. (1962-63/2005). O Seminário, livro 10. Rio de Janeiro: JZE.
Miller, J.A. (2017). “Crianças Violentas”. In: Opção Lacaniana, 77. Abril de 2017. São Paulo, Edições Eolia.
Quando portas se fecham, Janelas se abrem:
Um olhar sobre um dispositivo clínico de Belo Horizonte
Laboratório “Janela da Escuta”
(CIEN-MG/BR)
Gabriela Antunes Ferreira e Maíra Carolina Alves Santos[6]
A metáfora da “Janela da escuta” coloca para os adolescentes, profissionais, familiares e para os serviços de saúde uma interrogação: é possível um espaço de escuta que tenha como premissa a singularidade e a liberdade subjetiva? Um lugar que desconstrua todo o modelo institucional vigente e que transgrida os protocolos impostos, a fim de construir espaços de escuta livre para adolescentes e jovens? Esta é a proposta do laboratório do CIEN “Janela da Escuta”, marcado pelo trabalho inter-disciplinar e pelas conversações de orientação psicanalítica.
A proposta do “Janela da escuta” pretende derrubar metaforicamente os muros e portas institucionais, que impedem a escuta livre de julgamentos e olhares universais sobre a subjetividade, para colocar no lugar dessas portas, janelas que devem estar constantemente abertas para a escuta livre. Ao que chamamos escuta livre, pretendemos nos referir à proposta metodológica do “Janela da escuta” que tem como base a concepção de que o adolescente é o especialista de si mesmo, ou seja, a equipe de atendimento aposta no saber do adolescente sobre si. Diante disso, cada participante da equipe ocupa a posição de aprendiz ao que se refere ao novo caso que se apresenta.
A partir dessa escuta é realizada a construção do caso, com os profissionais que atendem o adolescente no ambulatório e, dependendo do caso, com a rede de atendimento do adolescente junto às políticas públicas. Esta metodologia chamada “conversação” possibilita que os impasses que atravessam o caso possam ser escutados e que algo novo emerja dessa construção. A articulação com a rede territorial fomenta a abertura de uma janela da escuta do adolescente no seu território. Ou seja, atua como um multiplicador que visa o deslocamento de uma lógica do protocolo institucional universalizante para uma escuta singular no contexto das políticas públicas de atendimento ao adolescente.
O caráter inter-disciplinar do “Janela da Escuta” é uma marca presente em todo o percurso do adolescente no ambulatório. Neste sentido, as conversações clínicas acontecem sempre após o acolhimento do adolescente e em momentos em que há algum impasse na construção do caso clínico. As conversações contam com a participação de pelo menos um psicanalista que sustenta a aposta de que não há um saber constituído. O “não-saber” dá lugar ao vazio onde há a emergência criativa e singular que orienta cada caso. Os profissionais das diferentes áreas envolvidas na discussão se colocam num lugar de não saber diante do “novo” que se apresenta, e as soluções tecidas pelo próprio adolescente, assumem lugar central.
Trago aqui um trecho de uma música chamada “V. L. também ama”, do “Trilha Sonora do Gueto”, pois irei retomá-la a seguir. Diz assim:
“Cara é complicado essa vida
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
Boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente
Tendo que enfrentar toda manhã
E se preocupar com sua família
Amar é complicado, pros fracos não tem vez
Um dos vida loka vale deles tipo seis
Só tenho que eu mereço, humildade vem do berço
Amor é só de mãe, pois de outro eu não conheço”
Vida loka também ama!
A palavra dita somente encontra lugar e sentido quando escutada atentamente. Um exemplo de como transformar portas em Janela se dá todos os dias na cena do acolhimento. Em uma manhã de sexta-feira, um adolescente chega encaminhado pelo serviço socioeducativo, acompanhado de um agente e com um relatório detalhado de sua trajetória na criminalidade. Nesse momento, o adolescente chega e, em suas próprias palavras, diz que é visto como “criminoso”, “ladrão”, “pecador”. Informa que está vivendo os piores momentos de sua vida, confinado, diz que chora ao se lembrar da mãe, e a identifica como o amor da sua vida. Interrompe a fala para não chorar e afirma: “eu não gosto de chorar porque as pessoas pensam que eu sou fraco”. É dito ao adolescente que ali ele não precisa ser forte. Ele diz com os olhos marejados: “quem me vê não sabe o sentimento que carrego no peito. Vida loka também ama!”.
Lacadée (2011) nos adverte, a partir de um exemplo midiático – por sinal muito atual e presente no contexto brasileiro –, sobre os perigos da manipulação da língua para justificar a truculência do trato com o jovem. Os deslocamentos das expressões que nomeiam os jovens os convertem em “manchas a serem limpas” (p.13) – ou corpos matáveis – seja pelo cárcere seja pelo extermínio. Com isso, ao declarar Vida loka também ama, este jovem pontua sua indignação diante da maneira com que a sociedade descreve os adolescentes autores de ato infracional. Estes adolescentes sentem-se vistos como sem sentimentos, sem coração. Como se também não amassem, como se fossem cruéis. A escuta em interlocução ao que diz o jovem pode retificar sua posição em relação a estas qualificações, podendo naquele momento expressar livremente o que sente por sua mãe. Espaço improvável dentro do contexto institucional.
É interessante pensar no caso supracitado como a escuta abre janelas que apontam liberdades e possibilidade de avistar algo novo onde antes só se viam paredes. O “Janela da escuta” aposta que ao olhar para fora, além dos discursos que supõem algum saber sobre o adolescente, é possível manter uma janela aberta para a escuta e invenção de um novo lugar pelo adolescente. Janelas que se mantêm abertas apesar das portas fechadas dos protocolos institucionais e do próprio ideal de bem-estar de alguns profissionais das políticas públicas.
Referências:
CUNHA. C.F. A janela e a cidade – clínica contra segregação. Belo Horizonte: 2017. Disponível em: https://site.medicina.ufmg.br/observaped/wp-content/uploads/sites/37/2017/01/a-janela-e-a-cidade-observaped-30-01-2017.pdf. Acesso em: 07 de Julho de 2019.
LACADÉE, P. O despertar e o exílio: Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de janeiro: Contra Capa, 2011.
MILLER J. A. Crianças Violentas. Opção Lacaniana, 77. abril de 2017. São Paulo, Edições Eolia.
Reconquistar como sujeito a dignidade de seu sintoma
Laboratório “Infância Errante”
(CIEN-RJ/BR)
Uma frase do Argumento proposto para esta 2a Conversação Internacional do CIEN América nomeia e nos inspira a escrever sobre uma conversação que realizamos a partir da demanda de uma professora. Apesar de já ter seis anos, Caio foi matriculado no Pré II da escola tradicional em que ela trabalha. É sobre eles de que se trata neste texto em que nos propomos a abordar a dignidade do sujeito.
Já na semana de sondagem, a professora percebe algo de diferente em Caio: uma agitação física desmedida o impossibilita a se centrar em algumas atividades; grande necessidade de contato físico com abraços e beijos a todo momento e com todos; desinteresse por atividades normalmente atrativas para a sua faixa etária; oscilações de humor; superexcitação diante de alguns estímulos e raiva e frustração diante de outros; respostas explosivas e considerável baixa autoestima. A coordenadora pedagógica informa à professora que Caio é agitado “porque tem TDAH”. Em tratamento medicamentoso, ele também é acompanhado por uma fonoaudióloga. Se esse diagnóstico traz consigo a “explicação” de seu comportamento, traz também dúvidas sobre a melhor maneira de trabalhar com ele sem encerrá-lo sob uma etiqueta.
A professora solicita, então, uma reunião com a família e somente a avó paterna comparece. Caio e o pai moram com ela e é ela quem cuida do menino que, muito dependente, não toma banho nem come sozinho. Agitado, corre o tempo todo, de um lado para outro. Quando está em “crise”, não quer falar, foge de todos e fica repetindo que “não faz nada direito”, que “não presta para nada”. A avó teme que, em sua “depressão”, ele faça alguma coisa consigo mesmo.
Conversação 1: há peças que se encaixam…
A professora conta que, após esta reunião com a avó, “algumas peças se encaixaram” e se pergunta como mudar o manejo com Caio e a turma, em seu “trabalho solitário”. “Por que solitário?” – pergunta um participante do laboratório. Ela explica: “quando ele grita e lança à distância qualquer objeto que esteja à sua frente, respondem a ele com gritos de igual ou maior volume, seguidos de um castigo, como a perda de alguma atividade prazerosa. Não há espaço na escola para minhas angústias e dúvidas”. Uma participante comenta que angústia e dúvida fazem parte do trabalho em qualquer instituição e propõe que nos encontremos para um segundo tempo da conversação.
Conversação 2: …e há as peças que não se encaixam…
Logo ao chegar, a professora relata que foi atravessada pela constatação de seu lugar de super-heroína, salvadora, como se as crianças não tivessem outra possibilidade senão suas aulas: “Parte desta minha solidão acontece por eu idealizar uma postura que não tenho como sustentar em minha condição de humana. Tenho um olhar sensível à infância e à aprendizagem que me diferencia dos meus pares, mas não sou melhor do que ninguém. Não promovo nenhuma grande revolução e meus resultados são os esperados e desejados pelo corpo docente.”
Após a primeira conversação, percebeu que seu olhar para a turma está diferente, principalmente para com Caio: “Ainda mantenho a postura de lidar com todos e cada um, mas tenho buscado um certo distanciamento emocional para um efeito pedagógico mais imediato.” Observa dois novos comportamentos inusitados de Caio:
(1) frequentemente, ele pergunta sobre sua família: Tia, sua família é grande? Você tem irmãos? Sua família mora toda junta? Como é o nome da sua mamãe? Um dia, pergunta o nome do seu pai e fica muito consternado ao saber que ele já havia falecido. Onde ele está? “Ele já virou estrelinha.” Ele já morreu? Poxa, vou te dar um abraço pra você não ficar triste.
(2) por vezes, ele se coloca ao seu lado e, de repente, lambe o cotovelo dela. Na primeira vez que isso aconteceu, pediu que parasse, deu uma ‘bronca’. Ele justificou: estou dando beijinhos. Outras vezes em que é pega de surpresa, ela não sabe muito bem o que fazer, tenta ignorar seu comportamento e chama a atenção para outra atividade em curso.
Momento de concluir: …e possibilitam um lugar no mundo.
Na Jornada Internacional do CIEN de 2013, em Buenos Aires, Éric Laurent estabeleceu uma diferença entre o mundo da proibição, centrado em normas e regras, e o mundo da exceção. Comentando o trabalho que apresentamos sobre o rapaz que queria se tratar, mas não queria deixar a droga, Laurent usou um termo que tem nos orientado no trabalho com as instituições: a “interdição sob medida”, que pertence ao regime da exceção, mas não está completamente fora do mundo da proibição. Em suas palavras: “Há sujeitos que, por razões múltiplas, não têm lugar neste mundo. Então, para se inventar um lugar que possam suportar têm que passar por suas condutas de risco e calcular como fazer parte desse impasse das regras, a solução que possa incluí-los”. (p.16)
Sobre Caio, ressaltamos um efeito importante sobre “inventar um lugar”, o que chamamos de sua “autonomeação”. Certo dia, ele pergunta para a professora qual o nome dela. Ela responde e, em seguida, Caio pergunta se poderia chamá-la, a partir de então, por seu nome e não mais de “tia”, como costumava chamar. E assim ele faz. Dias depois, em um evento da escola, pátio lotado, ele levanta a mão para fazer uma pergunta. Mas antes de colocá-la, Caio surpreende: ele se apresenta, de pé, dizendo seu nome completo.
Participantes: Ana Martha Maia e José Alberto Ferreira (psicanalistas, responsáveis pelo laboratório), Ana Lúcia East (psicanalista) e Tatiana Pantoja (pedagoga).
Referência bibliográfica:
Laurent, É. “A cada uno, su ponto de excepción”. Cuaderno 7 – Centro de investigaciones del ICdeBA: Me incluyo, desde afuera. Buenos Aires: Instituto del Campo Freudiano. 2014.
Invenções “no fio da lei”
Laboratório “Al filo de la ley”
(CIEN – Bs As/AR)
A presente vinheta surge da experiência recolhida em um centro sócio comunitário localizado na região sul da grande Buenos Aires. Trata-se de uma equipe interdisciplinar que atua a partir de ofícios judiciais, quando um juiz ordena uma medida (Suspensão de julgamento a prova).[7]
O nosso laboratório se origina a partir do encontro entre a psicóloga da equipe com um psicanalista integrante do CIEN, a quem ela consulta para se orientar em um trabalho de tese. O material que ela apresenta, estruturado no estilo do discurso universitário, alterna-se entre a queixa e o desânimo, diz sentir-se culpada e frustrada por não poder fazer praticamente nada pelos meninos, que nada funciona…
É que a intervenção desta equipe interdisciplinar é limitada no tempo e no seu alcance, e supõe a implementação de uma série de medidas que seguem um ideal de reinserção social normativizante, por meio de dispositivos muito limitados quanto a recursos que nem chegam perto dos objetivos que impõem, afundando amiúde os profissionais intervenientes e também aos jovens destinatários dessas medidas em sentimentos de desamparo e frustração, que muitas vezes retornam como violência e desconfiança: “recebemos sempre uma urgência impossível de resolver”, “temos que explicar sempre o que não somos”, “quando conseguimos que um menino confie em alguma de nós, temos que encaminhá-lo para um lugar que não está disponível, ou tem que suportar meses de lista de espera”, etc.
O encontro com as publicações do CIEN e o convite ao trabalho entre vários precipita a montagem de um laboratório, quando outra integrante da equipe, uma assistente de menores, se junta à conversação. O laboratório se constitui a partir da necessidade de pôr a trabalho as dificuldades derivadas das situações assinaladas e muitas outras, e de localizar as tensões próprias de uma tarefa que se situa nos limites do impossível: como estabelecer as coordenadas que o discurso jurídico denomina “a responsabilidade subjetiva” dentro de um enquadre institucional que muitas vezes a violenta em nome de regulações burocráticas?
“Fazer-se dócil à língua do outro” não implica “obediência devida”
Qualquer enquadre normativo porta em si um impossível.
O paradoxo das regulações burocráticas é que ignoram que qualquer questão relativa ao subjetivo se produz por fora dos protocolos e, se há alguma eficácia possível, ela aparece “fora de lugar”.
A situação que vamos apresentar ilustra muito bem o que poderíamos chamar de “a eficácia nas margens”.
Em espanhol tem um dito popular que diz: “hecha la ley, hecha la trampa”[8]. Vamos ver de que maneira uma “armadilhazinha[9]” permite nesta situação evitar cair na armadilha dos protocolos.
“O bebê da mamãe”
P se apresenta no centro, em companhia de sua mãe, com atitude prepotente e despótica.
Dirige-se à equipe com arrogância e responde zombeteiramente às perguntas que lhe formulam (motivo do roubo), afirmando que o evento que se lhe imputa ocorreu há 3 anos.
Ao recebê-lo, ele se apazigua quando esclarecem que não se tratava de um interrogatório policial.
P oscilava entre duas posições: por um lado, atribuía-se seus delitos com desembaraço e veemência; ao mesmo tempo que negava qualquer responsabilidade subjetiva diante dos fatos da acusação: “eles me levaram por engano, por uma troca de roupas”.
Enquanto isso, sua mãe se comporta como se fosse a irmã e nem se altera diante do relato das “façanhas” do jovem, naturalizando assim o consumo de drogas e a atuação delituosa.
O menino e sua mãe falavam como se fossem portadores de um único discurso, idêntico, sem fissuras, completando-se nas frases, um ao outro, e às vezes respondendo em coro. Por exemplo:
— Dados do pai?
— Não existe, não precisamos dele.
A advogada assinala essa modalidade discursiva, diante do que o menino responde com tom irônico e redobrando a aposta: “Sim, eu sou o bebê da mamãe”, apelido que se instala para nomeá-lo entre os profissionais do centro.
O curso do que parecia ser um roteiro fatal, que oscilava entre a zombaria (ele chegou a exibir orgulhosamente uns tênis de duvidosa procedência) e a desconfiança diante dos membros da equipe, deu uma virada fundamental em um segundo encontro, quando P comparece sozinho e declara, desconsolado, ter sido abandonado por sua namorada, que o deixou publicamente exposto e ridicularizado nas redes sociais.
Aquele menino valentão e prepotente se apresentava agora tão frágil e tão vulnerável quanto qualquer mortal diante das desventuras do amor… Em face da humilhação pensa na vingança, uma saída violenta: é convidado a falar sobre como se sente, cai no choro.
Foi preciso alojar nesse momento a angústia de P, que a partir daí começa a comparecer sem hora marcada para ver as integrantes da equipe. Este movimento espontâneo, acolhido pelos que o recebem para falar, está fora do que o Programa permite. Mas é justamente ali onde se abre uma possibilidade para o sujeito. É ali quando manifestou recursos que lhe permitiram dar-se um tempo para assumir e respeitar a decisão de outro, com a consequente dor da perda, uma nova posição em relação ao amor.
Para a equipe isto significou uma aposta: ir além dos protocolos que indicam taxativamente o encaminhamento a um serviço de saúde mental, o qual supunha uma lista de espera. Decide-se contornar a impotência à que empurra a burocracia, dando espaço à palavra e ao seu valor.
Em pouco tempo outra contingência oferece uma nova oportunidade.
O pai de P lhe oferece um emprego no seu açougue, que o jovem aceita queixosamente e como algo transitório.
A psicóloga da equipe, com quem o menino tem desenvolvido um laço de confiança e respeito, lhe pergunta: “Você já aprendeu a despostar[10]?” Frente a resposta afirmativa e alguma surpresa por parte do menino, ela diz em tom cúmplice: “Eu aprendi o ofício com meu pai, eu também sei despostar”. Ela lhe sugere aproveitar esse saber fazer porque é um trabalho muito valorizado e bem remunerado.
O jovem rapidamente se incorpora ao negócio do seu pai em tempo integral (inclusive atendendo no caixa), e abre para si uma porta ao mundo do trabalho, uma saída possível do mundo do delito.
Depois de um tempo, já quase no limite de nossa intervenção, ele vem nos visitar e orgulhosamente nos mostra as “altas llantas” (tênis) que pôde comprar com o dinheiro que ele ganha trabalhando.
Integrantes: Silvina Cantarella (psicóloga, participante do ICdeBA), María Soledad Lettieri (assistente de menores, operadora) e Hernán Vilar (responsável pelo laboratório).
Tradução: Milagros Villar.
Revisão: Flávia Machado Seidinger Leibovitz.
A Conversação diante da “política do para todos”
Laboratório Pipa-voada
(CIEN-RJ/BR)
Cyntia Mattar: O trabalho do laboratório neste ano começou com uma pergunta: onde estão os meninos e meninas que costumávamos ver nas ruas do Rio de Janeiro? Essa questão inicial se desdobrou, trazendo uma segunda pergunta: qual é o laço possível desses adolescentes que experimentam o movimento de errância com a droga, na rua e nas instituições e com cada um de nós? Além de ser uma das participantes desse laboratório, eu coordeno a equipe de Redução de Danos do Município de Niterói do Rio de Janeiro.
O “Pipa-voada”, ao questionar onde estão as crianças e os adolescentes usuários de drogas em situação de vulnerabilidade, fomentou três conversações – duas delas foram realizadas com participantes de outros laboratórios do CIEN-RJ. A presença de profissionais de outras áreas do saber, dentro e fora do laboratório, evidencia a aposta na conversação como um dispositivo capaz de interrogar nossa prática.
Levamos para a conversação o impasse colocado por uma psicóloga com o tratamento de uma adolescente de 15 anos, em situação de rua, usuária de múltiplas drogas, num contexto de violência cotidiana, e assistida por diferentes instituições que atuam no território. Aos 13 anos fora internada compulsoriamente em hospital psiquiátrico. À época, convivia com outros adolescentes pelas ruas. Nessa ocasião, teve o seu primeiro filho, que foi entregue, aparentemente contra sua vontade, à adoção de parentes. Após a alta, seus laços na rua ficaram fragilizados, passou a circular solitária pela cidade e também a se esquivar das instituições que antes a acompanhavam.
Dois anos depois dessa internação, a equipe de “Redução de Danos”, na qual a psicóloga relatora atua, foi convocada ao caso devido à proximidade com a cena de uso, uma cracolândia situada dentro de uma favela. No contato, uma das “redutoras de danos”, que já a conhecia, aborda temas íntimos: pergunta sobre o primeiro filho e sobre o uso de preservativos nas relações sexuais. Abre, assim, caminho para que a adolescente fale de sua menstruação atrasada. A equipe propõe a ida ao serviço de saúde e ela, mesmo hesitante, aceita. A psicóloga recolhe a pergunta da adolescente: “Vou ser mãe, né?”
Após essa intervenção, um morador da comunidade, também frequentador dessa cracolândia, se responsabiliza por ela. Alega que o tráfico proíbe a presença de grávidas na cracolândia e a acolhe em sua própria casa, facilitando o início de seu pré-natal. A mãe da adolescente, que mora em outra comunidade, reaparece, mas o cuidado ofertado com esse morador é interrompido. Retorna às ruas, ficando em diferentes pontos da cidade. As equipes voltam às buscas, esperando-a em diversos lugares habituais, como cenas de uso, ponto de ônibus, ou a casa de sua mãe. Em poucos encontros marcados com ela, os técnicos ficavam esperando por horas e, na maioria das vezes, ela não aparecia. A adolescente, no entanto, surpreende a equipe do “CAPSi” ao se comunicar por uma rede social. Por mensagem, explica que estava fugindo, pois temia que esse filho também lhe fosse retirado.
O campo de atuação da maioria dos profissionais que compõem o laboratório é o campo plural da saúde mental. Ao fazer as conversações com profissionais que não atuam neste campo e, ao compartilhar nossas experiências e impasses, nossa aposta é de que novas aberturas poderiam surgir.
Algumas questões circularam nas conversações: como nos orientar quando o adolescente na rua parece não fazer demanda ou foge dos encontros? Como dar direção a um tratamento tão fragmentado, num espaço sem contorno, como é a rua?
É pontuado que a gravidez amplia a gravidade do caso. “Eu vou ser mãe, né?” Como acolher essa fala? Fica evidente que as esquivas revelam o temor da adolescente de ficar sem este segundo bebê. Algo aponta para a responsabilidade institucional da equipe para com a adolescente e o bebê. Será que essa responsabilidade e as condutas institucionais se pautaram no ideal de promoção de saúde da gestante e do bebê? Na “política do para todos”?
Segundo Borsoi (2011), “A política do sintoma no sentido analítico é oposta ao mecanismo da política, senso comum, por subvertê-la, retirando o sujeito das identificações genéricas, opondo-se ao que o destino condiciona.” Tal política não está guiada pela promoção de um ideal de saúde, bem-estar e felicidade. A política do sintoma inclui o sujeito e suas particularidades de gozo. Como recolher essas particularidades com tantos desencontros? A impotência é o que aparece para a psicóloga diante de um ideal de “construção de caso”, orientação de “cuidados”.
As conversações destacam aspectos que oscilam entre “a política do para todos” e “a política do sintoma”, mostram que as condutas institucionais se pautaram no ideal da equipe de promover a saúde da gestante e do bebê, deixando de lado as particularidades daquele sujeito adolescente. Como acolher e tratar novas invenções dos adolescentes, em especial daqueles em situação de vulnerabilidade psicossocial. Como possibilitar que o sujeito construa uma trama que sustente a vida e não o leve ao pior, como a fragilização drástica do laço social e, no limite, à morte?
Na última conversação, a psicóloga relatora pontua que a clínica na rua tem uma urgência devido à fugacidade dos encontros e a fragilidade do laço social experienciado. Para ela, a saída da impotência diante de um caso como este, talvez seja provocar o falante do corpo desses meninos e meninas, não mais apenas à espera da formulação de uma demanda, mas, sim, na oferta do encontro com um profissional disposto a “recolher os cacos” de um sujeito. Recolher discursos espalhados pelas instituições, pela cidade, promovendo, assim, “traços de um cuidado” que só pode ser validado a posteriori.
Saímos do impasse de suportar o “não encontrar” e o “não saber o que fazer”, para uma “solução sintomática”, uma “direção de trabalho” que, orientada pela escuta em conversação sobre esse sujeito adolescente, reflete sobre a necessidade de incluir os medos e as possibilidades inventivas da adolescente. Em outras palavras, a orientação para um cuidado possível é aquela que pratica uma escuta singular que inclui o sujeito. A equipe de saúde mental que a acompanha pôde estar outras vezes com ela, em encontros nos quais ela não precisava mais fugir. A adolescente da qual nos ocupamos segue na vida.
Integrantes: Jorge Carvalho, Carmen Gustavo, Camila Macedo, Carla Paes, Cyntia Mattar (relatora), Giselle Fleury (responsável pelo laboratório) e Vilma Dias (responsável pelo laboratório).
Bibliografia:
Indart, J. C. I. Udenio, B. Conversação Internacional do CIEN 2017 – Os laços sociais e suas transformações. In: Cien Digital, n 22. Revista do CIEN Brasil. Disponível em:www.ciendigital.com.br/
Borsoi. P. “A política do sintoma na clínica da Saúde Mental: aplicações para o semblante-analista”. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/A_polC3%ADtica_do_sintoma.pdf
Comentários
Flávia Cêra:
Vou falar um pouco a partir do que os trabalhos me ensinaram. Os textos me levaram a pensar que o CIEN é uma prática que atua lá onde a segregação e a homogeneização se apresentam como saída para um impasse. Acho que isso é uma marca, tanto nas escolas como nas instituições de saúde.
Nesse sentido, estamos sempre perto de certo limite, na pressa de resolver um impasse, no limite justamente do saber, quando o protocolo para, quando a burocracia para, quando “não sei o que fazer”, nesse sentido angustiado, como Cynthia estava apresentando algo que aparece como sem saída, limite do saber e no limite do insuportável. Os laboratórios se situam aí, nesse limite. E se colocam à disposição, como Marita dizia, convidando à conversação e à inter-disciplinaridade. Nesse limite, é a partir de onde se pode relançar as perguntas, reposicionar o mal-estar.
Há também um desafio, já levantado na mesa anterior, com o qual o CIEN trabalha, que é o de fazer furo, desviar os caminhos dos protocolos, das burocracias. Como fazer isso sem levar a psicanálise como uma verdade? Laurent define a inter-disciplinaridade a partir do que ela não é: ela não é a prática de levar a verdade psicanalítica como o saber que falta para deixar os outros saberes à altura da época. Então, como praticar a inter-disciplinaridade sem levar a psicanálise como verdade?
A questão do não-saber já foi levantada. Não levar como verdade, mas levar a psicanálise como uma lógica, e evidentemente como uma ética, que opera sustentando um espaço vazio, que considera por isso o furo no saber e o inconsciente. Para que as identificações possam surgir e serem trabalhadas, esvaziadas. E que, assim, no muro implacável da impotência – muitas vezes é com isso que nos deparamos – possam aparecer algumas brechas.
Então, fiquei pensando se o “saber não-saber” seria justamente a posição que tornaria possível acolher os outros saberes. Porque há um saber aí que circula na errância, quando se aposta neste saber, alguma coisa muda. Como se deixar instruir, como dizia Judith Miller, se deixar tocar pelos outros saberes. A fala da Tamires na última mesa foi muito interessante nesse sentido. A psicanálise leva essa lógica: como sustentar esse vazio pulsante ou funcionar como pulmão artificial, quando o ar está muito irrespirável – como hoje, nestes tempos.
Vou passar pelos trabalhos, como pude lê-los. Eu começaria pelo Al filo de la ley, que me trouxe uma imagem muito forte, kafkiana justamente, diante da lei, diante da burocracia, esse lugar tão difícil, onde há um portão. Como pode o CIEN trabalhar justamente no fio da lei? Esse lugar se dá ali, lado a lado, com a disciplina do direito e pode incluir o impossível do direito, o impossível da lei, encontrando um outro lugar. Parto daí porque foi mais ou menos a imagem que me veio como o lugar desse pulmão artificial, desse respirador.
Ao mesmo tempo, poder suportar o movimento para encontrar um ritmo, como é o caso do trabalho “a todo ritmo”, suportar a errância para armar um circuito. Ou como no trabalho do Pipa Avoada, que vai justamente furar a política para todos, quando sai do “dar direção” para “passar a acompanhar”. Acompanhar é diferente de dar direção, isso faz com que a garota não precise mais fugir. Nesse sentido, eu diria que o saber não está do lado da equipe de cuidado, está também na garota, que está numa situação realmente muito delicada, grávida, na rua, mas quando se aposta um pouco por aí, recolhemos algo muito interessante.
O trabalho apresentado por Virgínia desloca e esvazia – num sentido diferente do trazido pelo “Pipa Avoada” – a impotência do “nada a fazer”, que me parece ter sido isso o que inicialmente se encontrou. Descola e esvazia o “nada a fazer”, da impotência, para relançar um “não sei o que fazer”. Permite, com isso, a localização desse impossível do saber sempre prévio, que as escolas, as instituições costumam apresentar em protocolos, em leis, que ajudam a não ter que se inventar toda vez – o CIEN está neste lugar.
Esse me parece ser o lugar específico do CIEN, esse que se pode abrir quando justamente acontece um impasse que angustia, como essa professora apresentou. Permite localizar um impossível de saber previamente, como os protocolos, e com isso abre-se um lugar para um inventar a cada vez – o que não é fácil, mas ao mesmo tempo desangustia. Gostaria que Virgínia pudesse falar sobre o que se produziu após esse momento de localização. E, ainda, como tomar a palavra, no “Janela da escuta”, e situar algo da indignação que vocês levantam no trabalho.
O trabalho do “Infância Errante”, em que o garoto toma a palavra, me fez pensar que a dignidade não é coisa que se dê. Inventar um lugar foi fundamental para que alguma coisa da dignidade pudesse aparecer, é preciso inventar um lugar, senão caímos na dignidade universal, na dignidade da pessoa humana. É uma diferença que eu consegui recortar a partir do trabalho de vocês. Gostaria de saber se vocês pensaram sobre isso com a auto-nomeação que surge ali. Não é algo que se dê.
Tatiana Pantoja: Flávia, você poderia repetir a questão sobre a dignidade?
Flávia Cêra: Dignidade etimologicamente é um título, um valor universal, que se dá para alguém. A subversão psicanalítica é justamente retirar a dignidade desse lugar. Não é que se dá um lugar na escola para essa criança falar. Ele inventa um lugar para que possa falar e fazer um outro laço com o Outro e a partir daí se pode pensar a dignidade. Tatiana pode me ajudar, eles chamam de auto nomeação.
Mônica Campos: O trabalho do Al filo de la ley me remeteu ao filme “De cabeça erguida”, em que a Catherine Deneuve é uma juíza. Há uma cola entre um menino com a mãe, o bebê da mamãe, e é partir de uma certa escuta dessa juíza, em que ela vai suportando essa cola, flexibilizando, ele vai se organizando, algo se dá, ao fio da lei mesmo.
Gisele Fleury: Estava pensando sobre essa questão da dignidade que não se dá… O trabalho na rua nos convoca o tempo todo para o limite do que se pode fazer, do que se deve fazer, como a encruzilhada que Cyntia traz no texto com um caso muito difícil, muito angustiante, que a convocou a repensar sua prática. Queria convidar Cyntia para que pudesse falar um pouco de como a menina segue na vida, suas soluções, e um pouco o que é o trabalho do redutor de danos.
Ana Lúcia East: O dispositivo de conversação com os professores, no laboratório Infância Errante, permitiu, me parece, a retificação da posição da professora Tatiana no trabalho com o aluno em questão. Penso que foi a partir de sua retificação que, então, abriu-se para o garoto esse processo de nomeação e construção de sua dignidade. Gostaria que você comentasse, Tatiana, se entende assim também, que a sua retificação permitiu, ao garoto, um espaço de enunciação. Isso me ensina sobre como o trabalho de conversação do lado do professor pode promover também movimentos do lado dos alunos.
Hernán Villar: Retomando o que Flávia trouxe, creio que viemos escutando desde ontem um significante que se repete e insiste: o insuportável. O limite do insuportável. E você pergunta: como fazer com que a psicanálise não se transforme em uma verdade? Creio justamente que podemos responder com uma lógica e uma ética, a partir dos impossíveis, de situar os impossíveis, como saída frente à impotência. Alguns significantes ficaram reverberando: muro impossível de franquear, beco sem saída, impotência. E justamente trata-se de suportar não saber. Outro dia escutei uma frase interessante, não sei de quem é: “o beco é sem saída, e a saída é o beco”. Ou seja, neste ponto em que algo se torna quase um chiste, em que topamos com os impasses dos saberes todos, é que surge uma fagulha, algo que surpreende.
E a dignidade não é algo que se dê, é certo, não é um título de nobreza, não é uma medalha com a inscrição: “Eu te considero digno”. É de outra ordem. Mas este equívoco me parece que está presente cada vez que se fazem estes programas com “as melhores intenções”. É ofertada uma bateria de respostas prêt-à-porter para todos os sujeitos insuportáveis, e, pretendemos que eles suportem todas as soluções pré-desenhadas. É o caso do programa no qual Silvina Cantarella, que nas palavras das mesmas profissionais, “é perfeito”. E o problema é esse: que é perfeito.
Não se suporta a imperfeição, ou seja, o insuportável de sermos falhos, de não estar à altura, de não entrar na caixinha de cada um desses programas pré-desenhados: a grávida, que deve obedecer tal o qual indicação em nome da saúde do bebê, ou pela redução de danos no adicto. São exemplos. O pior disto, que é muito importante sinalizar é que a angústia – que é um nome da responsabilidade – é o que perdeu a dignidade em nossa época. Ou seja, me parece que uma das formas de lidar com isto é justamente devolver a dignidade a essa angústia, a esse ponto de angústia que é o que nos permite, de alguma maneira, dar um salto, fazer uma invenção, encontrar a possibilidade de uma resposta que não seja automática, que não seja pré-desenhada, porque o que é pré-desenhado já sabemos para onde conduz. Então, uma lógica e uma ética, de saber suportar que há o impossível, há o ingovernável, há o ineducável. É por esse lado que podemos encaminhar nossa intervenções.
Silvina Cantarella: Quero lhes contar algo. Quando o menino chega ao centro, vem com uma lista de coisas que tem que fazer. Como, por exemplo: tarefas comunitárias, tratamento para o consumo de drogas, escolarizar-se, fazer cursos de formação profissional. Se eu fosse por essa via, teria perdido todo o resto, ou seja, o que realmente era importante trabalhar. Quando este menino chegou ao centro, justamente o fato de eu me esquivar do protocolo teve efeito.
Virgínia Carvalho: Flávia, fiquei realmente animada com o seu comentário, agradeço. Você extrai uma lógica da conversação, do “nada a fazer” ao “não saber o que fazer”, ao “inventar a cada vez”. Talvez a conversação dê dignidade à pergunta, mas não para parar na pergunta. Em todos os textos que foram apresentados hoje, percebemos que uma pergunta aparece e, então, uma virada. Isso me fez pensar se a conversação não traria dignidade à própria questão, o que produziria um giro diferente da violência, pois a dignidade à questão restituiria a dimensão da palavra.
Ontem, lendo o Seminário 8, me deparei com um trecho que me surpreendeu, não me lembrava de ter lido isso antes, que é o Lacan falando sobre a pergunta das crianças.
“O que é correr? O que é bater com o pé? O que é um imbecil? O que nos torna tão inadequados para responder a essas perguntas? Algo nos força a respondê-las de uma maneira tão especialmente inábil, como se não soubéssemos dizer que correr é andar muito depressa, é realmente estragar um trabalho, que dizer bater com o pé e ficar com raiva é realmente proferir um absurdo, e não insisto na definição que podemos dar de imbecil. De que se trata no momento da pergunta senão do recuo do sujeito em relação ao uso do próprio significante e de sua incapacidade de captar o que quer dizer que haja palavras.”[11]
Lacan, em seguida caminha mais um pouquinho e afirma: “(…) a incapacidade sentida no momento que a criança faz a pergunta é formulada na pergunta que ataca o significante como tal”[12].
Acho que a pergunta traz essa dimensão de uma certa vacilação em relação ao significante, e permite, então, uma invenção. No Laboratório Docentes Doentes, nessa conversação específica, conseguimos localizar a pergunta: “Por que tem treva numa instituição e não tem em outra?” A invenção veio, em um outro encontro que a escola traz, um caso de uma criança em crise que está na instituição, pois a criança trazida para a conversação já tinha ido embora da instituição. É o caso de uma criança que chega como muito violenta, uma criança que bate em todo mundo, bate na professora, uma criança que causa um rebuliço. Na conversação alguém coloca: “Mas como é o momento que acontece isso? O que desencadeia isso?” Podem então se deparar com esse não-saber de um jeito diferente do que o da impotência. Colocam-se uma questão em relação a isso, o que traz modificações na maneira como se colocam em relação a essa criança na escola.
Também achei muito interessante o que a Marita falou sobre ser um bom anfitrião para as outras disciplinas e penso que “inventar a cada vez” tem a ver com isso também. Eles chegam, principalmente os gestores das escolas, muito angustiados, pois não sabem o que fazer com esses casos. Sentem-se muito sozinhos e cobrados de todos os lados. Então estão muito angustiados, muito tomados, sem saber para onde ir, muito cobrados, as famílias cobram, os professores cobram, os alunos cobram. Acho que encontram um espaço ali para falar do não-saber de um outro jeito. Lembrei-me também daquele verbete que Freud escreve sobre psicanálise, no qual se pergunta: “como ensinar alguém sobre psicanálise” Não tem outro jeito, só experimentando. Por aí que a psicanálise não se torna a verdade entre as outras.
Cyntia Mattar: A Redução de Danos é uma política pública de cuidados a pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas de forma prejudicial. Em Niterói, temos uma equipe composta, em sua maioria, por redutores de danos de nível médio de escolaridade, moradores das comunidades, que são usuários ou que já tiveram um percurso com um uso prejudicial na vida. São pessoas que ajudam o restante da equipe a se aproximar de cenas de uso, como, por exemplo, nas cracolândias. Nossa atuação é basicamente nas comunidades, nas favelas de Niterói.
Achei muito importante o comentário sobre a diferença que existe entre dar direção e acompanhar. Meu lugar como coordenadora dessa equipe me faz atuar, no campo diretamente. Participar da conversação foi muito importante e um dos efeitos foi poder acompanhar a Maria Eduarda.
Sobre a questão de como ela está hoje: o segundo filho nasceu e foi retirado dela, novamente. Descobriu que havia um acerto entre o Conselho Tutelar e sua mãe, no qual seu filho seria dado para outra mulher, residente em outra cidade. Ela não participou muito nessa decisão, ficou muito pouco tempo no hospital, pois o hospital não conseguia estar com ela. E o que é estar com essa adolescente?
Ela fica um tempo longe da nossa equipe, longe da mãe, longe de onde conseguiríamos encontrá-la, fica mais errante na cidade. Depois de alguns meses, retorna à cena de uso, onde a encontramos. Uma das redutoras de danos mora nesse lugar, está lá todos os dias. Voltamos, então, a encontrá-la, o que possibilita que ela faça algumas demandas à equipe, como comida. É uma cena de uso com cerca de trinta pessoas, onde o atendimento acontece no meio de todo mundo.
Em um dia em que pediu comida, desceu com a equipe para poder comer. Logo em seguida, na despedida, perguntou se poderia ir com a gente. Como eu ia para o centro e ela também, seguimos juntas no ônibus. Foi uma cena muito bonita. Nesse dia, escolheu um banco próximo a uma janela, eu fiquei ao lado dela e me contou como foi esse momento da maternidade. Ela tem mais quatro irmãos, sendo que todos foram para abrigos, assim como ela. Fugia dos abrigos para ir à casa de sua mãe, mas, chegando lá, não conseguia ficar e nem a mãe conseguia recebê-la. Contou que os irmãos não conseguiram fazer isso, pois foram adotados por outras famílias e perderam contato.
Ela percebia essa repetição, mesmo não verbalizando dessa forma, com os filhos dela. Queria ter uma menina, teve dois meninos. Fala o nome da menina que poderá vir. Ela se encolhe, se recolhe, dorme e antes disso me pede para acordá-la no lugar onde teria que descer. Fez-se um laço de confiança, de endereçamento.
Seguimos no acompanhamento, é um caso grave, não é um caso de sucesso, acho que o ponto é esse; continuamos discutindo muito esse caso, com todos os impasses que ele traz para a equipe.
Gabriela Antunes: Gostaria de retomar um pouco sobre o trabalho com as questões da instituição, pois de maneira alguma se quer demonizar os trabalhadores das instituições. Eu, enquanto trabalhadora de uma política pública de assistência social, vejo que, na “fazeção” do dia a dia, acabamos por perder um pouco o sujeito de vista. Com um furor de tudo resolver, pela garantia de direitos, o sujeito vai ficando de lado, começamos a esquecer que só há direito se houver sujeito. Se o sujeito não estiver ali, o meu trabalho deixa de fazer sentido.
Quando o profissional de políticas públicas chega ao “Janela”, quando algo insuportável se apresenta, aparece um impasse. O adolescente chega, tem uma acolhida. Acho que esse é o papel do “Janela” na articulação com as políticas públicas. É um espaço para reconhecermos que na “fazeção” do dia a dia o sujeito, muitas vezes, fica de lado – o adolescente, quando chega, vem com essa marca. É muito importante que ele seja escutado sobre o território, assim como é importante que o profissional que ali esteve para discutir um impasse, também o seja.
Como se enlaça com a dignidade? Isso acontece quando a dimensão de sujeito é resgatada. Como foi dito pelas colegas, a dignidade não é um título dado, mas um reconhecer-se como sujeito nesse espaço.
Flavia Cêra: Dá dignidade à palavra dele. Dar dignidade à palavra dele é diferente da questão do título.
Maíra Santos: Gostaria de seguir com proposta que Flávia lançou, a de conversarmos um pouco sobre a indignação. Acho importante destacar como o adolescente que atendi chegou até nós, falando que os adolescentes autores de atos infracionais são vistos como criminosos, pecadores. Existe uma indignação de sua parte frente a isso. Quando pergunto: “o que te traz aqui?” Ele me responde: “Acho que eu vim falar sobre os meus sentimentos, sobre o que eu penso.” Conseguiu se apropriar desse espaço de escuta, chegou para ser escutado sobre o seu afeto, sobre como via a vida e pensava. Quando diz “vida loka também ama”, fala, de certo modo, que a dimensão do afeto não é permitida na instituição. A sua indignação surge quando quer falar o quanto ama sua mãe, mas não encontra lugar para isso, pois o próprio grupo de adolescentes o recriminava. “Se eu falar com os meus colegas que eu amo a minha mãe, vou ser excluído desse grupo”.
A passagem da indignação para a dignidade se dá no momento em que ele reconhece que poderia ser escutado naquilo que o afetava. Esse espaço de escuta, ao ser garantido, pode permitir a invenção, através da palavra, de uma saída possível e a ressignificação de experiências.
Tatiana Pantoja: Gostaria de contar o que me moveu até o Laboratório Infância Errante. Meu modo de trabalho costuma quebrar alguns protocolos institucionais e isso, na maior parte das vezes, não é bem-visto pelos pares. Entendo essas quebras como necessárias diante de algumas situações, como um respeito à infância. Mas escuto questionamentos difíceis: “Como você pôde fazer isso, sair da sala? Se ajoelhar para falar com a criança?” Esses questionamentos me angustiavam, percebia que minha visão, que eu entendo como de respeito à infância, nem sempre era partilhada. “O que estou fazendo de errado?”, me perguntava frequentemente. Percebo as crianças na turma aprendendo, mesmo sendo levadas, brincalhonas. “Mas por que os outros adultos na escola me criticam?”
Através das conversações, pude encontrar dignidade para mim também, encontrar um espaço para entender que eu não sou uma super-heroína, que tenho o meu furo no saber, mas que o meu fazer é um fazer diferente, não precisa ser igual ao do outro. Quando eu consegui entender isso, elaborar isso, após a primeira conversação, tive um afastamento emocional das crianças, especificamente dessa criança que trouxemos para a conversação. Quando me foram passados os diagnósticos de TDH e TDC, também me foi passada uma receita sobre como fazer com ele. Diferente dos outros, os terríveis, as crianças trevas, que não têm receita, esse tinha receita e inclusive remédios, ele é medicamentoso, medicamentado, medicalizado. Foi assustador para mim, mas, para mim, ele não tinha essa receita. Minha intenção era tratá-lo como qualquer outra criança. Então, quando pude ter esse afastamento emocional, da própria imagem dele, pude também assumir o papel da professora diferente, e ele assumir o papel de uma criança, como qualquer outra.
Vou contar duas passagens muito bonitas. A primeira: num dado dia, em que ele estava muito agitado e não conseguia fazer a tarefa de alfabetização, disse a ele que eu poderia esperar, que ele não precisava fazer naquele momento. Expliquei que eu iria ajudar os outros colegas e que, então, retornaria para ajudá-lo. Ele esperou, fiz a atividade com todos os outros, e depois pude dar atenção para ele. Ele me acarinhou – tem esse hábito físico muito forte, sempre beijinho, sempre carinho, ou o inverso, automutilação, explosões de raiva – e começou a fazer perguntas: “Como é o seu nome?” Me pergunto: “Como assim ele não sabe meu nome? Ele me chama de tia o tempo todo.” “Meu nome é Tatiana”. “Como você gosta de ser chamada?” “As pessoas me chamam de Tati”, digo. “Posso te chamar de Tati?”, pergunta por fim. Consinto. Nesse momento ele se levanta, se vira para a turma, que está jogando um outro jogo, e diz: “Gente, que tal a gente chamar ela de Tati e não mais de tia?” Metade da turma obviamente não dava a menor atenção para ele, a outra metade concorda. Nesse dia, até o final, ele me chamou de Tati.
Segunda passagem: em outro dia, ele me pergunta sobre minha família, com quem eu moro, o nome da minha mãe, o nome da minha filha, cadê o meu pai. Quando soube que o meu pai tinha falecido, que “virou estrelinha”, ele ficou meio assim e falou: “Ah, vou te dar um abraço para você não ficar triste.” Percebi que, nesse momento, ele se colocou no lugar de alguém que pode ajudar outra pessoa.
Uma passagem também importante, antes desse momento: ele era um “menino sem sonhos”, que sabia que “a gente não pode ter sorte sempre na vida”. Naturalmente, era algo que já ouvido e que devolvia. Ele não tinha nome, não se nomeava. Depois dessas duas passagens, tanto de perguntar o meu nome, quanto de perguntar sobre a minha família, houve outras conversações. Fechamos com uma passagem muito bonita, um evento na escola, onde estávamos todos juntos. Todos o conhecem, porque é o “terrível da escola”. Na ocasião, ele levantou a mão e disse que queria fazer uma pergunta. A pessoa que estava ministrando o evento lhe deu a palavra e ele diz: “Queria botar meu nome”, dizendo o nome dele completo, com o sobrenome. Sai desse evento muito feliz. Passa a dizer “Eu sou fulano”, “Meu nome é esse”.
Penso que aconteceram dois movimentos nas conversações. Por um lado, eu percebi o meu lugar de professora, o de uma professora que tenta romper com esses protocolos, essa burocracia, posta pela escola, uma professora que entende que não existe o ideal, e que é mais importante corresponder ao real, ao meu real, à minha realidade. Por outro, uma criança que se encontrou dentro de seu sintoma. Por isso a dignidade de seu sintoma. Não melhorou, nem piorou, ele simplesmente se reconhece como é, não mais o “terrível”, a “criança treva”, “aquele que não presta”, “que não serve para nada”, como se nomeava antigamente.
Vânia Gomes: Uma questão para o “Janela da escuta”: Vocês funcionam dentro de uma instituição? Como o trabalho de vocês retorna para a instituição em que estão? Para os profissionais, como o dispositivo do “Janela” se articula com a instituição?
Claudia Castillo: Queria referir-me ao trabalho que Silvina Cantarella apresentou. Disse em algum momento algo, que me parece estar presente em todos os trabalhos: falar, ou deixar falar além de onde o programado permite, surgindo ali, você dizia, uma oportunidade para o sujeito. Parece-me que por aí é possível driblar o obstáculo, creio que isto está presente em vários dos trabalhos e me lembra algumas das primeiras questões que o CIEN se encarregou, em relação à regra, ao uso da regra, para além inclusive, digamos, o detalhe da regra, podendo contornar os protocolos. Obrigada.
Hernán Vilar: Sim Claudia: “por trás das normas, o detalhe”.
Silvina Cantarella: Bom, o garoto quando chega, vem com uma lista de coisas para fazer que o juiz manda. No Centro, nós o recebemos em equipe. Era óbvio que ele vinha porque era obrigado e não porque quisesse vir. Além de pensar que se defrontaria com um interrogatório policial.
A primeira coisa que fazemos é lhe explicar que não se trata disso. As entrevistas seguintes já foram somente comigo. Não sabia o que encontraria, pois fora muito agressivo na primeira e surpreendeu-me que ele desmontasse dessa forma e me contasse isso; foi algo não calculado, surgiu. Eu me esquivei do lugar das tarefas comunitárias e coisas do estilo. Preocupava-me sua saída violenta – com muito consumo de drogas – contra si mesmo ou contra sua namorada. Pois isso o levaria a outra ação judicial. Dispus-me a escutar o que doía, o que acabara de acontecer. O haviam deixado de maneira que para ele era dramática e ainda fora exposto nas redes sociais, sabendo o que elas representam para os jovens. Creio que o que facilitou que começasse a falar é que pôde ficar com raiva, gritar, dizer tudo o que havia guardado. E foi necessário sinalizar-lhe que ela estava em seu direito de deixá-lo, ainda que ele não concordasse. E em seguida trabalhar com ele que talvez fosse bom pensar por que ele queria ficar com uma menina que não o escolheu. E isto mudou algo, mudou sua posição.
Hernán Villar: Esclareço que o protocolo tem expressamente proibido o que Silvina decidiu fazer. A indicação seria encaminhá-lo a um tratamento psicológico. Esse… “não fale disso aqui”, vinha para cumprir com o que “se tem que cumprir”. Parece-me que este é o ponto. Trata-se de se fazer um bom anfitrião, e insisto: devolver a dignidade à angústia, porque a angústia tem “não dá ibope”[13] nos dias de hoje. Se a ordem judicial aponta à responsabilidade subjetiva, trata-se de uma ordem paradoxal, porque: se não nos permite alojar a angústia, de que responsabilidade estamos falando?
Gabriela Antunes: O “Janela da escuta” funciona no “Ambulatório de saúde do adolescente”, no Hospital das Clínicas, onde vários profissionais atendem esse adolescente. Porém, como funciona sob demanda espontânea, porta aberta, o adolescente pode não chegar necessariamente por uma medida socioeducativa. Pode estar no bairro, conhecer o ambulatório e ir. Vemos qual a regional dele, para saber se alguma outra política pública já atende esse adolescente. Se já for acompanhado, chamamos os profissionais envolvidos para construção do caso conjuntamente, mas atentos para que o atendimento continue sendo feito na Rede. Não é um atendimento obrigatório para o adolescente.
Mônica Campos: Bom, queria agradecer muito essa mesa muito rica. Vamos passar para a próxima mesa.