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“Eles não deviam estar ali”

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Iris Helena
Laboratório Infância Errante (CIEN-Rio)[1]

 

No tempo da inexistência do Outro, quando o declínio do patriarcado promove uma verdadeira queda dos ideais, a ausência de referências deixa o adolescente mais propenso às condutas de risco. É o tempo dos desenganados e da errância, segundo Miller (1996-1997), questão já enunciada por Lacan (1938) desde seu texto sobre os complexos familiares.

Entre os temas de pesquisa do laboratório, a errância tem sido uma constante e deixa sua marca na nomeação: “Infância Errante”, principalmente a respeito da adolescência, essa “passagem lógica na escolha de uma posição na partilha entre os sexos, uma delicada transição em que o encontro com o real do sexo, comumente suscita angústia e solidão” (Maia, 2012).

Este é também o tempo em que a demanda de saber do sujeito adolescente – que era até então dirigida ao Outro, ao adulto que supostamente o detinha – passa a ser “formulada à máquina”:

“A fórmula que empreguei, o saber está no bolso, faz pensar no que Lacan diz do psicótico, que tem seu objeto a “no bolso”, e precisamente ele não necessita passar por uma estratégia com o desejo do Outro. Há, hoje, uma autoerótica do saber que é diferente da erótica do saber que prevalecia antigamente, porque ela passava pela relação ao Outro” (Miller, 2015).

O saber não está mais depositado no adulto, no professor cuja função era de mediador entre o sujeito e o saber. As informações, os amigos, podem ser obtidos na rede virtual, tudo está no Google!

Somado ao abandono das identificações parentais e à presentificação do gozo indizível que traz para o adolescente uma sensação de estranheza com o próprio corpo, está o saber no bolso. E se o sujeito não precisa mais passar pelo desejo do Outro, essa autoerótica do saber já traz um impasse desde o ponto de partida no trabalho das escolas hoje.

No sistema escolar, a evasão tem ocorrido ao longo do tempo por diversos motivos que incluem desde as dificuldades do aluno e sua família, até os impasses diante dos quais se encontram os profissionais que lidam com o sujeito em sua relação com o saber. Um ponto crucial é a distribuição dos alunos por turma, o que segue a norma do ano que será cursado e a idade em que se encontram. No entanto, o que se constata é que não raras são às vezes em que a repetição de ano impõe uma “inclusão” escolar que funciona mesmo como exclusão e leva à evasão. Tudo depende do manejo e de que modo são solucionados os problemas, em cada caso.

A partir da proposta do CIEN da oferta da palavra, e tendo em vista “O que falar quer dizer”, uma vinheta sobre esse tema ilustra um limite encontrado numa experiência em uma escola.

A presença de três adolescentes com quinze anos em uma turma de terceiro ano do ensino fundamental, em que a maioria tinha nove anos, trouxe um impasse para os profissionais de uma escola e assim foi dado início a um trabalho multidisciplinar com uma equipe constituída também de psicólogas e assistentes sociais. A transmissão de conhecimentos para alunos com idades tão diferentes e a possibilidade de convivência com a diferença foram um problema para a escola, já que o sistema educacional permitia a matrícula destes alunos.

O histórico escolar destes adolescentes era marcado por abandonos sucessivos. Dificuldades de aprendizagem, de saúde, de falta de sentido para investirem nos estudos eram fatores presentes. Suas presenças causavam incômodo em alunos e profissionais da escola, embora alguns estivessem dispostos a acolhê-los, por perceberem a delicada situação em que todos se encontravam.

Diante da impossibilidade de estarem em outro lugar, a proposta era construir algo que interrompesse o ciclo de abandono escolar desses adolescentes em relação às escolas pelas quais passavam.

A equipe multidisciplinar realizou grupos semanais com os três adolescentes com o objetivo de escutá-los em suas diferenças e programou um trabalho coletivo com toda a turma no qual fortaleceu o projeto de reciclagem, visando alguma mudança de posição. Revitalizar a horta e o esporte foram atividades sugeridas pela turma. Vários atravessamentos marcaram a viabilização deste trabalho. Todavia, apesar das dificuldades, discussões e estratégias também foram construídas de forma a levar a proposta acordada adiante.

Apesar dos poucos encontros com os adolescentes, alguns efeitos se apresentaram. Um deles foi o ciúmes da turma. O comentário foi que os adolescentes haviam “crescido” e que estavam “se achando”. Em uma conversação do laboratório, uma questão foi colocada: se trata de um efeito negativo ou uma forma de estes adolescentes aparecerem como sujeitos, já que foram para isso convocados?

O corpo docente também colocou impossibilidades para que os projetos coletivos fossem realizados, o que trouxe a necessidade de um novo planejamento do trabalho em que foram incluídas rodas de conversa com toda a turma. No entanto, dois acontecimentos ocorreram no espaço da escola e determinaram outra direção do trabalho, atravessando os planos acordados.

Primeiro, um dos três adolescentes teve uma “crise” que deixou todos assustados e temerosos de que ele viesse a tê-la de novo. A equipe de saúde da Clínica da Família do território foi contactada e acompanhou o caso.

E, segundo, logo em seguida ao primeiro, o mesmo adolescente entrou em conflito com outro adolescente da turma. Houve uma briga durante uma aula com agressões físicas e verbais, o que preocupou alguns responsáveis e determinou a decisão da escola de transferir os dois alunos. A resposta da escola foi “aqui não há lugar para vocês”.

Apenas um dos três adolescentes permaneceu estudando. Os demais, apesar de transferidos para outras escolas, não deram continuidade aos estudos.

No trabalho com os adolescentes, a equipe multidisciplinar acompanhava a situação geral e tentava marcar que também entre eles havia diferenças. Nesse processo identificou que um deles não estava gostando da escola e pedia para ser transferido. Também percebeu que o outro adolescente envolvido na briga parecia ter construído um laço com a escola, principalmente com a professora da turma. Ele a defendia e reclamava da indisciplina dos demais alunos durante as aulas.

As questões levantadas no trabalho desta equipe que se referiam a manter um dos adolescentes na escola, já que ele vinha frequentando o espaço com regularidade e construído um laço importante com os demais professores, não foram levadas em consideração na decisão da transferência dos alunos. Mesmo assim, foi dada continuidade ao projeto elaborado para esta instituição.

Em torno desta vinheta prática foram realizadas conversações com os participantes do laboratório Infância Errante e uma conversação no encontro de junho/2018 dos laboratórios do CIEN-Rio.

Do impasse inicial à transferência de dois dos três adolescentes para outras escolas, ficou para a equipe a pergunta sobre o manejo com os profissionais desta escola e com os alunos, assim como os efeitos do trabalho realizado.

O que fazer quando estamos diante de adolescentes numa turma de crianças? – este é um grande desafio para todos da rede de educação.

Conversar individualmente com os alunos é estigmatizar e “medicalizar”, no sentido de colocá-los sob o olhar da psicopatologia como sujeitos que apresentam “problemas” para permanecer na escola?

O que a instituição e os profissionais, inclusive a própria equipe multidisciplinar, podem fazer diante de impasses que resultam da política da “educação para todos” versus a singularidade de sujeitos para os quais é insuportável estar no espaço escolar?

Existe alguma forma de a escola acolher a todos os alunos em suas diferenças, e possibilitar que prossigam e concluam a formação escolar?

Uma questão fundamental surgiu nas conversações do laboratório: educar está entre os “impossíveis” apontados por Freud (1930), em sua leitura sobre o mal-estar na civilização.

A equipe se deu conta de que este impossível já estava posto desde o início e que nada havia a fazer no sentido de o solucionar, de o tornar possível. Restava somente contorná-lo.

“Eles não deveriam estar ali” foi a conclusão a que o laboratório chegou, ao final dessas conversações. E foi este o título dado ao cartaz elaborado a pedido do CIEN-Rio para a divulgação da conversação em que esta experiência pôde ser compartilhada com os participantes dos outros laboratórios.

“[…] Por que foram transferidos? Não deveriam estar ali? E onde, então, deveriam estar?” – pergunta o laboratório, no cartaz de divulgação.

A questão da impossibilidade de educar apareceu também nesta conversação com os outros laboratórios. E a indagação sobre onde os três adolescentes deveriam estar foi lida como “será que eles queriam estar ali?” Os dois episódios – a “crise” de um deles e a briga entre dois – não seriam uma forma de expressarem que já não queriam estar na escola?

Lacan (1963-64) ressalta a importância do Outro como um lugar em que o sujeito se constitui como ideal, um lugar em que ele se vê e fala. Em suas palavras: esse “ponto de onde o sujeito se vê amável” (LACAN, 1973, p. 255). Ponto fundamental para o adolescente se referenciar, onde ele pode “se ver digno de ser amado, e mesmo amável por um Outro que saiba dizer sim ao novo, ao real da libido que nele surge” (LACADÉE, 2011, p.46).

Em outras épocas, comenta Lacadée, o adolescente sonhava com o amor e com o ideal (2017). Hoje ele sonha com o último objeto gadget, objeto descartável que fixa o desejo em uma demanda insaciável. A cada ano, surge um novo modelo no mercado e “o adolescente pode experimentar a si mesmo como esse objeto descartável, em função de como é visto, como um objeto sem destino. É sobre estas bordas que a violência pode se desencadear” (p.125). A violência de não ser escutado no desejo de mudar de escola, por exemplo, porque o adolescente pede que o Outro, mesmo que inconsistente, autentique sua palavra em sua busca do que Lacadée, inspirado em Rimbaud, diz: na adolescência o sujeito busca uma fórmula e um lugar.

Na proposta de se estenderem para o CIEN os dispositivos da palavra fora da sessão analítica, Laurent (2002)[2] sustenta que “o dom da palavra é um dom ali onde isso não fala” e que é necessário que a causalidade psíquica seja reintroduzida em todos os lugares onde a palavra é eliminada.

O laboratório segue na aposta da palavra e das invenções singulares de cada um, tanto as dos adolescentes, quanto as dos profissionais que, por estarem com eles nas instituições, precisam também inventar soluções para os impasses que surgem para todos.


Bibliografia:
FREUD, Sigmund. . “O mal-estar na civilização”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACADÉE, Philippe. O despertar e o exílio – ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011
___________________. Los sufrimientos modernos del adolescente. San Martín: UNSAM EDITA, 2017
LACAN, Jacques. . “Os complexos familiares na formação do indivíduo” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003
___________________. . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1973
LAURENT, Éric. “El don de la palabra. Retomar la definición del proyecto del CIEN y examinar su situación actual”. II Colóquio do CIEN. El Niño – Revista del Instituto del Campo Freudiano, Barcelona, n. 10, 2002.
MAIA, Ana Martha. “Entre fugas e errâncias, um lugar para si”. Opção Lacaniana online. Escola Brasileira de Psicanálise. Nº8, 2012.
MILLER, Jacques-Alain; LAURENT, Éric. . El Otro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005
MILLER, Jacques-Alain.. “Em direção à adolescência”. In Opção Lacaniana, n 72. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, Edições Eolia, março de 2016.

[1] Participantes do laboratório: Ana Lucia East, Ana Martha Maia (responsável), José Alberto Ferreira (responsável), Keronlay Machado (responsável), Luciana Monnerat, Marcia Mendes e Natalia Muniz.
[2] Publicado em português: Laurent, E. Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. In: Brown, N; Macedo, L; Lyra, R. Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência: experiências do CIEN no Brasil. BH: EBP Ed., 2017.
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