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Juntos, não misturados

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Ana Prata
Soraya Alves Pereira[1]

 

O Laboratório Juntos, não misturados surgiu de uma interação entre psicanálise e direito, e da oferta à conversação a crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente em São João Del Rei – Minas Gerais.

Pus-me a cantar minha pena

Com uma palavra tão doce,

De maneira tão serena,

Que até Deus pensou que fosse

felicidade – e não pena.”

Cecília Meireles

Viver junto e não se perder no Outro, dividir um espaço comum, com regras e tratamentos comuns e não ser afastado de si mesmo, de sua mais íntima diferença. Como “ser junto” sem se misturar uns nos outros, mantendo suas vontades, seus gostos, modos de ser, de sofrer, de estar no mundo?

Desafios diários da vida num abrigo que acolhe crianças e adolescentes que não encontraram na família, por motivos de penúria financeira ou emocional, condições mínimas de cuidado e proteção. A convivência tão próxima e os abandonos passados, tão intensos e devastadores, fazem com que se ligar a um Outro dentro da instituição seja, muitas vezes, a saída para uma vida possível.

As jovens adolescentes que tomam parte no laboratório Juntos, não misturados enfrentam a difícil tarefa de se descolarem das insígnias a elas atribuídas: abandonadas, presas do abrigo, pobrezinhas, fadadas a repetirem a história dos pais. Desejam ser mais que isso e não sabem que caminhos seguir.

Nas conversações falam da convivência no abrigo, e da falta de perspectiva de uma vida em família. Vivendo juntas, aprendem que é em meio à ruína do ideal familiar e do mito de um amor que tudo acolhe e suporta que precisam construir laços possíveis de afeto, dentro e fora do abrigo.

A cada encontro do laboratório, contam suas fantasias, escancaram seus ideais e encaram sua realidade. Compartilham a angústia de perceber, nas visitas das mães, o mesmo desnorteamento, as mesmas dificuldades que levaram ao abrigamento, e de como preferem a interrupção de tais visitas, por se sentirem assim muito mais leves.

Cientes da impossibilidade de retorno à convivência familiar, vêm construindo, junto ao promotor da Infância e Juventude e a operadores do direito a possibilidade de viverem, ao completar de seus dezoito anos, numa moradia comum, subsidiada pelo Estado – frequentemente omisso e distante dos direitos tão caros a toda criança ou adolescente carente de recursos financeiros e afetivos.

Interessante notar como essas jovens vêm compreendendo, nesse tempo de abrigo, o funcionamento da justiça; é bonito ver como aprenderam a se valer dos recursos jurídicos. A cada encontro do laboratório tomam a palavra, demandam saber a quantas andam seus processos, reclamam pela demora de solução e sempre demonstram satisfação e alegria ao serem ouvidas – falando ao mesmo tempo, se repetindo, mas percebendo os pequenos e grandes detalhes que diferenciam cada situação individual, aprendendo, aos poucos, a dizer seu desejo.

Notamos que o mesmo acontece quando estão na presença do juiz, do promotor, das assistentes sociais e psicólogas, lançam suas questões, recebem valiosos esclarecimentos e, ainda que estes sejam difíceis de ouvir, demonstram alívio e satisfação por serem escutadas.

Em nossos encontros, é notável como a abertura de um espaço para falar, sem um saber prévio que oriente a conversação e a possibilidade de escolher o que dizer, atrai e estimula a participação de todas. Quando as coisas se atropelam e uma repete a fala da outra, riem e brincam: “ficou tudo tão misturado que não dá pra saber quem falou primeiro”; quando o que lhes vem por dentro, cada uma à sua vez e, por conta própria, encontra voz.

Nesses momentos, percebem que mesmo tendo tanto em comum, são diferentes e que por isso podem ter idéias e opiniões diversas uma das outras, conseguindo falar sobre as situações vividas, cada uma sob sua perspectiva. Um bom exemplo é quando nos questionam sobre namoro e sexualidade na adolescência e, à abertura da questão para todas, começam falando ao mesmo tempo, ou repetindo o que outra acabou de falar, discutindo, brigando, concordando, e aos poucos vão colocando suas idéias, suas fantasias, seus receios.

A vida no abrigo, às vezes duradoura demais, favorece uma forte identificação entre elas, com seus efeitos uniformes e constantes, favorecendo, como nos lembra Freud em Psicologia das massas e análise do eu, “a falta de autonomia e de iniciativa de cada indivíduo.” (1921- 2011, pág 77)

E a importância de uma maior independência tem sido colocada no centro da conversa, tanto com as adolescentes quanto com a coordenação do abrigo. A autonomia, sabemos, esbarra nas muitas e variadas medidas de proteção que orientam o acolhimento e o cuidado e que oferecem condições dignas de vida, até então quase sempre desconhecidas. A subtração da singularidade é um dos preços a pagar. A vida comum, regida por normas coletivas, que preveem tratamento igualitário, baseia-se na premissa de que o que serve para um deve servir para todos, uniformizando os procedimentos e deixando que se perca a riqueza das mais diversas manifestações individuais.

Não desconhecendo as dificuldades nem a responsabilidade de um acolhimento institucional de crianças e adolescentes, sob cuidado e proteção integral, acreditamos ser possível individualizar o tratamento ofertado articulando a necessidade, a demanda e o desejo de cada um. Os caminhos que os levaram até o abrigo não são os mesmos, mas compartilham necessidades concretas, como as de acomodação, alimentação, educação formal e saúde, e que podem ser atendidas de forma global (o que é por eles reconhecido e valorizado de forma evidente). Por outro lado, há demandas muito particulares, que dizem respeito ao modo de ser de cada um, que tocam seu desejo e que é muito importante não perder de vista, pois é o que faz com que sejam únicos.

Na vida no abrigo, estarem juntas e não misturadas aparece todo o tempo, ora como identificação imaginária aos sintomas, ora com atuações de toda ordem. Ou, ainda, ao lado do simbólico, quando, por exemplo, criaram um programa de emagrecimento e solicitaram permissão à coordenação para participar de aulas de Zumba, que acontecem numa praça próxima, lançando os corpos numa dança cheia de ritmo e alegria.

Os encontros no laboratório do Cien testemunham esse movimento dos corpos, que se agitam em sofrimento, mas também dançam em sintonia com as músicas que cantam, quando o espaço forense, onde acontecem os encontros, se enche de gingado e alegre entusiasmo.

A aposta do laboratório é que, em torno da conversação, às voltas com as incertezas da vida, possam emergir pequenos e inusitados saberes, íntimos, particulares, que respondam – ao menos um pouco – ao grande enigma da existência: que desejo habita em mim e como fazer caber esse desejo no mundo. Esse encontro com o próprio desejo, para além do desejo do Outro institucional ou social é que tem surgido nas conversações, quando suas fantasias sobre o futuro e sobre a vida fora do abrigo encontram lugar.

Algumas jovens demandam participar de cursos profissionalizantes, almejando uma autonomia financeira na vida futura, outras querem estudar e chegar à universidade, todas pensando numa vida que abrigue seus sonhos. Falam em morar juntas depois de sair do abrigo, trabalhando e cuidando da casa enquanto continuam os estudos: “família não é só o que a gente teve um dia, família somos todas nós que moramos juntas, a gente pode continuar assim até fora daqui”

Assim, muitas vezes soltas e destemidas ante uma realidade massificante e massacrante, as jovens de nosso laboratório seguem escrevendo sua história. Ora se enlaçam num “todos juntos” que sufoca, quando não conseguem ter voz própria e alienam seu desejo, umas no desejo das outras, quando passam a querer e ter o mesmo.  Ora soltam um pouco os laços, deixando advir o que lhes é mais particular, num “todos juntos” que integra e partilha. Descobrem os pequenos prazeres comuns (como a dança), vivem a vida – essa que insiste em seguir em frente, deixando, quem sabe, antever de soslaio dias mais felizes.

 

 


Referências
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923).São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[1] Coordenadora do Laboratório Juntos, não misturados Cien – Minas Gerais. Psicanalista. Psicóloga da vara da Infância e Juventude da comarca de São João Del-Rei – MG. Mestre em Conceitos fundamentais e Clínica Psicanalítica: Articulações, pela UFSJ – Universidade Federal de São João Del-Rei. e-mail: sorayaalvespereira@uol.com.br
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