Pedro Braccini Pereira[1] Não nos é habitual, para designar os adolescentes que vem nos ver…
A criança, os autismos e a instituição
Ana Martha Wilson Maia
“Nós, então, estamos o trazendo aqui porque queremos que ele aprenda a ler e a escrever, e frequente a escola, como as outras crianças” – este é o desejo dos pais, quando chegam com o filho autista, criança ou adolescente, no consultório de um analista. Podemos dizer que todos os pais desejam uma vida normal para o filho e que não é fácil o percurso de entrada na instituição escolar e a aprendizagem em si. Para os que apresentam maiores dificuldades com a linguagem e o laço social, às vezes se trata mesmo de uma impossibilidade.
Depois de uma série de tentativas frustradas, mudanças de escola, recusas (“não temos vaga” – escutam frequentemente) e, não raras as vezes, experiências com tratamentos cuja orientação visa o controle pulsional, o enquadramento a um padrão social, os pais chegam perdidos, angustiados, desesperançosos, alguns desesperados, e preocupados com o futuro do filho: “como será quando não estivermos mais aqui?’ O tempo passa, as crianças crescem.
O acesso do sujeito autista à educação e ao ensino profissionalizante é hoje garantido pela Lei 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Sua implementação tem trazido impasses para todos que estão vivendo esta experiência: pais, equipe pedagógica, colegas de turma e seus pais, além da própria criança.
Assim, a questão da inclusão é muitíssimo complexa, pois trata do tempo presente, o que se pode fazer hoje, e da perspectiva de um futuro enigmático e sombrio quando se percebe que para os “mais diferentes” pouco adianta insistir em um tratamento padrão. Pode-se obter como resultado que o sujeito consinta um pouco melhor com a presença do outro, que se apresente com uma conduta social “adequada”, durante certo tempo, sendo ele literalmente treinado para suportar o malestar que experimenta e se apresentar “menos louco”, mas sem que jamais se saiba o que ele deseja, pelo que se interessa, e até onde poderia ir em seu caminho de vida, caso lhe dirigissem a aposta de que poderia, a seu modo, avançar.
Loucura e morte
A loucura é uma das faces da segregação que é bem ilustrada pela leitura de Foucault (1972) sobre uma impactante imagem: “A Nau dos Loucos”, quadro de Jeronymus Bosch.
Foucault descreve a figura do louco como aquele que vivia errante, escorraçado de cidade em cidade, e às vezes entregue à grupos de mercadores, peregrinos ou navegantes. O louco era o “passageiro” ou o “prisioneiro da passagem” que, aparentemente acolhido, era na verdade recolhido em prisões para que não ficasse vagando com sua loucura obscena, exposta. Ele se transformava, desta maneira, em “prisioneiro de sua própria partida”.
Por isso a forma como a loucura apareceu no imaginário da Renascença: Narrenschiff é um estranho barco deslizando ao longo dos rios da Renânia e dos canais flamengos, na tela de Bosch, que faz série com a “Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza” e a “Nau das Damas Virtuosas”.
Há, todavia, uma diferença entre Narrenschiff e as outras naus: ela de fato existiu. Não foi apenas uma criação artística. Em uma barca louca, o prisioneiro da passagem tinha como destino um outro lugar em que também não havia lugar para ele. Como um lugar de passagem é um limiar entre um dentro e um fora, um interior e um exterior, restava para o louco um “entre-lugar’, na medida em que representava uma ameaça, o incontrolável, a morte.
Traçando a “História da loucura”, Foucault mostra que a representação da morte atravessa a cultura ao longo do tempo de diferentes formas. Se o leproso era a presença viva da morte, mais tarde o desatino da loucura veio substituir a lepra, marcando uma virada no interior de uma mesma “inquietude humana”.
Liberdade e segregação na infância
Foi em uma Jornada organizada por Maud Mannoni (1968) que Lacan proferiu a “Alocução sobre as psicoses da criança”. Este texto e “Nota sobre a criança” são referências fundamentais de seu ensino para a psicanálise com crianças.
Ao final desta Jornada, Lacan circunscreve que a liberdade está no centro da questão que entrelaça a criança, a psicose e a instituição, comentando que foi desenvolvida durante a apresentação dos trabalhos em “uma perspectiva meio estreita” (p.360) pelos analistas ingleses. A crítica de Lacan incide precisamente neste entrelaçamento, na medida em que os autores não articularam a clínica com a teoria a respeito da relação sexual, do inconsciente e do gozo. Ele, então, lança a pergunta: “será que essa liberdade, suscitada, sugerida por uma certa prática dirigida a estes sujeitos, não traz em si seu limite e seu engodo?” E afirma que o valor da psicanálise está justamente em operar com a fantasia e o gozo, e que o progresso da ciência tende à segregação, o que nos leva aos manuais de classificação diagnóstica e às etiquetas que passam a acompanhar o sujeito por onde passe, deixando-o à margem da norma, segregado.
Por exemplo, nunca se falou, se publicou, se etiquetou tantas crianças e adolescentes com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como agora. São muitas as hipóteses sobre sua causa, mas não se pode dizer que há uma causa específica, na medida em que o autismo só se pode dizer no plural e que não há como reduzir o singular ao reconhecimento de alguns sinais. Neste sentido, mesmo que sejam criados novos métodos de avaliação, a generalização do autismo não se sustenta.
Lacan (1953) já havia marcado uma estreita relação entre a loucura e a liberdade. Em suas palavras: “longe de ser para a liberdade um insulto, a loucura é sua fiel companheira, segue-lhe o movimento como uma sombra. E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a loucura, como não seria o ser do homem se não carregasse em si a loucura como limite de sua liberdade” (p.177).
Inconsciente à céu aberto, livre, como pode uma criança psicótica, autista ou que apresente uma neurose grave, estar em uma instituição se a loucura marca o limite de sua liberdade? Que instituição está à altura de acolhê-la? “Como fazer para que as massas humanas, fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas?” (Lacan, 1967). O respeito à diferença está em jogo e as diferentes formas de segregação falam do ódio ao gozo do Outro.
Autismos e inclusão
“O que faz com que este Outro seja Outro para que se possa o odiar em seu ser?” (p.53) – pergunta Miller (2010), em seu curso Extimidad. “Se odeia especialmente a maneira particular de que o Outro goza”, prossegue ele, do que podemos extrair que o que fica de fora, segregado, é o mais íntimo de cada um, seu modo de gozo. O autismo é um modo de ser diferente. E como incomoda aos outros o uso que o sujeito faz de seu objeto privilegiado! Lembremos de Temple Grandin (2010) que teve jogada no lixo da universidade sua “máquina do abraço”.
A relativamente recente criação da função de mediação na escola tem movimentado debates, como aconteceu durante o Fórum “O que é o autismo, hoje?” (2017). Qual a função do mediador escolar? O que é, e para quem é a mediação: para o autista, o professor ou os colegas da turma? Em que medida esta função se assemelha à função do duplo nos autismos? E se agora a lei obriga a escola a acolher o portador de TEA, é possível para o educador trabalhar com o “diferente” quando não deseja?
Muitas questões surgiram e os participantes saíram com a certeza de que o Fórum foi um espaço de trabalho que promoveu um debate clínico, epistêmico e político importante, e que estreitou laços de trabalho entre profissionais e pais de autistas. A mesa das mães foi emocionante.
Mas o que de fato surpreendeu foi a apresentação de dois jovens adultos. Henrique ao piano e Beatriz na voz mostraram, através da música, o efeito do trabalho que realizam em análise e como a psicanálise de orientação lacaniana é uma possível abordagem no tratamento dos autismos, única em sua aposta nas invenções singulares do ser falante, a partir do modo de gozo de cada um.
Na direção de uma das músicas que apresentaram, seguimos com eles:
“É saber se sentir infinito
Num universo tão vasto e bonito, é saber sonhar.
Então fazer valer a pena
Cada verso daquele poema sobre acreditar.”
Trem bala, Ana Vilela