Maria Rita Guimarães Caro leitor e amigo do Cien Digital, Este número que agora lhe…
A Prática de Laboratório do CIEN: uma abertura para o desejo de saber.
Siglia Cruz de Sá Leão.
A prática dos laboratórios do CIEN aparece como uma resposta do Campo Freudiano às urgências e exigências que o mestre contemporâneo faz recair sobre as crianças e os adolescentes. O laboratório é o nome que damos ao espaço, à instância de encontro das diferentes disciplinas, cuja experiência torna-se inédita por ser sustentada pelo “não saber” – para tanto, apostamos na presença da psicanálise enquanto discurso que pode manter o lugar vazio e tirar consequências do desejo de saber.
Esta orientação promove inquietação nos profissionais das diversas áreas que se aproximam do CIEN, não por acaso. Afinal, o que está em questão é o próprio estatuto do saber na atualidade, em um tempo marcado pelo apelo ao utilitário, à produção de respostas generalizantes, “válidas para todos” e que sejam também tranqüilizadoras, rápidas. Saber(es) que vêm sendo progressivamente infiltrado(s) pelo discurso da avaliação, por práticas tecnológica/políticas, que têm, dentre outros, o efeito de silenciar o impossível de dizer que por ali se agita. Respostas prontas; sujeitos categorizados.
A aposta é que a interdisciplinaridade, tal como concebida no CIEN pode fazer frente a este fenômeno característico de nossa época e favorecer uma práxis que possibilite a emergência de um novo saber, que não o das categorias.
Uma prática da interdisciplinariedade que não é como outra qualquer, como aquela presente no cotidiano institucional – a multidisciplinar, ou seja, a reunião de várias disciplinas que possam dar conta do que acontece. Enfim, a interdisciplinaridade é uma prática distinta que carrega o traço de sua distinção na grafia da palavra inter-disciplinaridade[1], grafada com hífen, contrariando a norma gramatical, justamente para fazer marcar a abertura, uma abertura no opaco das disciplinas.
Nesta proposta, é o desafio poder sustentar esse hífen operador, esse lugar vazio, o que implica, nos diz Laurent, que não se trata de agregar a verdade de uma disciplina a outra, nem mesmo a psicanalítica[2]. Nenhum saber a mais, tampouco o da psicanálise a fechar a brecha do não saber aberta pelos pontos de impasse que enfrentamos.
No laboratório, este uso particular dos saberes, em uma conversação, promove uma “elaboração provocada entre vários”[3], de maneira que cada disciplina possa interrogar-se e ser permanentemente interrogada, pela outra, em seus pressupostos e teses. A aposta é que possa acontecer certo deslocamento do seu saber mestre, um certo “desarranjo nas identificações”[4] mais ou menos obscuras de cada um em relação ao seu próprio saber. É nesse ponto, muitas vezes, que pode surgir o saber da criança como uma bússola.
A experiência de um Laboratório
Nomeado “A Criança e as Ficções Jurídicas”, este laboratório centrou seu campo de investigação nos modos de incidência do discurso do Direito sobre a criança, os efeitos e impasses daí advindos. O termo “ficções jurídicas” designa as medidas de proteção às crianças e adolescentes, inspiradas e regidas pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e que estão organizadas de maneira própria em cada país – no caso do Brasil, estão formuladas no ECA.
Este laboratório mobilizou a participação de profissionais de alguma maneira atravessados pelo discurso jurídico, em sua atuação junto a crianças e adolescentes: psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, advogados e psicanalistas, profissionais estes com atuação no Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Publica, em ONGs de defesa dos direitos das crianças, em projetos sociais voltados ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, programas municipais de assistência social, instituições de saúde e de educação. Buscam o CIEN movidos por alguma inquietação, ansiosos por alguma resposta às dificuldades que enfrentam em sua prática cotidiana, ou interessados no intercâmbio com a Outra disciplina.
A conversação, que transcorre no interior do laboratório, acontece sobre um tema lançado à discussão, um texto-pretexto ou prioritariamente em torno de impasses que os profissionais enfrentam em sua prática cotidiana, oriundos não só dos atendimentos as crianças, mas também da aplicação de leis e normativas que se impõem e atravessam suas ações, provocando certo desnorteio – o foco principal é, pois, a posição do profissional frente às demandas que lhe são colocadas em um dispositivo jurídico.
Qual a medida?
Um adolescente de 14 anos é encaminhando à Fundação Casa após brigar na escola e no abrigo onde se encontrava. A medida era excessiva, desproporcional ao acontecido – a assistente social que acompanhava a família em um Projeto Social apresenta tal situação no Laboratório. O adolescente (na época, uma criança) e sua família começaram a ser atendidos por estarem em situação de rua, na “Cracolândia”. Os pais, usuários de drogas. A mãe, presa algumas vezes. Ele e os quatro irmãos acabaram abrigados. Após algum tempo, as visitas dos pais foram suspensas judicialmente, por descumprimento das regras do abrigo. O adolescente começou a manifestar “problemas de comportamento”, sendo descrito pelo coordenador da instituição acolhedora (que tentou transferi-lo diversas vezes) como agressivo e perigoso; e outras etiquetas passaram a compor seu “prontuário”: impulsivo, sedutor, dissimulado, hipercinético, delinquente, abusador. A partir da conversação no Laboratório, ficaram evidentes os significantes mestres institucionais, o ideal que se sobrepunha à prática de cada profissional, apagando seu saber-fazer, impedindo a criatividade no encontro com o outro. Imersos em protocolos pré-estabelecidos e em busca do comportamento padrão, é a gravidade suposta das ações do adolescente que sobe à cena; ele desaparece – não havia nenhum registro de suas falas na instituição. Os únicos dados eram psiquiátricos, apesar de ter sido atendido por diferentes profissionais, psicólogos e educadores.
A assistente social se surpreende com essa sua descoberta durante a conversação. Na própria instituição em que ele era tratado (a que ela trabalhava) e que tinha como uma das metas defende-lo da segregação a que poderia estar exposto nas outras instituições, repetia-se o mesmo, isto é, a segregação. O sujeito obliterado por práticas, que ao final, concluiu-se, estavam impregnadas pelo afã de seu controle, o controle social.
Conseqüência da conversação, a profissional vai evidenciando para todos os envolvidos no atendimento que ninguém sabia nada do adolescente – estava coberto de diagnósticos e pelo barulho dos acontecimentos em que se envolvia. O que se via era a medida que extrapolava; e à medida em que extrapolava, fazia-se ver.
A partir de sua posição única, “descompletada” de sua equipe, a assistente social fez-se destinatária, na contingência de um encontro com esse adolescente, da enunciação, por ele, de seu lugar de sobra: “os BOs sobram para mim”. Ele que sobrou com seus irmãos no abrigo, sem família, sem adoção no desejo do Outro. Partindo de seu campo de saber e lugar institucional, essa profissional lhe propõe então ajudá-la a separar as fotos de sua família para montar o álbum de um projeto do qual ele participava no abrigo: o “Fazendo História”. Ele topa, se alegra, se recompõe.
Sustentar esse encontro com o Real insuportável, que não se domestica, buscando um modo, o seu modo de fazer com o obstáculo, foi um dos efeitos para esta profissional concernida nesta situação. Assim, a própria orientação inter-disciplinar busca dar um sentido a esse real, diverso do universal, para que o trabalho continue.
O tempo, a medida… Qual?
Em funcionamento desde 2004, esse laboratório encontrou, em 2015, seu tempo final. Como localizar esse tempo? Qual a medida?
Mantido o princípio da conversação inter-disciplinar, os laboratórios funcionam nos mais diversos tempos, estilos, locais. Há laboratórios pontuais, há aqueles mais perenes, há conversações feitas somente com os profissionais, há aquelas em que participam também as crianças e os adolescentes.
O que mantém o laboratório vivo são os impasses – sua coluna vertebral. Sem eles, o laboratório deixa de o ser; perde sua função. Se é função do laboratório arejar os saberes consolidados das disciplinas, quando os impasses foram se aquietando, restava escutar do que se tratava esse silêncio. A escuta levou a dedução do encaminhamento a ser dado: diferentes profissionais implicados com suas práticas, menos “asfixiados”, o laboratório ainda estava em funcionamento, mas já era o seu tempo final. Era o meu momento de concluir e sustentar que não daríamos consistência ali a outras demandas que levariam, equivocadamente, a fazer consistir uma disciplina, a da psicanálise.