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Na era do tecnopoder: Hello Barbie!

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Danielle Carcav, A cage is a cage?, 2009
Maria Rita Guimarães

Uma recente novidade  irrompida no devassado reino das crianças, cada vez mais visado pela indústria tecnológica no segmento  dos brinquedos , está gerando uma interessante e bem vinda polêmica.

Em fevereiro ( 2015) a fabricante Mattel, dona da Barbie, apresentou na anual  feira novaiorquina de brinquedos a nova versão da  célebre boneca. Barbie, desde sua criação “marcou uma ruptura nas práticas sociais e na socialização das meninas”1.

Não é de agora, portanto, que sua presença perturba. Desde o pós-guerra Barbie traduz, de forma fulgurante, os ares dos tempos que avançam, desesperados, rumo ao máximo do consumismo. Em 2015 não é diferente: Barbie conecta-se à internet via wifi e, através da tecnologia de reconhecimento de voz, conversa. Com quem?

Aqui, tocamos no ponto ético que provoca a polêmica pois, sob a aparente inocência de um jogo de criança com sua boneca, quase despudoradamente mostra-se o princípio que rege nossa contemporaneidade: transformar o que até o momento conhecemos como mundo, em uma espetacular plataforma planetária, com finalidades inquietantes.

Perguntaríamos : “Até tu, Barbie?” se de nada suspeitássemos de seu poder emblemático, exercido sobre as crianças de todo o mundo. No entanto, a nova Barbie veio alinhada à ruptura da fronteira público / privado  que aconteceu a partir da colossal coleta de dados que se verifica através desses gadgets conectados para usos diversos. A Hello Barbie seria mais um desses objetos e conversaria, sobretudo, com os integrantes da Toy Talk, a parceira de tecnologia da Mattel.

John Chamberlain, The Devil and the Deep Blue Sea, 1983

Zigmund Bauman apóia-se na definição da Wikipédia2 inglesa do conceito  privacidade para desenvolver as diferenças entre os conceitos de “público” e “privado” e nos fala de sua interface.

Esses dois campos semânticos, antagônicos, conduz à formulações que remetem à interface – iniliminável até então -, entre as fronteiras, os limites e o tráfego entre eles. Na atualidade, devido às inovações tecnológicas, como ficam tais fronteiras?  Não é fácil percebê-las. Não obstante, facilmente identificamos o incalculável tráfego de dados que alimentam a hiper-tecnologia e que, das “nuvens”, recobre todo o universo como uma sombra que horroriza e fascina ao mesmo tempo.

Tal como afirma Eric Sadin:3

Entramos em uma nova era na história da digitalização, que vê uma proliferação de sensores e de objetos conectados registrarem a maior parte de nossos gestos e ações. É o nosso smartphone, que nos localiza geograficamente; o relógio conectado da Apple que registra os nossos ritmos; a balança transformada em personal digital ou os garfos que analisam a nossa alimentação e avisam de um ritmo dabsorção demasiado rápido. O resultado é que permanentemente disseminamos fluxos exponenciais de dados que são tratados por algoritmos cada vez mais sofisticados, encarregados de nos sugerir ofertas e serviços personalizados. Esta “inteligência da técnica” pretende otimizar, fluidificar e proteger o nosso cotidiano individual e coletivo, um pouco como um mordomo digital que ficasse cada vez mais e mais diretivo.4

Antônio Lee, Tricicla

Nesse contexto de “tecnopoder” estaria a nova Barbie, segundo as críticas que sua apresentação sofreu e vem sofrendo. O microfone embutido em seu corpo é capaz de captar tudo o que é dito por aquele que estiver em sua proximidade. Caberá  à Toy Talk  interpretar e armazenar as frases ouvidas: serão usadas na formulação de uma resposta pré-gravada dita pela boneca à criança que a tem, simulando uma conversa.

A Mattel afirma que o maior desejo das crianças seria falar com a Barbie e que, agora, não se sentirão sozinhas. A fabricante aprenderá tudo sobre elas: o que gostam, aquilo de que não gostam e lhes  dará retorno disso  via o alto falante embutido.

Tal próposito evidencia o quão exatas são as palavras de Eric Sadin quando afirma que a meta consiste justamente em buscar a otimização de nossos   gestos e ações, tal como se alguém, ao passar perto de uma loja de calçados já encontrasse ali uma oferta que corresponderia a seu perfil. Esse seria o aspecto mais perturbador da relação que podemos manter com as tecnologias contemporâneas, já que o poder que lhes damos é o de, cada vez com mais liberdade, orientar a nossa vida.

Heike-Karin Föll

Hello Barbie!

Uma rápida recuperação do curriculum vitae de Barbie nos esclarece porque a repercussão à chegada de sua versão tecnológica está produzindo profundo mal estar nos meios sociais e de defesa dos interesse da privacidade, especialmente aqueles relacionados às crianças.

Do belo ensaio de Marianne Debouzy5 – A Boneca Barbie – destacamos alguns pontos que marcam sua particularidade no mundo da infância.

  1. Ela faz a substituição do modelo “boneca criança” ao “boneca /mulher”. Tem uma idade indeterminada, pretendidamente adolescente, mais em realidade uma mulher. Estilo “sexy”e pin up. Apesar da vasta família que habilmente se vai constituindo em seu entorno, pai e/ou mãe estão ausentes.
  2. Os  anos 50 – quando  “nasce” Barbie – , são aqueles nos quais  se descobre a importância da adolescência, ao mesmo tempo em que avança uma exploracão comercial sem precedentes do estilo de vida adotado pelos jovens. Barbie vai fazer as típicas atividades daqueles: dançar rock, trabalhar de baby sitter, etc
  3.  Nos anos 70 Barbie estuda para, na década dos 80, ser uma mulher realizada profissionalmente, conservando, no entanto, os emblemas do ideal feminino de que se fêz portadora.
  4. Apesar da impressão de uma multiplicidade de Barbies, são apenas pequenas modificações sobre uma boneca de base, em fidelidade com uma silhueta que afirmam ser improvável existir. De fato, podemos nos dar conta de como o noticiário se ocupa da infelicidade em que mergulham alguns jovens com a finalidade de incarnarem tal “improvável perfeição “representada por Barbie e/ou Ken. De boneca/mulher a mulher/boneca.De qualquer maneira as mudanças operadas nos modelos Barbie, se pequenas, acompanham, inversamente proporcional, o tamanho de seu valor comercial, movimentando astronômicas cifras com seus acessórios, com a moda e, igualmente com as parcerias empresariais como Disney, Benneton etc.
  5. Simplificando muitíssimo as estatísticas do valor merchandise de Barbie, basta que nos lembremos que ela é vendida em mais de cem países e, segundo consta pela imprensa, cada criança americana teria em torno de 7 bonecas Barbie; a francesa, de 3 a 11 anos – 2; a italiana 3; a alemã, 3. A distribuição entre as crianças “que não têm nenhuma Barbie” fica assim: 14% na França; 2% na Alemanha; 3% nos EUA; 4% na Itália.
Takashi Murakami, sculpture of miss

Hello Barbie, uma espiã?

Porque a imprensa alemã comparou a Hello Barbie que será lançada já em novembro, com venda prevista inicialmente nos EUA, com um informante da Stasi?

Segundo Susan Linn que é diretora executiva da Campanha por uma Infância Livre de Comerciais (Campaign for a Commercial-free Childhood), o fato de Mattel e Toy Talk estarem se envolvendo no que resulta em vigilância corporativa de como as crianças brincam com suas bonecas, deixa crianças e famílias vulneráveis a violações potenciais como quebra de segurança, publicidade insidiosa e outras.6

Mattel fala de sua política de privacidade em relação às conversas ouvidas pela Barbie, comprometendo-se a enviar emails aos pais dando a eles a oportunidade de conhecê-las. Susan Linn diz não poder imaginar o que seria uma boa política nesse aspecto quando o fato é que há uma corporação ouvindo crianças brincarem. Ela salienta que “são atividades mais íntimas das crianças, além de conversas privadas da família. “Como serão interpretadas as encenações de violência ou sexuais, presentes nas atividades lúdicas das crianças?”

Vislumbra-se um grande desdobramento ético a ser discutido no horizonte das conversas entre Hello Barbie e suas futuras donas.


Notas:

1  LINN, Susan. – O ESTADO DE S. PAULO – 21 Março 2015 | Acessado em 10/07/2015. http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,agente-barbie,1655077

2  BAUMAN, Zygmunt. Estranha Aventura da privacidade in 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, RJ, Jorge Zahar Editor, 2011.
“Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar–se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado a esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há  nela algo que se considera inerentemente especial ou pessoal…A privacidade pode entendida como um aspecto da segurança- pelo qual se torna clara, em geral, a equivalência entre os interesses de um grupo e os de outro grupo.”

3  Escritor, ensaista e filosofo francês. Especialista na questão digital. Tradução nossa. Acessível em http://www.liberation.fr/economie/2015/03/22/il-est-imperatif-de-contenir-la-puissance-du-technopouvoir_1226071

4  Eric Sadin. Entrevista à Carta Maior. Acessível em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-duplicacao-digital-do-mundo-e-os-seus-riscos/6/29513

5  Marianne DEBOUZY é professora de história americana na Universidadede Paris 8, Vincenne-Saint-Denis. Entre outros livros da autora, encontra-se Le Capitalisme “sauvage” aux Etats-Unis (1860-1900)

6  LINN, Susan. – Obra citada.
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