ISSN 2178-499X
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Editorial – Agosto 2015

by cien_digital in Cien Digital #18, Editorial

Helen Levitt, “New York c. 1943”

Maria Rita Guimarães

Caro leitor e amigo do Cien Digital,

Extra! Extra! Assim os antigos – parece que é uma espécie em extinção – vendedores de jornais – impressos, claro!, apenas eles existiam – anunciavam uma edição extraordinária, fosse pela tiragem avulsa, fosse por uma matéria capaz de provocar efeitos de leitura (e, claro! de leitores) e, às vezes, essa última era a razão da primeira, ou seja, de que houvesse uma nova tiragem.

 

O número 18 do Cien Digital gostaria de relembrar o grito Extra!, por se tratar de uma edição que queremos que lhe surpreenda pela agilidade dos textos curtos, pelo frescor de muitas formulações que encontramos em seus textos e, por que não dizer? – pela notícia em primeira mão – ( linguagem daquela época: hoje como dar notícias em primeira mão, em tempos de tempo real? ) Em tempo real soubemos que, por ocasião do PIPOL 7, em Bruxelas, Claudine Valette-Damase, Presidente do CIEN Francofono convidou a todos: um encontro irrecusável na Livraria do evento para lançamento da brochura “Des enfants parlent! Et ils ont de quoi dire’, edição em francês do livro “Crianças falam! E têm o que dizer” publicado pelo Cien-Brasil.

Não é uma notícia que toca a comunidade de trabalho do Cien no Brasil? Leiam a nota completa, escrita por Ana Lydia e Fernanda Otoni, organizadores do livro “Crianças falam! E têm o que dizer”.

Mas este número do Cien Digital também insiste em convocar cada um de seus leitores ao debate sério, vigoroso e atualíssimo que o Cien propôs para sua VII Jornada Internacional que acontecerá em 3 de setembro, em São Paulo. Crianças saturadas é o anúncio emblemático dos sintomas contemporâneos que se manifestam na vida cotidiana de todos nós, em grande parte sob o manto de graciosa inocência ou da tirania da felicidade1. Ou, por que não dizer?, sob o manto da biopolítica, tal como foi proposto por Foucault.

A gestão da população, inclusive se consideramos as estruturas governamentais que, cada vez mais, tomam a seu encargo questões até então situadas como sendo de natureza privada ( por exemplo, a determinação judicial que “avalia” as condições dos estragos do desejo materno para ratificar ou retirar a condição de mãe junto à criança ), revela-se particularmente destinada às crianças.

Bruce Nauman, Five Marching Men, 1985

Trata-se de uma gestão técnica sob o imperativo da mais absoluta objetividade e objetalidade do ser falante.

“Sim, “Simplesmente, faça-o!” parece hoje a fórmula, tão vazia quanto imediata em sua formulação, com que economistas e políticos, higienistas e científicos alimentam, muitas vêzes, o imperativo do Supereu.” Essa afirmação de Miquel Bassols, – convidado internacional para a Jornada do Cien – ilumina o contexto atual no qual “a economia de nossa época e seus fracassos parecem seguir um roteiro escrito linha por linha por uma instância tão obscena e feroz.” As citações estão no texto que você poderá ler agora, no Hífen, e se chama A voz do Supereu: Just Do It!

Lucíola Freitas de Macêdo, membro da Coordenação do Cien Brasil, também está no Hífen, com o texto Imagem e significante: enlaces e desenlaces. Já teríamos nos perguntado sobre o que advém das novas tecnologias digitais como efeito na prática da palavra? É impossível não ter pressa para lê-lo, até porque a autora nos introduz em sua argumentação por um acontecimento em tempo real, cuja cena está acessível no You Tube.

Cristina Drummond coordena a XIX Jornadas da EBP-MG, O que quer a mãe hoje?, e ENTRE-vista foi registrar suas ideias e reflexões na interface dos campos anunciados pelos títulos das duas Jornadas. A primeira pergunta já indica um link a ser pesquisado: Você encontra uma relação entre o estado de saturação das crianças e o modo como as mães educam seus filhos hoje?

Crianças Amos?  Vejam como elas nos são apresentadas por Adela Fryd em seu artigo publicado no Papers 9, do qual trazemos uma resenha escrita por Margarete Miranda.

Um amo absoluto para nossas vidas chegou para ficar: a chamada Internet das Coisas ( IoTS – Internet of Things and Services ) vai muito além da conexão dos computadores, smartphones, etc, mas potencialmente é capaz de ligar todos os objetos existentes no mundo. De fato, o “tecnopoder” se instala em todos os setores da vida humana, desde a possibilidade de que sua geladeira indique quais os alimentos que estão faltando aos terrores noturnos das crianças que desaparecerão através de um gadget conectado ao smartphone dos pais. Nesse contexto, surge a Hello Barbie! Leia o texto de Maria Rita Guimarães e opine sobre a nova Barbie.

A rubrica LABOR(a)tórios apresenta algumas de suas atividades em pequenos extratos, em um convite a que não deixe de participar do trabalho do Cien nas várias possibilidades abertas pela inter-disciplinariedade. Boa leitura!

Desejamos-lhe boa leitura !


Notas:
1   Conforme o título de um texto de Graciela Brosky
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Bibliografia Instigante – VII Jornada Internacional do CIEN – Crianças Saturadas

by cien_digital in Bibliografia, Cien Digital #18

VII Jornada Internacional do CIEN
Crianças Saturadas

Siglia Leão

A Jornada Internacional do CIEN se aproxima! Algumas referências cuidadosamente pinçadas pelos colegas Hernán Vilar, Mônica Hage e Virgínia Carvalho subsidiam nossas reflexões. Os textos sugeridos falam ao CIEN! Vocês encontrarão, dentre as indicações, escritos que transmitem a viva prática dos laboratórios, que retomam princípios fundamentais, textos de orientação e que iluminam as questões que nos são caras no cotidiano do trabalho empreendido com crianças e adolescentes, no momento atual. Notadamente, textos que instingam reflexões sobre o tema proposto: crianças saturadas por imagens, objetos, saberes, demandas.

Ainda, vale notar, referências que foram extraídas de psicanalistas, que fazem marca na história do CIEN, dando-lhe sustentação. Transitam por um espaço inter-disciplinar, abrem-se ao diálogo com as diferentes áreas do conhecimento e, na esteira dos ensinamentos de Lacan, assumem seu lugar na cidade, posicionando-se ali onde se apresentam os impasses de sua época. Freud e Lacan que, cada um ao seu modo, sempre estiveram à altura de seu tempo, na consideração das questões políticas e sociais. A eles, claro, também se faz referência em textos que particularmente se articulam com a temática das crianças, sua constituição subjetiva, seu lugar na contemporaneidade, o discurso em que estão enredadas.

 

Referências Bibliográficas:

AROMI, Anna. Imperio del número y pulsión de muerte. In: Psicoanálisis e Hipermodernidad. Caracas: Pomaire, 2008.

DOSSIER Protocolos.  Revista El Niño, n.13. Buenos Aires,  2013.

BASSOLS, Miquel. La infancia bajo control. Revista El Niño, n. 13. Buenos Aires,  2013.

BASSOLS , Miquel. O império das imagens e o gozo do corpo falante. In: Textos do VII Enapol. Disponível em: http://oimperiodasimagens.com.br.

BASSOLS, Miquel. Soledades II. Disponível em: http://miquelbassols.blogspot.com.br/2009/11/soledades-ii.html.

BASSOLS, Miquel. Trauma nos corpos, violência nas cidades. In: Textos de orientação para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano. Disponível em: http://freudiano.org.br/p/m3.html

BRISSET, Fernanda Otoni; SANTIAGO, Ana Lydia; MILLER, Judith. Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte: Scriptum, 2013.

COCCOZ, Vilma. Asuntos de Familia. In: Psicoanálisis e Hipermodernidad. Caracas: Pomaire, 2008.

SILVA, Rómulo Ferreira da. Del humanismo a la acción lacaniana. Cuaderno 7 del CIEN, “Me incluyo desde afuera”. Buenos Aires, 2014.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

INDART, Juan Carlos. Puntuaciones y Perspectivas. Cuaderno 7 del CIEN, “Me incluyo desde afuera”. Buenos Aires, 2014.

INDART, Juan Carlos. Un tiempo que se lleve suficientemente bien con el goce. Revista El Niño, n. 12.  Buenos Aires,  2011.

LACADÉE, Phillipe. A bússola do sim e do não. CIEN-Digital, n.16. Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/n16/hifen.html .

LACAN, Jacques. Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2003.

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: Outros escritos. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2003.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 10: A angústia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

LACAN, Jacques. O seminario, livro 17: o avesso da psicanalise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992.

LAURENT, Eric. A  análise de crianças e a paixão familiar. In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.

LAURENT, Eric. A criança no avesso das famílias. In ALVARENGA, E., FAVRET E., CARDENAS, M.H. A variedade da prática: do tipo clínico ao caso único em psicanálise. Terceiro encontro Americano, XV Encontro Internacional do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2007.

LAURENT, Eric. As novas inscrições do sofrimento das crianças. In: A sociedade do sintoma. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2007.

LAURENT, Eric. A crise do controle da infância. In: Crianças falam! e têm o que dizerBelo Horizonte: Scriptum, 2013.

LAURENT, Eric. Desencerrar, no predicar. Cuaderno 6 del CIEN, “Modos de Encierro”. Buenos Aires, 2009.

LAURENT, Eric. A cada uno su punto de excepción. Cuaderno 7 del CIEN, “Me incluyo desde afuera”. Buenos Aires, 2014.

LAURENT, Eric. El Superyó a medida: una entrevista con Eric Laurent sobre el nuevo orden simbólico en el siglo XXI. Agente Revista de Psicanálise, n.7. Disponível em: http://www.institutopsicanalisebahia.com.br/agente/07/entrevista_esp.html.

MILLER, Jacques-.Alain. A criança e o saber. CIEN-Digital, n.11, jan. 2012. Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/ciendigital/pdf/CIEN-Digital11.pdf .

MILLER, Jacques-Alain. Em direção à adolescência. maio 2015. Disponível em: http://minascomlacan.com.br/publicacoes/em-direcao-a-adolescencia/ .

MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. Vídeo disponível em (francês): http://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2745&intIdiomaArticulo=9 .

CIEN Digital. Apresentação, Judith Miller nos diz o que é o CIEN. CIEN Digital, n.2, dez 2007.

CARTELLE, Javier Peteiro. Anular al Sujeto. Revista El Niño, n.12. Buenos Aires,  2011.

SANTIAGO, Ana Lydia; MEZÊNCIO, Márcia de Souza. A psicanálise do hiperativo e do desatento, com Lacan. Belo Horizonte: Scriptum, 2013.

SANTIAGO, Ana Lydia. Entre a saúde mental e a educação: abordagem clínica e pedagógica de sintomas na escola nomeados por dificuldades de aprendizagem e distúrbios de comportamento. In: SANTIAGO, Ana Lydia e CAMPOS, Regina Helena de Freitas. Educação de crianças e jovens na contemporaneidade. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas, 2011, p.93-99.

SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SINATRA, Ernesto. Las tribus urbanas, micrototalidades de goce. In: L@s nuev@s adict@s. Buenos Aires: Tres Haches, 2014.

UDENIO, Beatriz. Tu, no serás comparado (comentario Curso Jacques-Alain Miller). Revista El Niño, n.12. Buenos Aires,  2011.

VERAS, Marcelo. A medicalização ou a vida?. Disponível em http://minascomlacan.com.br/blog/a-patologia-da-vida-cotidiana/.

VILAR, Hernán. Las ropas nuevas del Amo. Revista El Niño, n. 11. Buenos Aires,  2009.

VILAR, Hernán. Tres notas sobre el empuje a la hiperdisciplina. EnterCIEN, n.6, Nueva Serie. Disponível em: http://entercien.blogspot.com.ar/.

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A voz do Supereu: Just Do It!

by cien_digital in Cien Digital #18, Hífen

Ryder Ripps, Hourglass, 2014

Miquel Bassols

O conceito de Supereu não é claro nem transparente, merece ser recenseado tanto na obra de Freud como no ensino de Lacan e na própria história da clínica. Há uma história do supereu que se faz presente na variação dos sintomas dos quais ele mesmo se alimenta. Existe o supereu freudiano que proíbe um gozo de uma maneira sempre impossível de realizar por completo, com essa lei louca que diz ao sujeito masculino: “assim, como o pai, deves ser; e assim, como o pai, não deves ser“ ( FREUD em O Eu e o Isso, 1923 ). É o supereu que proíbe, mas que também obriga, colocando o sujeito num dilema impossível de resolver: deves fazer A e, ao mesmo tempo, não A.

A concepção lacaniana do Supereu logo realizou um deslocamento desde o clássico supereu entendido como proibição de um gozo para o supereu, muito mais atual, entendido como imperativo que finalmente impõe ao sujeito um gozo igualmente impossível de obter. Vivemos, é certo, a escala global sob o imperativo da obtenção de um gozo que se revela sempre tão impossível de realizar em sua totalidade como inútil em sua parcialidade, tão mortífero em suas consequências como ineficaz em sua economia que não se recicla. A conhecida fórmula – “Goza!” – com a qual Lacan distingue esta dimensão imperativa de um gozo no sujeito contemporâneo, de fato pode ter um bom antecedente em uma passagem da obra do escritor André Gide, Corydon, arrazoado escrito em defesa da homossexualidade contra o moralismo de sua época. Nele, o autor põe na boca da “voz da natureza” este mesmo imperativo, – “Goza!” – dirigido tanto ao homem como à mulher. É um imperativo que vem no lugar de um inexistente instinto sexual que dissesse tanto a um como ao outro qual é o objeto natural e complementar desse instinto. O imperativo – “Goza!” – que afeta a pulsão do ser que fala, à diferença do instinto natural, não diz, no entanto, de qual objeto se tem que gozar. Isso produz nesse ser que fala uma dupla dor de cabeça, sempre sintomática: tem que satisfazer a pulsão e tem que fazê-lo sem saber, de entrada, com qual objeto. Esta versão do “não existe relação sexual” em André Gide – não existe um objeto natural e determinado para a pulsão sexual-, essa dimensão que se expressa no sujeito contemporâneo por um imperativo de gozo levado, às vêzes, até a morte mesma, será repescado por Jacques Lacan para dar a voz mais precisa a esse Supereu tão enigmático como insidioso. É uma voz que aparece em toda a diversidade de fenômenos na clínica contemporânea, desde a anorexia-bulimia, passando pela série de adicções que alimentam a glutoneria do Supereu. Se o Supereu proíbe um gozo, por uma parte é para se alimentar, ele mesmo, desse gozo rechaçado e impor ao sujeito um novo sacrifício, sob a forma de novos imperativos de gozo. A economia de nossa época e seus fracassos parecem seguir um roteiro escrito linha por linha por uma instância tão obscena e feroz.

Marc Quinn, Another Angel, 2011
Escultura em bronze patinado

Parece que quando Lacan viajou aos EUA e viu a propaganda “Enjoy Coca-cola” escrita em letras luminosas suspensas nos edifícios urbanos, comentou de imediato: enjoy não será nunca uma boa tradução do termo jouissance. De fato, a palavra francesa “jouissance” ( gozo ) não teve em inglês nenhuma boa tradução e as melhores versões de textos lacanianos optaram por deixar o termo, tal qual, em francês. Nosso “goce” ( gozo ) em castelhano acerca-se, talvez, um pouco mais a essa dimensão; e o “gaudi” ou a “fruïció” do catalão inclusive se acerca um pouco mais…

Em todo caso, dispostos a encontrar fórmulas atuais do Supereu freudiano na publicidade e na psicopatologia da vida cotidiana, temos a do novo imperativo que alimenta hoje essa figura obscena e feroz: “Just Do It!” ( “Faça-o” ! )

Sim, “Simplesmente, faça-o!” parece hoje a fórmula, tão vazia quanto imediata em sua formulação, com que economistas e políticos, higienistas e científicos alimentam, muitas vêzes, o imperativo do Supereu. É um imperativo que parece haver descoberto a inutilidade do gozo em si mesmo para seguir a lógica implacável de um empuxo ao além do objeto do qual se deveria gozar. ”Simplesmente, faça-o”! nos diz, sem nos dizer realmente, o que é o que se tem que fazer.

É nesse novo imperativo que seguramente podemos ler a voz atual do Supereu, uma voz que se alimenta da satisfação pulsional na clínica da passagem ao ato, tanto na intimidade do sofrimento como em sua exposição mais pública, e, digamos também a palavra, ultrajante.

Tradução: Maria Rita Guimarães
Revisão: Nohemí Brown
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Imagem e significante: enlaces e desenlaces

by cien_digital in Cien Digital #18, Hífen

Lucíola Freitas de Macêdo
O linchamento virtual e os novos contornos da vergonha, Kafka no século 21?

A tecnologia impede que coisas ditas sejam esquecidas, pois incita a que sejam reproduzidas ad infinitum. Em agosto de 2006 uma jornalista divulgou informação equivocada, ao vivo, em programa televisivo, sobre o goleiro Rogério Ceni, que ligou imediatamente para o programa e confrontou-a, também ao vivo e em tempo real. A cena foi parar no YouTube:  “a coisa nunca mais parou de acontecer… é como se eu estivesse naquele filme em que o dia se repete… eu acordava e começava tudo de novo. A vergonha não acabava, ficava sempre ficava voltando”1.

A vinheta jornalística nos levará a interrogar, ao longo deste percurso:

  • As modalizações do Outro e as respostas do sujeito: o Outro absoluto e as relações de opressão; O Outro inexistente e/ou inconsistente e a condição de deriva e de desamparo.
  • O estatuto do trauma, que parece menos articulado à fantasia; e mais suscetível às injunções arbitrárias de um Outro absoluto, tema amplamente discutido nos textos preparatórios do Pipol 7, cujo título é “Vítima!”.
Palavra: novo modo de usar?

Em 1953 Lacan escreveu, por ocasião do Congresso de Roma, um texto inaugural, no qual dedica um capítulo às ressonâncias da interpretação:

Vejamos o que se mostra na cena do mundo: as novas tecnologias digitais parecem se imiscuir irremediavelmente nas práticas da palavra através do mundo virtual, através dos blogs, redes sociais e outros dispositivos próprios ao laço social de nosso tempo. A palavra, nesses dispositivos, produz efeitos por sua materialidade, como ancoragem e ciframento de gozo, mais que pela via de seu deciframento e da produção de sentido. Parece haver, no âmbito das práticas de linguagem, um novo link entre palavra e imagem, na medida em que a palavra, esvaziada de sentido e significação, compõe, fixa a imagem, ao invés de explicá-la e conferir-lhe sentidos. Tratar-se-ia de um novo uso da palavra? De novos laços entre as palavras, os corpos e os gozos? Um laço marcado pela materialidade, pela literalidade, e pela pulsionalidade: palavra marca, objeto metonímico, descarga pulsional?

O uso que os sujeitos contemporâneos fazem da palavra coloca-nos diante de uma relação com o simbólico diferente daquela inscrita sob a égide do Nome-do-Pai. No último ensino de Lacan temos uma pluralização dos nomes-do-pai e a forclusão generalizada. Não é pela via da metáfora que os nomes-do-pai operam, articulando um significante a um gozo que este significante deveria negativizar. O que está em jogo nessa pluralização são possibilidades singulares de amarração do simbólico com o imaginário e o real.

O que dizer do simbólico, levando em conta tais coordenadas? Não só a cultura, seus fenômenos e produções, como também a clínica dos sujeitos em análise parecem demonstrar que o simbólico já não é o que era. Os sujeitos fazem dele um uso diferente, e até contingente. Já não se servem dele como antes, como eixo organizador em torno do qual se funda sua estrutura, sua relação com a linguagem, o mundo e seus objetos, com seus gozos e parcerias amorosas. O simbólico está ali, meio de lado, e às vezes até pontualmente forcluído, não digo estruturalmente forcluído, mas subutilizado, não privilegiado no que concerne às soluções do sujeito.

No mundo regido pela parceria consumidor – produto, as trocas já não se fundam sobre a vertente simbólica. Elas adquirem outro estatuto, marcadas pelo tom da satisfação dos imperativos de gozo do momento, são pontuais, efêmeras, múltiplas na aparência, mas unas quanto ao seu cerne: o gozo do Um sozinho. Como pensar a prática analítica nessecontexto, em que o sujeito contemporâneo não é mais o sujeito da representação, marcado por uma dívida simbólica, mas se apresenta como resposta do real?

Liu Jianhua, Games 2000

O imaginário em conexão direta com o real e o rechaço do simbólico

O que se rechaça com o rechaço ao simbólico é a diferença significante. E de modo mais amplo, a diferença no plano das relações e da cultura. Parece haver uma contradição iminente entre o atual furor das reivindicações pela diversidade, em suas mais variadas manifestações (étnico-racial, religiosa, cultural, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras), e o exercício do rechaço à diferença engendrada ao nível do simbólico. As reivindicações e apelos por igualdade parecem suportar mal quando se trata de pagar o quinhão cobrado pela perda de gozo inerente à operação simbólica.

O tom adicto da civilização contemporânea não é sem  conexão com o rechaço generalizado à ordem simbólica, que parece obter como desdobramentos, ao nível da civilização, de um lado, o retorno das religiões e das ideologias totalitárias; e de outro, a ascensão vertiginosa do consumo em escala planetária, como novo imperativo, e a homogeneização que este fenômeno globalmente produz, colocando de uma maneira nova, e mais uma vez, o organismo como ponto final dos processos de institucionalização da vida em comum.

Aqui também há uma cifra, o chamado “refugo humano”2, que se multiplica em escala diretamente proporcional à expansão global das sociedades de massas consumidoras, instalando uma crise aguda e permanente na indústria que se ocupa de sua “reciclagem” ou de sua “remoção”: a centralidade do problema da intolerância étnico-racial, religiosa, política, cultural, e a discriminação aos imigrantes, refugiados e asilados; o papel crescente ocupado pelos vagos e difusos temores relacionados à segurança, e o concomitante incremento da “indústria da segurança”, e consequente policiamento da vida doméstica, por meio de medidas de segurança pautadas em políticas segregacionistas, para que a saúde da sociedade e seu “funcionamento normal” não sejam ameaçados.

Tomando como paradigma o contexto brasileiro, o sistema penal nos dá um exemplo paradigmático: seguindo a diretriz da construção de novos dispositivos de encarceramento e de punição com a perda da liberdade, está o projeto de lei em discussão no Congresso Brasileiro, que defende a redução da maioridade penal dos 18, para os 16 anos. Medida que, tal como argumenta o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares3, soa absurda aos olhos de qualquer cidadão minimamente sensato, independentemente de sua orientação política: Que sentido haveria em defender a ampliação das responsabilidades de um sistema falido? Que sentido haveria em propor a extensão do espectro de abrangência de um modelo que sabidamente não funciona e produz o inverso do que lhe cumpriria? Como uma instituição reconhecida como degradada, perversa, violenta, torpe e brutal, além de contra produtiva, poderá ser encarregada de assumir atribuições ainda mais exigentes e complexas? Vamos propor o que não funciona para os adultos, para os adolescentes? Como isso pode passar pela cabeça de uma pessoa que se supõe racional? E aqui estamos, pois parece que propor algo que faça algum sentido, ou que seja minimamente dotado de alguma racionalidade, não parece dar o tom à política, regida pela indústria da remoção do refugo, neste caso, do “refugo humano”.

Albert Oehlen, The Greeting, 2003

Para o filósofo Newton Bignotto4, o consumo como traço homogeneizador da cultura vem se constituindo neste século como uma nova expressão da biopolítica. Como consequência, constata-se um incremento da intolerância e da segregação, que costuma se fazer valer, nas atuais sociedades de massas consumidoras, como rejeição à diversidade e recusa da alteridade nas suas mais variadas formas de expressão. No mundo regido pelo consumo, as trocas já não se fundam no registro simbólico, são regidas pela uniformidade da satisfação dos imperativos de gozo do momento. Conforme argumenta Jacques-Alain Miller, em “Réponse à Rancière”5, na contra mão da derrocada dos universalismos judaico, cristão e comunista, assistimos a franca hegemonia dos universalismos capitalista e mulçumano, e seu irrevogável desdobramento: a transmutação do universalismo, ao menos no caso do capitalista, para a homogeneização forjada pelo “todos iguais pelo consumo”, e os refugos gerados pela proliferação frenética, compulsiva e ilimitada de objetos feitos para movimentar e retro alimentar o mega mercado global.

Marlene Dumas, The Painter, 1994
The Museum of Modern Art, New York

Os efeitos não apenas chegam à clínica, mas a perpassam. Nas instituições, nos consultórios, nas ruas, através do recurso cada vez mais comum às passagens ao ato como tentativas de haver-se com aquilo que não se compreende, ou como modo de defesa frente a algo vivido como insuportável. O simbólico parece rarefeito, quando não, inoperante, o que sugere uma primazia do eixo imaginário em conexão direta com o real; corriqueiras são as saídas pela agressividade e o ódio ao semelhante, como moedas de troca frente aos choques dos gozos, a esgarçar o tecido social; é neste estado de coisas que, não raro, se descortina uma vontade imperativa de destruição daquele que encarna o gozo rejeitado.

Outro capítulo a ser investigado é o da intolerância ao discurso do inconsciente, e mesmo, ao discurso analítico, e o manejo preciso que a clínica exige do praticante. Nota-se uma primazia da mostração em detrimento do exercício de elaboração e de implicação subjetiva, o que tem consequências para a vida, para a clínica, e também, quanto às formas de constituição dos sintomas e a direção dos tratamentos.

Se o corpo parece funcionar sozinho; se não há ser no corpo, existe o acontecimento. Os acontecimentos de corpo e suas marcas de gozo. Tais marcas parecem comportar um ponto de foraclusão para todo e qualquer sujeito, vindo a funcionar tal qual um paralelo a atravessar a verticalidade da clínica estrutural, aproximando entre si, neste exato ponto, as clássicas estruturas clínicas, antes absolutamente separadas pelo bastião do Nome do Pai. A clínica do falasser é uma clínica do acontecimento de corpo, de sua localização e nomeação. E assim, onde se apresentará a intolerância ao discurso analítico, e mesmo, ao inconsciente, lê-se as marcas da não relação, dos pontos de exterioridade ao simbólico, as marcas de gozo aí fixadas; e inventa-se, com o recurso à palavra ( e não menos, aos silêncios ), uma arte de manejar lacunas, e uma arte de extrair do lacunar, nomes, nomeações, conjugados no singular.

A última clínica de Lacan, com seus arranjos singulares, parece estar mais sintonizada com as novas possibilidades que esse simbólico contemporâneo horizontalizado e rebaixado começa a delinear. Uma amarração, um efeito de significação, ou de nomeação, podem constituir sintomas, sem o apoio do Nome do Pai.


Notas:

1  Matéria de Renan Fagundes e fragmento do relato da jornalista Milly Lacombe, em “A vergonha em rede”, Revista Trip, p.58-62.

2  Bauman, Z. Vidas desperdiçadas, p.106-109.

3  Soares, L.E. “Sobre a maioridade penal”. Disponível em: http://diretorianarede.com.br/luiz-eduardo-soares-e-sua-opiniao-sobre-a-reducao-da-maioridade-penal/

4  Bignotto, N. “Homogeneidade e exceção”. In: Curinga. Belo Horizonte: EBP-MG, n.35, p. 72-14.

5  Miller, J-A.“Réponse à Rancière”. Disponível em:http://blogs.mediapart.fr/blog/jam/070415/reponse-ranciere
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Ser mãe hoje e o consumo da criança

by cien_digital in Cien Digital #18, ENTREvista

Adriana Duque, Samuel (From the series Pinocchios), 2011

Cristina Drummond

Cristina Drummond  coordena  a XIX Jornadas da EBP-MG, O que quer a mãe hoje? e CIEN Digital lhe propôs a conversa sobre a interface dos temas, porque  também  estamos nos preparando para a VII Jornada Internacional do CIEN – Crianças saturadas. Conforme o Argumento que veiculamos  novamente no  CIEN  Digital, são crianças  saturadas, fartas, saciadas, termos que indicam a satisfação, mas levada até o fastio, acarretando diversas patologias do desejo e sintomas no corpo.

CIEN Digital: Você encontra uma relação entre o estado de saturação das crianças e o modo como as mães educam  seus filhos hoje?

Cristina Drummond: Podemos sim, pensar que na maioria dos casos, são ainda as mães que educam seus filhos, só que de uma maneira um pouco distinta daquela de antigamente. Antes, a mãe sempre podia dizer que iria contar para o pai… quando ele chegasse. Há algo no contemporâneo que podemos tomar como efeito do discurso da ciência e do declínio da função paterna que deixa as mães mais sozinhas diante da função de educar seus filhos e que favorece uma posição da criança menos protegida da fantasia materna.

Se, por um lado, assistimos a milhões de ofertas de objetos que supostamente preencheriam a falta, o desejo e a demanda das crianças, por outro lado também temos a própria criança oferecida como objeto para preencher algo da mãe. Lacan nos ensinou que a criança está articulada ao falo, mas que ela é fundamentalmente um objeto em uma de suas distintas faces, seja de causa de desejo, de objeto dejeto ou de objeto estranho. O que se apresenta como uma grande dificuldade nessa questão da educação das crianças é que a criança pode estar no lugar de objeto real condensador de gozo que não deixa de estar articulado ao fantasma materno. Estar na posição de objeto faz com que muitas vezes a criança realize a presença deste para a mãe. É importante pensarmos que o que está em questão na relação de uma mãe com seu filho é a relação da mãe com a falta, sendo que esta nem sempre está inscrita como castração.

O termo “saturação” me parece interessante não apenas porque fala do excesso, mas também porque não sabemos muito bem que falta esse excesso está buscando preencher. Se o que se busca é preencher uma demanda da criança, o efeito rapidamente será o de criar uma nova demanda e um novo objeto a ser consumido. O que se alimenta é a gulodice do supereu. O problema é que quem acaba consumida e entediada é a criança, nesse processo que tampona a falta, ao invés de localizá-la.

Dessa maneira a criança se vê alienada do campo do saber e desresponsabilizada por seu mal estar na vida. Se educar é um dos impossíveis em Freud, educar sem colocar em questão a falta, tal como encontramos tantas situações atualmente, reduplica esse impossível, já que dessa maneira ele não é tratado, mas evitado.

CIEN Digital: Na atualidade, quais as dificuldades e impasses que uma mãe encontra para interpretar as demandas de seu filho?

Cristina Drummond: Nas situações contemporâneas, a demanda e o desejo estão, mais do que nunca, confundidos. Lacan nos ensinou que a demanda é sempre uma demanda de amor. Muitas vezes, o objeto que a criança pede tem por trás um pedido de amor, ou de escuta, ou mesmo de uma palavra ou um não. Acontece que essa demanda vem confundida com choro, com sintomas, com respostas que as crianças dão e que não são muito fáceis de serem escutadas porque elas não são ditas claramente.

Kaws, Hold the line 2011
vista de instalação Galeria Honor Fraser

Nesse mundo de consumismo onde passou a existir o mercado kids, cheio de ofertas endereçadas às crianças, é difícil resistir à proposta de alienação e de adição. As crianças querem o que está na televisão, nos shoppings, o que os colegas levam para a escola, o brinquedo do vizinho. E a cada dia elas vão encontrar um novo objeto que ainda não viram e não têm, e logo esse objeto vai ser absolutamente imprescindível. Interpretar a demanda da criança ao pé da letra e atendê-la o tempo todo, tal como assistimos muitas vezes em cenas de nosso cotidiano, é desconhecer que há algo para além da demanda.

Uma criança é capaz, desde muito cedo, de se posicionar diante do mundo e do Outro e de buscar explicitar seu desejo. A questão é que nem sempre conseguimos entendê-la. As mães, no anseio de serem boas, tomam o caminho mais fácil que é o de cobrar, atender e seguir o modelo universal e que não dá lugar para a particularidade de seu filho. Elas estão sempre pensando que sabem o que o filho necessita, o que é melhor para ele e que a criança não é capaz de fazer escolhas.

A grande dificuldade me parece ser a de introduzir a palavra e a escuta. Se não conseguimos escutar o que está em questão em cada demanda, se as atendemos o mais rapidamente possível, estamos trabalhando a favor da surdez e alimentando a posição de insaciabilidade e de tédio das crianças. Vale sempre lembrar que o dom de amor é dar o que não se tem, e que introduzir a falta em nosso mundo é uma arte cada vez mais difícil de ser exercida. No entanto, essa é a única chance para que a particularidade de cada sujeito tenha lugar em sua vida.

CIEN Digital: As mães também encontram-se saturadas? Pelos saberes, pela ciência e objetos de consumo? Quais as consequências para ela e para os filhos?

Mai-Thu Perret, Synthesis of the Universe
The Renaissance Society, 2006

Cristina Drummond: Certamente as mães também se encontram num mundo repleto de ofertas de modelos para serem boas mães. Infelizmente as crianças não nascem com bula e essa receita para exercer a função de mãe não existe.

Todas as indicações de Lacan sobre essa questão são no sentido de situar a falta entre a mãe e a criança e de dizer que essa relação traz em seu coração a sexualidade feminina, ou seja, o que não pode ser universalizado. Eu acho que isso quer dizer que é importante situar uma distância entre a mãe e a criança, um espaço que muitas vezes vai ser ocupado por objetos, mas objetos que vão mediar essa relação, construir sua borda e não objetos que vão preenchê-la ou ainda saturá-la.

Isso pode ser visto desde a mais tenra infância, por exemplo, na relação de amamentação. Hoje existem até programas no celular para se contabilizarem os minutos que um bebê deve mamar em cada peito. Por mais que existam os saberes dos médicos, dos nutricionistas, dos psi para dizerem qual é a fórmula da alimentação correta, não há como escapar da situação em que a mãe tem que interpretar o choro do bebê e ela sempre pode caprichosamente dar o leite ou recusá-lo. Não há como escapar das inúmeras dificuldades que uma mulher pode encontrar diante da função de alimentar seu filho e muitas vezes de uma repulsa de exercer essa função. Não há também como escapar das dificuldades que um bebê pode apresentar para ser alimentado ao fazer uma anorexia precoce, ao não aceitar ser alimentado, ao recusar ser acolhido pelo outro.

Então: basta dizer as regras do bom exercício da função materna? Muitas vezes eu acho que esse excesso de orientações desorienta e angustia extremamente as mães. Nessa relação entre a mãe e o filho há uma falta de saber, que é de estrutura, e apesar de os saberes serem muito úteis, não podemos tomá-los como absolutos e como regras a serem seguidas. Preservar a transmissão de um desejo que não seja anônimo implica em fazer uso desses saberes sem perder a singularidade. Não existe laço sem sintoma e por isso não existe a possibilidade de uma relação de uma mãe com seu filho que não seja sintomática.

CIEN Digital: Algumas mulheres perdem os filhos porque o Estado afirma que elas não têm condições de cuidar deles, não podem ser mães. O recolhimento compulsório dos bebês do crack, como ficou conhecido no campo do Consultório na Rua, é um outro exemplo. Ser mãe, ser pai também, é atualmente autorizado por este Outro do Estado. Como a psicanálise de orientação lacaniana pode contribuir neste cenário? O que ela tem a dizer sobre o que é ser mãe hoje?

Cristina Drummond: Essa decisão que você cita é paradigmática da intervenção do Outro do Estado na função da maternidade. É como se houvesse um modelo de boa mãe a ser seguido e implementado. Em seguida, bastaria se enquadrar nesse modelo para que as coisas caminhassem bem.

Ora, esse tal modelo não existe, mas também não podemos dizer que não existam mães que sejam muito difíceis e até mesmo mortíferas para seus filhos.

O que aprendemos com Lacan é que o amor materno é contaminado por um ilimitado que tem como avesso o ódio e que esse ódio pode se manifestar em situações graves que podem chegar ao ponto de levar uma mãe a matar o próprio filho.

Essa e outras manifestações da pulsão de morte não estão necessariamente ligadas à condição de uma drogadição. Que uma mãe seja toxicômana, não implica que ela seja tóxica. Uma mãe que faz uso de crack pode encontrar em seu filho uma ancoragem que lhe permita dar um outro sentido para sua vida. E tal dependência não é sinônima de que ela irá abandonar seu filho ou mesmo submetê-lo a situações de maus tratos. Não é possível fazermos tais equações.

Mariana Mauricio, Nosso Filho, 2012

Há, para além dos ideais sociais e do imaginário da boa relação entre uma mãe e seu filho, um real que nenhuma decisão jurídica pode regular. Não quero com isso dizer que o recurso à lei não seja necessário e útil em muitos casos, mas é preciso que isso seja considerado em cada caso. Penso que devemos e podemos fazer uma aposta de que uma mãe que adote seu filho e deseje cuidar dele possa se autorizar a fazê-lo.

CIEN Digital: Pensando, especialmente desde a proposta do CIEN, o que você poderia dizer sobre o trabalho de outras disciplinas nesta época de excessos? Por exemplo, os professores ou os trabalhadores da área da saúde, saturados por demandas institucionais, saberes, objetos (inclusive drogas lícitas): quais as consequências para as crianças e adolescentes?

Francesco Clemente, Arrival, 2013

Cristina Drummond: Realmente, estamos atravessando um tempo onde a interface entre os saberes e a parceria dos profissionais que trabalham com as crianças e adolescente é fundamental. As demandas de sucesso e de  boas respostas muitas vezes não dão  lugar para que as particularidades dos sujeitos sejam consideradas.

Estamos mais do que nunca fragilizados com a violência, a desorientação, o tédio, a falta de inserção no campo do saber. Todos os dias escutamos situações de difícil manejo e cuja solução não está pronta, e por isso mesmo deverá ser inventada. A lei não consegue organizar um rumo para as crianças e adolescentes e as antigas soluções não funcionam.

O excesso do uso da internet, o desinteresse pelo saber, o excesso de competição, tem tornado difícil o laço entre os sujeitos e trazido à cena situações de agressividade e de dificuldade no laço. Tratar dessas múltiplas manifestações de gozo desregulado me parece ser uma tarefa que convoca a tornar cada vez mais presente a proposta do CIEN, que nos possibilita uma presença do discurso analítico muito mais efetiva no mundo, já que o que se busca é permitir que esse discurso possa orientar a leitura desse real sem lei.


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Na era do tecnopoder: Hello Barbie!

by cien_digital in Cien Digital #18, Contribuições

Danielle Carcav, A cage is a cage?, 2009

Maria Rita Guimarães

Uma recente novidade  irrompida no devassado reino das crianças, cada vez mais visado pela indústria tecnológica no segmento  dos brinquedos , está gerando uma interessante e bem vinda polêmica.

Em fevereiro ( 2015) a fabricante Mattel, dona da Barbie, apresentou na anual  feira novaiorquina de brinquedos a nova versão da  célebre boneca. Barbie, desde sua criação “marcou uma ruptura nas práticas sociais e na socialização das meninas”1.

Não é de agora, portanto, que sua presença perturba. Desde o pós-guerra Barbie traduz, de forma fulgurante, os ares dos tempos que avançam, desesperados, rumo ao máximo do consumismo. Em 2015 não é diferente: Barbie conecta-se à internet via wifi e, através da tecnologia de reconhecimento de voz, conversa. Com quem?

Aqui, tocamos no ponto ético que provoca a polêmica pois, sob a aparente inocência de um jogo de criança com sua boneca, quase despudoradamente mostra-se o princípio que rege nossa contemporaneidade: transformar o que até o momento conhecemos como mundo, em uma espetacular plataforma planetária, com finalidades inquietantes.

Perguntaríamos : “Até tu, Barbie?” se de nada suspeitássemos de seu poder emblemático, exercido sobre as crianças de todo o mundo. No entanto, a nova Barbie veio alinhada à ruptura da fronteira público / privado  que aconteceu a partir da colossal coleta de dados que se verifica através desses gadgets conectados para usos diversos. A Hello Barbie seria mais um desses objetos e conversaria, sobretudo, com os integrantes da Toy Talk, a parceira de tecnologia da Mattel.

John Chamberlain, The Devil and the Deep Blue Sea, 1983

Zigmund Bauman apóia-se na definição da Wikipédia2 inglesa do conceito  privacidade para desenvolver as diferenças entre os conceitos de “público” e “privado” e nos fala de sua interface.

Esses dois campos semânticos, antagônicos, conduz à formulações que remetem à interface – iniliminável até então -, entre as fronteiras, os limites e o tráfego entre eles. Na atualidade, devido às inovações tecnológicas, como ficam tais fronteiras?  Não é fácil percebê-las. Não obstante, facilmente identificamos o incalculável tráfego de dados que alimentam a hiper-tecnologia e que, das “nuvens”, recobre todo o universo como uma sombra que horroriza e fascina ao mesmo tempo.

Tal como afirma Eric Sadin:3

Entramos em uma nova era na história da digitalização, que vê uma proliferação de sensores e de objetos conectados registrarem a maior parte de nossos gestos e ações. É o nosso smartphone, que nos localiza geograficamente; o relógio conectado da Apple que registra os nossos ritmos; a balança transformada em personal digital ou os garfos que analisam a nossa alimentação e avisam de um ritmo dabsorção demasiado rápido. O resultado é que permanentemente disseminamos fluxos exponenciais de dados que são tratados por algoritmos cada vez mais sofisticados, encarregados de nos sugerir ofertas e serviços personalizados. Esta “inteligência da técnica” pretende otimizar, fluidificar e proteger o nosso cotidiano individual e coletivo, um pouco como um mordomo digital que ficasse cada vez mais e mais diretivo.4

Antônio Lee, Tricicla

Nesse contexto de “tecnopoder” estaria a nova Barbie, segundo as críticas que sua apresentação sofreu e vem sofrendo. O microfone embutido em seu corpo é capaz de captar tudo o que é dito por aquele que estiver em sua proximidade. Caberá  à Toy Talk  interpretar e armazenar as frases ouvidas: serão usadas na formulação de uma resposta pré-gravada dita pela boneca à criança que a tem, simulando uma conversa.

A Mattel afirma que o maior desejo das crianças seria falar com a Barbie e que, agora, não se sentirão sozinhas. A fabricante aprenderá tudo sobre elas: o que gostam, aquilo de que não gostam e lhes  dará retorno disso  via o alto falante embutido.

Tal próposito evidencia o quão exatas são as palavras de Eric Sadin quando afirma que a meta consiste justamente em buscar a otimização de nossos   gestos e ações, tal como se alguém, ao passar perto de uma loja de calçados já encontrasse ali uma oferta que corresponderia a seu perfil. Esse seria o aspecto mais perturbador da relação que podemos manter com as tecnologias contemporâneas, já que o poder que lhes damos é o de, cada vez com mais liberdade, orientar a nossa vida.

Heike-Karin Föll

Hello Barbie!

Uma rápida recuperação do curriculum vitae de Barbie nos esclarece porque a repercussão à chegada de sua versão tecnológica está produzindo profundo mal estar nos meios sociais e de defesa dos interesse da privacidade, especialmente aqueles relacionados às crianças.

Do belo ensaio de Marianne Debouzy5 – A Boneca Barbie – destacamos alguns pontos que marcam sua particularidade no mundo da infância.

  1. Ela faz a substituição do modelo “boneca criança” ao “boneca /mulher”. Tem uma idade indeterminada, pretendidamente adolescente, mais em realidade uma mulher. Estilo “sexy”e pin up. Apesar da vasta família que habilmente se vai constituindo em seu entorno, pai e/ou mãe estão ausentes.
  2. Os  anos 50 – quando  “nasce” Barbie – , são aqueles nos quais  se descobre a importância da adolescência, ao mesmo tempo em que avança uma exploracão comercial sem precedentes do estilo de vida adotado pelos jovens. Barbie vai fazer as típicas atividades daqueles: dançar rock, trabalhar de baby sitter, etc
  3.  Nos anos 70 Barbie estuda para, na década dos 80, ser uma mulher realizada profissionalmente, conservando, no entanto, os emblemas do ideal feminino de que se fêz portadora.
  4. Apesar da impressão de uma multiplicidade de Barbies, são apenas pequenas modificações sobre uma boneca de base, em fidelidade com uma silhueta que afirmam ser improvável existir. De fato, podemos nos dar conta de como o noticiário se ocupa da infelicidade em que mergulham alguns jovens com a finalidade de incarnarem tal “improvável perfeição “representada por Barbie e/ou Ken. De boneca/mulher a mulher/boneca.De qualquer maneira as mudanças operadas nos modelos Barbie, se pequenas, acompanham, inversamente proporcional, o tamanho de seu valor comercial, movimentando astronômicas cifras com seus acessórios, com a moda e, igualmente com as parcerias empresariais como Disney, Benneton etc.
  5. Simplificando muitíssimo as estatísticas do valor merchandise de Barbie, basta que nos lembremos que ela é vendida em mais de cem países e, segundo consta pela imprensa, cada criança americana teria em torno de 7 bonecas Barbie; a francesa, de 3 a 11 anos – 2; a italiana 3; a alemã, 3. A distribuição entre as crianças “que não têm nenhuma Barbie” fica assim: 14% na França; 2% na Alemanha; 3% nos EUA; 4% na Itália.

Takashi Murakami, sculpture of miss

Hello Barbie, uma espiã?

Porque a imprensa alemã comparou a Hello Barbie que será lançada já em novembro, com venda prevista inicialmente nos EUA, com um informante da Stasi?

Segundo Susan Linn que é diretora executiva da Campanha por uma Infância Livre de Comerciais (Campaign for a Commercial-free Childhood), o fato de Mattel e Toy Talk estarem se envolvendo no que resulta em vigilância corporativa de como as crianças brincam com suas bonecas, deixa crianças e famílias vulneráveis a violações potenciais como quebra de segurança, publicidade insidiosa e outras.6

Mattel fala de sua política de privacidade em relação às conversas ouvidas pela Barbie, comprometendo-se a enviar emails aos pais dando a eles a oportunidade de conhecê-las. Susan Linn diz não poder imaginar o que seria uma boa política nesse aspecto quando o fato é que há uma corporação ouvindo crianças brincarem. Ela salienta que “são atividades mais íntimas das crianças, além de conversas privadas da família. “Como serão interpretadas as encenações de violência ou sexuais, presentes nas atividades lúdicas das crianças?”

Vislumbra-se um grande desdobramento ético a ser discutido no horizonte das conversas entre Hello Barbie e suas futuras donas.


Notas:

1  LINN, Susan. – O ESTADO DE S. PAULO – 21 Março 2015 | Acessado em 10/07/2015. http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,agente-barbie,1655077

2  BAUMAN, Zygmunt. Estranha Aventura da privacidade in 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, RJ, Jorge Zahar Editor, 2011.
“Privacidade é a capacidade de uma pessoa ou grupo de controlar a exposição e a disponibilidade de informações a seu respeito, e dessa forma revelar–se de maneira seletiva. Ela se relaciona às vezes com a capacidade de existir anonimamente na sociedade, com o desejo de não ser notado ou identificado a esfera pública. Quando algo pertence a uma pessoa de modo privado, isso em geral significa que há  nela algo que se considera inerentemente especial ou pessoal…A privacidade pode entendida como um aspecto da segurança- pelo qual se torna clara, em geral, a equivalência entre os interesses de um grupo e os de outro grupo.”

3  Escritor, ensaista e filosofo francês. Especialista na questão digital. Tradução nossa. Acessível em http://www.liberation.fr/economie/2015/03/22/il-est-imperatif-de-contenir-la-puissance-du-technopouvoir_1226071

4  Eric Sadin. Entrevista à Carta Maior. Acessível em http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-duplicacao-digital-do-mundo-e-os-seus-riscos/6/29513

5  Marianne DEBOUZY é professora de história americana na Universidadede Paris 8, Vincenne-Saint-Denis. Entre outros livros da autora, encontra-se Le Capitalisme “sauvage” aux Etats-Unis (1860-1900)

6  LINN, Susan. – Obra citada.
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Crianças Amos: Resenha e considerações a partir do texto de Adela Fryd

by cien_digital in Cien Digital #18, Contribuições

Balthus, Les enfants blanchard, 1937

Margarete Parreira Miranda

“Crianças Saturadas” é o tema inquietante estabelecido como eixo da VII jornada internacional do Cien, que acontecerá em setembro na cidade de São Paulo. Momentos importantes antecipam o evento e nos convocam a problematizar o “adensamento” das crianças de nossos tempos, que pelo excesso de substância gozosa insistem em deixar o Outro de fora. Testemunhamos adultos queixosos que se dizem perturbados com a “falta de limites das crianças, sua agitação e desrespeito”.  Pais, professores e educadores fazem parceria com esse sintoma contemporâneo sem se implicarem, muitas vezes, na construção desses atos.

Nessas circunstâncias, tivemos acesso ao texto de Adela Fryd, “Crianças amos”. Pela precisão e clareza teóricas, associadas à pertinência junto ao tema que ora privilegiamos, compete-nos dele extrair e destacar algumas incursões favoráveis à transmissão aos participantes do CIEN. Propomos nos servir dos princípios psicanalíticos e relatos clínicos que Adela distingue em seu artigo, buscando ligá-los à extensão da psicanálise, orientados pelos ensinamentos de Miller. Este defende que embora a psicanálise aplicada não seja a psicanálise, ela é psicanálise. Adela Fryd oferta elementos para uma leitura que alcança outros espaços por onde crianças circulam sob o olhar e a voz dos adultos – escolas, abrigos, instituições jurídicas e/ou outros. A presença do psicanalista em uma relação interdisciplinar pode, muitas vezes, via uma palavra esclarecedora, um gesto ou um ato, promover deslocamentos produtores do novo, no enfrentamento das gerações.

Adela chama atenção, inicialmente, para as “crianças que são mais amos que seus pais”, ou seja, que com eles fazem paridade: Seguem autônomas e sós, fazem o que querem sem que nada as possa deter. Interroga como chegarão essas crianças à adolescência. Seu modo de não resposta tem especificidades, pois demandam ser reconhecidas pelo Outro, mas a ninguém escutam de modo particular. Crianças com um querer caprichoso, em que se impõe, segundo a autora, um gozo narcisista livre, a despeito das disposições do Outro. Mostram-se blindadas ao Outro do ensino, esquivando-se dos significantes que por ele lhes são ofertados. Afirma, também, que há uma dificuldade de alienação significante, o que termina por fazer operar uma “falsa separação” para o sujeito. Se há um embuste, a precariedade simbólica não transforma os destinos da pulsão, e o sujeito responde à pergunta pelo desejo do Outro se fazendo objeto. Presas ao falo imaginário e identificadas à fantasmática do Outro materno objetam com o corpo, já que a ausência da falta não lhes deu margem a construção de outros recursos. A autora observa que na formação do par parental, a mãe toma o filho como objeto precioso e o pai opera somente como parceiro da criança.

Dan Cole, Untitled, 2008, a ‘painting’ made with chewing gum

Os sintomas clínicos contemporâneos ganham, então, nomes como abulia, hiperatividade, inapetência e suas variantes, se instalando em vários ambientes. A freqüência desses casos os inscreve como fenômenos subjetivos de uma época. Nesse ponto de seu artigo a autora interroga: “Então, como se produz a constituição subjetiva nessas crianças?

Abalizada em Freud e Lacan, Adela trabalha a alienação/separação do sujeito, cuja teorização permitirá maior entendimento e manejo analítico. No narcisimo freudiano, ela diz que se pode pensar na precariedade das marcas do Ideal do Eu, de onde viriam as identificações com o Outro. Liga o narcisismo freudiano ao estudo do imaginário em Lacan. Na montagem da pulsão freudiana e a organização do objeto pulsional haveria um ponto de entrecruzamento entre ambas as séries: narcisismo-autoerotismo-relação de objeto e a série da pulsão oral-anal-fálica. Para Lacan, dois objetos se agregam na organização da demanda e desejo, o olhar e a voz.

Nos argumentos de Fryd, as fantasias imaginárias das “crianças amo” persistiriam em uma especularização decidida, fazendo prevalecer a agressividade e o entrave ao trabalho entre o objeto e o ideal. O excesso de gozo pulsional, desse modo, sobressairia pela ausência do véu articulado a partir do Outro. Para a autora, Lacan trabalha duas importantes operações constitutivas da subjetividade: a alienação e a separação. Se na alienação há a fundação do Sujeito, na separação se organizaria o desejo. O recorte da pulsão somente se dá na medida em que passa pelas baterias significantes do Outro. Se há um intervalo em que o Outro não diz, é nessa fenda que poderá emergir algo do desejo do Sujeito, que interroga o desejo do Outro. E é nessa intermitência que se produz a extração do objeto a, que como resto da operação subjetiva arma a função desejante. A busca desse objeto impulsiona o deslocamento da libido, fazendo notar que a separação procedeu. A “falsa separação” a que se refere Adela, no entanto, em alusão às “crianças amos”, faz verificar uma inteligência dessas crianças em manejar os significantes do Outro, mas uma estagnação no campo do desejo, estando mais ligadas à pulsão que à fantasia.

Adela demarca importantes considerações concernentes à presença do analista, no ponto onde a separação é o problema. Sustenta que esta presença se abre para a contingência de um encontro com o Outro, onde a criança poderá localizar algo do seu estilo e de sua maneira de alojá-lo, que permitirá relançar a pulsão em direção ao novo.  O desejo do analista confiado à transferência atualiza o objeto olhar e o objeto voz, com efeitos de separação sobre o excesso de gozo, que implica saturação.

Marcia Moraes, O Subsolo, 2012

Nesse momento do texto, a autora relata fragmentos clínicos do tratamento de duas crianças, colocando em evidência sua intervenção. Destaca, em ambos relatos, a importância do jogo do fort-da freudiano, como matriz da fantasia, com o qual a criança se relaciona na ausência da mãe. Toma esse jogo como orientador nos referidos casos, a partir da delimitação do real para cada sujeito. Fazer instalar a falta, a separação e aguardar que algo de cada um emirja, é ponto decisivo para Adela. Distingue ainda, que por se tratar de crianças que monologam, deve-se considerar o seu saber para que elas escutem o Outro.

A leitura do texto de Adele Fryd nos aviva reflexões.  Se considerarmos os diversos espaços institucionais por onde transitam as “crianças amos”, assim, “saturadas de gozo”, podemos pensar também o conceito de transferência que se aplica aos encontros contingentes com esses Outros. Não poderia o olhar, a voz do Outro fazer presença de maneira menos ruidosa, em que se oferta o consentimento ao estilo de cada um sem, contudo, abrir mão de um dizer consequente às crianças? Estarmos atentos ao que venha despertá-las da fixidez dos sintomas, na aposta em uma posição que proteja as diferenças, poderá desembaraçá-las de seus excessos e fazer fluir a libido no campo do desejo. Essa talvez seja a essência da transmissão aos participantes do CIEN, concernidos em uma prática interdisciplinar.

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Conversação dos laboratórios CIEN-MG

by cien_digital in Cien Digital #18, LABOR|a|tórios

Berna Reale, Os Jardins Pensus da América
Foto: Thinkstock e Divulgação, 2012

Virgínia Carvalho

Tivemos, na nossa última noite do CIEN-Minas, uma conversação “ao vivo”. Circularam por ela os temas da próxima Jornada do CIEN, “Crianças Saturadas”, do ENAPOL, “O Império das Imagens” e da Jornada da Seção Minas, “O que quer a mãe hoje?”. No formato de conversação, “prática da palavra para tratar as manifestações indesejadas que produzem insucessos e fracassos” ( SANTIAGO, 2011 ), elegemos uma situação-problema que se apresentava na inter-disciplinaridade com o campo da educação. Servindo-nos da associação livre coletivizada, partimos de uma queixa escolar, buscando “um outro uso da palavra, em que a queixa toma a forma de uma questão e a questão, a forma de uma resposta: invenções inéditas”, orientação destacada por Ana Lydia Santiago (2011).

Com a sala cheia e profissionais atuantes em diversas áreas, tais como: educação, medicina, saúde mental e psicanálise, tivemos uma noite de intenso trabalho. Quem participou, ali esteve imbuído da responsabilidade de se debruçar sobre um impasse, buscando construir novas maneiras de tratá-lo. Tal impasse, dessa vez, esteve localizado na dificuldade experimentada pelos educadores e pela direção de uma escola da rede pública da capital. Marlene Machado, vice-diretora desta escola, além de  doutoranda do Programa de Pós-Graduação da FaE/UFMG, foi quem formalizou o impasse e também as intervenções tentadas até o momento da conversação.

Trata-se do incômodo promovido pelo menino de 8 anos, esperto e com bom rendimento escolar, mas que tinha momentos de muita agressividade na escola. Buscando localizar o que havia de comum entre esses episódios, em que era violento na escola, Marlene percebe que eram precedidos por situações em que precisava se deparar com o imaginário: confecção de máscaras, visitas à biblioteca, atividades de faz de conta. Após tais situações, se agitava, e começava, sem aparente motivo, a agredir os colegas, empurrar as carteiras e jogar as coisas no chão. Ao tentar contê-lo, Marlene recebeu cuspe, tapas e mordidas. Mas, também, um estabelecimento da transferência, pois a criança passou a procurá-la. Isso porque ela lhe disse que sua roupa seria lavada com água, mas o que o estava incomodando, somente falando é que iria melhorar.

Sanya Kantarovsky, untitled, 2011

Na conversa com a mãe, esta justifica o problema da criança, dizendo que não estimula o filho a imaginar porque tem medo dele revelar uma homossexualidade. Por isso, não permite que consuma brinquedos, apenas roupas. Em uma das intervenções com a criança, foi-lhe questionado se isso seria um problema para ele, ao que afirma que não. Foi indicado, então, que fosse brincar com as outras crianças e deixasse esse assunto da sexualidade para o futuro. Ele brincou como nunca antes havia feito.

Embora na construção do caso para a conversação algumas soluções para o caso já se anunciassem, a circulação da palavra entre os participantes permitiu um questionamento sobre a violência na escola e a contenção física. Seria a contenção física a melhor alternativa nos casos em que a agressividade se apresenta no corpo em direção ao outro?

Através de diversas situações relatadas pelos colegas, fomos tentando delimitar o que ocorre quando se segura o corpo seja de uma criança pequena, de um adolescente em uma crise psicótica ou até mesmo o de um adulto em um serviço voltado à saúde mental.

Com a conversação, concluímos que não é possível uma generalização sobre esse tema, mas mantém-se atual a indicação lacaniana de que a violência é o que se pode produzir em uma relação inter-humana, quando não prevalece a palavra. E, nesse sentido, a palavra pode promover uma forte contenção. É a aposta do CIEN: um tratamento pela via da palavra.

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A Céu Aberto

by cien_digital in Cien Digital #18, LABOR|a|tórios

Daniel Hesidence, Untitled (Maritime Spring) – 55ª Bienal Veneza

Mônica Hage

No dia 28 de março de 2015, a Biblioteca da Seção Bahia, em parceria com o CIEN-Bahia, exibiu o filme da cineasta Mariana Otero: A Céu Aberto. Mariana adentra com a sua câmera em uma Instituição na Bélgica, o Courtil, e com muita sensibilidade nos transporta para o dia-a-dia de crianças e jovens autistas e psicóticos.

Após a exibição do filme, iniciamos um rico debate, contando com a presença de um público diversificado: membros da EBP, alunos e associados do IPB, psicólogos, profissionais da área da educação, além de alguns pais de autistas.

Começamos com a fala de Tânia Abreu (diretora de Biblioteca da EBP) destacando que o filme é uma oportunidade ímpar de apresentar ao público o trabalho da psicanálise de orientação lacaniana com sujeitos portadores de autismos, fora dos muros dos consultórios, principalmente por ser este um momento importante de afirmação da psicanálise como terapêutica eficaz nesses casos. Assinala a importância de tratarmos os autistas como sujeitos e não como deficientes. Ela diz que apesar de reconhecermos toda a importância de uma fundamentação teórica para orientar o nosso trabalho, não podemos perder de vista que essa teorização só deverá acontecer a partir da clínica, e este é o grande ensinamento da prática no Courtil. Assim, devemos estar atentos às invenções das crianças no seu cotidiano.  Ela destaca, ainda do filme, as lições teóricas sobre a importância dos objetos autísticos, as estratégias dos mediadores para interromper um ciclo de repetição de gozo, que no autismo é da ordem do infinito, introduzindo nomeações e o novo. Além disso, a pouca importância que é dada ao diagnóstico, “visto que etiquetar uma criança pode ofuscar o desejo.”

Outra grande lição do filme, segundo Tânia Abreu, diz respeito à transferência possível nos casos de autismo e psicose, sobretudo porque “elas não se apóiam no saber constituído, mas em um saber construído ali, no cotidiano.” Cita também a “prática entre vários”, modo de atuar, a partir da psicanálise lacaniana, nas Instituições, onde a transferência pode ser “pulverizada”, o que pode ser de fundamental importância nestes casos.

Lothar Hempel, Die Blinde Sängerin, 2012
Courtesy Stuart Shave/Modern Art London

Outro ponto de destaque do filme, trazido por Tânia, é a dificuldade clínica de diferenciação entre autismo e esquizofrenia, e a noção de corpo fragmentado na psicose e não construído no autismo. Como exemplo, Mariage cita Yasmine que escuta o coração no pé! Temos também a observação sobre o corpo não furado do autista, retratado na angústia do jovem Jean – Hugues ao ver um pelo sair em seu rosto. Trata-se de algo que surge onde não estava previsto, presença real que angustia. Este jovem também nos apresenta suas diversas invenções com o álbum que organiza seu mundo espaço-temporal ou o uso dos fones de ouvido que regulam a invasão das vozes em seu corpo.

Em seguida contamos com a participação de Carla Fernandes, Júlia Solano e Rogério Barros, Associados do IPB, que nos trouxeram uma importante teorização sobre o corpo e a psicose, articulando com aspectos do filme.

Carla Fernandes nos aponta para a diferença entre “ter um corpo e ser um corpo”, destacando que a experiência da entrada na linguagem permite ao homem acreditar que tem um corpo. Se, por um lado, o neurótico acredita que tem um corpo, por outro lado, a questão de ser um corpo, um corpo fragmentado, se impõe constantemente para o esquizofrênico. O que permite a passagem do ser um corpo a ter um corpo na constituição do falasser é a significação fálica. Se um corpo é justamente o que nos permite representar o mundo, Carla nos aponta para a importância das intervenções dos que lidam com as crianças no filme e seus efeitos no corpo delas, mostrando que uma das intervenções permite o investimento libidinal na canção, deslocando momentaneamente o gozo que invade o corpo para o campo da realidade.

Júlia Solano nos retorna ao texto de Freud, “Mal Estar da Civilização”, onde ele coloca que o mal estar inerente à condição humana é proveniente de três fontes: o corpo, a relação com os outros e o mundo exterior. Destaca assim, a partir do filme, a dificuldade encontrada pelo psicótico na sua relação com os outros, levando-se em consideração que ele não faz laço social e seus comportamentos, muitas vezes considerados bizarros, denunciam isso na sua relação com o mundo exterior e na relação que estabelece com o próprio corpo. Júlia nos fala ainda da fragmentação do corpo na psicose, destacando a importância do corpo estar marcado por uma borda, para assim dar ao sujeito a noção de interior e exterior. Ressalta a relevância da delicadeza e fineza das intervenções feitas pela equipe, todas apontando para a construção de um corpo, tornando assim possível para estes sujeitos uma separação mínima entre eles e o Outro e ao mesmo tempo promovendo uma regulação de gozo que lhes permite inserir-se no campo social.

Craig Kucia, i sing with my ears closed, 2007

Rogério Barros, partindo do pressuposto freudiano de que “o eu é essencialmente corporal” (1923), nos diz que toma essa noção como central para pensar intervenções psicanalíticas em casos de psicose e autismo, especialmente em crianças e adolescentes. Para ele, o que pôde extrair do trabalho que acontece no Courtil é “a possibilidade de uma prática com sujeitos cuja carne denuncia a marca da incidência do significante, mas o corpo, enquanto unidade, não se fez possível.” Questiona se há uma dimensão da unidade corporal. “Será que podemos falar em ter um corpo e ser um corpo?” Observa que as intervenções no Courtil miram algo da organização corporal, favorecida pela simbolização da extração de objeto realizada por via de recursos lúdicos ou no trivial.

No debate aberto ao público surgiram várias questões, dentre elas um questionamento entre a diferença entre “bricolagem” e “invenção”. Bem como, questionamentos que chegaram da pedagogia sobre o tipo de limite que é necessário no tratamento para crianças psicóticas e qual é o limite que é dado na escola, pela educação.

Para finalizar, trago aqui as minhas contribuições enquanto representante do CIEN, destacando que podemos articular a prática realizada no Courtil com alguns princípios do Cien. Os profissionais da Instituição, atravessados pela psicanálise lacaniana não obturam a produção de saber das crianças, pois estão tocados pela pergunta sobre o saber de cada uma delas. Assim, a lógica que opera é a lógica da pergunta constante sobre elas: o que tenta fazer? Qual a sua dificuldade? O que lhe permite certas coisas? Observamos que em nenhum momento aparecem respostas pré-estabelecidas, nem protocolos impostos. Trata-se de um trabalho de criação constante da equipe e dos jovens, assim como na prática do Cien.

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“17 Filles”

by cien_digital in Cien Digital #18, Cine Cien

Sobre o filme de Delphine & Muriel Coulin, 2011
Mônica Campos Silva

Will Cotton, fot. e cenografia de Elle Fanning
New York Magazine – Spring 2013, pg 109

Em 18 de março tivemos a primeira atividade do Cien Minas em 2015. O Cine Cien, coordenado por Maria Rita Guimarães, exibiu o filme 17 FILLES, permitindo-nos investigar o tema da Jornada Internacional do Cien, “Crianças Saturadas”, que acontecerá no VII Enapol, bem como o da XIX Jornada da EBP-MG, “O Que Quer Uma Mãe Hoje?”. A conversa se estabeleceu a partir da pergunta: o que leva dezessete meninas a engravidarem simultaneamente na mesma escola? Isso porque o filme encena o acontecimento em uma instituição de ensino na qual dezessete adolescentes ficam grávidas ao mesmo tempo.

Cristina Drummond inicia seu cuidadoso comentário apontando que há algo de diferente com a protagonista que se coloca como exceção, como um saber. Assim, observamos as novas manifestações diante do impossível encontro dos sexos, que no humano só se liga pela linguagem e pela fala. Camile, em sua adolescência, acredita que ter o bebê a levará a uma vida sem abandono e devastação. Cristina destaca que o filho, como tomado por Camile, está somente no campo feminino, sendo excluído desta cena a mãe e o homem. Teresa Mendonça em sua intervenção lembra que não é a falta de informação ou a condição social que produzem a gravidez na adolescência, já que há toda uma subjetividade a permear tal escolha.

Utilizando a referência de Stevens, observamos que na adolescência o sujeito busca uma resposta sintomática, não necessariamente patológica, para o real que se apresenta, sendo o momento de constituição de um novo sintoma e de reorientação da fantasia. É necessário que na adolescência se restabeleça o sentimento de vida, ou seja, que apesar do que muda em sua imagem corporal, seja possível reconstituí-la. O sintoma é, então, a escolha de um nome, de uma profissão, de um ideal, de uma mulher, de um homem. Assim, indagamos, em nossa conversação, se alguma questão em relação à maternidade ou mesmo ao ato se apresenta para estas garotas. Parece que de imediato não, e mesmo diante da descoberta da falsa gravidez de uma das meninas, o tratamento dado, embora cause um mal estar inicial, é delas brincarem com as penas da falsa barriga. O que significa então, estar ou não grávida? Uma cena indica que alguma angústia, diante desta questão, é vivida quando a protagonista vê a imagem do bebê, no ultrassom. Ao que parece a concretização da imagem faz algo cair, fazendo-a confessar que “antes não podia imaginar”.

Lara Schnitger, I Want Kids, 2005

A conversação também localiza o tratamento dado pelo social e pela escola e as justificativas que estes tentam construir para o evento das dezessete adolescentes grávidas.  Neste sentido, vemos que a sociedade, incluindo o educandário, buscam respostas nas falhas econômicas e de informação, bem como de efeitos de grupo para tentar padronizar e normatizar o que aparece como furo.  A escola anseia que o real fique fora de seus muros.  Entretanto, podemos extrair que, mesmo sendo um evento coletivo, a pergunta sobre o que levou dezessete meninas a ficarem grávidas ao mesmo tempo, só pode ser respondida no um a um, sendo o um de cada um sozinho.

Outro aspecto apontado na conversação é o fato de que contemporaneamente, com a queda dos ideais, o que se propõe aos adolescentes é que entrem no mundo do consumo. Sabemos que o mundo do consumo, dos objetos consumíveis, não permite facilmente restabelecer ideais, mas provoca o desejo de ter os objetos que são valorizados na sociedade, objetos consumíveis. Poderíamos pensar que a série iniciada com a gravidez de Camille seja esta?

O filme nos instigou ainda mais para nos dedicarmos aos temas de trabalho deste ano. Ao mesmo tempo em que revela a antiga questão da identificação e a formação de grupo sintomática entre os adolescentes, a apresenta de um modo muito atual, pois encena o declínio dos ideais e das referências.

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