Pedro Braccini Pereira[1] Não nos é habitual, para designar os adolescentes que vem nos ver…
Alexandre Stevens1 nos fala do trabalho com meninos de rua na Bolívia2
Tradução: Samyra Assad
Revisão: Maria Rita Guimarães
Pergunta: Como se chama a instituição boliviana na qual o senhor trabalhou?
Alexandre Stevens: Ela se chama Uyarina, que em quéchua quer dizer “falar”. Mas, lá, ela é chamada pelas crianças principalmente pelo nome do lugar onde são acolhidas, que se chama, em espanhol, Punto de Encuentro portanto, Ponto de Encontro. Essa instituição nasceu porque uma jovem colega de lá, Sofia Guaraguara, trabalhou, há alguns anos, em Cochabamba, na Bolívia, com meninos de rua. Ela estava fazendo, ao mesmo tempo, sua formação em psicanálise. Ela reuniu-se com essas crianças simplesmente para conversar e escutá-las, talvez se colocando em risco, em alguns momentos, na época. É o que ela diz hoje, apesar de nunca ter tido problemas graves. Acontece que quando ela decidiu partir, porque ela veio para a Europa, algumas crianças lhe perguntaram: “Mas então, quando você for embora, quem será nossa psicóloga”? Foi o que a fez decidir fundar essa instituição, a fim de passar o bastão desse trabalho que ela fazia de forma isolada. Desde então trabalham nessa instituição alguns psicanalistas e outros participantes orientados pela psicanálise que são psicólogos de formação, alguns que são educadores ou pedagogos, enfim, professores, já que a instituição é, ao mesmo tempo, um lugar de escuta e um lugar de reforço escolar para as crianças mais novas.
O que chamamos “meninos de rua” é uma população bem variada: temos por um lado, jovens adolescentes e jovens adultos que estão na rua e nela passam todo o tempo, que dormem na rua em lugares bem específicos, localizados em algumas praças. Alguns dormem nos morros vizinhos. Por outro lado, existe outra população que é seu prolongamento: geralmente são as crianças da população anterior e não ficam o tempo todo na rua. Às vezes ficam nas ruas, mas às vezes numa instituição. Eles vão à escola, de vez em quando, às vezes são acolhidos por uma família ou numa instituição. As situações são muito variadas. Com os mais novos também é feito um trabalho para ajudar no reforço escolar, para ajudá-los a se reintegrarem ao mundo escolar e a obter certa localização no mundo institucional. Os meninos de rua propriamente ditos permanecem mais nas ruas e vem para o Ponto de Encontro unicamente para um trabalho com a palavra, digamos, um bate papo.
Pergunta: Então, no espaço físico dessa instituição, há um lugar para os encontros destinados às entrevistas e também um espaço mais voltado para a área escolar?
Alexandre Stevens: Fisicamente, é um cômodo que deve ser mais ou menos quinze metros quadrados. A instituição é dividida em três. Na parte maior se encontra uma mesa em torno da qual alguns se colocam e que serve como lugar de encontros mais públicos, especialmente de trabalho escolar. Depois há dois pequenos consultórios, cada um perfazendo três a quatro metros quadrados: são os lugares onde se fala em particular com um participante/professor, com alguma discrição. É bem pequeno como local. Isso acontece nesses lugares onde se encontram crianças de rua. É um lugar onde se localiza inclusive uma das principais delegacias de polícia, que, dependendo da ocasião, intervém também junto dessas crianças, mas, é preciso dizer, de uma forma diferente.
Pergunta: É a proximidade geográfica que permite captar essas crianças para um trabalho no Ponto de Encontro, mas, haveria um deslocamento dos praticantes para o encontro com algumas crianças na rua?
Alexandre Stevens: Existem os dois. No início, esses encontros eram feitos na rua e depois se abriu esse local que fica na praça. Ao lado dessa, há um morro no qual existe um grupo bem expressivo de crianças de rua. Mas eles (trabalhadores da Uyarina) também vão ao encontro de crianças de rua em outros lugares. Hoje, essencialmente, eles estão localizados nesse lugar que é próximo das ruas onde estão essas crianças.
Pergunta:Qual postulado teórico orienta o trabalho dessa instituição?
Fala-se aí de psicanálise aplicada, e, se assim for, como se recusa e se adota essa orientação?
Alexandre Stevens: É uma instituição que se pretende psicanalítica e que é de orientação da psicanálise aplicada. Essencialmente, Ponto de Encontro é um lugar onde os jovens podem vir falar, onde eles são escutados por psicanalistas ou por pessoas em formação analítica. Mas, além da assistência escolar da qual falei, não acontece nada mais. Esses meninos de rua são, por outro lado, ajudados pelas instituições religiosas para os cuidados necessários, que lhes dão um pouco de alimentação, de leite, coisas assim. A especificidade do Ponto de Encontro é, justamente, não se ocupar de todas essas necessidades e ser somente um lugar onde se pode vir falar. Trata-se de um lugar que é unicamente orientado pelo sistema de referência psicanalítica. Não obstante, principalmente para as crianças menores, existe todo um apoio escolar que é mais implementado. Assim, a referência é psicanalítica, mas, por outro lado, não exclui o trabalho com a pedagogia, na medida do possível e do necessário. Quer dizer, o máximo possível.
A questão que se coloca inicialmente é, quando se diz “um lugar para vir falar”, primeiramente conseguir que a palavra possa querer dizer alguma coisa para eles. Pois são jovens que, frequentemente, ocupam seu tempo brigando e se drogando nessa praça. Existem algumas meninas, existem relações sexuais, elas também têm filhos, mas não há, de fato, casais. Isso circula de modo diferente. A parceria deles é mais a briga e a droga mais barata do mundo, ou seja, a cola. Por outro lado, vir falar implica, de início, ter vontade de falar. Mas isso não é muito a praia deles. O hábito deles é brigar, interpelar, falar na delegacia policial. Vir para falar como tal não faz parte da rotina deles. A primeira coisa é colocá-los diante da ideia mesma de que é possível falar, falar de si, de uma dificuldade encontrada, etc.
Pergunta: Sem que isso seja um interrogatório policial…
Alexandre Stevens:De fato. O que é muito surpreendente é que a polícia os chama somente por seus apelidos. Todos eles têm um apelido e assim são chamados entre eles. Os apelidos são dados por uma característica física ou um hábito. Um deles é chamado de “o chinês”, pois ele tem os olhos um pouco puxados; outro, “criança do lixo”, pois ele se aloja sempre perto das lixeiras. São apelidos que têm um sentido, como, aliás, todos os apelidos do mundo. Então, a polícia os chama por seus apelidos, enquanto, no Ponto de Encontro, nós os chamamos somente por seus nomes. Pediu-se que seus nomes fossem declarados e, pouco a pouco, é o único lugar onde são chamados pelo nome e sobrenome, enquanto em outros lugares são chamados pelo apelido.
Pergunta: Os apelidos usados pela polícia são aqueles que ela dá para esses jovens, ou são apelidos que os jovens se dão, eles mesmos?
Alexandre Stevens:São apelidos que eles mesmos se dão. Aliás, contaram-me um incidente. A polícia deteve uma jovem – pois de tempos em tempos isso acontece em função da violência que excede entre eles, e é quando a polícia irrompe. Era uma jovem e a polícia perguntou-lhe seu apelido; ela disse que não tinha. A polícia não quis acreditar nela e ela o inventou, na hora, para a polícia: “criança de rua”. É divertido, pois ela se designou por isso que ela era do lado da identificação. O apelido identifica do lado imaginário, mas identifica, ao mesmo tempo, do lado do sentido. Enquanto o nome marca uma distância em relação a isso. A palavra implica, pois, o nome, isso implica que se fale em seu nome, e implica certa responsabilidade subjetiva. Todo o trabalho é chegar a que se tenha aí uma implicação subjetiva.
Estar na rua é uma escolha, frequentemente uma escolha forçada do sujeito por razões econômicas, mas também por razões de estrutura. Eu encontrei algumas dessas crianças de rua. Escutei falar de muitas delas no plano das discussões clínicas e devo dizer que estamos amplamente no campo da psicose. São pessoas fortemente desamparadas no mundo para se juntar a esse mundo muito marginal, aliás, como uma parte dos Sem Domicilio Fixo (SDF) para nós. Mas isso não é somente por uma questão econômica. Existem, ao mesmo tempo, razões econômicas e as razões de estrutura subjetiva que fazem com que eles se encontrem assim na rua.
Pergunta: A realidade desse trabalho com as crianças de rua faz um chamado para outro sistema de referência do que o da estrutura, da transferência, dos conceitos que temos o costume de utilizar? Chegamos com as referências psicanalíticas da mesma maneira nesse trabalho? Ela encontra a mesma pertinência?
Alexandre Stevens: Sim, totalmente. Do lado da estrutura do sujeito, a questão se coloca sempre quando se debate isso clinicamente. Os efeitos de transferência são incontestáveis quando nós os vemos encontrar um ou outro educador no local. Mas o que me parece mais surpreendente é o que se passa ao nível da responsabilidade subjetiva. Por exemplo, fui informado sobre um caso clínico de uma jovem adolescente que está parcialmente na rua e parcialmente na escola. Na rua, ela já foi violada, sofreu efeitos de toda uma série de devastação inerentes à passagem pela rua e também já foi drogada. Na escola ela chora por ser injuriada pelos colegas de classe, onde a tratam como “menina de rua” e também “de ter sido violada”. Ela toma isso como uma injúria. Quando um dos responsáveis da instituição vai com ela à escola, ele descobre que ela se faz injuriar pelos outros, mas é porque ela mesma contou para os outros que ela é uma criança de rua, que ela se fez violar, etc. A partir daí, falando disso novamente, ela bruscamente compreendeu que a palavra tem um efeito. Que o fato de que ela falou tinha esse efeito. E pela primeira vez depois dessa sequência – quando ela já tinha ido falar regularmente no Ponto de Encontro, mas aí, sempre queria falar apenas em público –, pediu para falar num consultório, para que ninguém escutasse o que ela dizia. Aí está um efeito de construção sintomática e de tomada de uma responsabilidade subjetiva, nisso que falar quer dizer, e nisso que lhe traz como consequências. Ela é injuriada porque ela mesma forneceu ao outro os instrumentos para injuriá-la. A partir disso, tomando em consideração pela primeira vez o lado subjetivo, ela pôde trocar parcialmente de posição. O trabalho consiste muito em fazer aparecer essa responsabilidade subjetiva dos jovens. Nesse sentido, essas são as referências que temos na psicanálise, caso por caso.
Pergunta: Trata-se então de fazer aparecer essa referência subjetiva mais além do contexto social e econômico, pelo qual não é preciso se deixar cegar totalmente…
Alexandre Stevens: Exatamente, pois o contexto econômico e social é apenas uma parte do problema. Ele existe efetivamente, mas há certo número de reações possíveis, e, no fundo, são essas reações que essa instituição procura deixar abertas para esses jovens, na medida em que eles estão prontos para reagir a isso.
Pergunta: Eles são todos psicóticos?
Alexandre Stevens:Não poderia dizer que todos o são. Mas, daqueles dos quais escutei falar e por esses com quem rapidamente encontrei, muitos me pareceram psicóticos e, sobretudo, os que permanecem nas ruas. Desses que estão nas ruas sem regularidade e que, em parte estão na escola, particularmente a jovem de quem falei aqui no plano clínico, parece-me menos seguro que sejam psicóticos. No quadro desses jovens que não são completamente “meninos de rua”, são jovens em perigo, na margem entre a rua e a inserção. Alguns deles não são psicóticos, seguramente. Não tenho a estatística disso mas é uma impressão bem sustentada a partir do que escutei.
Pergunta: Em que consistiram suas intervenções diante dessa equipe e com as crianças?
Alexandre Stevens: Fui convidado para discutir com eles sobre seus casos clínicos, mas na condição de que eles escrevessem um livro sobre isso. Eles queriam formalizar um pouco seus encontros clínicos e o trabalho que eles fizeram, para colocá-lo no papel e extrair disso um ensinamento. Eles tinham me convidado para supervisionar, para ajudá-los a formalizar seus casos clínicos, as situações que eles encontram e o trabalho que fazem. Durante quatro dias, meu trabalho consistiu em fazer isso com eles. E ainda dei uma conferência na Universidade sobre o tema dos meninos de rua. Havia muitas pessoas, fiquei muito impressionado com isso. Com as próprias crianças, só tive um breve encontro com um grupo na praça, em frente ao local de Uyarina. Um encontro que foi muito interessante. Não os encontrei sozinho, pois eles não me conheciam. Eu os encontrei com a equipe que os atende regularmente.
Assim que os vimos na praça, o que me impressionou muito foi quando eles estavam justamente entre dois bandos, a ponto de se baterem um pouco. Digo um pouco, pois é, em alguns momentos, mais violento, e, em outros, menos. O fato é que eles rapidamente pararam para ver chegar as pessoas de Uyarina e, nisso, dizendo explicitamente: “vamos falar”. O que é muito interessante, é que a ideia de ir falar reduziu o volume da violência.
O outro efeito é que, no momento em que eles falam, eles não se drogam. Isso diz que eles se drogam permanentemente. Os jovens dessa praça ficam permanentemente paralisados com recipiente branco de cola, a Kefla tal como eles chamam isso, cheirando, salvo quando eles estão prestes a falar e aí eles a colocam no bolso. Então é um simples e pequeno efeito bem localizado, a partir do qual pude ver como a fala reduz a violência e reduz o consumo, pelo menos em alguns instantes.
Pergunta: O senhor já falou de um caso particular. Haveria outro caso a partir do qual gostaria de nos dizer alguma coisa: um caso encontrado, ou através do qual o senhor supervisionou um trabalho junto aos profissionais?
Alexandre Stevens: Para ser otimista então, um caso totalmente interessante. É um jovem de rua, que já estava nas ruas há muitos anos, e que, recentemente, encontrou no ônibus a fundadora da instituição, Sofia Guaraguara. Ela não o reconheceu imediatamente, mas ele se apresentou e ela o reconheceu. Ele se tornou arquiteto nesse meio tempo. Para alguém que se encontrava na rua, colocar-se a construir casas, não é nada mal! Isso indica que existe uma dimensão de escolha que permite sair disso também. Achei bem extraordinário como percurso. E depois, lembro-me também que, na praça, reencontrando-os, um dos jovens conversava comigo, tinha outro que queria falar comigo ao mesmo tempo; ele parou imediatamente de falar, dizendo: “cada um fala na sua vez”. Isso também é um efeito da fala que achei interessante, não está do lado da fala grupal, mas foi “um a cada vez”.