
Editorial – Abril de 2013
by cien_digital in Cien Digital #14, Editorial

Sopheap Pich
Maria Rita Guimarães
Caro leitor,
No número inaugural do CIEN Digital dissemos, parafraseando Jacques Alain-Miller1, que sua ambição é “bem aquela de ser o Boletim eletrônico do real”. Desde então nos esforçamos por manter esse objetivo e esse número o comprova, de modo inequívoco. Não menos importante será constatar de que se trata de um objetivo compartilhado por muitos e de muitos lugares. Percorra os textos e veja a extensão geográfica aqui inserida, mapeada pelo fio orientador advindo das questões sobre o real, real das “crianças do real”, real de uma época em que seu ideal prescreve que se encaixe todo o excesso de cada sujeito numa classificação.
Vamos percorrê-lo! Que acha de partirmos de Buenos Aires? Partimos de lá ou vamos para lá? Claro, vamos todos à vizinha Buenos Aires, em 20 de novembro de 2013, por ocasião da Jornada Internacional do CIEN, que acontecerá junto ao VI Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana (Enapol), mas, primeiramente, partiremos da leitura de sua Apresentação, feita por Fernanda Otoni de Barros Brisset, coordenadora do CIEN no Brasil, com o texto: Prega leve no mundo do furor dominandis. Leia-o atentamente e detenha-se no convite:
As ressonâncias da Conversação de Salvador se farão ouvir no argumento que preparamos para animar a cada um de vocês, em especial, a enviar sua vinheta para esse encontro, cujo tema “Me inclui fora dessa – bússola que cada um inventa”, diz de nossa aposta nas invenções das nossas crianças e adolescentes, no seu saber fazer, em sua decisão apaixonada pelo futuro, se servindo do mestre (me inclui) ao prescindir dele (fora dessa) – traço fundante da juventude de cada época.
Argumento. Vamos nos deixar levar pela chamada ao trabalho produzida pela enigmática frase de um jovem: “me inclui fora dessa”, à qual Celio Garcia concedeu grande valor e para qual nos voltamos para “ler” o que há de saber aí inscrito. No argumento está escrito:
Esta Jornada do CIEN propõe-se ao exercício de nos esburacar, nossas vendas, nossos protetores de ouvidos, para dar lugar às formas variadas, à “varidade” (do sintoma), com as quais nos esbarramos cada vez mais.
Jornada Internacional do CIEN • Buenos Aires • 20 de novembro de 2013
Os indicativos de que a frase “me inclui fora dessa” nos provoca, já se mostram: você encontrará três elaborações da mesma, ressoando a natureza interdisciplinar do trabalho do CIEN. Cristiana Pittella, apoiando-se em Miller, reporta-se à ideia de exclusão interna, referindo-se ao paradoxo de Russel, aquele do barbeiro que “se barbeia a si mesmo, ele não é o barbeiro que barbeia todos aqueles que não se barbeiam: se ele é, não é.” Após evocar Groucho Marx, deixa-nos a pergunta se a frase estudada não indica alguma possibilidade de socialização do gozo e abertura ao laço social.
Como é a abordagem do oximoro “me inclui fora dessa” pela matemática? Fernando Prado introduz-nos no mundo das probabilidades, utilizando-se do evento do lançamento de duas moedas, para nos propor uma interessante leitura dos conceitos de independência, disjunção, intercessão, exclusão.
No trabalho de Hernán Villar encontramos o mito da Hidra de Lerna, que, com três cabeças, Mercado, Ciência e Técnica, obriganos a pensar no empuxo à hiperdisciplina. Através de cuidadoso desenvolvimento de suas formulações, o autor analisa suas consequências em nossas vidas, submetidos como estamos ao comando das figuras acima destacadas. Incluir-se fora das etiquetas apresenta-se como uma bufada de ar fresco para cada um.
Sim, a psicanálise oferece a oportunidade de bons ares ao sujeito, ao mantê-lo ao abrigo da pulsão de morte e lhe conceder a possibilidade de buscar um modo de viver melhor com seu real. Quem nos fala disso é Eric Laurent, na rubrica ENTREvista.
Nela, você encontrará as ideias que o autor apresenta em seu livro A batalha do autismo.
E os LABOR(a)tórios do CIEN? Frutificam seus efeitos e, sobre-tudo, frutificam os esforços do participante/analisante em extrair e formular as respostas que, de sua relação à psicanálise, pôde o-ferecer ao impasse que lhe foi apresentado. Margarete Miranda e Mônica Campos, através de duas preciosas vinhetas práticas, nos demonstram “como a experiência analítica de cada uma lhes serviu de apoio para sua ação levando em conta o real em jogo”2, nas instituições em que trabalham.
E os Laboratórios do CIEN também se frutificam, pois aqui vemos os registros de dois novos Laboratórios em formação, conforme nos relatam Claudia Reis, de Ribeirão Preto (SP) e Mônica Hage, de Salvador (BA). No texto A inimputabilidade e a bússola de cada um, Miguel Antunes nos conta como Ana Beatriz, a jovem etiquetada de “bandida” e destinada a “não ser nada na vida”, encontra seu lugar, um lugar na vida, auxiliada pela prática da Conversação interdisciplinar.
Em Órbita chegamos à Bolívia pela mão de Alexandre Stevens. Com ele podemos conhecer e aprender muito sobre o trabalho ali desenvolvido com meninos de rua. Situação extremamente semelhante ao que acontece no Brasil, encontramos em suas palavras uma generosa transmissão ,à qual nos resta agradecer.
A rubrica CineCIEN oferece-nos a oportunidade de focalizar o filme grego Canino (Kynodontas) à luz do que chamamos a política da psicanálise. Esse estranho filme é uma alegoria que nos conduz, pelo absurdo, ao encontro de uma família que vive num mundo intramuros, descontaminada do laço social, consequentemente, dos efeitos de subjetivação.
E, se chegamos até a Grécia, é hora de pensar em todas, algu-mas, umas, enfim, numa palavra que lhe ficou dessa trajetória. Queremos que nos conte, depois!
Boa leitura!

“Prega” leve no mundo do furor dominandis
by cien_digital in Apresentação, Cien Digital #14
Fernanda Otoni Barros-Brisset
“Tá dominado, tá tudo dominado”1, canta o funk na língua dos adolescentes, num mundo “dominado” pelas políticas de gestão das populações, pelas leis de mercado e utilitarismo cientifico. O controle da qualidade dos serviços, dos riscos, das pessoas, das famílias, parece visar o controle do futuro, sobretudo, através do etiquetamento e vigilância permanente sobre a infância. Mas, por outro lado, crianças e adolescentes demonstram que, no real, o que não cessa nesse mundo é o espaço de um lapso. Por essas brechas, furam o cerco que lhes fora destinado e inventam suas saídas para tirar o corpo fora da dominação geral.
Nos dias que correm, em resposta ao impossível de controlar, a fábrica das etiquetas trabalha sem parar. Às vezes, nem colam mais. A pulsão que não se deixa controlar, segue seu curso decididamente, perturbando a ordem geral, seja na sua forma criativa ou mortífera.

Tom Burr
Uma musicista infantil interroga na conversação do laboratório aFINARTE2: “Hoje ensino música como antes, mas porque os alunos não aprendem?” A resposta da patologia mental do aluno já não a convence. E quanto mais o amo insistir em enquadrar o fazer dos jovens nas etiquetas à disposição, por exemplo, classificando a sua arte como pixação ou grafitagem, mais a resposta pode ser surpreendente: “Sim, eu grapixo!”
O mundo do furor dominandis está em crise e as crianças sabem!
O traço da política do CIEN – As vinhetas levadas à conversação da III manhã de Trabalhos do CIEN Brasil, “Furando as etiquetas – O traço da política do CIEN”, que aconteceu em novembro de 2012, em Salvador, demonstram-nos que, à medida em que se verifica, nas instituições concernidas ao cuidado da criança, o que Lacan chamou dos impasses da civilização, ali um psicanalista deve se apresentar, convidando cada um a tomar a palavra para falar mais sobre isso. Eis a forma analítica de dispensar o aprisionamento ao discurso do mestre contemporâneo para dar lugar ao saber fazer de cada um. O CIEN encontra aí seu lugar como invenção, ao prescindir do formalismo do setting sem prescindir da experiência analítica nas conversações que ocorrem nas instituições que se ocupam das crianças e adolescentes. Através dos laboratórios do CIEN, a psicanálise conversa com os outros discursos, com o Outro de sua época, sem se deixar engolir por ele, abrindo alas para soluções singulares lá onde governam os significantes universais.
Aqui e acolá, encontramos laboratórios de antenas bem ligadas à variedade das práticas com as crianças de hoje. Lá, recolhem o impasse inter-disciplinar frente à criança que fala com seu corpo agitado, calado,perturbado, desobediente, irreverente, esquisito, armado e, tantas vezes, etiquetado pelos diversos discursos que dela se ocupam. A presença viva da oferta do CIEN faz abrir, na rotina do trabalho inter-disciplinar, um intervalo para conversar.
O bom uso das etiquetas

Bansky
A experiência analítica ensina que é ao falar que a inconsistência do discurso se apresenta, que os amos caem do trono, que o nó da crença nas etiquetas e protocolos se desata. Os manuais do controle, feito de protocolos e etiquetas, mais cedo que tarde, tendem a mostrar que não passam de semblantes de nossa época. O bom uso do semblante não se deixa colar, “prega” leve, aguardando a contingência da enunciação por vir. O saber autêntico da criança torna-se nossa bússola para ler o real, no momento atual.
Quando um adolescente foi suspenso de participar do laboratório SELEX3, sob a alegação de que outros adolescentes poderiam estar armados e não haveria como garantir a segurança, conforme reza o protocolo, o embaraço se instalou, até que uma enunciação esclarecida trouxe uma orientação para tratar o impasse. “Nossa arma é a conversa”. Lembrei-me do desejo decidido do colega Celio Garcia de que um dia o jovem pudesse largar suas armas e tomar a palavra.
O CIEN faz acontecer o intervalo, a abertura ao instante de ver os furos incrustados no tecido da norma rígida, no panneau das etiquetas médico, legais e sociais. Um psicanalista ali, dentre tantas vozes, ao fazer escutar um tom e outros, abre lugar para alojar o som inaudível e vibrante do desejo de cada um. As soluções são sempre sem par e inéditas, como cada conversação no CIEN testemunha.
Afinal, a conversação dos laboratórios do CIEN Brasil deixa saber que crianças e jovens inventam suas etiquetas, a boa etiqueta que lhe serve sob medida, um por um, surpreendendo o mundo com seu modo singular de traduzir o seu mais íntimo inclassificável. O que hoje está na ordem do dia, outrora foi o avant, vanguard. A criança vem na frente, a juventude é sempre vanguarda. O jovem fala, pensa, ele inventa moda. Isso se mostra e se demonstra por toda parte, na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais, desde que haja pelo menos Um disposto a escutar o saber da criança sobre o real de sua época e os impasses que lhe concerne.
“Me inclui fora dessa – a bússola que cada um inventa”
Se a III manhã do CIEN mostrou, de modo vívido, como um laboratório orientado pelo saber da criança frente aos impasses de seu tempo, sua transmissão nos permite, agora, dar um passo adiante. Avançemos rumo ao Encontro Internacional do CIEN, em Buenos Aires.
As ressonâncias da Conversação de Salvador fizeram-se ouvir no argumento que preparamos para vocês, como poderão ler a seguir, no espaço Hífen. Em especial, pretendemos com isso convidar você a enviar
sua vinheta para esse encontro, cujo tema “Me inclui fora dessa – bússola que cada um inventa”, diz de nossa aposta nas invenções das nossas crianças e adolescentes, no seu saber fazer, em sua decisão apaixonada pelo futuro, se servindo do mestre (me inclui) ao prescindir dele (fora dessa) – traço fundante da juventude de cada época.
As crianças e jovens são o futuro; cabem à eles inventar as suas saídas para os impasses atuais visando o futuro que lhes aguarda. Passemos então a palavra a eles. Eles inventarão, à sua maneira, uma nova resposta, eis aí a sua cota de responsabilidade. Uma nova geração está falando com seus corpos, com seus sintomas. Escutemos, eles portam o saber autêntico em condições de inventar a bússola que nos levará ao amanhã.
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Argumento para a Jornada Internacional do CIEN novembro de 2013 • “Me inclui fora dessa”
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Tradução: Maria Rita Guimarães
A bússola que cada um inventa.
“Me inclui fora dessa”1 – disse um garoto durante uma conversação na qual ele é perguntado se quer participar de tal proposta. Suas palavras sintetizam de um modo quase paradigmático o ponto central de muitas das experiências do CIEN. Por um lado, nosso esforço em constatar as respostas de cada criança ou adolescente ao forçamento a uma pseudointegração, disfarçada de pertinência, chamada “etiqueta”. Por outro, a vontade de verificar o grau de sofrimento que, ocasionalmente, seu modo de responder a isso pode lhe causar: inibição, sintoma, angústia, desagregação, alvoroço, imobilidade…
Damos um passo além e nos perguntamos como abrir possibilidades, nos diversos lugares que habitualmente recebem as crianças e os jovens – escola, clube, família, outros, – a que os adultos se mostrem atentos, sensíveis ao discernimento dessas modalidades de recusa, convidando, esperando que se aproximem, cada um a seu modo, para construir sua própria maneira de fazer, aquela com a qual irá nortear sua vida.

Efraim Almeida
Se isso fosse uma tarefa simples não estaríamos em torno do assunto há muito tempo, buscando formas e alianças. Costumamos situar o problema nas condições de vida da época, mas corremos o risco de nos esquecermos de que chegamos a esse estado de coisas graças às “boas intenções” de bem-estar e progresso dos seres falantes que somos. A história da humanidade revela que a vontade de submeter o homem pelo homem vem de longe e toma, hoje em dia, a forma do etiquetado que marca, e quando há uma marca, essa se pode monitorar, classificar-se, multiplicando-se na sua tentativa de que nada escape a seu domínio. Num cenário como esse “o exagero está subvalorizado” – como observa um personagem do filme “The A-Team” (Esquadrão Classe A). As instituições que recebem crianças e adolescentes se organizam, em sua maioria, a partir do que se conhece como critérios e normas que apontam para a normalização e classificação do desempenho de todos – crianças e adultos responsáveis. Parecem bradar: vejamos se este exagero pulsional de alguns pode ser compartimentado! Etiquetá-los traz a ingênua ilusão de que assim os dominam. Nada mais longe da realidade: o mundo é o que é, mas tanto Freud como Lacan nos deixaram posições que subvertem essa vontade dominadora. Mas, para isso, é preciso saber observar, ouvir essa subversão à flor da pele. Razão pela qual não é tarefa fácil pois não estamos feitos para querer distinguir o que é particular ao outro. Pelo contrário, é moedacorrente pensá-lo como um sistema de classes, uma tipologia, o que nos impede de ver o mais real do outro.
Esta Jornada do CIEN propõe-se ao exercício de nos esburacar, nossas vendas, nossos protetores de ouvidos, para dar lugar às formas variadas, à “varidade”2, com as quais nos esbarramos cada vez mais.
Como a que elegemos para encabeçar essa jornada, “Me inclui fora dessa”: um oximoro que tem a virtude de mostrar a estrutura elementar de um uso possível das etiquetas: sirvo-me delas à condição de poder permanecer fora de seu império, de sua influência, de sua sujeição.
Esperamos por vocês na quarta feira, dia 20 de novembro de 2013.
Local: Hotel Panamericano – Hora: de 14 a 19 horas – Buenos Aires
Eixos de estudo e investigação propostos aos integrantes de Laboratórios do CIEN
Como orientação, localizamos os casos em que o afã normativizante e normalizante é evidente:
- no âmbito científico, no qual proliferam mecanismos de avaliação e classificação incessantes.
- no mercado, que oferece fabricação de medicamentos, protocolos e instituições especializadas “ao gosto do freguês”.
- com as políticas de gestão (em vários campos disciplinares, tal como o pedagógico), que multiplicam mecanismos de produção e aplicação de normas e regulações de forma ascendente.
E, os modos de averiguação das respostas das crianças, adolescentes e profissionais envolvidos, como tentativa de incluir-se fora do afã da ciência, da tirania do mercado, de uma política de pura norma. Como exemplo, crianças que dizem que não (como aquele que enuncia “Je ne veux pas”, no filme A infância sob controle), ou aquelas crianças chamadas de perturbadoras (que desorganizam a ordem e estado das coisas).
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Contribuições: “Me inclui fora dessa”
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Cristiana Pittella de Mattos
Primeiras elaborações
a-Notado: “Me inclui fora dessa”
O que me encanta na expressão – “Me inclui fora dessa”- anotada e proposta pelo CIEN1, é que ela, vinda da boca dos adolescentes, revela um desejo fundamental do ser falante.

Yuri Firmeza
A primeira dimensão desse desejo revela-se no apelo ao Outro: “me inclui”.
Procura-se, com esse apelo, um lugar no Outro; diferente do que encontramos comumente em algumas práticas ou sintomas dos adolescentes, em que o sujeito visa uma recusa ou mesmo uma ruptura com o Outro.
Embora haja um apelo ao Outro, esse apelo não é o de ser fixado, aprisionado por significações do Outro, pois a segunda dimensão desejante na expressão anotada, é aquela de uma separação: “fora dessa”.
Não se trata de ficar fora do campo do Outro: “Exclua-me dessa”, mas de estar nele – fazer parte –, com algo fora dele: com algo singular.
Como estar nele e fora dele?
Essa fórmula – “me inclui fora dessa” –, revela, portanto, um desejo de inserção colocando em jogo as duas dimensões da constituição do sujeito, a alienação e a separação.
Miller, em seu texto Sobre o desejo de inserção, delimita dois tipos de inserção do sujeito:
- a primeira como identificação, quer dizer, o sujeito se representa pelo S1. É o que Lacan chamou de Alienação, uma identificação rígida, fixa, que seria como morrer, no sentido hegeliano de que a “palavra mata a coisa”.
- Por outro lado, há um segundo tipo, que Lacan denominou Separação, em que há uma nova vida quando vem um S2 – o saber, que faz renascer o sujeito. Nesta operação se desprende do corpo um resto de gozo, cuja produção é o objeto (a). (MILLER, 2008)
A produção desse resto na operação de separação instaura uma topologia em que podemos conceber uma exclusão interna: ao se constituir como sujeito, esse está diante de uma escolha forçada: perde-se a possibilidade de se ter todo o sentido e todo o ser.
Podemos pensar que “me inclui fora dessa” nos direciona justamente para este ponto de exclusão interna.
Em Matemas II, Miller demonstra essa exclusão interna com o paradoxo de Russel como matriz da relação do sujeito com a cadeia significante (MILLER, 1988, p. 45).
Para tanto, Miller utiliza a história do barbeiro que barbeia todos aqueles que não barbeiam a si mesmos. Como se barbeia o barbeiro? (MILLER, 1988, p. 35)
- Se ele é o barbeiro que se barbeia a si mesmo, ele não é o barbeiro que barbeia todos aqueles que não se barbeiam: se ele é, não é.
- Se ele não é o barbeiro que barbeia a si mesmo, ele é o barbeiro que barbeia todos aqueles que não se barbeiam a si mesmo: se ele não é, ele é.
Essa expressão paradoxal que analisamos também foi, curiosamente, bastante utilizada há tempos – no entanto, com a correta colocação pronominal: “Inclua-me fora disso” –, pelo comediante estadunidense Groucho Marx (1890/1977) o mais criativo dos irmãos Marx.
- “eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”;
- “Vamos descobrir um tesouro naquela casa? – Mas não há nenhuma casa… – Então vamos construí-la!”;
- “Eu não posso dizer que não discordo com você”…
Verificamos como há uma “ambiguidade irresolúvel que está no fundo de toda piada”, nos diz Freud, e como “o humor não é resignado, mas rebelde” (FREUD, 1927) colocando em jogo um descentramento do eu, mas, também dos ideais reguladores da vida social.
Evocamos Groucho Marx e sua capacidade criativa pois nos perguntamos se nessa expressão “me inclui fora dessa” –, se presentifica uma dimensão espirituosa, dimensão do humor e com ele, o trabalho de desidealização do objeto e da sublimação, possibilitando uma certa socialização do gozo e integração ao laço social. (MILLER, 2009)
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Dentro e Fora
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Fernando Prado1
Resumo
O texto a seguir é o resultado de um diálogo entre um matemático e uma psicanalista. Sem nenhuma pretensão de rigor cientifico, o autor estabelece um paralelo entre conceitos da teoria das probabilidades e independência entre indivíduos.
Um dos conceitos mais importantes da teoria das probabilidades é o da independência de eventos. Dizemos que dois eventos A e B são independentes se, dado a informação sobre a ocorrência de um evento, não for possível obter mais informação sobre a ocorrência do outro. Por exemplo, considere o lançamento de duas moedas. Vamos denotar o resultado desse experimento por (x, y), sendo x o resultado da primeira moeda, e y, o da segunda. Para facilitar a notação, suponha que (x, y) = (1, 0) denote o resultado em que a primeira moeda é cara e a segunda, coroa, e assim por diante. Assim, o espaço de todos os resultados possíveis é S = {(1, 0); (1, 1); (0, 1); (0, 0)}.
Dado que o resultado da primeira moeda é cara, qual seria a probabilidade de observarmos cara na segunda moeda também? Não é preciso ser um especialista para aceitar que o resultado da primeira moeda não altera nossas avaliações sobre a probabilidade da segunda moeda resultar em cara. Nesse sentido, dizemos que tais eventos são independentes.

Liu Bolin
Curiosamente, o conceito de independência, embora bem diferente e, em certo sentido, até mesmo antagônico ao conceito de disjunção, parece se confundir com o último. Dizemos que dois eventos A e B são disjuntos se a intercessão entre A e B for vazia, isto é, se não existir nenhum resultado em comum a A e B. Tais eventos também são chamados de mutuamente exclusivos, no sentido de que a ocorrência de um implica a exclusão do outro e vice-versa. No caso do lançamento das duas moedas mencionado acima, os seguintes eventos são disjuntos: A = evento em que a primeira e a segunda moeda são caras (A = {(1, 1)}), e B = evento em que a primeira e a segunda moeda são coroas (B = {(0,0)}). De fato, a ocorrência de A exclui a ocorrência de B, e vice-versa. Agora, estes eventos não são (em nada) independentes, pois a probabilidade da ocorrência de um, dado a ocorrência do outro, é zero – muito embora a probabilidade incondicional tanto de A, como de B seja 1/4.
Um paralelo ao processo de identificação social me parece natural. Esse paralelo sugere que a independência entre grupos sociais não implica disjunção ou auto-exclusão das características que os definem. A independência, ao contrário, pressupõe certa medida de intercessão entre as partes, em que a proporção entre a intercessão e qualquer uma das partes envolvidas é a mesma entre qualquer uma das partes e o todo. No caso do lançamento das duas moedas vemos que o evento em que a primeira moeda é cara, é independente do evento em que a segunda moeda é cara, note a igualdade entre as proporções:

Análise Combinatória
Acima, Card A denota o número de elementos do conjunto A; por exemplo, Card {(1, 1); (1, 0)} = 2, pois o conjunto {(1, 1); (1, 0)} é formado de dois elementos: o par (1, 1) e o par (1, 0).
Uma forma de expressar independência numa relação implica, portanto, expressar certa medida de intercessaõ (não vazia) entre as partes envolvidas. Sob esse ponto de vista, um desejo de independência por parte de um adolescente pode ser acompanhado pelo pedido latente de inclusão de apenas uma parte (e não menos que essa parte) de suas características num determinado conjunto de valores, de tal forma que este se sinta independente dos mesmos. Muitas vezes, no entanto, a identificação é com o complemento, isto é, tudo menos o conjunto de valores proposto, correspondendo a um estado de total dependência entre as partes, como A e AC (onde AC = tudo que não pertence a A). Analisado por esse ponto de vista, o termo empregado por adolescentes “me inclui fora dessa” expressa justamente isso, o melhor “tudo menos isso”.
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Nota sobre o empuxo à hiperdisciplina
by cien_digital in Cien Digital #14, Hífen
Hérnan Gustavo Vilar – Buenos Aires
“Se pudesse simular o mais de gozar, isso manteria muita gente entretida.”
Jacques Lacan
O Mestre “sem cabeça” da Hipermodernidade
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
Com mais de trinta anos dessa afirmação, na chamada hipermodernidade, ocorreu-me perguntar a mim mesmo que terá sido da cabeça do soberano.
Efetivamente parece-nos que o rei foi decapitado, mas, surpreendentemente, vemos surgir do corte, como se fosse da Hidra de Lerna1, três cabeças: O Mercado, A Ciência e A Técnica. A coroa foi parar, como uma carapuça, na testa de uma soberana bastante volúvel e desorientada: A Opinião Pública.
Com semelhante Corte, é oportuno pensar nas características que o ordenamento, por via do direito positivo, passa a ter, em nossos dias, dos discursos imperantes. Uma legalidade baseada em evidência, acumulação de provas que via a digitalização, já não reconhece os limites de espaço e tempo.
A transparência, esta paixão da sociedade contratual, administrada pelos meios massivos de comunicação, torna-se invisível por seu excesso.
Assim a técnica, como política de forclusão da política, apresenta-se a nós, da mão das ciências e do mercado ao saber, como uma mercadoria a mais (Obsolescência programada2 incluída), no fluxo incessante dos gadgets oferecidos na era do “capitalismo sem fricções”.
O declínio das figuras de autoridade baseadas na experiência e sua substituição por modelos simulados de gestão reproduzível são solidárias das formas mais duras de segregação.
O ordenamento pelo direito dos discursos que se ocupam da Saúde Mental apresenta, nessa época, um traço particular que me interessa destacar: trata-se das “boas práticas standards”, baseadas na evidência calculável, mensurável, previsível, reproduzível.
A produção de provas positivas conduz à proliferação de perícias e peritos: aquilo que se chamou “a inflação das especialidades”, a promoção ilimitada de “saberes especializados”.
Nós que recebemos crianças e adolescentes em nosso consultório (ou em outros âmbitos de trabalho), somos requisitados com frequência a informar à escola, às instancias oficiais, aos tribunais e, ainda, às empresas de medicina pré-pagas e obras sociais, sobre o andamento de nossos tratamentos, com que frequência atendemos aos jovens, etc.

Rosângela Rennó
A subordinação aos protocolos de avaliação, tal como o mapa do Império de que falava Borges, não deixa de ter efeitos no Real.
Cada vez que nos juntamos para conversar com os professores ou com os responsáveis das equipes de orientação escolar, assinam-se atas, contribui-se a engrossar um dossiê que, às vezes, tem a força de um prontuário policial. Ex–maridos que disputam a guarda dos filhos solicitam perícias sobre as crianças ou as mães. Pais que, “exercendo seus direitos de usuários” dirigem-se a nós exigindo solução para problemas em relação aos filhos sobre os quais não reconhecem pouca ou nenhuma responsabilidade. Dirigem-se ao “douto especialista” como se esse fosse um técnico em eletrodomésticos, cobrando um “conserto garantido”.
Informações são acumuladas, histórias clínicas, diagnóstico multiaxiais, que contribuem para etiquetar esses sujeitos, e, pouco a pouco, empurrá-los a uma adaptação procustiana ou à sua segregação.
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
2 – Do assistencialismo ao clientelismo.
“Onde há uma necessidade, nasce um direito.”
Eva Perón
Durante boa parte do século XX, as reivindicações sociais dos setores historicamente mais desfavorecidos, ainda no seio do chamado mundo capitalista, estiveram orientadas pelo ideal do progresso e bem estar: poderíamos situar nesse contexto uma série de políticas cujo imperativo pode ser formulado do seguinte modo – “Se é necessário, deve ser possível.” Surgiram daí o que podemos chamar de dispositivos assistencialistas, cuja crítica excede os propósitos do presente trabalho. Limitar-me-ei a realçar que na busca de soluções “para todos”, muitas vezes o público avançava sobre o privado (campanhas obrigatórias de vacinação, programas compulsivos de controle de natalidade, barreiras sanitárias, penalização do consumo de substâncias, etc.).

Hans-Peter Feldmann
Com o fim da Guerra Fria e o predomínio das ideias neoliberais, o paulatino retrocesso do “estado de bem-estar social”, ocorreu a queda dos marcos reguladores, favorecendo, dessa maneira, o desaparecimento das fronteiras entre o público e o privado, à custa do “privatizado.”
Desse modo, muitas das gestões que os agentes do Estado foram abandonando ficaram nas mãos de diferentes fundações, ONGs, ou programas de “Responsabilidade Social” das empresas, que assim, aliviam sua carga fiscal.
Como muitos desses programas sociais são financiados por organismos multilaterais de crédito e, outras vezes, mediante angariação de fundos, devem garantir o sucesso e a reprodutibilidade de suas ações submetendo-as ao controle de comitês de avaliação, painéis de consenso de peritos e sustentar, por sua vez, políticas de fidelização através de associações de usuários que, muitas vezes, atuam como lobistas perante os poderes públicos.
Frequentemente encontramos na gestão pública diversas áreas que se terceirizaram: as consequências são idênticas.
Essa mudança nos modelos de gestão inverte o paradigma anterior: no mundo globalizado já não se trata de “se é necessário, é possível”. Hoje, o que é possível, deve ser necessário… já que os programas e soluções para todos se regem segundo as leis do mercado e os direitos se transformaram em direitos do consumidor.
Como a satisfação deve ser garantida, se um programa não funciona, ropõe-se outro e outro, como acontece com os planos de telefonia: o destinatário das ofertas que se superpõem, não é mais tomado como aquele de um programa de assistência, mas como cliente de um sistema.
Como bem postula a Teoria Geral dos Sistemas, todo sistema se autorregula: o problema é que essa autorregulação deixa de fora o contingente, arrasa o particular e, em seu movimento centrífugo, expulsa aquele que não se adapta. Isso vale tanto para os assistidos como para os profissionais envolvidos.
Em uma experiência recente, no sul de Buenos Aires, Beatriz Udenio e eu fomos consultados pelos responsáveis da articulação dos programas nacionais, estaduais e municipais destinados à reinserção social de menores com processos judiciais.

Ana Holck
Em um dos casos em discussão no trabalho – de uma jovem de dezesseis anos- haviam dezoito equipes intervindo. Certamente que, mais além de algum aspecto de anedota, a jovem em questão não deixava de ser um dado estatístico, uma apresentação em Power Point. O caso número 1, uma superposição de etiquetas policiais, judiciais, policiais, sociológicas, morais, etc.
Se bem havíamos sido convocados e apresentados como “experts”, a aposta foi “nos incluir fora” dessa etiqueta, o que nos permitiu abrir uma Conversação.
Ainda que se tratasse de um grupo muito grande e muito diverso de participantes, algo do que chamamos a prática entre vários pôde acontecer, pôde situar que existe o incurável, o ineducável, o ingovernável: produziu certo alívio nas tensões imaginárias e um relançamento do trabalho.
Esburacar-nos, dessa vez usando o oximoro “Me inclui fora dessa”, precipitado de uma rica experiência do CIEN brasileiro, permite-me ilustrar o modo fecundo que, em cada um de nossos encontros, nos deixa “um pouco transformados”.

Gutai
A época empurra-nos a um saber trans, hiperdisciplinar, um saber expert e assegurável, que se pode provar como “a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade”: os psicanalistas, estamos advertidos de que pela verdade se luta (se dan de a palos), que sempre é não-toda e que o saber é aquilo que cada um pode inventar com seu sintoma.
Diante desta banda de Möebius que une em um sem fim possibilidade e necessidade, o desafio é, a cada vez, dar lugar ao impossível e saber aceder-se à contingência.
Referências Bibliográficas:
Giorgio Agambem: Medios sin Fin. Biblioteca de Filosofía Editora Nacional Madrid, 2002.
Jean Baudrillard. Cultura y simulacro. Barcelona: Kairós, 1978.
Michel Foucault: Historia de la sexualidad 1 – La voluntad de Saber. Ed. Siglo XXI 19.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993. 77.
Nestor García Canclini: Diferentes, desiguales y desconectados. Gedisa 1997.
Eric Laurent: La vergüenza y el odio de si Freudiana 39 – Paidós, Barcelona 2004.
Jacques Lacan: El Seminario Libro XVII El Reverso del Psicoanálisis. Paidós Buenos Aires 1992.
Mauricio Lazzarato Políticas del acontecimiento Tinta limón Buenos Aires 2005.
Manzotti, Nicoletti, Udenio y Vilar: Impossible is Nothing – Quo Vadis? CIEN Buenos Aires 2008.
Jacques Alain Miller: Notas sobre la vergüenza Freudiana 39 – Paidós Barcelona 2004.
Luis Darío Salamone Alcohol, tabaco y otros vicios. Grama, Buenos Aires 2012.
Hernán Vilar: Las ropas nuevas del Amo. El Niño 11 Nueva Serie – Buenos Aires 2009.
Slavoj Zizek: A propósito de Lenin – Política y subjetividad en el capitalismo tardío. Atuel/Parusía Buenos Aires 2004.
Tradução: Maria Rita Guimarães
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A psicanálise bastante viva
by cien_digital in Cien Digital #14, ENTREvista
Uma entrevista com Eric Laurent1
Eric Laurent aceitou prestar-se ao jogo de questões e respostas sobre o tema de sua última obra, A batalha do autismo, publicada por Navarin em outubro de 2012.
Pergunta: O Sr escolhe um vocabulário marcial para o título de sua obra – A Batalha do autismo (La bataille de l’autisme) –, a fim de evocar os debates calorosos e os ataques contra a psicanálise que se seguiram, notadamente pela proclamação pelos poderes públicos, no ano passado, do autismo como uma grande causa nacional.
Se ampliarmos o debate, o senhor estaria de acordo em dizer que o autismo como “batalha” deve ser englobado em uma guerra mais geral, e, se a resposta for sim, poderia nos precisar seu contorno?
Eric Laurent: Batalha, combate, são palavras com as quais muitos pais de crianças autistas qualificam o confronto cotidiano com as consequências do modo de ser e do sofrimento de suas crianças. Retomei essas palavras para qualificar o confronto entre os adversários da psicanálise e esses que alguns chamam, através de um neologismo original, a “psiquiatria-psicanálise”, e nós, que desejamos propor uma abordagem plural dos sujeitos autistas em sua diversidade.

Nuno Ramos
Pergunta: A respeito disso, o que pensar do paradigma cognitivo-comportamental, do qual até mesmo alguns partidários, como o psiquiatra Laurent Mottron, e também alguns autistas de alto nível (não especialmente favoráveis à psicanálise) – colocam em questão certos tipos de tratamentos inspirados nessas teorias, como ABA: podemos considerar que esse paradigma e suas consequências clínicas fazem um sucesso na Europa no momento mesmo em que ele perde um pouco de fôlego nos países anglosaxões (como o senhor tão bem nos explica na parte sobre as vibrantes discussões em torno do DSM V)?
Eric Laurent: Constato que a via “Tudo TCC”, em particular isso que a equipe de Monttron chama “a indústria ABA-Autismo”, provoca inúmeras oposições, por razões muito diferentes. Há a oposição dos próprios usuários, os autistas de alto nível. Há a oposição dos burocratas da saúde que não querem ser arruinados pelo custo dos tratamentos individuais – ABA, especialmente proibitivos (60.000 $ anuais por tratamento). A Suécia renunciou a todo ABA para escolher tratamentos TCC mais ecléticos e lights. Há também nossas objeções, que se formulam contrariamente ainda. Esse momento de desilusão em relação a isso que era um frenesi, deve nos permitir precisar melhor o tipo de aprendizagens não estritamente repetitivas que nós sustentamos. Uma aprendizagem que possa incluir a repetição e o jogo.

Bruno Kurru
Pergunta: A questão do diagnóstico do autismo. Por um lado o senhor não pensa que, em relação ao movimento de extensão do espectro autístico, cujas questões o senhor mostra bem em sua obra, temos o interesse em afinar nossas referências de modo a localizar uma categoria operatória do autismo, ao que contribui sua teoria do “retorno do gozo sobre a borda”? Por outro lado, nesse contexto, em que seria pertinente manter o autismo sob a lógica da forclusão (o senhor evoca a “forclusão do buraco” no autismo)?
Eric Laurent: O que está em jogo é manter o que nós apreendemos das relações da forclusão e do real em um campo que não se define pela forclusão do nome do Pai. Nós não estamos mais no campo da psicose e, não obstante, os modos operatórios do sujeito se parecem, se recobrem, se separam, isso que fez o fundo das dificuldades do lugar da clínica do autismo.
O ponto fundamental, entretanto, é que existem fenômenos clínicos no autismo que não têm correspondência na psicose. Para resumir, tudo que vem da pura repetição do UM, sem implicação do corpo ou do imaginário.
Pergunta: O autismo é um significante que em sua escrita aparece sob uma dupla acepção: ele pode ser considerado como o cavalo de Troia dos inimigos da psicanálise numa “batalha do autismo”, mas se constitui também como um significante principal em nosso campo, como uma categoria operatória que permite afinar o diagnóstico de psicose.
Contudo, nessa extensão do diagnóstico do autismo a partir dos critérios estatísticos do DSM-IV, em que aparece então como uma denominação vaga que obscurece todo o campo clínico, não encontramos alguma coisa de intrínseco ao movimento de nosso mundo contemporâneo, que iria no sentido de um “núcleo autístico”, aquele de uma radical solidão de todo sujeito, próximo das elaborações de Jacques-Alain Miller sobre o Um sozinho?

Ana Miguel
Eric Laurent: Você situa muito bem as questões desse duplo movimento.
A característica epidêmica da denominação do autismo na nova clínica psiquiátrica da criança não é somente um fenômeno ligado a uma imprecisão dos critérios diagnósticos como pensa Allan Frances, o responsável do DSM IV atualmente crítico ferrenho do DSM IV.
É o resultado de um conjunto de fatores que examino no livro. É também, em última instância, a percepção, na clínica, do lugar da pura repetição que engaja o corpo. Nessa perspectiva, a solidão não é aquela do sujeito mas aquela do Um do gozo.
Pergunta: O sujeito autista e a instituição: Antônio di Ciaccia pretendia distinguir a prática com vários do trabalho em equipe, para reservar a primeira às intervenções junto aos sujeitos autistas. Poderíamos postular que essa distinção convida a pensar que o autismo é uma defesa contra a loucura. Trata-se então de se introduzir no universo do autismo respeitando essa defesa, permitindo que aí se instale um outro que a criança possa tolerar, um outro compatível com suas defesas. O senhor pensa, então, que essas elaborações nos incitam à consideração de que haveria uma prática com os sujeitos autistas distinta da prática com a criança psicótica propriamente dita?
Eric Laurent: Parece mais que o sujeito autista sai de um autismo de baixo nível de funcionamento para um funcionamento de alto nível, como se exprimem aqueles que falam nesses termos.
Digamos que, para nós, permanecemos na mesma topologia de um espaço que não é estruturado como aquele no qual se coloca o sujeito psicótico. Saímos do autismo para retornar ao autismo, mas de outra forma.
Pergunta: Tratar-se-ia, então, de considerar que o manejo do – tratamento – com, ou as intervenções junto ao autista – não são para fazê-lo cair na loucura: trata-se de fazer a criança sair de seu autismo ou de emparelhar-se com esta defesa de modo a permitir ações mais humanizantes?

Maria Helena Vieira da Silva
Eric Laurent: A metáfora segundo a qual a intervenção junto ao sujeito autista teria por horizonte “levar à loucura”, será cada vez menos admissível. É preciso renunciar a isso. Trata-se de se apoiar sobre o uso autístico do objeto para ampliar o mundo do sujeito e lhe permitir encontrar seu lugar em um Outro sempre disponível ao deslizamento da língua e à contingência.
Pergunta: Aprendemos muito bem, graças às descrições feitas pelo senhor e às reivindicações de certos grupos de pais de autistas, a importância da comunidade para esses sujeitos agrupados em associação, assim como para os autistas de alto nível que reivindicam também pertencer a esta mesma denominação.
Poderíamos ver aí um retorno ao que Lacan descreveu em seus Complexos familiares, sob a forma desses grupos familiares que tomaram como suporte os elementos da comunidade, quando a psicanálise, ao contrário, nasce no contexto da subida ao zênite do individualismo contemporâneo.
Estaria o senhor de acordo em distinguir a prática com vários do suporte do sujeito autista por uma comunidade?
O senhor não veria aí uma das razões dos recentes ataques contra a psicanálise que se inscreve contrária em relação a esse retorno dos comunitarismos?
Eric Laurent: Temos necessidade de dialogar com as associações de pais ou de simpatizantes de sujeitos autistas que possam escutar a voz daqueles que estão privados de obter direitos específicos. Essas associações, quando elas são heterogêneas, não agrupam somente pais de autistas, não apenas simpatizantes de autistas, não somente partidários de uma única abordagem, não apenas uma mesma faixa de idade, etc. serão mais sensíveis às proposições que fazemos de uma abordagem pluralizada, implementada nas instituições caracterizadas por esse modo múltiplo que é a prática com vários. Elas se afastam do modelo da comunidade de crença.

Rafael Silveira
Pergunta: Seu livro é construído em duas partes: a primeira é teórica e oferece ao leitor os avanços mais detalhados sobre o autismo, inspirados nos trabalhos do último Lacan transmitidos por Jacques.-Alain Miller, mas igualmente, de suas últimas elaborações. A segunda parte é mais política, o senhor posiciona-se aí como um cidadão esclarecido da cidade e demonstra as saídas dessa “batalha do autismo”, coloca em jogo seus laços com o Big Pharma e suas verdadeiras procuras da genética, que pretendem ao contrário cada dia fazer avanços maiores.
Pode-se considerar que o senhor dá, por tal composição, a via da posição que o clínico orientado por Freud e Lacan deve ter na cidade: informado, combativo e o mais próximo das questões políticas e clínicas? Isso pode permitir, para os jovens clínicos, por exemplo, não se deixarem levar por um certo fatalismo que pretende que a psicanálise, atacada por todas as partes, está acabando de morrer?
Eric Laurent: Como estaria acabando de morrer! Deixemos a pulsão de morte lá onde ela está, quer dizer, na civilização. A desordem no real testemunha isso suficientemente e nós o exploraremos na ocasião do próximo Congresso da AMP em 2014. A psicanálise não cessa de propor sua réplica a essa pulsão de morte. O cientificismo contemporâneo é um dos nomes dessa pulsão. Ele pensa que resolve os sintomas do vivente por um saber estatístico fetichizado, visando reduzir a particularidade a uma variação cifrada.
É preciso, aliás, distinguir a precisão preditiva da série estatística do reconhecimento dos limites desse saber. Um estatístico genial como Nat Silver, “king of quants” (rei da quantificação) como é chamado, mantém em seu blog hospedado no New York Times <http://fivethirtyeight.blogs.nytimes.com> uma crônica muito contemporânea dessa tensão e dessa delimitação necessária. Para a genética, é preciso seguir a querela das interpretações, que faz tanta raiva na ciência biológica quanto a querela das interpretações da mecânica quântica em física.

Valeria Vilar
Os exageros de Big Pharma sobre os resultados efetivos dos medicamentos, sua minimização dos efeitos nefastos, as dificuldades de interpretação dos resultados dos ensaios clínicos controlados (ECR), passaram, agora, de empresas fechadas à praça pública. Os escândalos não tocam somente aos psicotrópicos mas a todas as classes de medicamentos (cf: Vioxx, Mediator, as estatinas (statines) etc.). O jovem clínico está agora imerso em tudo isso. Ele está em um mundo em que ele mesmo toma medicamentos, como todo mundo, em que a heroína do seriado Pátria-(Homeland) toma regularmente seus psicotrópicos, onde o cenário do filme O lado bom da vida (The silver lining playbooks), com Bradley Cooper, Jeniffer Lawrence, Robert De Niro, faz de Bradley Cooper um simpático bipolar, confuso como todo mundo em seus amores. O diretor e roteirista David Russel revelou que ele fez o filme para seu filho de 12 anos, diagnosticado de bipolar. É preciso ver o filme que é um sucesso: foi prejudicado pela tradução francesa do título como Happiness Therapy.
É um modo contemporâneo no qual a loucura encontrou seu estatuto ordinário, que não é somente aquele de uma doença, mas de um modo de ser. Esses que não tomam medicamentos, substâncias psicotrópicas legais têm recursos às substâncias ilegais, leves ou pesadas.
Esse modo é o nosso, aquele em que a ciência não nos chega apenas sob os gadgets e latusas, como se exprimia Lacan, mas sob a forma dos psicotrópicos e do cálculo de nossa vida pelo computador, o tablet super portável e o smartphone. Para se orientar nesse mundo e reconhecer o lugar do sujeito não é suficiente a localização pelo GPS, é preciso as referências da psicanálise muito viva, essa de hoje.
Entrevista realizada por Dominique Holvoet e Virginie Leblanc, originalmente publicada na revista Coutil en ligneS, n. 10.
Tradução: Cristiana Pittella de Mattos
Revisão: Maria Rita Guimarães
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Laboratório: “Trocando em Miúdos” A experiência de analisante e o real em jogo nas escolas: Para além da mistura do ouro ao cobre?1
by cien_digital in Cien Digital #14, LABOR|a|tórios
Margarete Parreira Miranda (Responsável)
Frente ao real que toma de súbito o espaço das instituições escolares, o analisante é colocado em xeque pelos professores, crianças e adolescentes. É usual, no transcorrer de uma Conversação, os professores, por exemplo, dizerem, sem se despojarem de intensa agressividade: “Queria ver você dentro de uma sala de aula”, desafiando o suposto saber. Mas, é dessa posição que o trabalho do analisante opera?
Como analisante, tenho de me responsabilizar pelo desejo de trabalhar em contextos tão desafiadores. Interpelo o que me causa ao intervir nos sintomas da sociedade contemporânea, apreensiva com a segregação de crianças e adolescentes nas escolas.
Como praticar esse saber não saber, pergunta Judith Miller2, como sustentar o vazio do não saber em uma prática interdisciplinar? O inter que aproxima as disciplinas seria também o marcador que as diferencia? Considero que a ação do analista se estende sem se fundir, sustentandose no vai e vem de sua prática em extensão, com sua formação em intenção e a transmissão, como nos orienta Lacan no “Ato de Fundação” (2003).
Trago, nesse artigo, uma vinheta prática de onde extraio elementos que possam elucidar pontos referentes à questão proposta: Como minha experiência de analisante me permite apoiar a intervenção em uma Conversação, levando em conta o real em jogo para cada sujeito nas instituições?
O trâmite na instituição
A instituição escolar lida com urgências, barulhos, suores, gemidos, poucos risos, muita comida – merendas, almoços, lanchinhos – silêncios, entonações variadas do dizer, indo dos cochichos aos gritos e contingências. “A agitação perturba o repouso favorável às reflexões”, dizem os educadores.
Nesse contexto, adentra pela sala dos professores, no intervalo para o café, uma professora aos prantos. Imediatamente os colegas acolhem seu choro, justificado pela agressão de seu aluno que a chamou de “vagabunda!” Cercaram-na considerando aquele estado de coisas, e aludindo referências aos comportamentos desmedidos dos alunos de hoje. A professora chorava e chorava dizendo como estava “ofendida com a falta de respeito do aluno”. Negava-se a retomar aquela sala de aula se o adolescente ali se mantivesse. Essa cena se desenrolava em nossa presença.

José de Guimarães
O que os professores esperavam de nós, já que agiam sob nossas vistas, dando a ver seu desconforto? A colega que me acompanhava interrogou: “Não vamos fazer nada?” Ao que lhe respondi: “Vamos aguardar”.
Antes de sair da sala dos professores, para coordenar uma Conversação já agendada anteriormente, me aproximei da referida professora – que ainda estava se queixando chorosa para os colegas – e lhe disse: “Se você quiser conversar, você me procura?” Ela respondeu que sim. Pretendia com aquela rápida intervenção marcar a diferença entre um lugar analítico possível na instituição, ao que Miller (2007) nomeia “Lugar Alfa”. Esse seria um lugar em que o “falar à toa” assumiria a forma de questão ou de resposta, distinto da situação que lhes ofertavam os colegas naquele momento, em que o sujeito fala o que quiser, à vontade, para “aliviar” ou “desabafar” ou mesmo para ser “consolado”.
O real em jogo e o analisante fora da situação standard
A emergência do real coloca ao analisante concernido nas instituições várias questões frente ao gozo contemporâneo. Como intervir para descompletar com seu ato uma sequência de sentidos e interpretações que potencializam o lugar do nada mortífero e da impotência? Diante do “isso quer gozar” o corte pode arrefecer o excesso de sentido. A posição do analisante permite intervir de outro lugar e restava saber em que ponto o sujeito ou aquela professora consentiria com outra oferta, diferente da compreensão e empatia que os colegas lhe destinavam. Cottet (2005) nos alerta que, “uma clínica do real que não é apenas uma clínica do sentido ou do simbólico, deve necessariamente tocar o sujeito no ponto em que sua fala toca em sua pulsão” (2005, p. 22).
Se estamos lidando com o real na instituição, como suportar o malestar produzido pelo gozo da professora ofendida diante do “vagabunda” de seu aluno, sem apressar em responder a essa demanda de amor ou de saber? Algo do real do analisante está também em jogo em seu ato. E esse real tem destino na psicanálise pura, onde se produz uma operação subjetiva com manejo mais favorável do próprio mal-estar do analisante.
Nas Conversações que se seguiram, aquela professora expressou o seu insuportável ao ser chamada de “vagabunda” pelo aluno. Em vez de buscar sentidos vários para aquele significante em sua vida ou produzir uma sucessão de significados que justificassem o ato do adolescente, interpelei: “Como se posicionar frente ao adolescente que provoca chamando a professora de vagabunda?” Essa intervenção deslocou o fluir da pulsão para outros significantes da cadeia. Esvaziado o excesso de sentido que recobria o mal-estar dos professores, estes subjetivaram questões sobre a dificuldade de lidar com esse enfrentamento diário, com as diferenças do adolescente de hoje com o de seu tempo, as dificuldades em se posicionarem como autoridade, dentre outras.
Naquele momento da Conversação, o discurso psicanalítico pode ainda interagir com a educação ofertando esclarecimentos sobre o “despertar e o exílio dos adolescentes”, seus comportamentos de risco, sua difícil travessia e a transferência para outros representantes – no caso os professores – de suas dúvidas e ressentimentos frente a angústia do “não saber a priori” sobre a sexualidade. Para Miller (MILLER, 2009, p. 2)3 “os efeitos psicanalíticos não resultam apenas do enquadre, mas do discurso, quer dizer, da instalação de coordenadas simbólicas por alguém, que é analista […]”. Os professores em Conversação buscaram outros significantes que revestissem o objeto produtor do seu mal-estar, fazendo deslocar o eixo da queixa para elaboração de respostas. Um afrouxamento foi produzido incidindo sobre o real da professora, permitindo novos arranjos libidinais, o que teve efeitos sobre sua prática.

Cecilia Paredes
No transcorrer das Conversações, foram produzidas pequenas e novas amarrações concluindo com o dizer dos professores acerca da mudança de seu manejo com os adolescentes. Os educadores já não se colocavam tão vulneráveis diante das “ofensas”, lidando de maneiras diferentes. Aquela professora disse: “Está mais possível lidar com os alunos: já não tomo o que dizem como se fosse diretamente para mim”. Uma professora declarou que “os alunos mudaram, pois já não estão tão difíceis”. Outros professores reafirmaram esse dizer. Interpelei: “Os alunos é que não estão mais tão difíceis?” Rimos.
Simone Souto (SOUTO, 2008, p. 12) nos lembra em referência à psicanálise aplicada aos CPCTs, que essa prática da psicanálise “põe em primeiro plano a vertente libidinal da transferência e o analista como objeto, fazendo surgir o avesso do sujeito suposto saber, mas também, paradoxalmente, o que, em última instância constitui sua sustentação e sua causa: esse objeto sem nenhum valor que o analista é”.
Para o analisante resta, então, o ganho da elaboração sobre a forma de responder em que experimenta um saber fazer correlato com o objeto a que, na transferência, ele suporta.
Naquela escola, o “analista nômade”4 é convidado a voltar.
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Laboratório: Medida e Liberdade O CIEN e a posição analisante
by cien_digital in Cien Digital #14, LABOR|a|tórios
Mônica Campos Silva
A instituição jurídica trabalha com a noção de “melhor interesse” da criança e do adolescente. Para alcançar esse “melhor interesse”, no tribunal de família, uma equipe interdisciplinar assessora os juízes em suas decisões. Aliado ao discurso da ciência, o discurso jurídico convoca certo saber sobre o que é serem bons pais, cuidadores e guardiães.
A lei institucional, com seus protocolos e metodologias, busca os ideais para uma normatização, convidando os profissionais a um lugar de saber. Este convite foi de encontro com a formação de compromisso do sujeito estabelecendo aí uma sustentação, ou seja, a lei superegóica do analisante o deixava a mercê de uma exigência, que se aplicava à prática institucional. Se em um primeiro momento houve um acoplamento do sujeito – em seu lugar de técnico – com a verdade institucional, utilizando-se do sintoma e da crença nos ideais, o encontro com o real de cada caso fez ver a ineficácia dessa solução. A análise permite vacilar, para além da relação com a instituição, a verdade sobre o que é o melhor interesse de/para uma criança, modificando em sua prática a escuta desta máxima.
O percurso analítico viabiliza uma mudança na relação do sujeito com o objeto olhar, sendo possível deixar cair os ideais e permitir aparecer a condição de sujeito, descolada do discurso institucional. O abrandamento do superego possibilita um novo posicionamento na instituição, permitindo que aqueles que a procuram, com suas singularidades, possam advir, sem o aniquilamento pelos discursos instituídos. Esse giro na posição subjetiva, como consequência da análise, foi fundamental para que o sujeito pudesse se endereçar ao CIEN, extraindo das conversações interdisciplinares o lugar vazio, possibilitando que a coordenada principal na discussão dos saberes seja a singularidade de cada um.
Fragmentos de uma vinheta prática:

Fábio Magalhães
Ele seria um filho iluminado. Seus pais, frequentadores de uma seita, acreditavam ser o veículo para lhe trazer ao mundo. No entanto, a partir de seu nascimento, o pai passa a manifestar crises de violência, emitindo urros – como um leão. O relacionamento conjugal chega ao fim, com o afastamento da criança da companhia paterna, levando a mãe a pedir na Justiça a proibição de tais encontros.
Como se orientar neste caso? O que seria o melhor interesse para esta criança? Esse pai não respondia a nenhum ideal ou “saber” sobre a paternidade, e embora reafirmasse seu propósito de participar da vida e da criação de seu filho, nossa bússola para o caso e para uma possível resposta à instituição era a criança e seu modo de estabelecer sua demanda, fazendo-nos visar seu “melhor interesse”, ou seja, estar ou não com seu pai. Lançada a uma situação que lhe amedrontava, esta criança indicava uma orientação pelo pai. Em um atendimento, o filho, com três anos de idade, manifesta medo e horror ao pai, urrando como um leão. Percebido aí um traço de identificação e uma demanda ao pai, propomos ao juiz o reencontro paterno-filial de modo supervisionado.
Nos encontros com o pai, certo tratamento do real em jogo se deu. Tratava-se, do lado do pai, de uma demanda à instituição jurídica, a de “ser pai”, sendo acolhido com os limites que o próprio caso exigia. Para a criança, era um momento delicado, mas fundamental, permitindo dar certo tratamento às suas construções sobre o pai. Após as visitas acompanhadas, em que a criança pode construir seu lugar na vida do pai, bem como um lugar para esse pai “diferente” em sua vida, foi sugerido que tal convivência se iniciasse de modo gradativo fora do Fórum.
Privilegiar a questão do sujeito sem o ideal institucional de certa normatização, retirando-se da posição de saber o que é bom para ele, foi fundamental para que algo da ordem do seu “ser pai” fosse tratado e construído. O interesse maior da criança – demanda institucional – só foi acolhido porque houve tratamento da questão singular em jogo: um contorno do pai. Assim, para que o filho pudesse conviver com o pai e assim ser atendido em sua demanda subjetiva, foi necessário certo bordejamento da paternidade também com este pai. Onde havia um “pai leão”, pôde surgir um pai presença, menos demandante. Após a discussão interdisciplinar, o juiz autoriza as visitas. Através desse trabalho, pôde-se ai fazer um pai, e o filho, por sua vez, pode acolher, a seu modo, essa paternidade.
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Laboratório em formação Da contingência do encontro à invenção de uma bússola: o CIEN na Bahia
by cien_digital in Cien Digital #14, LABOR|a|tórios
Mônica Hage Pereira
Com o tema “Furando etiquetas – o traço da política do CIEN”, a III Manhã de Trabalhos do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a criança (CIEN), em Salvador, promoveu um encontro com consequências. O CIEN aposta na contingência do encontro. E foi desse encontro em Salvador que algo novo pôde advir – o desejo de criação de um laboratório do CIEN na Bahia.
Vivenciando o cotidiano de uma Instituição Pública de Saúde Mental, o atendimento a crianças e adolescentes nos coloca frente à questão: o que cada um faz com o que não se controla? Recebemos, diariamente, crianças e adolescentes “etiquetados” sob o rótulo de “hiperativos”, “fóbicos”, “deprimidos”, “autistas”, portadores de “retardo mental”, e tantos outros. Essas são as marcas que lhe são atribuídas como representante de uma categoria, à qual, a partir da etiqueta, deverão pertencer. As políticas universalizantes, com avaliações baseadas em etiquetas, vêm promovendo uma infância catalogada.
Dentro da Instituição Pública, seja ela da área de Saúde, Educação ou Justiça, compartilhamos com profissionais impelidos a responder ao imperativo do controle social. O saber de cada um encontra-se obturado.
Demandados pelas escolas, pelos Conselhos Tutelares, pelas famílias, ou por outros profissionais médicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, etc., os profissionais “psis”, por sua vez, costumam ser solicitados a responder àquilo que nenhuma outra instância conseguiu “solucionar” – as “demandas impossíveis”. É preciso, nesse momento, não sucumbir à impotência. Mas, “na impotência, colocar um ponto de possibilidade”, como nos disse Maria do Rosário Collier, na III Manhã de Trabalhos do CIEN.
Pensando nesse ponto de possibilidade, trago uma vinheta de um atendimento pela equipe do ambulatório infanto-juvenil do Hospital Juliano Moreira. M. tem 14 anos e chega, encaminhado pela colega psiquiatra, praticamente sem sobrancelhas, pois vem arrancando os pelos frequentemente. Muito inquieto, mal consegue permanecer sentado enquanto conversa. Sempre rindo, sugerindo certo desdém, me fala que o irmão, usuário de drogas, perturba-o muito: “o problemático é ele”. Sente-se injustiçado em casa, “tudo de errado, dizem que sou o culpado…”.

Vânia Mignone
O pai, “já muito cansado”, diz que “não aguenta mais.” Não sabe o que fazer com M. pois ele não o obedece. Recebe queixas diárias da escola, que também não sabe como agir com esse aluno, que “não se concentra em nada”, “não assiste às aulas, “bagunça muito” e “nada aprende”. Frequentemente M. sai de casa sem autorização dos pais e fica “aprontando na rua, provocando brigas com os vizinhos.” Em um encontro, M. me pergunta se tenho facebook. Indago-lhe porque e ele diz que gostaria de me adicionar como amiga, para que eu ficasse lhe dizendo, no decorrer da semana: “M. não faça isso, M. não faça aquilo…” “Você poderia me dizer, pelo facebook, o que devo, ou não, fazer”. Bastante surpresa com essa “invenção”, hesitei em aceitá-la por não me sentir confortável ocupando o lugar de “lei” que esse adolescente me demandava. Pouco tempo depois, o pai, que também em diversas vezes me demandou esse lugar, me diz, num momento de desespero, que irá procurar o Conselho Tutelar pois precisa de “algo que faça o filho parar” e que agora a situação piorou pois M. não quer vir mais para os atendimentos. Vale ressaltar que antes disso acontecer, o pai havia me solicitado que internasse M.
Busco, com essa vinheta, trazer um pouco dos impasses que nos deparamos num ambulatório de um hospital psiquiátrico e de como muitas vezes é preciso inventar, criar um ponto de possibilidade diante da impotência. O que teria ocorrido se aceitasse a proposta virtual de M.? São pontos para reflexão e, quiçá, entrarem numa roda de Conversação. Se buscamos trabalhar na perspectiva da interdisciplinaridade, porque não debater sobre a “solução” encontrada por M., através da sua “inclusão” na lista dos meus amigos do facebook?

Nathalia Edenmont
Questões como essa ilustrada acima, e tantas outras do cotidiano institucional, levam-nos à reflexão e constatação da importância de um lugar para debatê-las, de forma tal que as demandas que nos chegam do universo multidisciplinar (professores, representantes dos Conselhos Tutelares, etc.) possam encontrar na roda de Conversação, um espaço possível onde a palavra circule e o não saber seja suportado, isto é, um espaço interdisciplinar. Dessa forma, começamos a discutir sobre a implantação de um laboratório do CIEN ainda que, nesse momento, ele se configure como Laboratório em Formação.
Em entrevista concedida recentemente, por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Judith Miller coloca que o CIEN é uma das maneiras de dizer, de inventar, uma modalidade que valoriza o trabalho social e que pode permitir a cada um dar conta da impotência.
Os profissionais, das diversas disciplinas, que participam das experiências do CIEN não sustentam uma clínica psicanalítica, mas, segundo Udenio (2011), se orientam por aquilo que os praticantes da psicanálise podem lhes transmitir do que extraem de sua formação, de sua análise pessoal – daí a denominação de “analisantes esclarecidos” – e do que sua prática analítica lhes ensinou.
Sobre isso, Miller (2012) tece um comentário: “os analistas do Campo Freudiano nos laboratórios do CIEN realizam um trabalho – não clínico – mas tendo como tarefa arranjar no mundo contemporâneo – denunciando os entraves que fazem obstáculo e os falsos semblantes que o querem calar – um espaço onde o inconsciente se torne audível. Para isso, o inconsciente deve ter um destinatário…”
As Conversações interdisciplinares do CIEN permitem, segundo Judith Miller, “abrir espaços onde a subjetividade de cada um possa encontrar um lugar.” Ao darmos a oportunidade de se tomar a palavra, atentos ao que escapa e não se encaixa nas normas, teremos a chance de “recolhermos efeitos de sujeito”.
Num mundo em que, cada vez mais, o que um sujeito enuncia encontra-se desacreditado; onde não há espaço para a singularidade, é responsabilidade do CIEN, através dos seus laboratórios, promover este espaço.
Com a expressão paradoxal “me inclui fora dessa”, proferida por um adolescente que participava de um dos laboratórios em Belo Horizonte, Beatriz Udenio nos traz, em entrevista concedida por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, um exemplo precioso de como cada um poderá incluir sua singularidade no mundo. Poder estar no mundo, resguardando a sua singularidade, não é tarefa simples. Teria sido essa a maneira encontrada por M. de “incluir-se” – estando na minha lista de amigos do facebook, ainda que não conseguisse sustentar, por muito tempo, qualquer vínculo, sequer nos atendimentos?
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