Paola Salinas e Síglia Leão O Cien Digital 23 está no ar! Neste número, os…
ENTRE-VISTA COM DAMASIA AMADEO DE FREDA
Cien Digital, novembro de 2018, por CIEN-Minas
CIEN-Minas: O CIEN, em sua especificidade, consiste em apreender, via conversação, o ponto de real ao qual se está confrontado nas diversas disciplinas diante do esforço de normatização. Você salienta em vários textos que os jovens, atualmente, apresentam um “não sabe por quê” que não é proveniente de uma verdade oculta no sintoma. Esse “não sabe por quê” parece se referir a uma desorientação pela ausência de coordenadas identificatórias sólidas. Qual é o desafio que os adolescentes colocam para a prática do CIEN atualmente?
Damasia Freda: O que é possível extrair da clínica com adolescentes e crianças para o CIEN, a partir da particularidade que encontrei – o “não saber o que se passa” –, é acompanhado de uma grande preocupação por parte das escolas e de instituições sociais. Há uma imensa preocupação por parte dos agentes sociais em relação a certos sintomas que crianças e adolescentes apresentam. Essa preocupação por parte dos agentes, por não saberem o que fazer, leva à proposição de uma normatização via protocolos dentro das escolas. Isso é uma tendência da sociedade, é uma tendência dos governos também: a normatização de incluí-los, crianças e adolescentes, dentro de protocolos de comportamentos, devido a essa desorientação que há também entre os adultos, por não saberem, por não entenderem determinadas condutas nas crianças nos adolescentes. E, atualmente, em minha prática institucional, na universidade, onde temos centros de atenção às crianças e adolescentes, o que mais me chama a atenção é a quantidade de demandas das escolas pelo que se chama de hiperatividade ou síndrome de déficit de atenção nas crianças, por lhes atribuírem uma falta de atenção, uma falta de concentração associada a uma hiperatividade. Ou que essa hiperatividade faz com que não possam se concentrar nas tarefas que se acredita serem as centrais. É importante notar que crianças vistas com base nessa catalogação não apresentam essa hiperatividade no consultório nem distração às perguntas que são feitas. Há uma normatização. Colocam-se nomes em mudanças que se apresentam na cultura, mudanças de gerações, mudanças que ocorrem com a entrada no novo milênio. Crianças que chegam a partir do ano 2000 são hoje os adolescentes tardios. Para os que nascem em 2010, 2011, por exemplo, temos que pensar que as configurações são muito distintas. Já são nascidas no mundo virtual, nas novas tecnologias; têm uma facilidade e destreza para manejar os aparatos eletrônicos que a maioria dos adultos não tem. Isso faz com que tenham uma relação distinta com o conhecimento, muito diferente da imagem que tínhamos. Há muitas informações que podem buscar simultaneamente. Apresentam, assim, uma capacidade de atenção muito distinta daquela que se pretende, de que prestem atenção ao professor ou ao educador, a essa figura do saber. Esse problema faz com que o professor ou o educador, como agente do saber, como sujeito suposto saber, como chamamos nós, psicanalistas, já não funcione mais. A instituição escolar é primitiva para essas crianças e adolescentes.
Há que se considerar que há uma mudança de paradigma no século XXI e que as crianças são os protagonistas que encarnam esse novo paradigma, e, nesse sentido, estão mais adiantadas que nós, adultos, que pertencemos a uma geração anterior. Nesse sentido, creio que os adultos estão mais desorientados que as crianças.
CIEN-Minas: Então a desorientação está mais do lado dos adultos, dos educadores?
Damasia Freda: Em relação a isso, sim. Além disso, creio que – isso é uma hipótese – se há uma desorientação ou se há condutas que manifestam alguns adolescentes que respondem a uma desorientação, os adultos não estão mais orientados que eles. Essa desorientação está localizada numa ruptura que existe entre a cultura e a sociedade no século XIX e no século XX, sede dessa transição até uma nova configuração social. Antes havia o que era chamado de instituições sólidas, a ideia de Pai ou de qualquer figura de autoridade para, de alguma maneira, representar essa figura patriarcal, como chamam algumas correntes. Desde a psicanálise – não só a psicanálise, mas a sociologia, a história, a antropologia –, classificaram o século XX como o século em que essa figura da autoridade foi desaparecendo, abrandando, se dessolidificando para que passássemos ao que chamamos de uma sociedade líquida. Essa é uma hipótese e continua sendo, de alguma maneira. Essa noção que nós, na psicanálise, chamamos de Pai. Freud chamou de Pai essa ideia central, o núcleo central do Complexo de Édipo, que podia ser descoberto a partir do sintoma, desarticulando-o e descobrindo as condições edípicas de cada um, cujo fator principal era o Pai. Lacan, cujas ideias seguimos, traz o significante Nome do Pai. Tudo isso é o que foi desarticulado durante o século XX, chegando a sua forma mais contundente no século XXI. Minha ideia, minha hipótese, é a de que a desorientação, ou, dizendo de forma afirmativa, a orientação dada pelo Pai, foi perdida. A perda dessa bússola deu lugar a uma desorientação. Observamos mais essa desorientação nos adolescentes, mais que nos adultos e mais que nas crianças. Por que mais na adolescência que em outras faixas etárias? Porque, como Freud dizia, seguramente com razão, na infância, recorria-se ao Pai como elemento, sobretudo, de identificação. Para Freud, o Pai era a primeira figura de identificação; a primeira forma de identificação era com a figura paterna, ou com o Pai como noção. Por outro lado, Freud destacava em seus outros textos que o adolescente se separava do Pai para eleger outro – os professores, tutores, enfim, os orientadores de seu futuro –, para concluir a etapa da adolescência e passar à vida adulta. Se essa noção de Pai está afetada desde o início, na adolescência, por haver essa passagem de uma figura a outra, se a figura orientadora está afetada, nos deixa nessa desorientação. Essa era minha ideia. Essa desorientação manifestada no “não sei o que me passa, não sei o que faço aqui… o que se passa comigo não tem nenhum sentido digno de ser tratado pela palavra…” se faz presente também nos agentes envolvidos com os adolescentes, porque não sabem o que fazer com eles. Então estamos todos desorientados, devido a essa crise. O orientador, essa noção de Pai, não é mais regulador das famílias, dos governos. Não encontramos mais isso.
CIEN-Minas: Recentemente, no CIEN Minas, em uma conversação com professores, educadores e familiares, ficou evidente o recurso à medicalização de crianças e adolescentes como saída para impasses enfrentados no campo da educação: os professores dizem que não sabem mais o que fazer com problemas que são da família, e os familiares, por sua vez, dizem que estão solitários, sem apoio. Em outra conversação com profissionais do campo do Direito, é marcada a situação na qual, primordialmente, pré-adolescentes e adolescentes, quando adotados, são devolvidos, como mercadorias, porque não “agradam” as famílias adotivas. Uma pré-adolescente considerada insuportável faz uma peregrinação por algumas famílias. Como trabalhar com esses impasses na conversação?
Damasia Freda: Primeiro, a medicalização de crianças e adolescentes e, depois, a adoção de adolescentes que são devolvidos como objetos de mercadoria. O que chama mais atenção é como é natural para as famílias medicar as crianças, por exemplo, dar um sedativo para que não incomodem à noite; como as famílias consideram normal medicar uma criança ou adolescente porque um neurologista indica por considerar que haja um déficit de atenção. É consequência do progresso da ciência a forma quase planetária que assumiu o sistema capitalista, no qual o que se ambiciona como objetivo a ser alcançado é a mercadoria. Se há algo que designa um valor humano, algo que designa uma pessoa, já não é o que se sabe, a autoridade que se impõe, mas sim os objetos que tem. Daí as pessoas passam a ser mercadorias. Isso se vê muito claramente nas adoções. Os pais, quando vão adotar, querem uma criança com determinadas características, como objetos. As tecnologias já permitem manipular os genes não para evitar doenças, mas porque pessoas querem ter filhos com determinadas características, como objetos. Isso faz com que eu possa devolver uma criança, como um produto num supermercado, porque não me satisfaz, porque não funciona.
CIEN-Minas: Em seu livro El adolescente actual você comenta sobre a conversação no subtítulo “La conversación y la lengua desarticulada”. Você diria que, na atualidade, os adolescentes continuam falando entre si, mas numa falação sem se dirigir ao Outro, de forma desarticulada em relação ao Outro?
A conversação poderia propiciar ao adolescente fazer uma nova articulação com algum Outro?
Damasia Freda: Sim. Não digo que não. Os adolescentes conversam entre eles ou não, na medida em que conversam com os aparatos eletrônicos, conectados com muitos outros adolescentes. Teríamos que ver essas conversações também, já que hoje em dia predominam as conversações virtuais, e não a conversação com grupos de amigos.
CIEN-Minas: Teria um efeito distinto quando um analista convida para um espaço de conversação?
Damasia Freda: O que creio é uma ideia, porque também sou docente, na universidade, de alunos que também são adolescentes, de uma adolescência prolongada, porque são jovens. Creio que há uma crise de desejo de saber como a academia o propõe, tal como Freud considerava. O bom encontro com um professor era determinante para Freud. O desejo de saber, nesse sentido, está muito modificado. Os adolescentes atuais têm uma relação distinta com o saber. Eles sabem. Não é que eles não saibam, mas têm uma relação diferente. Necessitam do Google para saber as disciplinas, para saber história, geografia. O problema não é que não saibam; é que há uma ruptura com o Outro encarnado como figura de saber, como tesouro de saber. Se nós procurarmos a conversação para rearticular isso, não me parece ser recomendável, porque o paradigma está mudado. Me parece que é mais positivo entender como os adolescentes interpretam a sociedade contemporânea do que como os interpretarmos.
CIEN-Minas: Nossa última pergunta é sobre o projeto que vimos ali da rua Sapucaí, que é o CURA, sobre os grafites. O modo como o adolescente se apresenta no mundo muitas vezes passa por algo marginal, fora da Lei. A pichação, diferentemente do grafite, é vista como algo marginal, fora da Lei. O que você poderia nos dizer sobre a manifestação dos adolescentes em relação a esses dois modos de agir na cidade, tanto a pichação quanto o grafite?
Damasia Freda: A pichação, diferentemente do grafite, sempre foi uma manifestação política dos jovens e adolescentes com um compromisso social que os adolescentes atuais não mostram. As pichações estavam sempre relacionadas a manifestações políticas de oposição, reivindicação… já o grafite é uma arte. Não posso dizer muito dos murais da cidade de BH, que são charmosos e me encanta que se cubram enormes paredes de edifícios. São grafites. Recordo-me do caso de um adolescente que fazia grafites. É claro que os grafites têm essa característica de utilizar os muros, as paredes. Quando entra o município, o governo, perdem o encanto (risos). Recordo que o adolescente me relatava que saía de noite com amigos para procurar espaços diferentes, entre eles, vagões de metrô. Havia trechos com leis muito específicas, que diziam que não poderia, que proibia grafitar os monumentos históricos e os patrimônios da humanidade. Respeitavam determinados espaços. A arte é sempre transgressora; não é possível fazer arte quando sou incapaz de inovar, fazer algo novo. A transgressão – e a arte é isso também – é instalar uma Lei nova, uma nova regra dentro desse movimento artístico. Quando está muito normatizado, é difícil que a criatividade surja. A arte é, sobretudo, liberdade de expressão.
Na ditadura militar argentina, os comandantes decidiram pintar de branco os troncos das árvores até um metro e meio de sua altura. Então, eram todas iguais.
Aqui se passa o contrário. Na paisagem da cidade há essas figuras enormes, diferentes… esse vestido, por exemplo. Creio que é um tema interessante que o Brasil perceba se os grafites e as pichações continuarão existindo, seria bom tirar fotografias. Os grafites nos dizem se a cidade transpira arte ou não. Pessoalmente, me encantam os grafites e as pichações de jovens e adolescentes no Brasil e, sinceramente, espero que não as pintem de branco.