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O Cien Digital e o impossível da transmissão. O Cien Digital transmite?
Margarete Parreira Miranda
Laboratório “Trocando em Miúdos” Compõe o comitê editorial do Cien Digital
O Cien Digital – instrumento escrito do CIEN –contribui para a orientação prática dos profissionais que participam, cada um com sua quota, do trabalho interdisciplinar nas instituições por onde crianças e adolescentes circulam. É uma revista ligada ao Campo Freudiano cujos marcadores encontram-se estabelecidos no Ato de Fundação, por Lacan em 1971[1] e outros escritos. A seção de recenseamento do Ato de Fundação aporta ali três subseções: O comentário contínuo do movimento psicanalítico, sua articulação com as ciências afins e a condição ética da práxis de sua teoria. O trabalho do CIEN Brasil e as publicações do Cien Digital constituem os dois lados de uma mesma moeda, consistindo o enodamento desses três pontos em forte viga de sustentação.
Ao serem publicadas as vinhetas práticas, diferente das vinhetas clínicas que se deduzem da cura analítica, recolhem a importância de um momento em que algo se deslocou pela palavra ou ganhou, até uma perspectiva de subjetivação como efeito de uma conversação. Uma lógica se mantém, entretanto, entre as duas vinhetas: Fazer o contraponto às identificações que levam crianças, adolescentes e adultos que com eles convivem, à submissão a políticas segregativas. Ali, “preto no branco”, as publicações do Cien Digital dão a conhecer os efeitos sobre o que o falar do mal-estar contemporâneo nas Conversações produz.
O Cien Digital tem por finalidade fazer laço, promovendo a troca de saberes entre os laboratórios, além de corroborar “o bem fundado da cultura do escrito, que é a do CIEN, onde ele exista”, como assinala Judith Miller (Miller, 2007, p.4). Para a autora, ao darem testemunhos de sua experiência redigida por um ou por vários, os participantes do CIEN encontram-se articulados a um segundo momento da transmissão. Em um a posteriori freudiano, as vinhetas práticas dos diversos participantes do CIEN permitem formulações a partir das conversações, do que opera como transformação de situações vividas anteriormente como impasses, ou como atos impulsivos.
Daremos destaque aqui, aos efeitos de transmissão possíveis que o Cien Digital comporta.
As vinhetas práticas do Cien Digital e os efeitos de transmissão
Ao abordarmos o conceito de transmissão de um instrumento escrito, trazemos a importância de sua circulação pelos espaços. A palavra transmitir nos permite o desdobramento do prefixo “trans” que já indica o caráter de deslocar, transportar. Exploraremos, a seguir, o recorte de uma vinheta do laboratório “Entre as Fronteiras das Práticas Socioeducativas”, relato de Joanna Ângelo Ladeira, no Cien Digital número 11.
“A experiência fala. Crianças e adolescentes que participam dos encontros dão mostras, a seu modo, como o discurso do mestre as aprisiona, mesmo se estão na rua. […] É o que deixa aparecer o depoimento de uma das jovens que participa das conversações:
– Nós não é fácil, se nós fosse fácil nós tava em casa! Vou falar a verdade com vocês, porque a gente tá conversando aqui e não precisa mentir[…] Nós temos um montão de problemas, nós mora na rua, tá ligado? Aí chega no lugar e a pessoa vem descontar os problemas dela ni nóis?!! Aí não.
Diz do abuso das normas que não deixam caber o sujeito – irregular por excelência – na instituição que se propõe a acolhê-lo:
– Vocês iam querer ficar num lugar que é igual uma prisão? – Interroga.
E em meio à sua crítica, localiza possibilidades para o bom funcionamento de instituições que se ocupam de crianças e adolescentes. Isso animou a conversação e permitiu que cada um introduzisse aí um ponto, em busca de novas saídas, sema pretensão de uma fórmula[…]” (LADEIRA, 2012, p. 23-27).
No prosseguimento de seu relato, Joanna revela os efeitos de transmissão que a prática do CIEN promove para os adolescentes e trabalhadores das instituições, susceptíveis a essa experiência: “Em muitas conversações os jovens revelam projetos pessoais e coisas novas para suas vidas e isso faz com que a instituição que abriga a conversação perceba de um modo novo aquele jovem que já conhece” (LADEIRA, 2012, p. 27). Antes, porém, Joanna indica uma orientação de Eric Laurent ao CIEN, para que este se detivesse nos impasses provocados pelo discurso do mestre na tentativa de normatizar o real. E vai além em seu relato, trazendo ainda, como referência, o trabalho escrito de Cristiana Pitella, no Cien Digital número 10. Joanna diz: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”.
Os dizeres de Joanna Ladeira (2012) ilustram os efeitos de uma transmissão, no que ousaríamos considerar, neste trabalho, cinco tempos: 1- A demanda institucional do trabalho do CIEN. 2- O instante das Conversações para os jovens e profissionais de áreas afins, com possibilidade de transformações. 3- Tempo de concluir a intervenção do CIEN na instituição, recolhendo consequências do trabalho. 4- Momento do a posteriori e a formulação escrita do laboratório. 5- Transmissão do Cien Digital, tempo em que consideramos os efeitos de transposição entre as publicações, permitindo novas formulações teórico-práticas.
A escrita e o leitor: transmissão de leitura?
Ao apresentar o Boletim número 1 do Cien Digital Brasil, Maria Rita Guimarães, sua editora geral, dá lugar às aspirações dessa ferramenta de comunicação virtual e sua característica basilar: “ele está agora por toda parte e em nenhuma parte” (2007, p.2). Chama de “utopia” o desejo de que seu alcance e enlaçamento no um a um possa se operar.
Onze anos depois, o Cien Digital ganha estatuto de revista on line. Insistimos, entretanto, em uma questão: Que efeitos de transmissão os CDs alcançam? Para além de uma publicação virtual, cujo abarcamento é somente uma aposta, contamos com o comparecimento de cada um causado pela escrita e pela leitura, no enfrentamento do real que gera impasses no duro dia-a-dia das instituições.
Sabedores da importância do registro no que concerne ao propósito do Cien Digital, nos referenciamos em Jacques Alain-Miller (2011), em seu testemunho de entrada no ensino de Lacan, via a leitura de seus textos. Nesse artigo, Miller delimita como transferência de leitura esta vinculação dizendo que “é por intermédio do texto, por um trabalho de leitura que se realiza uma transmissão do seu pensamento e do seu trabalho” (MILLER, 2011, p. 24). Destaca ainda, nessa entrevista, o valor da leitura e os fundamentos da transmissão escrita que levam em conta “o retorno de certas palavras e certas conexões”.
Seria essa a posição esperada do leitor do Cien Digital, em contato com os achados da experiência do outro? Que encontre ali a chance da transmissão da palavra, o toque especial da letra, que reverbera a força de uma causa, o brilho de um desejo?
A linguagem invertida na transmissão em psicanálise
Ao lidarmos com o aporte escrito da linguagem nos parece importante delimitar alguns orientadores, no que concerne a psicanálise. Nas “ciências conjecturais”, disse Lacan (2003), prevalece a racionalidade, o saber ancorado em realidade objetiva, submetida à condição replicante, à redundância e à repetição. Em psicanálise, lidamos com a ineficácia da réplica, mas com a constância da surpresa e do inesperado do dizer de cada um.
O sujeito da psicanálise é um ser que se divide, pois, as palavras como recursos de linguagem são tomadas a partir de um corte, de uma barra colocada entre o significante e o significado. Esses cortes do inconsciente inscrevem uma falha, um indecifrável, um ponto de não saber, onde se inaugura que “nenhuma significação, doravante, será tida como evidente […] É preciso tempo para fazer traço daquilo que falhou [défailli] em se revelar de saída”, sustenta Lacan no texto Radiofonia (2003, p. 401-427). Uma estrutura de vários cortes, como o cristal, que se submetem ao eixo da linguagem. Um significante não aprisiona significados, pois o “efeito do que se propaga não é de comunicação da fala, mas de deslocamento do discurso” (Lacan, 2003, p. 405).
Para a psicanálise, o sujeito responde à marca unária de maneira inédita, com o que nela falta ou ao que dela resta sem mediação simbólica. Essa resposta sintomática, em firme peculiaridade, furta-se aos números. É uma tentativa de suturar a falta de modo próprio. Faz sintoma, e é com essa cicatriz no ser que as subjetividades reverberam, em ressonância, na comunicação. Eis a inversão que se dá: No uso da linguagem, Lacan afirma no artigo Problemas Cruciais da Psicanálise que “a mensagem só é emitida nela no nível daquele que a recebe” (LACAN, 1996, p. 208)[2]. A mensagem emitida é sempre um risco desviante, pois, estará susceptível às multideterminações do sujeito do significante, ou ao que dele não se inscreve no opaco da letra.
O psicanalista praticante dos laboratórios do CIEN, lida, consequentemente, com o mal-entendido da língua que gera perturbações. Em sua posição analisante vislumbra o incerto, ao mesmo tempo o feliz-acaso dos encontros possíveis. Leva consigo sua experiência de sujeito barrado, sabedor de uma posição “rebotalha”, mas, entusiasmada, porém. Desloca-se da verdade acabada e, aproximando-se do saber incompleto, poderá recolher os efeitos da psicanálise que se inaugurou freudiana. Desta posição se abre para a troca entre os saberes que a interdisciplinaridade do CIEN propõe.
Quando escutamos a enunciação da praticante do CIEN, cujo relato exploramos acima: “Reencontramos ecos desta orientação no último número do Cien-Digital”, uma questão reverbera em nós: Como se dá o processo de transferência de um texto com a imprevisibilidade de seu alcance?
A transferência de trabalho que se transmite no um a um
Os praticantes do CIEN são chamados a lidar com o mal-estar da civilização que desestabiliza as instituições. Responder a essas demandas é “por em jogo a transferência e o que nela se interpreta não exige nenhum standard, tampouco um setting. Implica em pôr em jogo um corpo através da fala interpretante, através desse artifício singular que se assemelha ao amor”. (MILLER e MATET, 2007, p. 3-4). Miller e Matet asseguram, ainda, que os efeitos de uma prática institucional se instalam mais pelo ato sustentado pela transferência, do que pela função que o analista, e entendemos que outro profissional do CIEN, pode ocupar ali. Pensamos que o princípio do trabalho no CIEN é a conversação inter-disciplinar que aposta que o furo circule entre as disciplinas.
Em Freud, a transferência é mola mestra da prática psicanalítica, o que permitiu a Lacan enunciar: “No começo da psicanálise está a transferência” (LACAN, 2003, p. 252). Destaca ainda, por consequência, que a existência do analisante institui o laço transferencial. Freud elegeu como objeto da transferência o amor, ao operar tal conceito como reedição de vivências familiares infantis. Lacan enfatiza a participação do sujeito na construção de sua verdade subjetiva e elucida acerca do sintagma “sujeito suposto saber”, constituindo-se o saber como objeto da transferência. Em 1971, no Ato de Fundação, Lacan declara: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se pela transferência de trabalho” (LACAN, 2003, p.242). Refere-se aos “seminários” e afirma que eles nada fundarão senão por meio dessa transferência. Inaugura, assim, como objeto da transferência o trabalho.
Um aspecto fundamental para a prática e os princípios do CIEN é interrogar, portanto, a partir da obra de Miller (2018), em que momento distinguimos o trabalho de transferência, no tratamento analítico, da transferência de trabalho em outras práticas da psicanálise?
Para Miller (2018), a transferência de trabalho, quando nos ocupamos dos fenômenos sociais com perspectiva analítica, não se inscreve do um a todos: “Concerne, pelo contrário, como a psicanálise mesma, como a experiência analítica em todos os seus aspectos (terapêutico, didático) o laço do um com um ou com outro e não do um com todos” (MILLER, 2018, p. 181). Ao considerarmos os efeitos de transmissão de um instrumento virtual, o Cien Digital, contamos com o “despertar” que a transferência de trabalho induz em cada um, do que ali se escreve e se endereça a muitos, e a outros de disciplinas diversas. A experiência interdisciplinar cria a chance de que o incompleto em cada campo de saber sobre problemas comuns suscite o desejo de participar de maneira genuína. Um laço se faz pelo não todo que convida a uma aposta no novo.
De que laço se trata, então?
Miller nos esclarece, nesse artigo, sobre a indução como importante elemento da transferência de trabalho, firmando a ligação de induzir com “conduzir a”, “conduzir adentro”, no sentido aberto e não fechado de fazer um chamado ao outro. E deduz que “para induzir ao trabalho é necessário que fique alguma coisa por fazer”. (MILLER, 2018, p.182). Esse inacabado do trabalho, esse ponto de falta gera impasses, que induzem a transferência.
Não seriam os impasses ponto central da demanda de trabalho ao CIEN? Em sua versão conflitante, as portas das instituições se entreabrem aos analisantes quando os outros profissionais experimentam a divisão e o fracasso de um ideal. Brota, nessas circunstâncias, o endereçamento ao “saber trabalhar dos psicanalistas”, cuja transferência os analisantes acolhem, em ato, com a posição de saber faltante.
As experiências interdisciplinares do CIEN a partir daí ganham vida e, por meio do testemunho escrito dessa práxis, chegam às linhas do Cien Digital “estando em todos os lugares e em lugar nenhum”, com a firme aposta em um desejo de que as palavras escritas ressoem no íntimo do ser do leitor. Que ele possa reverberar ali, se inserir para fazer parte e contribuir, com o que o seu pedaço de real induz.