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O infamiliar e o êxtimo nas conversações inter-disciplinares do CIEN
Ana Martha Wilson Maia
“É numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas de dentro. Em um parque, há pássaros, gatos. E de vez em quando um esquilo, um furão. Em um parque a gente não está sozinha. Mas dentro da casa a gente fica tão só que às vezes se perde.”
Marguerite Duras, Escrever.
Para escrever “livros desconhecidos” por ela mesma, diferentes dos que havia escrito até então, Marguerite Duras conta que permaneceu dez anos em casa, numa solidão feita por ela e para ela. Foi assim que escreveu Le ravissement de Lol V. Stein, um de seus mais belos romances cinematográficos, Le Vice-cônsul e muitos outros. E entre tantas coisas, Duras nos ensina poeticamente sobre estar só, “dentro” da casa.
Recentemente publicada pela Editora Autêntica, uma nova tradução bilíngue de um pequeno texto de Sigmund Freud transmite a grandiosidade de sua obra e a importância da palavra para o ser falante. Exímio clínico e pesquisador, Freud faz referência a diversos campos de saber – como à ciência, filologia, estética, linguística, filosofia e à literatura fantástica -, recolhe uma palavra alemã da vida cotidiana e a transforma em conceito, depois de tê-la dissecado até o osso. Até o que do real, esta palavra recorta.
Em seu centésimo aniversário, Das Unheimliche (1919) recebe uma tradução brasileira que ressalta a construção de um conceito-neologismo: “O infamiliar”, seja por sua forma ou uso inauditos.
O estranho, O inquietante, O estranho-familiar, O infamiliar – nas traduções para a língua portuguesa, Unheimliche apresenta variações em torno do intraduzível, no sentido do que Cassin descreve como “o que não cessa de (não) traduzir” (p.17).
Se o intraduzível é “o sintoma por excelência da diversidade das línguas” (Santoro, p.158), o infamiliar expressa a impossibilidade de sobreposição de uma palavra na tradução de uma língua a outra e mostra que “o muro entre as línguas não é intransponível, mas também que a passagem de uma língua a outra exige um certo forçamento” (Iannini e Tavares, p.9).
Podemos dizer que a impossibilidade da tradução perfeita coloca em evidência o muro da linguagem, o impossível da relação sexual na expressão de Lacan, que separa o que é de cada um em seu dizer e na solidão do seu gozo, como ilustra Duras.
Das Unheimliche trata do que o ser falante encontra como estrangeiro em si mesmo, em seu “infinito particular”, diria Marisa Monte, com sua linda voz.
Nas palavras de Freud:
“[…] o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo. […] Quanto mais uma pessoa se orienta por aquilo que se encontra a sua volta, menos é atingida pela impressão de infamiliaridade quanto às coisas ou aos acontecimentos” (Freud, 2018 [1919], p.33).
O encontro com o infamiliar causa angústia. E quanto mais um profissional se queixa do sintoma da criança e insiste numa solução protocolar que coloca etiquetas, menos inventivo ele pode ser no trabalho com a criança e a partir de seu lugar na instituição. O que o sintoma da criança diz sobre o seu próprio sintoma? – é uma questão que se coloca e circunscreve que na aposta do CIEN na conversação não se trata de uma “psicoterapia generalizada” (Laurent, p.41), embora vise reintroduzir a causalidade psíquica.
No dispositivo fundamentado na proposta de Miller (2005) de uma associação livre coletiva, a conversação inter-disciplinar visa abrir um espaço para a invenção por meio de soluções singulares de cada um: da criança e dos profissionais que lidam com ela nas instituições.
Disso resulta os efeitos possíveis da enunciação para aquele que fala, ao tomar uma posição subjetiva diante de seu dizer. Efeitos que podem alcançar todos que estão de algum modo implicados no impasse apresentado na conversação, a saber: aquele que tomou a palavra, os que estão presentes na cena da conversação e os que dela fazem parte indiretamente, como outros profissionais da instituição, as crianças e seus pais.
Freud enfatiza que o “infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona.” (p.45) Algo que é tanto íntimo e conhecido, como estranho, desconhecido, inquietante, infamiliar. É justamente por ser intraduzível que o infamiliar traz uma contribuição para o trabalho que os laboratórios do CIEN realizam, pois de que se trata nas conversações inter-disciplinares senão de seres falantes com suas próprias línguas, em torno de um real que lhes concerne?
Aberta a conversação e colocado o impasse, cada um que deseja “fala”. E para não tornar a oferta da palavra um blábláblá que infinitiza a produção de sentido, “a aposta na conversação é uma aposta sobre o corte” (Laurent, p.43) em que se opera um traumatismo, uma interrupção na fala, cujo objetivo é manter o desejo de saber em torno de “um vazio pulsante”, (Maia, 2012).
Como não há um saber prévio e exterior, mas possíveis e diferentes respostas, a demanda de saber é decepcionada de uma boa maneira e pode se tornar um motor de trabalho (Udenio, 2011). Deste modo, o vazio pulsante desaloja o ser falante do lugar de mestre e promove invenções. Mas como manter vazio este lugar do saber?
Para que se preserve um vazio pulsante na conversação e, consequentemente o trabalho dos participantes, é fundamental a presença de ao menos um analisante esclarecido – na precisa expressão cunhada, há muitos anos, por Beatriz Udenio -, que possa sustentar uma posição de não-saber. “Trata-se muito mais de despojar-se de toda expectativa de tornar-se célebre” (Udenio, 2018, p.59) como um mestre que traria alguma “verdadeira” solução para o impasse, ao invés de estar numa posição de dentro-fora, visando o vazio pulsante. Assim, a posição do analisante esclarecido numa conversação do CIEN está diretamente relacionada a uma posição de êxtimo.
Como o infamiliar de Freud, o êxtimo é um neologismo criado por Lacan para indicar paradoxalmente aquilo que sendo o mais íntimo, interior e singular, é algo que está fora, no exterior.
Lacan esclarece a estrutura topológica do êxtimo em seu ensino. Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, ele aborda o inconsciente freudiano e pergunta: “O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu?” (1957, p.527). E, apontando “uma excentricidade radical de si em si mesmo com que o homem é confrontado” (p.528), indaga: “Qual é pois esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?” (p. 528).
No Seminário 7, Lacan se refere à extimidade primordial: “a esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa” (1959-1960, p. 173) e alguns anos depois, no Seminário 16, localiza o objeto a dizendo que este “está num lugar que podemos designar pelo termo ‘êxtimo’, conjugando o íntimo com a exterioridade radical” (p. 241).
Por meio do objeto e do Outro, pois na época em que descreve o inconsciente como o discurso do Outro ele apresenta o Outro como êxtimo do sujeito, Lacan se refere ao ponto vazio da estrutura que inclui o dentro e o fora, o mais íntimo e o êxtimo.
A formulação lacaniana da extimidade trata do ser falante com o seu gozo. Extimidade é o tema de um curso inteiro de Miller (2010) em que ele ressalta, na estrutura do êxtimo, o íntimo como um corpo estranho, dizendo que a extimidade é “uma fratura constitutiva da intimidade” (p.17).
Em referência ao que diz Lacan sobre o hiato central da identidade consigo mesmo, Miller considera que “Este Outro que me agita no seio de mim mesmo é uma formulação adequada para toda loucura”. (p.26)
A loucura da educação para todos e da patologização da infância cria um cenário que compromete os laços sociais. Alguém será apontado como o estranho, o diferente. A angústia do profissional diante da criança incontrolável aponta para algo nele que não é reconhecido como próprio, mas como do outro, estranho, estrangeiro. “O estatuto estrangeiro do sujeito é de se sentir estrangeiro consigo mesmo”. (Laurent, 2018) É a criança, então, que será etiquetada e segregada.
Se “O drama do sujeito […] é não conseguir estar plenamente em sua casa” (p.25), como diz Miller (2010), ou estar tão só que às vezes nela ele se perde, nas palavras de Duras, a aposta do CIEN é que as conversações inter-disciplinares constituam um lugar aberto às invenções visando aos laços e a um lugar menos estrangeiro para que cada um possa estar com os outros e consigo mesmo, no encontro com seu sintoma infamiliar, êxtimo.