Skip to content

O que falar quer dizer?[1]

image_print
Ana Lydia Santiago

“Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve.”

Jacques Lacan

Foto de pixabay (pexels-pixabay-414579)

O que falar quer dizer? Com esse título, o poeta Jean Tardieu[2] faz cintilar os recursos da língua, o sociólogo Pierre Bourdieu[3] situa questões da interlocução em função dos lugares simbólicos de poder, e o educador Joseph Rouzel[4] estabelece uma prática de entrevista para o trabalho social. A filósofa Barbara Cassin[5], por sua fez, explora o falar como fazer, partindo da linguagem performativa proposta por John L. Austin[6], primeiro a teorizar que se pode fazer coisas com as palavras. E para os psicanalistas que atuam no Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança (CIEN)? O que falar quer dizer? O que fazem, ao propor a circulação da fala entre pares de uma instituição, para abordar impasses e dificuldades surgidos no trato com crianças e adolescentes?

Uma resposta para esta questão apenas se extrai da experiência de cada laboratório do CIEN, ou, mais precisamente, se apreende da fala daqueles que participam das atividades dos laboratórios, quando o encontro com a proposta do CIEN constitui, uma oportunidade de dizer algo que jamais tinha sido possível dizer, antes. Um “ponto doloroso”[7]– sinaliza Judith Miller –, recrudescido pelos discursos do momento atual, silenciado pelo clamor das ideologias.

Fazer chamejar os fundamentos do CIEN transmitidos por Judith Miller em seus textos – iniciativa de Paola Salinas, atual coordenadora do CIEN Brasil –, comporta um duplo propósito: homenagear Judith, que esteve à frente desse Centro, em uma ação engajada, desde sua criação em 1996, e, ao mesmo tempo, reavivar o CIEN. Em 2017, nas homenagens rendidas a ela, por seu decesso, tive oportunidade de expressar o mais sincero reconhecimento a Judith por tudo que ela fez como Presidente da Fundação do Campo Freudiano e, de modo especial, por tudo que ela nos ensinou a fazer com vistas a priorizar, em atividades coletivas, a investigação clínica e o avanço da psicanálise. Nesse momento, em que se trata de fazer uma leitura do CIEN através dos textos de Judith, isolei quatro princípios, a meu ver, norteadores para o trabalho dos laboratórios, lembrando, contudo, que a “bússola fiável” para qualquer ação do CIEN, “é o ensino de Lacan e o desejo que este testemunha, e que supõe que cada um coloque algo aí de seu”[8].

Primeiro princípio:

O CIEN não existe sem as Escolas da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)[9].

Escola é o termo de Jacques Lacan para designar o organismo de trabalho dos psicanalistas, visando cuidar de sua formação e garantir a presença da psicanálise no mundo. Lacan definiu três funções para assegurar tal finalidade, sendo a terceira delas a ampliação do campo analítico por meio da interlocução com outros campos de saber. A interdisciplinaridade, assim posta, deve contribuir para os psicanalistas se manterem à altura da subjetividade da época em que vivem[10], condição fundamental da qual depende a própria sobrevivência da psicanálise.

Judith Miller propagou pelos quatro cantos do mundo, onde existe o movimento das Escolas da AMP, o interesse da interdisciplinaridade para a formação do analista. Não era novidade o trabalho clínico que o psicanalista conseguia realizar no espaço institucional, fazendo a oferta da palavra ao sujeito, intervindo com a interpretação e colhendo os eventuais e consequentes efeitos de seu ato, sobre os sintomas. O inédito da proposta do CIEN consistiu no convite para estes profissionais tentarem apreender o ponto de contato do discurso analítico com o discurso do mestre, ou seja, o ponto de real ao qual se está confrontado, na instituição, diante do esforço de normatização. Trata-se, portanto, para o psicanalista, no CIEN, de conhecer os problemas enfrentados pelos profissionais de outras disciplinas e saber como respondem às questões da criança e do adolescente, guardando sempre a relação com o inconsciente[11].

Segundo princípio:

A interdisciplinaridade, no CIEN, se escreve com um hífen, que designa um vazio[12].

Esse vazio é primeiramente o saber não saber, ou seja, o princípio socrático que o psicanalista assume diante de um paciente e também deve assumir na interlocução com especialistas das áreas do direito, assistência social, saúde e educação, entre outras, para aprender sobre as dificuldades que estes profissionais encontram atuando junto a crianças e adolescentes. Lacan nos ensina que “A questão do saber do psicanalista não é, em absoluto de saber se isso se articula ou não, mas de saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo.”[13] A posição de saber não saber, no CIEN, fundamenta a dimensão da pesquisa interdisciplinar, para o psicanalista aprender com o outro, colher o novo e o resto produzidos pelas outras disciplinas como resposta ao real e às mudanças do mundo – a globalização, a homogeneização galopante e os problemas de segregação fustigados pelo termo racismo. Esses produtos questionam e desafiam a psicanálise a se introduzir no espaço institucional, renovada. Assim, o hífen do inter-disciplinar é “o frescor permanente da práxis analítica, da qual o psicanalista é operador”[14], independentemente de estar em seu consultório ou em uma instituição.

Terceiro princípio:

O estilo de trabalho do CIEN é a pesquisa em laboratórios.[15]

Judith Miller nomeou os grupos de trabalho do CIEN de laboratórios, uma expressão, segundo ela, “pouco conhecida no Campo Freudiano, mas muito utilizada por outras disciplinas que, enquanto científicas, fazem pesquisa.”[16] O trabalho em Laboratório[17], pareceu-lhe a melhor maneira de se dirigir às outras disciplinas e escutá-las. A constituição de um laboratório decide-se a partir de um impasse.

Um laboratório se constitui apenas em razão de um encontro, o encontro de um real contra o qual se chocam os profissionais de diferentes disciplinas, confirmando que a chave não estaria em um saber já estabelecido, mas na invenção, da qual testemunharão estes profissionais para desenhar o cume do qual essa chave aparece. Eles não a detêm de saída; detêm apenas aquilo contra o qual se chocam.[18]

A chave para o impasse sobressai do próprio impasse, de sua abordagem pela fala, a partir da qual, contingencialmente, uma solução pode advir para cada um. Eis a visada da operação com a fala praticada pelos laboratórios do CIEN, nas instituições. O CIEN conta, portanto, com as fontes inventivas e poéticas da contingência, do equívoco, do encontro.

Para alguém participar de um laboratório, não é necessária a condição de analisante; o trabalho do laboratório não visa provocar a entrada em análise das pessoas envolvidas; mas é preciso ao menos “um não saber ao redor do saber analítico, o que singulariza o desejo do analista.”[19]

Barriguda e cabaças, Silvio Jessé

Segundo Judith Miller, o registro do trabalho dos laboratórios cumpre uma função essencial. O CIEN valida “o bem fundado da cultura do escrito”, incentiva os laboratórios a prestar contas de sua trajetória, percalços, avanços e consequências, em um relatório anual, que, divulgado pelo CIEN nacional, permite aos outros laboratórios e à comunidade analítica:

Ler e interpretar a importância de um momento, às vezes percebido só-depois, pela maioria das pessoas.  Que o testemunho de uma experiência – redigido por um ou por vários de seus participantes – se constitua em material de leitura e interpretação.

Colher o efeito de transmissão que comportam os testemunhos das experiências.

Orientar o CIEN na medida em que, por meio dos testemunhos, se pode apreender as condições em que foi possível “traduzir os impasses em palavras” e, com isso, operar uma mutação, fazer surgir “uma perspectiva de subjetivação”.[20]

Quarto princípio:

A Conversação é a prática da palavra, do CIEN, para a tradução dos impasses.

A prática da conversação foi inventada por Jacques-Alain Miller como um dispositivo ativo para a realização de encontros do Campo Freudiano, um modo de tratar aspectos controversos ou insucessos que provocam questionamentos e, quando se formulam perguntas, há um chamado à conversa, à troca com os outros. Em sua proposta, a conversação é uma ficção operativa a serviço da produção de um passo a mais, de algo novo no saber já estabelecido.[21]

O CIEN apostou nesse dispositivo como uma prática inédita da palavra para tratar os impasses que os discursos universalistas e as políticas, surdos à particularidade do ser falante, agravam ao reduzir o cidadão a consumidor-produto, o corpo ao organismo ou um sintoma ao déficit[22]. No CIEN, a prática da conversação leva em conta a maneira como o discurso analítico e a orientação lacaniana subverte o laço social, sensível à subversão do sujeito, ou seja, aos efeitos do sem sentido da linguagem. Assim, o CIEN visa atingir o singular de cada sujeito por meio da circulação da palavra entre muitos, estando engajado em preservar o que é novo e revolucionário na criança e no adolescente, segundo a clínica do detalhe[23].

O desafio da conversação própria ao CIEN, nos diz Judith Miller, é operar um deslocamento que resulta em tocar a dimensão da pulsão e seus destinos. Desfazer as identificações e permitir um jogo de vida advindo de uma outra relação com o Outro.

Portanto, para o CIEN, falar quer dizer acionar as engrenagens do Grafo do desejo, para que as relações ao Outro se articulem e o sujeito possa apresentar suas respostas, emanantes do furo, do vazio, que também é causa e se mostra ausência vibrante, onde, antes, o silêncio, de mãos dadas com a pulsão de morte, impelia “a passagem ao ato cega ou o caminho da repetição sintomática.”[24]


[1] Texto apresentado na VI Manhã de trabalhos CIEN-Brasil, O que falar quer dizer? Singularidade e diferença, hoje. Rio Janeiro, 23 de novembro de 2018.
[2] TARDIEU, J. [1903-1995]. Ce que parler veut dire ou le patois des familles. Paris: Folio Junior, 2013.
[3] BOURDIEU, P. [1930-2003] Ce que parler veut dire: L’économie des échanges linguistiques. Paris Fayard, 1982. Neste ensaio sobre a função social da linguagem, Bourdieu considera que o discurso não é apenas uma mensagem a ser decifrada, mas também um produto que entregamos à apreciação dos outros e cujo valor se define na sua relação com outros mais raros ou mais comuns. Instrumento de comunicação, a língua é também um sinal exterior de riqueza e um instrumento de poder. “Quando falamos, dizemos o que dizemos, mas dizemos também, pelo modo de dizer, o valor do que dizemos. Para dizer alguma coisa, podemos escolher usar gírias, a língua clássica, a linguagem popular, entre outras maneiras, mas desde o momento em que escolhemos um modo de expressão, nos classificamos, e, logo, ficamos expostos a ser avaliados, a receber um prêmio, no mercado escolar” in: “Pierre BOURDIEU présente son livre Ce que parler veut dire”, Émission Apostrophes, Antenne 2, Présentateur Bernard Pivot, réalisateur Jean Luc Leridon. Vídeo de 29/10/1982, disponível em INA.fr
[4] ROUZEL, J. Cause toujours… de la parole dans le travail social. Le sociographe, Champ social, 2012/1, nº 37. p. 53-62.
[5] CASSIN, B. Quand dire, c’est vraiment faire. Paris: Fayard, 2018. O locutor se transforma ao falar, ele transforma aquele que o escuta, e transforma um pouco o mundo. É esta dimensão que, segundo a filósofa, o performativo põe em destaque.
[6] AUSTIN, J. L. [1911-1960]. Quand dire, c’est faire. Paris: Seuil, 1970. Austin, filósofo de linguagem britânico, desenvolveu uma grande parte da atual teoria dos atos de discurso. Seu livro tornou-se um dos clássicos da filosofia analítica anglo-saxônica. Apresenta a ideia de que alguns enunciados são em si mesmos o ato que designam. Assim, quando o pároco pronuncia a fórmula ritual “Eu vos declaro marido e mulher”, o casamento é consumado apenas pela enunciação dessa frase. O mesmo acontece quando uma criança ou um navio é batizado, quando se faz uma promessa, etc. São estes enunciados particulares que aos serem proferidos constituem o que designam, que Austin nomeou performativos.
[7] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, out. 2007, p. 4-5. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[8] Cf. MILLER, J. A reconquista do Campo Freudiano. In: BROWN, N.; MACEDO, L.; LYRA, R. (org.). Trauma, solidão e laço na infância e na adolescência: experiências do CIEN no Brasil. 2017. p. 35.
[9] MILLER, J. O que é o CIEN? In BRISSET, F.; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. (org.). Crianças falam! E têm o que dizer: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: Scriptum, 2013. p.24.
[10] LACAN, J., Ato de fundação (21 de junho de 1994). In Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, p. 235-239.
[11] C.f. MILLER, J. Entrevista concedida ao Jornal O Tempo, caderno Magazine, por Wir Caetano, em 24/04/1999, p. 10.
[12] MILLER, J. O que é o CIEN? In Op. Cit. p. 24. O hífen, na escrita do interdisciplinar, foi uma proposição de Philipe Lacadée, comentada em diversas ocasiões por Judith Miller.
[13] LACAN, J. Estou falando com as paredes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. p. 36.
[14] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, p. 4-5. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[15] MILLER, J. Apresentação do CIEN no Brasil [19/04/1998]. In: Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança: brochura da 1ª Jornada do CIEN. Instituto do Campo Freudiano, Belo Horizonte, abril de 1999. p. 2-5. (impresso)
[16] Idem. p. 4.
[17] Em Cuadenos del CIEN 2, p. 4, encontra-se uma definição do Laboratório de investigação do CIEN, nos seguintes termos: “Um laboratório de investigação é um pequeno grupo estruturado em torno de uma disciplina ou de um tema preciso que concerne à criança. Sua condição é a de ser interdisciplinar, o que impõe a necessidade de que haja ao menos profissionais de duas disciplinas e que a modalidade de trabalho seja a de sustentar um intercambio regular com eles. O Laboratório tem um responsável que zela pelo prosseguimento do trabalho.”
[18] MILLER, J. Éditorial. In Terre du CIEN, Journal du Centre Interdisciplinaire sur l’ENfant, nº5, déc, 2000. p. 1.
[19] MILLER, J. Principios de orientácion. In Cuadernos del CIEN 3. Instituto del Campo Freudiano. p. 57-58.
[20] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? In CIEN Digital, nº 1, out. 2007, p. 4. Disponível em: www.ciendigital.com.br/wp-content/uploads/2018/11/CIEN-Digital01.pdf
[21] SANTIAGO, A. L. Conversação de orientação psicanalítica: metodologia de pesquisa/intervenção sobre impasses na educação. In: Santiago, Ana Lydia; Assis, Raquel Martins. O que esse menino tem? Sobre alunos que não aprendem e a intervenção da psicanálise na escola. Belo Horizonte: Relicário, 2a edição, 2018. p. 9-22.
[22] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? Op. Cit. p. 4.
[23] LACADÉE. P. Le pari de la conversation. Brochura do CIEN, 1999/2000.
[24] MILLER, J. Por que um boletim eletrônico do CIEN Brasil? Op. Cit. p. 5.
Back To Top