ISSN 2178-499X
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Editorial – Novembro 2013

by cien_digital in Cien Digital #15, Editorial

Cy Twombly, untitled (Rome), 1971

Maria Rita Guimarães

Caro leitor e amigo do Cien Digital,

Inclua-se! Não fique por fora da leitura deste número do Cien Digital!

Comemoramos o número 15 com visual novo, navegabilidade fácil, mais atual, mais ágil! Tudo isso pela competência de Dario de Moura que não poupou horas de trabalho e insuperável paciência na tarefa de repaginação do Cien Digital. Manifestamos aqui nossos sempre insuficientes agradecimentos.

Cien Digital chega assim, renovado e bonito para realçar seu propósito: constituir-se como espaço que permita, a cada Laboratório do CIEN, a etapa necessária ao trabalho de pesquisas e intervenções que é próprio ao CIEN _valer-se da  via da escrita para cernir o real em causa na experiência. CIEN Digital, a cada número, reafirma, portanto, sua vocação de ser o boletim eletrônico do real.

Você encontrará, certamente, uma rubrica que lhe agradará, no conteúdo que agora lhe entregamos.

Interessou-se pelo Argumento da Jornada Internacional do Cien que se realizará em 20 de novembro de 2013, em Buenos Aires, publicado no CIEN Digital 14? Neste número 15 poderá ler dois recortes desse Argumento, escritos pela Comissão organizadora da Jornada – na perspectiva etimológica da palavra Argumentum: Argu oferece-nos o sentido de “iluminar” e constatamos como tal cintilação, metodicamente adotada naqueles parágrafos, leva-nos ao ponto fundamental do  CIEN: um vazio de saber onde se experimenta a eficácia de uma Conversação”.

Estávamos ansiosos para que Celio Garcia compartilhasse conosco sobre sua escuta da frase que colocou em circulação e sobre a qual o CIEN se detém para avançar na reflexão e prática. É nessa rubrica que Célio generosamente nos brinda com seu pensamento:  Começo pela expressão me inclui fora dessa. A periferia como lugar de memória do jovem infrator, onde dá prova de grande criatividade. ” Esta frase anuncia a marca orientadora com a qual Celio Garcia nos ajuda a suportar os impasses, a sustentar a política ensinada por Lacan, rumo ao real.

Ainda na Apresentação temos uma alegre notícia para partilhar com você: Fernanda Otoni, coordenadora da Comissão do CIEN no Brasil apresenta-nos o livro: Crianças falam! E têm o que dizer! , dedicado ao relato das experiências do CIEN no Brasil. Deixemos as palavras de Fernanda: “No embalo desse entusiasmo, com muito prazer apresento ao leitor pedacinhos dessa obra recheada com o desejo de CIEN.”

Estamos seguros de que gostará muito de ler, difundir, presentear os amigos com o livro do CIEN!

O desejo de CIEN implica uma política que nos exige rigor frente à “envergadura totalitária” do projeto de avaliação, classificação e determinação biológica a tudo aquilo que “nos ocorra como sujeitos, como humanos, ou melhor, como “trouhumanos” – usando um neologismo lacaniano que condensa trauma, buraco (trou, em francês). ” Encontramos em Hífen um estudo claro e vigoroso dessa questão elaborado por Mercedes de Francisco, psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Campo Freudiano e da Associação Mundial de Psicanálise.

Simone Bianchi EntreVista Philippe Lacadée que nos convida a um passeio… diretamente ao real, à escrita do real de Robert Walser. Autor do livro Robert Walser, o passeador Irônico, Lacadée, respondendo às questões que lhe foram formuladas, introduz-nos à leitura que faz da obra /vida de Walser que tem na escrita a sua bússola inventada.

Leandro Katz, 21 Lineas IV, 1972, MoMA

LABOR(a)tórios demonstram o laborare da pesquisa e do encontro com os sujeitos que, em ambas atividades, por meio das Conversações, são acolhidos em sua palavra. Além disso, o ato da escrita que tenta apresentar, da maneira mais viva, os significantes do CIEN, transmite, de modo simples, a difícil tarefa que lhe cabe: “ler” a civilização a partir da lógica que contraria a poderosa inclinação reinante em  verter no universal toda singularidade do sujeito. Os trabalhos “Das nuvens ao que sai do corpo rumo ao que só se inclui por fora”, “Me inclui fora dessa: o analista e o lugar do saber”, “Etiquetagem e apagamento das invenções singulares”, “Do “nada” fez-se Tutti”, mostram-nos isso.

Órbita não poderia estar melhor! Rômulo Ferreira da Silva, após aproximar o CIEN à prática dos cartéis, ensina-nos quais as bússolas que ele pode inventar em seu percurso de vida, revisitadas por ele recentemente, diante do dispositivo do passe. Rômulo recorta sua rica experiência de vida em três momentos do dizer: “Me inclui fora dessa”. Um ensinamento para todos nós!

Marisa Nubile, a partir de sua experiência na área educacional elabora os efeitos nela provocados pelo documentário A Infância sob controle, realizado por Marie-Pierre Jaury. Duas perguntas orientam seu trabalho: “O que o educador tem a ver com aqueles discursos?” e “Em que medida a escola é tocada pelas argumentações dos especialistas?”. Uma elaboração entre as relações entre os diversos discursos nos quais prepondera “o cientificismo que promete explicar o inexplicável e curar o incurável” e a nossa questão humana, como trouhumanos que somos. Leia no CineCien!

 

Boa leitura!

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Argumentum, fazendo brilhar o recorte

by cien_digital in Apresentação, Cien Digital #15

Enrico Castellani, Superficie grigia, 2002

Graciela Chester
Beatriz Udenio

Como abrir possibilidades, nos diversos lugares que habitualmente recebem as crianças e os jovens_ escola, clube, família, outros_ a que os adultos se mostrem atentos, sensíveis ao discernimento dessas modalidades de recusa, convidando, esperando que se aproximem, cada um a seu modo, para construir sua própria maneira de fazer, aquela com a qual irá nortear sua vida?(Extrato do Argumento para a Jornada do CIEN, 20 de novembro de 2013.)

A que chamamos adultos atentos, sensíveis ao discernimento das modalidades de recusa, que convidam a que cada um construa sua maneira de fazer?

A experiência dos laboratórios do CIEN e daquilo que ali se cozinha – como gostamos de dizer – converte-se numa vasilha de achados.

Porque a surpresa não vem somente quando uma criança “nos faz chegar” sua invenção, para que saibamos lê-la como tal. Essa surpresa é uma sacudidela e nos envolve ainda mais, quando isso que chamamos “a atenção sensível do adulto” nos leva a nos desalojarmos do costume, do habitual, das referências que nos guiaram tradicionalmente.

Porque a recusa não é exercida somente sobre a criança: quantas vezes é exercida sobre os adultos que dão um lugar a estes inventos, fora dos circuitos chamados convencionais? Entende-se por esses circuitos tradicionais os modos sustentados na ordem dos ideais, cuja bússola já não nos orienta como antes.

Por esse motivo, leva-nos a analisar o impacto que teve essa experiência para cada pessoa que por ela passou, mas também nos empurra à fonte, uma e outra vez, ao ponto fundamental do CIEN: um vazio de saber onde se experimenta a eficácia de uma Conversação.

Beatriz Udenio

Detenho-me na frase que recortei do argumento da Jornada do CIEN.

Duas coisas me convidam a um esclarecimento.

Uma, que saber advertir implica ouvir, e que ouvir não é apenas uma operação de escuta de palavras audíveis. Ouvir introduz a possibilidade de escutar os ruídos, os estrondos, os barulhos, mas também o que “ressoa” nos corpos inquietos, trovejante, fustigando, “à flor da pele”. Ouvir se torna leitura de signos no audível ou naquilo que nos é dado a ver.

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De como escutei a expressão me inclui fora dessa

by cien_digital in Apresentação, Cien Digital #15

Instalações clandestinas de energia – “gatos”1

Texto: Celio Garcia
Ilustração: Dário de Moura

O Historiador deixou de comemorar a data de aniversário, passou a se interessar, ao invés disso, ao lugar da memória. Senão na maneira de falar, qual é o caso, em se tratando do jovem infrator? (Ely não se esqueceu da data em se tratando da história do jovem infrator, a sua instituição).

Começo pela expressão me inclui fora dessa. A periferia como lugar de memória do jovem infrator, onde dá prova de grande criatividade.

Senão como entender o presentismo? A sua gíria não é mistério para ninguém. Em relação à sintaxe ele inovou definitivamente, não se limitando à gíria, ao vocabulário. Como sabemos, é mais fácil inventar no que concerne à gíria, ao vocabulário.

De tal forma o jovem se mostrou inovativo, em se tratando de infração, que retomei essa questão, pois me encontrava na Escola de Engenharia (UFMG). Como se sabe, ela dispõe, para fazer face a toda e qualquer infração, de um método científico. Pois bem, adotei um modelo geral de infração aos científicos algoritmos, como prova de criatividade.

Outro dia, por ocasião das demonstrações, surpreendi-me com esta frase: “você está louco”, ao se dirigir, _ o jovem infrator _ao vândalo, que iniciava a sua exibição da performance, começando a quebradeira de vitrines das lojas. Como se, ao dizer “você está louco”, se distinguisse, se separasse do vândalo, permanecendo na sua originalidade como jovem infrator. Como não tiveram uma infância, sabe de tudo muito cedo. Passaram à idade adulta muito cedo, não tiveram adolescência, isso é coisa de rico.

Como se você dissesse que uma prova do desaparecimento da adolescência faz com que se pense no rebaixamento da idade penal. É a velha história: Escrever certo por linhas tortas.

“Nasci pra ser livre?” Foi a primeira frase que escutei no momento da rebelião, na instituição onde ocorria a rebelião. Encontrava-me com minha colega Fabíola, estávamos a dois passos da tranca. Através da grade, da tranca, não poderia haver engano, era bem isso que um menino gritava: nasci para ser livre.

Memória do jovem infrator ,encontrei desde cedo, através de um funcionário da seção das antigas, que mostrou a documentação reunida por ele, espontaneamente, em fotografia 3/4. Os meninos que haviam passado por aquela casa e já tinham morrido, era um monte de fotografia ?! Como sabemos jovem infrator morre cedo!

O sistema é formado pelas instituições, o sistema ignora tudo de real com relação ao jovem infrator, o sistema está acima de tudo, não tem a mínima condição de saber o que realmente se passa com o jovem infrator, é um estranho para ele. Nosso ECA não resistiu à pressão do sistema. Passou a figurar o sistema como única referência.

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Crianças falam! e têm o que dizer – Experiências do CIEN no Brasil

by cien_digital in Apresentação, Cien Digital #15

Crianças falam! e têm o que dizer.

Apresentação do livro
Fernanda Otoni Brisset1

Durante um jantar, alegria e entusiasmo temperavam nossa conversa em torno da inventividade das respostas das crianças possíveis de serem lidas na experiência inter-disciplinar de laboratórios do CIEN no Brasil. Foi quando sonhamos em recolher, numa coletânia, a orientação lacaniana que anima esta experiência, a partir de vinhetas e conversações entre laboratórios. Judith Miller, naquela ocasião, disse-me: “As crianças falam!” Os laboratórios do Brasil, de forma clara, trazem o saber vivo das crianças, sua pontualidade real e autêntica. “Isso é o CIEN!” Decidimos publicá-la!

Reunimos uma comissão editorial responsável por recolher vinhetas e conversações. Desta comissão, Ana Lydia Santiago, Judith Miller e eu, tornamo-nos responsáveis por cuidar da edição e organização da obra. O projeto foi-se desenhando, aos poucos, a partir da leitura das vinhetas que iam chegando, impasses inéditos brotavam das experiências dos laboratórios, de norte a sul do país. Estabelecemos conversação viva com os autores, via email, telefone, skype, what’s up e surpreendentemente, vimos acontecer, no decorrer dessas conversas e em seus intervalos, as enunciações singulares que deram forma a esse livro.

Animadas pelo entusiasmo desse acontecimento, seguimos suas pistas, extraímos o ouro dessa experiência. Decidimos apostar na forma clara, simples e viva de contar a experiência e oferecê-la ao alcance de todos aqueles que se ocupam da criança e do adolescente, hoje. Procuramos publicar nesse livro uma formalização do que no Brasil se realiza de forma única, como experiência inter-disciplinar do CIEN. Uma formalização que prescinde das elocubrações teóricas, na condição de se servir do saber autêntico que brota da experiência. É um livro de experiências, como ensina a prática dos laboratórios do CIEN.

Afinal, o momento atual não está para brincadeiras e toda criança sabe disso. A psicanálise de orientação lacaniana não recua face aos impasses de seu tempo. Fizemos desse livro um testemunho vivo de que é possível ler o que a criança sabe e tem a dizer sobre a infância hoje.

No embalo desse entusiasmo, com muito prazer apresento ao leitor pedacinhos dessa obra recheada com o desejo de CIEN.

Boa Leitura!

O que pode a psicanálise na era das crianças sob controle!

Hoje, as crianças solitárias passam muito tempo na Internet, discutindo ou jogando em rede, ou diante da televisão. Todas essas telas olham essa infância negligenciada, ocupam-se dela e instalam uma dependência que a criança vai encontrar, novamente, quando estiver maior, nas ofertas dos mercados de drogas adaptados à adolescência2.

Lynda Benglis, Scorpius, 1982

Vive-se, hoje, em torno de um mercado diversificado, em que “cada um goza sozinho com sua droga”3 – Internet, Facebook, trabalho, esporte, sexo, alimentação, objetos de consumo da mais nova geração e outras. A própria criança, exposta como objeto de gozo desta época, encontra lugar em tal lista, como algo a ser protegido, cuidado, vigiado e controlado – um objeto precioso. Assiste-se à compulsão generalizada para assegurar os direitos e o interesse maior das crianças. Esse “espírito zeloso” para com “Suas Majestades, os bebês” serve-se de protocolos de conduta a fim de garantir a qualidade da gestão desses corpos e de uma série de regulamentações, cuja visada final é controlar a produção e desenvolvimento das crianças.

O mundo em que o gozo está em primeiro plano é um mundo com dificuldade de encontrar seus limites. Haja vista os sintomas atuais, cuja força pulsional perturba o laço social. Diante dessas respostas, o discurso das burocracias sanitárias e os programas educacionais do Governo “apressam-se a responder a essa urgência, propondo a aprendizagem comportamental para todos como único remédio”4. Entretanto essa urgência que passa a reger a lógica política de uma sociedade de vigilância e controle, fazendo suas injunções precisamente no campo das pulsões, “tem consequências irrespiráveis para o que chamamos de humanidade”5 e impõe à psicanálise apresentar sua responsabilidade política no século XXI. Que podem os analistas?

Desde os primórdios, a psicanálise recolhe seus efeitos exatamente por destituir a crença na solução universal, nos imperativos da tradição, no pensamento único, diluindo as identificações em massa e sustentando a vitalidade de um furo operante. É tarefa dos analistas fazerem falar os impasses da civilização e, no ponto em que vigora a fórmula “para todos”, realizar a subversão necessária, para dar lugar à solução de cada um.

Operar como “pulmão artificial”, nas palavras de Lacan, implica abrir lacunas para passagem no falar de um gozo singular, assegurar o direito dos sujeitos se manterem vivos, ao diluir o poder asfixiante e normatizador que rege os dias atuais. Trata-se de convidar a falar, a praticar a associação livre inaugurada por Freud, visando liberar respiradouros ante as “avalanches das exigências do mestre contemporâneo”6. A aposta é a de que, por essas aberturas, possa emergir a potência inventiva e subversiva que advém do mais singular de cada um. Por essas veredas, o Cien apresenta-se como um dispositivo da ação lacaniana!

María Magdalena Campos-Pons, “Not just Another Day”, 19997

O Cien: um pulmão artificial

Como ensina Judith Miller8, “o Cien é uma dessas instâncias que resultam da concepção que Lacan tem das diferentes tarefas que ele espera dos psicanalistas de suas Escolas, para estarem, como esclarece, à altura de seus deveres nesse mundo”. Por intermédio dos Laboratórios de que participam, em instituições por onde passam, instalam a aposta nas Conversações – um dispositivo em condições de abrir intervalos para conversar juntamente com outras disciplinas e campos de saber, e fazer falar as desordens, dificuldades e urgências trazidas por crianças e jovens, mediante atos e sintomas. Por essa via, o Cien dialoga com outros discursos e disciplinas, sem se deixar engolir por eles, criando brechas para soluções singulares das crianças exatamente onde governam os significantes universais e transmitindo a operação analítica como um ato político onde quer que esta se apresente, como esclarece o testemunho de Ana Lydia Santiago:

Se a invenção do passe pode ser concebida como um ato político de Lacan, em relação ao futuro da psicanálise, a política do Cien, na mesma direção, visa a tocar algo novo que concerne ao real inerente à extração de um resíduo, um desejo inédito, uma marca singular, que faz com que um não seja comparável a qualquer outro.

Por sua ação, a experiência do Cien no Brasil tem podido colocar em evidência o que sabem as crianças e adolescentes. Esses pedacinhos de saber, quando recolhidos, permitem indicar uma orientação política, inter-disciplinar, para dirigir as crianças até onde seu desejo as conduz. A inspiração desta coletância nasceu da determinação de reunir esses resíduos de saber depositados nas Conversações dos Laboratórios numa obra e, assim, poder transmiti-los, apostando na sua potência de arejar a vida para que a história continue, segundo o desejo de Lacan e o nosso.

Os trabalhos apresentados neste livro expõem, de forma simples e exemplar, como crianças e jovens, por meio de suas respostas, invenções e “traquinagens”10, resistem, de diversos modos, a ser sufocados pelas fórmulas rígidas que o Senhor lhes reserva. E mostram, também, como são vivazes, quando se trata de escapar das garras do controle e fazem tumulto nas escolas, comportando-se como demônios, sempre que os mestres os tratam como “otários”11. Seus sintomas interrogam os planos de governança e, em certa medida, fazem objeção às injunções dos amos modernos, demonstrando que não existe norma universal nem exame científico, que possa dar a resposta final sobre a causa do desejo.

Nadando contra a corrente, as Conversações operadas pelos Laboratórios do Cien em espaços inter-disciplinares das cidades propõem investigar, no mundo contemporâneo, o que nele atua como elemento perturbador e não cede aos poderes do formalismo, atualizando a função vigorosa do mal-estar na civilização, incrustrada no interior do discurso das boas intenções.

Os leitores verão, nos textos que compõem esse livro, a subversão provocada por um adolescente que “passa a conversa” na “polícia que queria pilantrar” e consegue reconduzir o sistema aos trilhos legais12. Ao dar lugar a esse elemento fora da ordem, o impasse revela-se, localizando o que de perturbador escapa da montagem discursiva das instituições, trazendo à cena o que foi “jogado para debaixo do tapete”. A Conversação reintegra esse resto à ordem do mundo, acolhe o impossível de controlar e o mal-entendido da discórdia da linguagem no cerne do laço social.

A palavra, quando enunciada, gera consequências. Se o discurso do mestre tem a função de fazer calar, pois empresta um sentido a mais, a Conversação orienta quanto ao fato de que a palavra serve para revelar um sentido a menos, conectado ao desejo em causa nos seres falantes. É o que ocorre no caso de um menino que, ao falar aos professores que insistiam em ver numa suposta homossexualidade a razão para protegê-lo das violências verbais de seus colegas, faz saber que, para ele, o que não cessa é o real da violência familiar alojado no sintagma “fazer xixi assentado”, que o remetera a um traumatismo fora do sentido e impossível de ser dito mais além do instante de ver a orientação sexual do jovem13.

Brittany Kubat

Etiquetas embebidas de sentidos morais vão perdendo sua consistência imaginária e dando lugar ao surgimento do detalhe singular em jogo, sufocado por categorias universais. Crianças com diagnóstico de autismo, câncer, hiperatividade, obesidade e outros interrogam Serviços ao se recusarem a vestir a camisola prêt-à-porter14. Quando se dispõem a escutá-las, os profissionais podem inventar formas de acolhê-las, mais além da receita dos manuais que padronizam as condutas.

As Conversações dissolvem as etiquetas e, consequentemente, as respostas da patologia deixam de ser suficientes15. Esses efeitos saltam aos olhos, nos espaços das Conversações do Cien. Ao falar do mal-estar que perturba, acontece de “tomar gosto” pela palavra16, na trilha do bem dizer. Mesmo que o discurso analítico não esteja presente como tal, sua transmissão está no coração dessa experiência.

Atuando em diferentes campos, mas de “antenas bem ligadas” à variedade das práticas contemporâneas, os Laboratórios recolhem as dificuldades atuais que envolvem a criança, cujo corpo, tantas vezes etiquetado por diversos discursos que dela se ocupam, se agita, cala, perturba, desobedece. A política do Cien faz surgir, na rotina do trabalho inter-disciplinar, um intervalo para se conversar e, pelas gretas, torna possível ler o momento atual, escutando o saber da criança e suas respostas frente a impasses da presente civilização.

O que a criança ensina?

Crianças e jovens, por onde passam, revelam sua leitura sobre o mestre de seu tempo, bem como as saídas que encontram para não se deixarem sufocar pelos significantes dominantes. Às avessas, as respostas das crianças “furam” o cerco que lhes é destinado e inventam saídas para evitar esse enquadramento geral. É o que revela uma adolescente que, respondendo à Técnica do abrigo que queria lhe aplicar uma ortopedia de comportamento, afirma: “Nós não é fácil. Se nós fosse fácil, nós ‘tava em casa”17. Dessa forma, ensina a ela que, para trabalhar em instituições como aquela em que se encontravam, é preciso saber abrigar o singular de cada um. O que não cessa no mundo dessas crianças e adolescentes é o espaço de um lapso e, pelas brechas, todos sabem que “vida de distraído é sempre cheia de surpresas”, como diz Guimarães Rosa.

Se, por um lado, a fábrica de etiquetas e regulamentações trabalha sem parar, por outro, surpreendentemente, observa-se que isso não “cola” mais como antes. A infância pulsante não se deixa controlar e segue seu curso decididamente, perturbando a ordem geral, de forma criativa ou mortífera. Parece que, quanto mais o amo insiste em enquadrar o fazer de crianças e jovens de forma protocolar, de acordo com as etiquetas à disposição, mais a resposta deles pode ser excepcional. Um sociólogo, esforçando-se em avaliar a arte de um jovem por meio de rótulos específicos, pergunta-lhe:“O que você faz é pixação ou grafitagem? E o adolescente responde: “Sim, eu grapixo!”

A perspectiva é de se construir, a partir da fala desses jovens, uma autoridade que lhes permita sair de seus bandos e da segregação aos quais foram lançados, conferindo a eles, a partir daí, um lugar de responsabilização pelos seus atos. Eis como entendemos, a partir das Conversações, o que é uma autoridade autêntica: uma autoridade que não se pode apoiar sobre um poder exterior e impessoal, pois é questão de presença e de saber fazer.18

Quando a “solidão da massa”19 desenha seus contornos, resta a cada sujeito responder por sua arte e seu artifício – desde sempre inclassificáveis –, saber fazer e responder por seu sintoma, uma vez que “não existe o Outro do Outro para operar o julgamento último”, como ensina Lacan20.

Philippe Pastor, The hearts21

O Cien-Brasil testemunha e transmite, nas Conversações que realiza, uma abertura no “alongamento do instante de ver”22. “Uma Conversação pode fazer vacilar os significantes mestres que regem um fazer protocolar com base em um suposto poder – potência surda e mortífera”. Por essa via, ao se interessar pela palavra de cada um, abre-se a um “saber fazer” com tais dejetos, “a partir da potência viva que decanta do saber dos jovens”23. Afinal, as crianças inventam e surpreendem o mundo com seu modo singular de traduzir o seu mais íntimo inclassificável.

“O que será o amanhã?” […] Eu fico com as respostas das crianças…”

O que se tem hoje foi, outrora, a avant-garde. A criança e os jovens são sempre a vanguarda. “Eles falam, pensam e inventam moda por toda parte, na escola, na rua, nos hospitais, nos tribunais , desde que haja pelo menos um disposto a escutá-los sobre o real de sua época e os impasses que lhes concernem”24.

As ressonâncias dos impasses da civilização atual vão-se desvelar aos leitores, ao lerem esse livro. Nele, deposita-se a aposta nas invenções das crianças e adolescentes de hoje, no seu saber fazer, na sua decisão apaixonada pelo futuro, traço fundante da juventude de cada época. As crianças e jovens são o futuro. Cabe-lhes, pois, inventar suas saídas para os impasses que vivenciam no presente, visando ao futuro que os aguarda. Essa nova geração, que está falando por meio de seus corpos, de seus sintomas, porta um saber em condições de inventar a bússola que nos levará ao amanhã.

Este livro é um convite para abrir os pulmões e escutá-la!

Agradecimentos

Agradeço a todos os autores que com sua palavra deram vida e consequência a esse livro do CIEN Brasil; agradeço a Comissão de Orientação do CIEN Brasil, bem como, o trabalho rigoroso da Editora Scriptum cujo efeito se mostra no primor d’arte. Agradeço, também, a aposta decidida da Diretoria do CIEN Francophono e da Diretoria do Instituto de Psicanálise e Saude Mental de Minas Gerais, a generosidade e gentileza da equipe editorial do Cien Digital, permitindo-nos gentilmente a publicação de algumas vinhetas recolhidas no decorrer do tempo de percurso do CIEN no Brasil. Agradeço, mais uma vez, a consultoria vibrante e pontual de Eric Laurent e, por fim, o que posso dizer para agradecer a parceria alegre, amiga e arrebatadora de Judith Miller e Ana Lydia Santiago? Sem o esforço e a poesia de cada um de vocês, esse livro não veria o dia.

 


1 Coordenadora Geral do Cien-Brasil (2011-2013)
2 LAURENT, E. A crise do controle da infância. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.38
3 MILLER, J.-A. As profecias de Lacan. Le point, 18 ago. 2011.
4 LAURENT, E. A crise do controle da infância. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.47
5 LACAN, J. Declaration à France Culture. Le Coq-Héron, Paris, v. 46-47, p. 7, 1973-1974.
6 SANTIAGO, A. L. O Cien na minha formação analítica. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.30
7 Version #2, silent video projection.
8 MILLER, J. O que é o CIEN?. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.24
9 SANTIAGO, A. L. O Cien na minha formação analítica. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.30
10 Termo empregado por Marina Sodré (RJ), para demonstrar a subversão da maldade em traquinagem, durante a vinheta que apresentou ao participar da Conversação do Cien-Brasil “Furando Etiquetas – o traço da política do Cien. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.179
11 SANTIAGO, A. L.; BAPTISTA, G. C.; MARIAS, K.; VASCONCELOS, R. N. Abismos entre gerações: hostilidade e recusa entre jovens e professores. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.99
12 MATOSO, D.; MOURA, D. Armados… para conversar: a experiência do Selex. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.74
13 GUIMARÃES, M.R. O que significa fazer xixi assentado? In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.121
14 SATO, S.; REIS, C. Impasses na saúde e na educação inclusiva. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.135
15 VASCONCELOS, A. Quando as conversações desfaz as etiquetas. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.113
16 CUNHA, C. A janela da escuta. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.127
17 LADEIRA, J. A. Nós não é fácil … Se nós fosse fácil, nós tava em casa. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.87
18 FARIA, L .F.; NEVES, L. As crianças impelidas a serem juridicamente responsáveis: quem as autoriza? In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.105
19 LAURENT, E. A crise de controle da infância. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.47
20 LACAN, J. Le sinthome. Le Séminaire, Livre XXIII. Paris: Éditions du Seuil , 2005. p. 61.
21 http://www.philippe-pastor.com/recent-works/the-hearts/
22 CARVALHO, V. Psicanálise/Educação: rumo a um saber novo. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.109
23 BARROS-BRISSET, F. O.; BOTELHO, A.; MARINHO, R. Proteção – substantivo variável. In: BRISSET, F.O; SANTIAGO, A.L.; MILLER, J. “Crianças falam! e têm o que dizer. Belo Horizonte, Ed. Scriptum, p.59
24 BRISSET, F.O. “Prega” leve no mundo do furor dominandis. In: CIEN Digital n.14, p.7
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Resistir à avaliação

by cien_digital in Cien Digital #15, Hífen

Victor Vazquez, “Hommage to Words”, 20072

Mercedes de Francisco1

Um dos signos desta época é a tendência ao cálculo e à avaliação, que leva consigo a proliferação do incalculável. O uso da cifra pela estatística quer nos fazer esquecer que “não a medida,” mas “o medido”, está imerso no registro simbólico numa ordem hierarquizada pelo sentido.

Convido-os a fazerem uma incursão pelos protocolos de atuação de psicólogos condutivistas e pelas investigações neurológicas, para terem a dimensão do que se trata. Lendo somente o que pretendem medir, podemos ter uma ideia da envergadura “totalitária” deste projeto, que parece não ter autores. O que supõe nos transmitir que qualquer coisa que nos ocorra como sujeitos, como humanos, ou melhor, como “trouhumanos”, usando um neologismo lacaniano que condensa trauma, buraco (trou, em francês) e humano, é calculável. De imediato e mais além das singularidades de cada um, inclusive das diferenças psicopatológicas, produz-se um deslocamento e nos convertemos, nós mesmos, em nossos próprios avaliadores. No próprio sujeito e em sua forma de se constituir, essa tendência encontra onde se alojar.

Quem tem sido isento de comparação com o outro semelhante, mesmo sabendo que, dessa comparação, sempre finalizará com um “menos”? Por isso, trata-se de resistir (como é entendido no campo da física), pois se não opomos resistência, a inércia será esta: cada vez mais, homens e mulheres querem controlar suas vidas para que não apareça nada de imprevisto, o que leva a um aumento da angústia, ou, outra possível opção, negar as consequências das ações que realizam, acreditando falsamente estar fora do controle.

Já vemos emergir um “tudo assegurado”; a publicidade das companhias de seguros resulta cada vez melhor ao mostrar as crianças no comercial.

Mark Manders, Bienal de Veneza, 2013

Crianças protegidas que não cairão jamais ao lado daquelas que nos são apresentadas na absoluta precariedade e desamparo. Nosso primeiro mundo, graças às seguradoras, pode dormir tranquilo. Aparentemente vivemos em um mundo pleno de experiências possíveis e novas, as viagens exóticas, as drogas sintéticas, a proliferação pornográfica são um véu cada vez mais espesso que torna opaca a ineliminável contingência.

Trata-se da repetição do novo, o novo caduco e obsoleto. A abundância de objetos de consumo como expressão deste capitalismo em que vivemos não se esgota em si mesma pois o que consegue é introduzir o sujeito em uma espiral de empuxo a uma satisfação que não cessa de se auto-alimentar.

Os objetos não têm importância; isso era na época de Rockefeller. Na época de Bill Gates trata-se de destruir o objeto feito para que surja o novo, e, assim, sucessivamente. Para manter a euforia do consumo são necessárias as drogas sintônicas como são a cocaína, a anfetamina, o Prozac, o Viagra, o Rubifen, et cétera. Euforia que vem acompanhada da “baixa”, a depressão no auge de nossos dias.

É indubitável que os sociólogos que se impuseram a tarefa de ler os signos de nossa época têm clareza de sua patologização. Nos países do excesso, sua população está cada vez mais afetada no terreno da subjetividade, os sujeitos adoecem e seus sintomas são a maneira de resistir a essa tendência. O sujeito não pode trabalhar, está deprimido, angustiado, quando se trata da outra cara do consumo maníaco, leva-o ao ato violento, quando levando ao extremo o controle e a avaliação de si mesmo, surge o estouro.

Vemos, assim, surgir uns sujeitos cada vez mais desorientados, e, por tanto, com mais medo, como nos dizia Freud em seu belo texto O Estranho. Desorientados – frente a que? – frente a este real impossível de dominar, calcular, predizer, tratar pelo simbólico ou pelo imaginário. Nossa desorientação está causada pela eliminação da impossibilidade.

Não se trata de nenhuma falha a ser retificada, não se trata de impotência, não se trata de déficit, de menos valia, mas nos fazem acreditar que sim.

Para Jacques Lacan essa impossibilidade se expressa na impossível fórmula da relação sexual. Não temos um saber fazer que nos oriente nas relações entre homens e mulheres.

Para encontrarmos, a única possibilidade é uma invenção, um “eureka” a partir daí.

Colin Sherrell, NO/ON — Pine, 20103

É por isso que a diferença sexual, isto é, o “ hetero”, é fundamental para avançar nos impasses de nossa civilização.

Para nós, não se trata da questão de gênero, a igualdade de oportunidades não nos faz esquecer a diferença inevitável.

O ser humano é falante, sexuado e mortal. A palavra, a diferença sexual, a morte são inseparáveis de sua condição. Por isso, podemos nos perguntar o que supõe esta tentativa, em aparência “acéfala”, de afastar o humano de sua condição, despojando-o do poder de sua palavra, apagando sua diferença, distanciando-o de sua finitude.

Biólogos de prestígio chegaram a conceber que cientificamente poder-se-ia falar da inexistência da morte.

Cada vez mais, diferentes filósofos, artistas, sociólogos, em diferentes lugares do mundo coincidem com este diagnóstico da época, com esta tendência totalitária e silenciosa no seio mesmo de nossas estáveis democracias.

Essa tendência totalitária apresenta-se agora com uma roupagem intocável. Fala-se de neurocultura, neuroética, neuroideologia e até de neuroarte. É possível que possamos retroceder no tempo até acreditar que as chaves de nossa subjetividade tenham sido localizadas no órgão do cérebro? O que supõe esse “suposto avanço” para a filosofia, a arte, a poesia, a psicanálise, etc, disciplinas que se sustentam na condição humana? Deixando o contexto das disciplinas: o que tal “suposto avanço” supõe para a condição humana mesma? Se as sinapses cerebrais respondessem a tudo: à genética, em resumo, ao organismo, que seria dos homens?! O cinema da ciência-ficção mostra-nos ao que podemos chegar. Por exemplo, Minority Report, de Spielberg, no qual os sujeitos são aprisionados justamente no momento anterior ao cometimento do ato criminoso , eliminando toda possibilidade de eleição e fazendo da determinação um mestre absoluto.

Lucio Fontana, Concetto spaziale, 1968

A mass media e os políticos têm uma cumplicidade com essa suposta “ciência”, que não distingue a direita ou a esquerda, conservadores ou progressistas.Trata-se mais de uma “fé cega”, de uma fé na aparência laica, mas que encontra seu melhor aliado na religião católica.

Lacan nos advertia que a ciência afetaria tanto o real que a religião se consideraria com melhores motivos, ainda, para “apaziguar os corações”(1).

Também Lacan, “detector de incêndio” nos anos cinquenta, vislumbrou o crescimento do individualismo que levaria a irrupção da violência, mostrou o efeito que a ciência teria sobre o real e que seria acompanhado pelo auge da religião. Para o Vaticano é mais difícil aceitar o casamento entre homossexuais que certas investigações científicas.

Cada vez mais encontramo-nos com ensaístas que nos descrevem o que está acontecendo: o trabalho precário e humilhante, os laços amorosos afetados pelo imperativo do novo, do jovem, do caduco; elejo o trabalho e o amor porque eram para Freud dois pilares da vida humana. Mais solidão, mais temor, mais fragilidade. Os sujeitos com menos recursos e com mais precariedade nesta sociedade hiperdesenvolvida. E, principalmente, mais desresponsabilizados de sua própria vida, uma vida medicalizada, na qual o que menos importa é o que sucede ao sujeito, cujo ser se reduz a um organismo.

Aos sujeitos que vivem em países com índices terríveis de pobreza e doenças é-lhes subtraído o estatuto de desejante, reduzindo-os a serem sujeitos da necessidade, justamente por lhes faltar o mínimo para viver. Jacques Lacan tem páginas memoráveis sobre o tratamento da pobreza e do próximo. Interessa-nos perguntar porque um mundo cujo desenvolvimento tecnológico poderia servir para erradicar a pobreza, provoca seu aumento.

A aparente sociedade da liberdade de eleição, da satisfação dos desejos, do excesso é a mesma cara da mesma moeda. Nossa condição humana está em perigo tanto no excesso como na escassez. Os efeitos deste sistema sobre o planeta e os homens já são difíceis de evitar: mudança climática, aumento das doenças, aumento das guerras, etc. Paremos esse deslizamento. Não gosto do “apocalíptico” porque a única coisa que promove é a impotência e o medo, elementos sempre úteis para, em seguida, instaurar o controle e o terror. Diagnostica-se com clareza o que acontece, mas não se vislumbram muitas possibilidades de mudança, não se encontra a extremidade da corda que permita “outra maneira” de amarrar as coisas.

Para a psicanálise freudiana, o ter e o não ter, que correspondem às diferenças anatômicas, tiveram suas consequências, que Lacan, sobretudo em seu último ensino, diagnosticou como uma ideologia. Ninguém pode negar a genialidade de Freud quando descobre o inconsciente como resultado do encontro entre o ser vivo e a língua, quando nos mostra a importância da diferença sexual e da morte; em uma palavra, quando inventa uma prática como a da psicanálise; mas foi Jacques Lacan, quem, retornando à verdade freudiana pode encontrar o limite intransponível para Freud, o do pai, o do nome do pai. Lacan, sustentando-se na mestria freudiana, conseguiu dar um salto de lógica que ainda está por se dimensionar. Já não se trata do mais e do menos, não se trata de castrado / não castrado, não se trata de satisfação e insatisfação, não se trata de prazer ou de desprazer, inclusive não se trata de mais além do princípio de prazer, de uma barreira a franquear, de algo a transgredir. Para esta nova lógica, o homogênio, o todo, o idêntico, a exceção, podem nos levar ao pior se esmagam o não-todo, o diferente.

Sang Won SungSang Won Sung, ‘TV Baby’, 2010

O humano goza por ser um vivente afetado pela palavra. Trata-se de um funcionamento, não de um disfuncionamento, não se trata de nenhum déficit, nem social, nem adaptativo, nem afetivo: trata-se do modo como cada um organizou um sintoma para enfrentar a impossibilidade da relação sexual, pois, além de que cada sujeito goza à sua maneira, além desse aspecto autístico do gozo, está a diferença de gozo entre homens e mulheres, gozos que não se adéquam. Trata-se de gozos distintos que não respondem à anatomia, mas à assunção de determinadas posições sexuadas.

Por que acreditar que isso teria algo a ver com o tratamento dos problemas que nos acometem? – pode-se objetar que isso é algo muito específico de nossa disciplina, desde o conceito de gozo até a questão da “relação sexual impossível”, passando pela construção de cada um para viver, e, portanto, põe-se em dúvida sua importância para a marcha do mundo.

Na época vitoriana em que Freud viveu, considerar que as neuroses tinham uma etiologia sexual e que as crianças, longe de serem inocentes, eram perversos polimorfos, foi a pedra do escândalo; desde a perspectiva de nosso mundo atual, até pode parecer irrisório.

Jacques Lacan, no entanto, introduz a impossibilidade no probabilismo sexual. Chegou a dizer que gostaria que essa sua fórmula se estendesse como uma reação em cadeia. Mas essa época está marcada pelo imperativo do fálico-sexual_ quantas vezes, com quantos, variados ou não, etcétera – no seio mesmo da diferença sexual.

Frente a isso, apenas resta o laço social, o laço amoroso, algo que vemos cada vez mais afetado. Como já sabemos desde Platão, não existe apenas uma definição do amor. Lacan vai avançando em seu ensino até a concepção do laço amoroso que não tampone o real, nem a impossibilidade, nem o contingente. É o que considera um laço de amor inédito, porque sairia da dialética amor/ódio em sua intenção de alcançar o ser do outro. Um laço entre homens e mulheres que não se erija em monumento da completude, do harmonioso, etc, do calculável, do investimento (financeiro), do assegurado; mas que também não se confunda a contingência com a proliferação do novo, um amor distanciado do neuroamor com seu contrato adjunto e até sua data de validade, proposto por uma deputada alemã. Para isso, usei a palavra RESISTIR. Frente à tendência destrutiva somente é possível opor a resistência do nosso singular sinthoma, que nos dá a possibilidade de saber fazer aí frente ao impossível do laço e ao autístico que nos constitui. Não duvido que esta nova lógica, inclusive esta nova topologia, seja uma alternativa junto com outras, aos tempos que correm.

Se o descobrimento freudiano chegou a afetar até a economia, podemos considerar que a invenção de Lacan pode ajudar, junto com outros discursos, a mudar este mundo, permitir que a condição humana não seja eliminada e conseguir sair dessa dialética mortífera entre o excesso e a escassez, dessa tendência destrutiva que parece haver chegado à sua máxima expressão entre o capitalismo atual, ainda que devemos estar advertidos com Borges de que o abismo pode chegar a ser infinito.

Tradução: Maria Rita Guimarães
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Referencias bibliográficas
LACAN,J. O Seminário 7,A Ética da psicanálise,Jorge Zahar Editor,Rio de Janeiro,1988.p.228 .Referência ao apólogo de São Martinho.
___________O triunfo da Religião, Editorial Paidós.Buenos Aires 2005
MILLER,J.Alain. El partenaire-síntoma. Editorial Paidós,Buenos Aires 2008.

1 Agradecemos a autorização de Mercedes de Francisco para a publicação no Cien Digital deste trabalho apresentado pela autora no Seminario Atlántico del PENSAMIENTO, realizado em Las Palmas de Gran Canárias, Espanha, em 2011. Esse evento propõe-se à reflexão dos acontecimentos da época, desde a perspectiva transdisciplinar.
Mercedes Francisco é psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise do Campo Freudiano, Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Docente do Novo Centro de Estudos Psicanalíticos (NUCEP).Foi presidente da Escola Lacaniana de Psicanálise no período 2000/2002.Integra a redação internacional de Le Nouvel Âne (LNA) por Madrid, revista editada na França e dirigida por Jacques-Alain Miller.
2 Página do artista Victor Vazquez
3 Página da artista Colin Sherrell
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Robert Walser, o passeador Irônico

by cien_digital in Cien Digital #15, ENTREvista

Robert Walser, Mikroschriften, 19322

Entrevista de Philippe Lacadée por Simone Bianchi1
Ensinamentos psicanalíticos da escrita do Real

Phillippe Lacadée no seu livro Robert Walser, o passeador irônico,3demonstra a importância da ironia em Robert Walser. Sua relação irônica com a língua lhe traçou um destino bem particular. Graças à invenção de uma escrita microgramática e o método do lápis – escrita minúscula do lápis sobre os pedaços de papel – Walser conseguiu manter uma imagem de seu corpo e sustentar um mínimo de laço social. O Real que constitui o romance na obra de Walser é também o trabalho do poeta.

Simone Bianchi: Você poderia nos dizer, em poucas palavras, quem foi Robert Walser?

Philippe Lacadée: Robert Walser é um escritor suíço alemão que foi reconhecido na sua vida pelos grandes – Franz Kafka, Robert Musil, Walter Benjamin. Apesar de ser reconhecido como um grande escritor, isso não o afastou do caminho que, como ele próprio dizia, o conduzia a ser um homem ordinário mas, sobretudo, a querer “ser um ravissante zero todo redondo”4, a fim de viver uma vida simples e ser curioso de cada detalhe que sua escrita inspirava. Então, eu tentei mostrar como essa vida tão ordinária e simples é dependente da sua estrutura subjetiva tão original, sem apresentá-lo como caso clínico. Parece-me que ele ilustra a tese de psicose ordinária, quer dizer, uma psicose não desencadeada até o momento onde ele se destabiliza, o que levou sua irmã a hospitalizá-lo.

Simone Bianchi: Você evoca a vida de Robert Walser como uma vida de errâncias e vagabundagem. No seu livro O despertar e o exílio, você nomeia o poeta Rimbaud como “o príncipe da errância”5. Dois poetas que não têm o pai como ferramenta para a grande estrada da vida. Mas o que você mostra bem em Walser é a posição irônica do sujeito.

Philippe Lacadée: Sim, eu proponho ler a sua obra/vida como uma tese sobre a ironia de onde se deduz seu estilo, sua atitude e suas dificuldades em fazer laço social. Ele passa sua vida sozinho, assumindo graças à escrita, sua loucura, o que fez com que durante muito tempo não pode ser chamado de louco. Era uma loucura mais discreta – bem sustentada pelo manejo tão preciso e rigoroso da língua – que acontecia nele caracterizando-o como estranho a si mesmo e aos outros. Mas ele deveria então escrever cada detalhe encontrado na sua língua porque era isso que funcionava como suplência. Walser nos revela no corpo de sua escrita, vivendo-a mais próximo de seu corpo, o modo pelo qual o drama da sua loucura se desempenha no verbo. De fato, ele que se dizia especialista da escuta, sentia um grande sofrimento psíquico em falar com o Outro. De fato, ele dizia: “quando eu quero falar, eu empresto imediatamente o ouvido para ter um auditório”6. Sua relação irônica com a língua lhe traçou um destino bem particular, contrariamente as aparências, como se o seu discurso não lhe permitisse fazer laço social.

Simone Bianchi: Você mostra também como sua posição em relação à língua ensina sobre o autismo.

Philippe Lacadée: Sua posição nos ensina sobre a questão do autista, ou seja, aquele que escuta a si mesmo, como indica muito bem nas crianças Tanner, mas também, notadamente no Brigand, sobre as vozes escutadas por ele, mas que lhe inspirava na criação dos personagens fictícios, especialmente as mulheres. Assim, se Robert Walser escuta a si mesmo, como dizia Lacan do autista, ele admitiria também ouvir as vozes femininas – as quais eram apenas das mulheres que ele encontrara, aquelas dos seus romances – e ficar frequentemente surpreso com ele mesmo pelas suas estranhezas. É a famosa confissão ao médico que se encontra no Brigand que é uma verdadeira lição irônica sobre a esquizofrenia.

Simone Bianchi: Você o apresenta como “o passeador irônico” e você nos diz que o passeio, título de um dos seus romances, foi vital para ele.

Philippe Lacadée: O passeio que organiza toda sua vida é um passeio na língua. Ele passava sua vida andando e passeando, para paradoxalmente, manter-se imóvel e escutar a sonoridade da língua veiculada pelo detalhe do barulho ou a estranheza de uma palavra entendida. Mas também ele parava para falar em voz alta e lá no que ele nomeia o duplo silêncio, ele ressonava com a sonoridade, não da língua articulada ao Outro do sentido, mas à lalíngua, como nos ensinou Lacan, ou seja, aquela do bem dizer antes de ter sentido.

Simone Bianchi: Você ilustra bem como a relação dele com as palavras e a sonoridade foi essencial.

Philippe Lacadée: As palavras impostas e a vontade das palavras que ele deduziu da sonoridade, eis em torno do que gira toda a sua escrita. Escrevendo: “As palavras, que eu estou prestes a pronunciar, têm toda uma boa vontade delas”7, ele testemunha quantas vezes ele foi parasitado por essa língua que veiculava os pensamentos e as palavras, e obedecia uma sonoridade que apenas ele entendia.

Ele está comprometido com as palavras pela maneira de enodar o seu gozo ao significante mestre, recusando-o de modo irônico através de sua posição subjetiva: ser a garçonete. Assim, foi o genial comprometimento com as palavras, até mesmo se representar com as palavras que revelavam a escrita na palavra, que se tornou o servo. Ele poderia dizer: “Eu gozo, então eu obedeço”. De fato sua obediência consiste em consentir ser o representante da escrita do mestre, enquanto criança que alugava a bela pluma encontrando a solução: se transformar em garçonete “para fazer a menina, então meninando alegremente sem parar”8. “Quando eu exercia realmente as funções de um “homem que faz tudo”, eu tinha dúvidas que um “romance do Real”, poderia sair deste fragmento de vida, que de um ato do Real poderia sair um ato literário? Oh, não de modo nenhum”9.

Simone Bianchi: O que quer dizer a simplicidade aparente da escrita dele?

Philippe Lacadée: Este homem que nos encanta pela simplicidade de seus escritos, pela precisão de suas palavras, pela “sua depravação da língua”10, pela seriedade de suas palavras mas, sobretudo pela lição de ironia, encontra na escrita de sua pluma a maneira de se manter numa certa saúde mental: “Onde está a saúde, onde está a doença?”11. O que não cessa de se escrever. Escrever se coloca mais perto do seu corpo, como se sua existência se definisse em torno da escrita que lhe proporciona uma felicidade singular ou que o rejeita como um parceiro muito caprichoso: “um homem que não rabisca pode apenas beber seu café de manhã? Tal homem ouse a respirar mal.”12 Não se falaria dele como um trabalhador, um faz tudo, um romancista manual, “ um torneiro que escreve, que corta, bota, forja, recorta, bate, digita ou crava as frases juntas”, um passeador, “um ouvidor o mais genial”, um folhetinista. Esse “solidário mundano” mas, sobretudo esse “homem estranho”, se dedicava a incarnar até a morte, já escrito no seu romance As crianças Tanner13, a substância viva que falta à escrita. Tudo o que se tem a dizer é eclipsado pelo ato de escrever: “apareceu que ele era mais apto a escrever e viver dos romances. Nossas imaginações são exatamente reais tanto quanto as nossas outras realidades”14.

Simone Bianchi: Você fala de uma crise da escrita e do estatuto particular desses textos miniaturizados ao extremo.

Philippe Lacadée: É uma escrita secreta e privada, onde vemos o reflexo dos distúrbios psíquicos de Walser que os conduziram desde 1929 ao Asilo Waldau e que, como pensava Carl Seeling, não merecia que a decifrássemos? Não, esta escrita miniaturizada não é um sintoma de uma doença mas, ao contrário, seguindo ao pé da letra as palavras de Walser, um meio de cura, significando para Walser a possibilidade de conservar e de renovar em permanência sua força criativa. Graças a Lacan podemos fazer de sua escrita miniaturizada o equivalente do Sinthoma de Walser, a invenção que lhe permite “curar-se literalmente” e alcançar “a singular felicidade”15. De fato Walser se colocava a escrever assim desde o que ele chamou de “sua crise da escrita” e “seu período de decadência”, surgidos de modo brusco durante os seus últimos anos em Berlim, onde ele experimenta um deixar cair do corpo, um verdadeiro tormento vivido sob o modo de uma falha da mão. Ele teve que deixar a cidade em 1912 para retornar à Berna, onde ele gostava de ouvir a si mesmo na sonoridade de lalíngua.

Simone Bianchi: Por que ele inventa o método do lápis?

Philippe Lacadée: Ele inventa então o seu método do lápis que lhe permite miniaturizar sua escrita. Esse processo do lápis tem uma significação muito precisa: mantê-lo na ilisibilidade e fazer calar “essa coisa incongruente que saía da pluma”, essa escrita na palavra que, de repente, colocava-se a dizer alguma coisa – equivalente das epifanias de Joyce – e que o perseguia.

Robert Walser, Mikroschriften, 19322
Robert Walser microscripts courtesy de Robert Walser Archive, Bern courtesy New Directions and Christine Burgin

Simone Bianchi: Você poderia precisar o que você nomeia “o lago acústico”, que parece ter uma importância na vida dele, no nível do “território do lápis” tornar-se o território sonoro dele.

Philippe Lacadée: Assim, seu território do lápis torna-se seu território sonoro, seu lago acústico16 o qual ele mantém, já que o encontramos ao longo dos seus escritos, ao ponto de fazer um livro, “Seelend”, enquanto se protegia através da miniaturização de sua escrita. Neste sentido, ele esclarece o lugar e a função da letra no último ensino de Lacan. Digamos que graças ao território do lápis, ele inventa do que se proteger do seu território da escrita, lá onde ele “ouve a si mesmo”, espaço de gozo, que ele nomeará seu lago acústico, espaço de escrita reduzida a uma letra, enquanto recusava a escrita do significante também portador de sentido lisível pelo Outro. Sua carta à Max Rychner na qual ele revela o modo pelo qual se dissolve para ele a escrita da pluma, permite melhor compreender o que estava em jogo na sua escrita – “Toda história do meu trabalho e da minha vida” – e a maneira pela qual ele soube se servir da escrita para tratar a sua grande sensibilidade à sonoridade do significante, ao que ele entendia das palavras17.

O “dito-esquizofrênico” como dizia Lacan, parece ter encontrado a saída da escrita para se manter no laço social. A invenção do seu método do lápis lhe ofereceu um novo recurso frente ao seu “dito-esquizofrênico, tomado sem o recurso de nenhum discurso estabelecido”18.

Simone Bianchi: Você demonstra nos dois capítulos como a escrita, às vezes tão simples e estranha de Walser, ilustra a teoria da dupla escrita no ensino de Jacques Lacan.

Philippe Lacadée: A lição clínica de Walser mostra como o seu modo de escrita é também uma verdadeira lição clínica sobre o gesto da escrita e da teoria da dupla escrita, contida no ensino de Jacques Lacan como Jacques-Alain Miller soube nos demonstrar. O método do lápis esclarece essa teoria da dupla escrita como restauração do sentido mas, também do significante e do saber. O significante pertence à palavra. O significante, em sua natureza, não é senão que o suporte fônico do sentido.A posição subjetiva de Walser é sua relação com a sonoridade do significante e a fonação. O significante, antes de tudo, é um fenômeno de fonação, e é a isso que Walser é muito sensível. Se sua escrita de pluma já tinha valor de sintoma para ele, o método do lápis e a escrita miniatura que se deduz, tem valor de sinthoma para nós.

Simone Bianchi: Enfim seu livro presta homenagem ao poeta como aquele que está à frente da psicanálise.

Philippe Lacadée: É nisso que o poeta, por estar à frente da psicanálise, nos esclarece: sua escrita miniatura, radicaliza de algum modo, os dois modos da escrita, ou seja, o significante e a letra; ela marca a distinção entre a escrita que não fala para ele e o desenho da escrita miniatura.

Tradução: Simone Bianchi.

1 Essa entrevista foi publicada na Revista Horizon n°55, Paris, Junho 2011.
2 Carta, 15×10 cm, do redator literário da Neue Zürcher Zeitung, Capa com micro escritas a lápis de Robert Walser em 1932. Courtesia de Robert Walser Archive, Bern e Cortesia do New Directions and Christine Burgin
3 Lacadée P, Robert Walser, le promeneur ironique. Enseignements psychanalytiques de l’écriture d’un roman du réel, (Préface de Philippe Forest), éditions Cécile Defaut, 2010.
4 Walser R., L’institut Benjamenta, Paris, Gallimard, L’imaginaire, 1960, p.33.
5 Lacadée P., L’éveil et l’exil, Enseignements psychanalytiques de la plus délicate des transitions, Nantes, Editions Cécile Defaut, 2007, p.37.
6 Walser R., Dimanche à la campagne, cité par Peter Utz in Robert Walser, Danser dans les marges, Genève, Editions Zoé, 1998, p.265.
7 Walser R., Le territoire du crayon, Microgrammes, Carouge-Genève, Editions Zoé, 2003, p.44.
8 Walser R., Le brigand, Paris, Folio, Gallimard, 1994, p.164.
9 Walser R., Walser à propos de Walser, Nouvelles du jour, Carouge-Genève, Editions Zoé, 2000, p.46.
10 Benjamim W., Robert Walser, Œuvres II, Folio Essais, 2000, p.156.
11 Walser R., Le territoire du crayon, op. cit., p.103.
12 Walser R., Walser à propos de Walser, Ibid.
13 Walser R., Les enfants Tanner, Paris, Gallimard, Folio, 1985.
14 Walser R., Le brigand, op. cit., p.74.
15 Walser R., Le territoire du crayon, op. cit., p.35-36.
16 Walser R., Les enfants Tanner, op. cit., p.276.
17 « Les mots que je m’apprête à prononcer ici ont leur volonté bien à eux », in Le territoire du crayon, op. cit., p.44.
18 Lacan J., « L’étourdit », Autres écrits, Paris, Le seuil, 2001, p.474.
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Me inclui fora dessa: o analista e o lugar do saber

by cien_digital in Cien Digital #15, LABOR|a|tórios

Antônio Dias, “H

Laboratório: “Rekalque, aqui bate e volta” • Belo Horizonte (MG)
Márcia Regina de Mesquita
Marcilena Assis Toledo
Paula Melgaço

O laboratório “Rekalque, aqui bate e volta” é edificado com base na proposta da pesquisa intervenção1 no espaço escolar envolvendo o diálogo possível da psicanálise com a educação e que oferta como metodologia de pesquisa a Conversação com os adolescentes e professores. Está vinculado ao CIEN que nos acolhe e orienta sobre um saber-não-saber tão caro à psicanálise e de “difícil sustentação” numa sociedade que rechaça o não saber.

A operacionalidade do laboratório se dá no início de 2013 nas instituições escolares que trabalham com adolescentes. Atualmente, conta com a participação de três profissionais na área da psicologia e psicanálise e, recentemente, uma professora da rede estadual de ensino reforça seu desejo de participar, após as conversações realizadas com os adolescentes em sua escola. De lá pra cá, o trabalho do Laboratório tem desafiado as profissionais na experiência junto às escolas.

Me inclui fora dessa são palavras de um jovem durante uma Conversação em que lhe perguntam se queria participar da proposta de trabalho em pauta na ocasião daquele encontro. Hoje, essas palavras se apresentam como tema da Jornada Internacional do CIEN. Elas podem enriquecer nossa prática nas Conversações com adolescentes que, por um motivo ou outro, não seguem a norma do social, da instituição e são etiquetados de agressivos, hiperativos, indisciplinados, briguentos, dentre outras nomeações. Tais rótulos, muitas vezes, os engessam nesse lugar de identificação oferecido pelo Outro escolar, não sem consequências para a vida desses adolescentes.

Consentir com as contingências e com o não saber nas Conversações não é uma prática executada sem dificuldades. São momentos que apontam para um “possível” sucesso a ser verificado a posteriori, ocasião de uma saída inédita daqueles que participam da Conversação. Momentos que provocam angústias, ansiedades frente ao “(não) saber fazer” ao se deparar com o furo – marca do sujeito que, de acordo com Reis, (2013) precisa “ser respeitado no que apresenta como questão” e que vai na contramão dos discursos que ofertam respostas para tamponar esse furo. Respostas que buscam no discurso da ciência um “certo apaziguamento” ao tamponar o furo, o real, o ineducável de cada um.

No primeiro semestre os profissionais do Laboratório tropeçaram nos embaraços relacionados à condução das Conversações que, em alguns momentos, pareciam fazer uso de um discurso pedagógico. Isso se dava, mesmo levando em consideração a compreensão pelos profissionais da não utilização de um roteiro definido, conhecido ou predeterminado. Ana Lydia Santiago nos orienta a construir junto ao grupo um saber sobre aquilo que está subentendido e se apresenta como mal-estar no espaço escolar. Ofertar o lugar da palavra, acolhendo-a, favorecendo o aparecimento do singular de cada um. Cabe aos profissionais que conduzem as Conversações manterem uma posição do saber-não-saber. Esse é o seu ponto primordial para propiciar, na instituição escolar, uma possível mudança através da Conversação, considerando que o saber constituído é o que se impõe na instituição de ensino. Por muitas vezes, trata-se de uma imposição “pesada” tanto para os adolescentes como para os professores e também gestores. Sendo assim, a nossa entrada na escola talvez possibilite a abertura de um lugar para o vazio onde a palavra circule. E com a escuta do analista se favoreça um tratamento para o real invasivo, se desconstrua o peso das identificações e se favoreça uma torção no posicionamento do sujeito frente às contingências.

Jac Leirner, Todos os cem, 1998

Nas Conversações realizadas em algumas escolas municipais de Belo Horizonte foi possível escutar professores que dizem de seu mal-estar ao se depararem com os “adolescentes de liberdade assistida2” na sala de aula. Quando uma professora nos indaga sobre a utilidade de nossa pesquisa e das conversações, dizendo que “ficar só na conversa não adianta nada” nos deparamos com uma demanda por um saber sobre o real que angustia os educadores.

Conforme nos ensina Miranda (2013, p.24), os professores muitas vezes desafiam o suposto saber e tentam colocar o analista no lugar do mestre, ou seja, daquele que dá soluções prontas e generalistas. Assim, um dos grandes desafios que cabe a esse profissional é tentar manter a posição de não saber. Ainda que seja convocado a dar soluções rápidas que excluam a palavra e o saber que cada um inventa.

Essa experiência de “inclusão” do analista no lugar do mestre é vivida pelos participantes do Laboratório, nas duas instituições de ensino – do estado e do município. Os educadores esperam na entrevista de devolução que os profissionais falem sobre o que fazer e como fazer, seja com os adolescentes que não corespondem ao ideal da escola, seja com os professores frente às suas questões e desafios vividos no campo da educação. Os participantes do Laboratório não ocupam esse lugar de saber, não respondendo às demandas, mas apontam para a implicação de cada um dos professores frente ao que se apresenta como sintoma. Contudo, esses afirmam que há diferença em estar com os adolescentes esporadicamente, como ocorre nas Conversações, e de estar com eles durante todo o ano letivo.

Nas duas experiências, os adolescentes “problemas” e os adolescentes “infratores” são, tanto para a instituição como para os professores, o sujeito que encarna o impossível para o Outro. Ele é o sintoma na mira do Outro (SANTIAGO, 2008, p. 114). Encarnando o impossível para o Outro é que a pesquisa universitária, particularmente a pesquisa intervenção pode realizar-se. Segundo Santiago a pesquisa intervenção “busca contemplar a dimensão da subjetividade para ir além da mera constatação do problema”. Seu desafio está na transmissão de efeitos terapêuticos e na formação dos pesquisadores naquilo que os próprios sujeitos nos ensinam sobre seus problemas. Acreditamos que Me inclui fora dessa também cabe aos profissionais / pesquisadores nesse trabalho através das Conversações, que, por diversos momentos, tenta “incluir” o analista no discurso daquele que é detentor do saber. O trabalho se fará efetivo quando o analista, estando avisado disso, ao ser incluído no circuito das angustias dos professores e dos adolescentes, sustente seu lugar de suposto saber e se mantenha incluído fora dessa. Sustentar o lugar do não saber faz parte do processo de formação do analista, de sua experiência na psicanálise em intensão e extensão, que acontece também no espaço de Laboratório e suas discussões com os demais laboratórios dentro do CIEN.

 


Referências Bibliográficas
MIRANDA, Margarete. Parreira. A experiência de analisante e o real em jogo nas escolas: para além da mistura do ouro ao cobre? CIEN DIGITAL, 14, 2013, p.24-27.
Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/Cien/pdf/CIENDigital14.pdf Acesso em: 10 set. 2013
REIS, Cláudia. Como se balizam os laboratórios do CIEN? CIEN DIGITAL, 14, 2013.
Disponível em: http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/Cien/pdf/CIENDigital14.pdf Acesso em: 09 set. 2013
SANTIAGO, Ana Lydia. O mal-estar na educação e a Conversação como metodologia de pesquisa intervenção na área de psicanálise e educação. In: Lucia Rabello de Castro; Vera Lopes Besset. (Org.). Pesquisa-intervenção na infância e adolescência. 1ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora Trarepa/FAPERJ, 2008. P. 113-131.

1 Pesquisas de Mestrado vinculadas à Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais intituladas respectivamente – Agressividade no espaço escolar: saída possível frente à segregação do sujeito? e a (Re) Inserção dos Adolescentes em Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida em Escolas Públicas de Belo Horizonte.
2 Cabe ressaltar que os professores nomeiam como “adolescente de liberdade assistida” todos os adolescentes que consideram estar em conflito com a lei, mesmo que não haja nenhuma determinação judicial que determine o cumprimento de uma medida socioeducativa.
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Etiquetagem e apagamento das invenções singulares

by cien_digital in Cien Digital #15, LABOR|a|tórios

Laboratório: “A criança entre a mulher e a mãe”• Rio de Janeiro (RJ)
Ana Martha Maia (responsável)1
Carolina Domingues
Paola Vargas
Rafaella Tavares Tinoco
Vanessa Carrilho dos Anjos
“A etiqueta… Nós nos relacionamos com simples etiquetas de uso corrente, pedacinhos de papel ou de superfícies inscrevíveis que se encontram juntas, penduradas, anexadas a um objeto para indicar algo que o concerne – seu preço, sua procedência, sua altura, seu peso -, uma partícula significante que se encontra ligada a ele”2

Robert Rauschenberg, Canto XIV, 1959

Como significantes mestres, as etiquetas classificam e segregam, na tentativa de nomear, generalizar e controlar o gozo. Neste sentido, o termo epistemo-política, sugerido por Miller3, é muito esclarecedor para elucidar o que atualmente acontece com relação à política dos saberes que concernem à criança e aos impasses com os quais psicólogos em formação em psicanálise se deparam nas instituições, em experiências interdisciplinares.

Uma pequena menina inicia a adaptação escolar em uma creche. Sempre isolada das outras crianças, não chora, não balbucia, não responde ao chamado de seu nome, não procura o olhar do outro. Seu corpo parece não ter tonicidade. Na reunião de equipe, estas observações da psicóloga levam à indicação de uma avaliação psicomotora. Um tempo depois, o pai supõe que a filha seja autista. A equipe responde com a indicação de uma avaliação neuropediátrica e uma fonoaudióloga passa a orientar os pais e os profissionais da creche na forma de lidar com a criança. As informações devem ser dadas em tom de comando, com palavras no imperativo: “Pega!”, “Dá!”

Certo dia, angustiada, a professora procura a psicóloga, não sabe o que fazer com a menina que acordou chorando muito. “O que será que ela quer?” – pergunta a psicóloga para ela. “Como vou saber?”. “Quem pode saber?” – prossegue a psicóloga. E a professora se dirige à menina: ”O que foi, você está com sono, sede, fome?” Nesse momento, o choro cessa e um balbucio se inicia: mamamama. A professora rapidamente diz: ” A fonoaudióloga disse que isso quer dizer X, Y ou Z” (palavras que iniciam com M). Será?”- pergunta a psicóloga, ao que a professora responde: ”Pode ser outra coisa, né?” e leva a menina, fora do horário de alimentação, para comer. Esta vinheta ilustra como a etiquetagem da criança supõe um saber sobre ela, ignorando seu saber autêntico, o que ela diz, do jeito dela.

A modalidade de trabalho em instituições não orientadas pela psicanálise não dá lugar ao imprevisto, ao singular, às invenções tanto do lado da criança, quanto do profissional. Nesses casos, o autista não pode ser atendido pela psicóloga porque não fala ou porque não tem cérebro. Por sua vez, qualquer intervenção do profissional é engessada em instrumentos padronizados e laudos com diagnósticos baseados nas classificações psiquiátricas. Durante a conversação no Laboratório, o testemunho de outra psicóloga:

é uma clínica da exclusão por excelência pois meu chefe exige que eu escreva Deficiência Mental em um laudo de uma criança só porque ela não consegue aprender, como se não existisse outra possibilidade, como se não houvesse ali, uma escolha.

As duas vinhetas tratam da etiqueta do autismo, não por acaso. Os paradoxos dessa classificação apontam para a extensão do termo que, atualmente, se refletem na expressão “espectro dos autismos” – no plural – evidenciando tanto a dificuldade de estabelecer o diagnóstico como “o reconhecimento de que, até o momento, não existe uma medicação específica para esta patologia”4.

Enquanto o discurso da ciência insiste em foracluir o sujeito, a aposta na contingência e na invenção é o que permite aos profissionais, também etiquetados, “enfrentar o autismo de cada Um”5. Ao final, “com quais significantes mestres ela [a criança] será marcada”?6.

 


1 Atualmente, participam deste Laboratório Ana Martha Maia (responsável), Angela Duarte de Carvalho, Carolina Domingues, Giselle Fleury, Fátima Fernandes, Paola Vargas, Rafaella Tavares Tinoco e Vanessa Carrilho dos Anjos. Campo de investigação: a sexualidade feminina, a maternidade, a criança e o adolescente, a família hipermoderna.
2 Miller, J-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica, 2006, p.10.
3 ______ J-A. A criança e o saber. CIEN Digital nº 11. 2012, p.7.
4 Laurent, E. O que nos ensinam os autistas. Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. BH: Scriptum. 2012. P.18.
5 Miller, À l’écoute des autistes – conversation clinique organizée par UFORCA, 30 de junho de 2012.
6 Miller,J-A. A criança e o saber. CIEN Digital 11, 2012, p.7.
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Das nuvens ao que sai do corpo rumo ao que só se inclui por fora

by cien_digital in Cien Digital #15, LABOR|a|tórios

Hernan Cedola

Laboratório: Docentes Doentes: deixe-os falar! • Belo Horizonte (MG)
Virgínia Carvalho1
A criança nos ensina

No campo da educação, a criança testemunha o fracasso de uma política baseada em um projeto de inclusão “para-todos”. Diante dessa dificuldade, a escola produz sintomas e nos pede auxílio para fazer isso funcionar, buscando eliminar as falhas. Miller (2005) nos adverte que “a prática lacaniana exclui a noção de sucesso”, por reconhecer que isso que falha não cessará de não funcionar. Estarmos atentos ao que como dejeto cai, ao que “faz desaparecer enquanto o ideal resplandece” (MILLER, 2010, p.2), faz-se necessário para que se opere a “fineza” da psicanálise (MILLER, 2008-9). Tal esforço, entretanto, não é possível sem uma “desinserção” (MILLER, 2008), um “estar fora dessa”. Trata-se de não estarmos submetidos à política de querer o bem, o que não é simples quando fazemos parte do cotidiano de uma instituição educacional.

Túlio, uma criança de oito anos que se fazia desaparecer embaixo da mesa da professora, apagado e distante do ouro do projeto educativo, muito nos ensina. Em especial, que dar voz ao que não se inclui (sua extraterritorialidade) pode oferecer a uma criança algum lugar nas rotinas do mundo, o que só se faz por um “desejo que não seja anônimo” (LACAN, 2003, p.369).

E.T.: o menino das nuvens

Por ocasião do início do trabalho em uma escola de educação infantil, a analista é apresentada pela coordenação a uma cartilha que descrevia a síndrome genética de espectro abundante cuja sigla é E.T. Os comportamentos, o aspecto físico e até mesmo os emocionais estavam ali escritos. Túlio era o E.T. da escola.

A cartilha fora levada por sua mãe, que o considera “um menininho diferente”. Desde o início das convulsões, aos três meses de vida, quando foi diagnosticado, ela não tira os olhos dele. Sente-se sobrecarregada por isso e aponta o pai como ausente. Gostaria de trabalhar, como antes de se casar, mas o marido não permite. Acredita na existência de uma rivalidade entre pai e filho.

Na sala de aula do segundo período, não foi difícil perceber quem era Túlio. Estava na janela, contemplando o céu e pronunciando repetidamente a palavra “nuvem”. Oscilava entre observar o desenho das nuvens e ficar embaixo da mesa da professora, sem realizar atividades. Seu vocabulário era reduzido. Além de “nuvem”, dizia “carinho” e “coração”. A professora, para não ficar tomada de angústia por não saber o que fazer com essa criança, optava por acolher seus “dias de não querer fazer nada”, deixando-o quieto. Os colegas faziam o mesmo. Quando Túlio escapava de debaixo da mesa para fora da sala, uma das crianças o trazia de volta pelo braço de modo automático. Era um dejeto da sala.

Nick Cave, Soundsuit

Extrair a nuvem?

Podemos localizar três tempos de nosso percurso com Túlio: no pátio, na sala e com a equipe.

No pátio, ele se apresentava com seu corpo, dizendo sempre “carinho” e se aconchegando com uma intimidade inapropriada. Era uma espécie de automatismo que evidenciava o quanto o corpo era um prolongamento do corpo do outro. Para a surpresa das professoras, a analista interveio recusando esse movimento e colocando um intervalo entre os corpos. Túlio perguntava: “por quê?” e, aos poucos, brincava de esconde-esconde. Passou a se interessar pela trajetória dela perguntando: “onde você vai?”.

Na sala, estava em seu mundo das nuvens e, como de costume, ao perceber a aproximação, pronunciou “olha a nuvem!”. Desta vez, porém, ao ser questionado sobre o que havia nas nuvens, falou: “Uma nuvem que parece que vai chover porque tá cinza. A chuva vai cair aqui”. E, logo em seguida: “Por que uma nuvem tá pegando a outra? A nuvem tá pegando outra”. A analista pontua que “a nuvem está indo embora…”, ao que ele categoricamente responde: “Não!”. Convidado a deixar as nuvens caminhando no céu para desenhá-las, novamente, interpõe um “não!”. A analista se dirige para sua sala e ele vai até a metade do caminho dizendo: “não!”. Volta para as nuvens e, aos poucos, vai entrando e permitindo uma aproximação. Questiona: “por que você vai embora?”. O movimento de ir embora e voltar se anuncia para ele. Movimento de alguma separação: dos corpos, das nuvens, da nomeação de E.T. Após esse momento, os encontros com Túlio foram cada vez menos ocasionais. “O Túlio parecia estar te procurando”, dizia uma professora da escola, “ficou indo na sua sala o dia todo”. A partir daí, buscamos favorecer para ele a regularidade da presença/ausência na instituição.

Com a equipe, foi necessário viabilizar a entrada da palavra como mediadora do laço com as pessoas, no lugar de onde só se respondia com o “carinho”. Para isso, sugeriu-se uma reunião de estudo do caso, com a participação dos funcionários da escola. Em geral, os professores levavam muitos elementos sobre os casos a serem trabalhados, mas, de Túlio pouco tinham a dizer. Surpreenderam-se ao ouvir seu saber sobre as nuvens a partir de minha transmissão de sua fala. A diretora sintetizou bem o momento: “Acho que a gente acaba tratando ele como um bebezinho, que precisa de carinho. Não deixamos ele crescer. Quero que ele fale comigo o tanto que você diz que ele fala!”. Após essa conversação, a escola promoveu o início de um reposicionamento com Túlio, o que não foi sem consequências.

Pelas palavras, seus dejetos extraordinários

Ele passou a falar muito e a agredir a professora em quem apenas fazia carinho. Mostrava, às vezes em ato, quando o Outro estava sendo invasivo com ele, ao que antes respondia se desconectando. “Parece que é a forma como está tentando ser alguém que diz não, deixar de ser um bonequinho” – concluíram na equipe.

Sandra CintoSandra Cinto, 2010

O interesse pelas atividades dos colegas e pela arrumação da sala se sobressaiu à agressividade. Continuava olhando para as nuvens, mas estas se ampliaram para “nuvens que andam”, “vento que balança as folhas”, “chuva que vem e vai”, trovão e raio… Começou a querer saber o que se passava em seu corpo por meio dos objetos que se desprendiam dele. Podia ter os seus dejetos, o que é diferente de sê-los. Gostava de ficar no banheiro vendo as fezes indo embora. Quis aprender a se limpar. Saiu da escola e não tivemos mais contato. Ainda se fazia necessária uma invenção com seu dejeto “extraordinário”. Seu nome, no entanto, deixou marcas na equipe, aprendizes de que as palavras valem mais que um gesto, que um “querer bem”. Túlio nos transmite a fineza de sermos ensinados pelas crianças e seus desfuncionamentos – seus “mundos das nuvens”, o que é bem diferente de tentar apagá-los. Ele nos ensina como, embora à primeira vista os ideais de “inclusão” pareçam muito humanitários, é preciso um ponto de exterioridade, um “fora dessa”, para que essa criança deixe de ser um “ET”, para que deixe de estar fora do mundo. Fica claro que suas dificuldades como “ET” não estavam relacionadas à sua desinserção, mas à sua inclusão radical: o corpo em continuidade com o corpo do outro. A intervenção orientada pela psicanálise buscou propiciar “incluí-lo fora dessa”. Criar um fora – um intervalo entre os corpos – o permitiu se abrir para novos laços. Túlio nos mostra a importância de um trabalho que leva em consideração um re-posicionamento dos professores em seu fazer cotidiano. Os pilares do CIEN nos permitem, mais do que fazer essa aposta, colher os efeitos do que ela produz.

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Referências Bibliográficas

LACAN, J. Nota sobre a criança. Outros escritos. Rio de Janeiro: JZE, 2003.

________ J-A. Uma fantasia. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 42, p. 7-18, 2005.

________ J-A. Sobre o desejo de inserção e outros temas. Correio, São Paulo, n.62, p. 5- 17, 2008.

_________ J-A.Coisas de fineza em psicanálise. Horizontes, Belo Horizonte, 2008-9. Disponível em http//:institutopsicanalise-mg.com.br/horizontes/textos/licoes.pdf . Acesso em: 05/08/12.

________ J-A. A salvação pelos dejetos. Correio, São Paulo, n.67, p.19-26, 2010.


1 Responsável pelo Laboratório que funciona em Minas Gerais, intitulado “Docentes Doentes: deixem-os falar!” composto também por Ana Lydia Santiago, Ana Carolina Cadar, Eduardo Moreira, Fernanda Costa, Márcia Mesquita e Maria Angélica Serpa.

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Do “nada” fez-se Tutti?

by cien_digital in Cien Digital #15, LABOR|a|tórios

David Park, Canoe, 1957

Laboratório Infância Errante • Rio de Janeiro (RJ)
Keronlay Machado1

Na ocasião do primeiro encontro com os colegas do Laboratório Infância Errante – CIEN Rio2, em meados de agosto de 2012, compartilhei os impasses gerados a partir do atendimento a uma adolescente em situação de rua, no primeiro dia de trabalho na equipe de “Consultório na Rua” (eCnaR), acontecido no mês anterior. Neste momento, as conversações do Laboratório giravam em torno do tema do Recolhimento Compulsório de crianças e adolescentes em situação de rua, bem como da política de Redução de Danos.

O Consultório na Rua é um dispositivo da Atenção Básica e componente da Rede de Atenção Psicossocial implementado com o objetivo de garantir o atendimento integral à saúde da população em situação de rua, no âmbito do SUS. O trabalho é itinerante, in loco e tem como base de suporte uma Clínica de Saúde da Família. Como Terapeuta Ocupacional minha inserção na eCnaR se deu enquanto residente, no último semestre do curso de Residência Multiprofissional em Saúde Mental.

Tutti estava em situação de rua e chegara à Unidade Básica de Saúde em busca de atendimento, com insuportável dor de dente e intoxicada por crack. Apesar de sua gritante vulnerabilidade, ela não demandou nenhum cuidado para além da “dor de dente”, nem abrigamento, nem tratamento para cessar o uso de drogas. Nada. O não retorno da adolescente para os atendimentos agendados e a ausência de demandas me trouxeram inquietações e questionamentos quanto à clínica que seria possível realizar naquele dispositivo.

Assim, o impasse gerado a partir do caso de Tutti de “como cuidar de quem não deseja ser cuidado?” foi levado para conversações realizadas entre os integrantes do Laboratório por alguns encontros, através da circulação “acalorada” da palavra, com a contribuição da experiência de cada profissional e da particularidade de cada especialidade. Acalorada porque, de alguma forma, era um impasse comum à prática de cada sujeito ali presente.

Miquel Barceló, Bodegón amb 3 peres

Ao colocar o impasse em palavras, na roda de conversa, em que cada um fala de uma posição diferente, através de discursos diferentes, pude formular meu mal estar na seguinte pergunta: “como cuidar de quem não deseja ser cuidado?” O que se desdobrou em: “impossível cuidar de quem não deseja ser cuidado”. Esse foi o efeito que recolhi da conversação para minha experiência, que contribuiu para eu sair da posição de uma suposta “impotência” e “nada” demandar da adolescente que não queria “nada”.

Dessa forma, os desdobramentos do retorno de Tutti, ocorrido alguns meses depois, foram o efeito da mudança de minha posição e a afirmação da aposta na singularidade do sujeito, no vínculo e nas conversações com meus colegas do Laboratório, neste momento relatado, diante do impasse de cuidar de quem (a princípio) não deseja ser cuidado.

Participar das conversações do Laboratório Infância Errante tem possibilitado o refinamento da clínica produzida em meu cotidiano de atendimento à População em Situação de Rua, furando etiquetas impostas pela burocracia institucional e pela política, que insistem em massificar os sujeitos.

 


Referências Bibliográficas
1 Terapeuta Ocupacional
2 Os profissionais que participam do Laboratório Infância Errante são: uma psiquiatra coordenadora do setor de tratamento em dependência química de uma clínica particular; uma psicóloga que trabalha na superintendência de atenção hospitalar do município do Rio de Janeiro; uma psicóloga; um psicanalista e uma psicanalista supervisora clínica na saúde mental do Rio de Janeiro. Nosso campo de investigação é a criança e o adolescente que vivem em condições de risco, tais como fugas, errâncias e toxicomanias.
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