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Ser mãe hoje e o consumo da criança

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Adriana Duque, Samuel (From the series Pinocchios), 2011
Cristina Drummond

Cristina Drummond  coordena  a XIX Jornadas da EBP-MG, O que quer a mãe hoje? e CIEN Digital lhe propôs a conversa sobre a interface dos temas, porque  também  estamos nos preparando para a VII Jornada Internacional do CIEN – Crianças saturadas. Conforme o Argumento que veiculamos  novamente no  CIEN  Digital, são crianças  saturadas, fartas, saciadas, termos que indicam a satisfação, mas levada até o fastio, acarretando diversas patologias do desejo e sintomas no corpo.

CIEN Digital: Você encontra uma relação entre o estado de saturação das crianças e o modo como as mães educam  seus filhos hoje?

Cristina Drummond: Podemos sim, pensar que na maioria dos casos, são ainda as mães que educam seus filhos, só que de uma maneira um pouco distinta daquela de antigamente. Antes, a mãe sempre podia dizer que iria contar para o pai… quando ele chegasse. Há algo no contemporâneo que podemos tomar como efeito do discurso da ciência e do declínio da função paterna que deixa as mães mais sozinhas diante da função de educar seus filhos e que favorece uma posição da criança menos protegida da fantasia materna.

Se, por um lado, assistimos a milhões de ofertas de objetos que supostamente preencheriam a falta, o desejo e a demanda das crianças, por outro lado também temos a própria criança oferecida como objeto para preencher algo da mãe. Lacan nos ensinou que a criança está articulada ao falo, mas que ela é fundamentalmente um objeto em uma de suas distintas faces, seja de causa de desejo, de objeto dejeto ou de objeto estranho. O que se apresenta como uma grande dificuldade nessa questão da educação das crianças é que a criança pode estar no lugar de objeto real condensador de gozo que não deixa de estar articulado ao fantasma materno. Estar na posição de objeto faz com que muitas vezes a criança realize a presença deste para a mãe. É importante pensarmos que o que está em questão na relação de uma mãe com seu filho é a relação da mãe com a falta, sendo que esta nem sempre está inscrita como castração.

O termo “saturação” me parece interessante não apenas porque fala do excesso, mas também porque não sabemos muito bem que falta esse excesso está buscando preencher. Se o que se busca é preencher uma demanda da criança, o efeito rapidamente será o de criar uma nova demanda e um novo objeto a ser consumido. O que se alimenta é a gulodice do supereu. O problema é que quem acaba consumida e entediada é a criança, nesse processo que tampona a falta, ao invés de localizá-la.

Dessa maneira a criança se vê alienada do campo do saber e desresponsabilizada por seu mal estar na vida. Se educar é um dos impossíveis em Freud, educar sem colocar em questão a falta, tal como encontramos tantas situações atualmente, reduplica esse impossível, já que dessa maneira ele não é tratado, mas evitado.

CIEN Digital: Na atualidade, quais as dificuldades e impasses que uma mãe encontra para interpretar as demandas de seu filho?

Cristina Drummond: Nas situações contemporâneas, a demanda e o desejo estão, mais do que nunca, confundidos. Lacan nos ensinou que a demanda é sempre uma demanda de amor. Muitas vezes, o objeto que a criança pede tem por trás um pedido de amor, ou de escuta, ou mesmo de uma palavra ou um não. Acontece que essa demanda vem confundida com choro, com sintomas, com respostas que as crianças dão e que não são muito fáceis de serem escutadas porque elas não são ditas claramente.

Kaws, Hold the line 2011
vista de instalação Galeria Honor Fraser

Nesse mundo de consumismo onde passou a existir o mercado kids, cheio de ofertas endereçadas às crianças, é difícil resistir à proposta de alienação e de adição. As crianças querem o que está na televisão, nos shoppings, o que os colegas levam para a escola, o brinquedo do vizinho. E a cada dia elas vão encontrar um novo objeto que ainda não viram e não têm, e logo esse objeto vai ser absolutamente imprescindível. Interpretar a demanda da criança ao pé da letra e atendê-la o tempo todo, tal como assistimos muitas vezes em cenas de nosso cotidiano, é desconhecer que há algo para além da demanda.

Uma criança é capaz, desde muito cedo, de se posicionar diante do mundo e do Outro e de buscar explicitar seu desejo. A questão é que nem sempre conseguimos entendê-la. As mães, no anseio de serem boas, tomam o caminho mais fácil que é o de cobrar, atender e seguir o modelo universal e que não dá lugar para a particularidade de seu filho. Elas estão sempre pensando que sabem o que o filho necessita, o que é melhor para ele e que a criança não é capaz de fazer escolhas.

A grande dificuldade me parece ser a de introduzir a palavra e a escuta. Se não conseguimos escutar o que está em questão em cada demanda, se as atendemos o mais rapidamente possível, estamos trabalhando a favor da surdez e alimentando a posição de insaciabilidade e de tédio das crianças. Vale sempre lembrar que o dom de amor é dar o que não se tem, e que introduzir a falta em nosso mundo é uma arte cada vez mais difícil de ser exercida. No entanto, essa é a única chance para que a particularidade de cada sujeito tenha lugar em sua vida.

CIEN Digital: As mães também encontram-se saturadas? Pelos saberes, pela ciência e objetos de consumo? Quais as consequências para ela e para os filhos?

Mai-Thu Perret, Synthesis of the Universe
The Renaissance Society, 2006

Cristina Drummond: Certamente as mães também se encontram num mundo repleto de ofertas de modelos para serem boas mães. Infelizmente as crianças não nascem com bula e essa receita para exercer a função de mãe não existe.

Todas as indicações de Lacan sobre essa questão são no sentido de situar a falta entre a mãe e a criança e de dizer que essa relação traz em seu coração a sexualidade feminina, ou seja, o que não pode ser universalizado. Eu acho que isso quer dizer que é importante situar uma distância entre a mãe e a criança, um espaço que muitas vezes vai ser ocupado por objetos, mas objetos que vão mediar essa relação, construir sua borda e não objetos que vão preenchê-la ou ainda saturá-la.

Isso pode ser visto desde a mais tenra infância, por exemplo, na relação de amamentação. Hoje existem até programas no celular para se contabilizarem os minutos que um bebê deve mamar em cada peito. Por mais que existam os saberes dos médicos, dos nutricionistas, dos psi para dizerem qual é a fórmula da alimentação correta, não há como escapar da situação em que a mãe tem que interpretar o choro do bebê e ela sempre pode caprichosamente dar o leite ou recusá-lo. Não há como escapar das inúmeras dificuldades que uma mulher pode encontrar diante da função de alimentar seu filho e muitas vezes de uma repulsa de exercer essa função. Não há também como escapar das dificuldades que um bebê pode apresentar para ser alimentado ao fazer uma anorexia precoce, ao não aceitar ser alimentado, ao recusar ser acolhido pelo outro.

Então: basta dizer as regras do bom exercício da função materna? Muitas vezes eu acho que esse excesso de orientações desorienta e angustia extremamente as mães. Nessa relação entre a mãe e o filho há uma falta de saber, que é de estrutura, e apesar de os saberes serem muito úteis, não podemos tomá-los como absolutos e como regras a serem seguidas. Preservar a transmissão de um desejo que não seja anônimo implica em fazer uso desses saberes sem perder a singularidade. Não existe laço sem sintoma e por isso não existe a possibilidade de uma relação de uma mãe com seu filho que não seja sintomática.

CIEN Digital: Algumas mulheres perdem os filhos porque o Estado afirma que elas não têm condições de cuidar deles, não podem ser mães. O recolhimento compulsório dos bebês do crack, como ficou conhecido no campo do Consultório na Rua, é um outro exemplo. Ser mãe, ser pai também, é atualmente autorizado por este Outro do Estado. Como a psicanálise de orientação lacaniana pode contribuir neste cenário? O que ela tem a dizer sobre o que é ser mãe hoje?

Cristina Drummond: Essa decisão que você cita é paradigmática da intervenção do Outro do Estado na função da maternidade. É como se houvesse um modelo de boa mãe a ser seguido e implementado. Em seguida, bastaria se enquadrar nesse modelo para que as coisas caminhassem bem.

Ora, esse tal modelo não existe, mas também não podemos dizer que não existam mães que sejam muito difíceis e até mesmo mortíferas para seus filhos.

O que aprendemos com Lacan é que o amor materno é contaminado por um ilimitado que tem como avesso o ódio e que esse ódio pode se manifestar em situações graves que podem chegar ao ponto de levar uma mãe a matar o próprio filho.

Essa e outras manifestações da pulsão de morte não estão necessariamente ligadas à condição de uma drogadição. Que uma mãe seja toxicômana, não implica que ela seja tóxica. Uma mãe que faz uso de crack pode encontrar em seu filho uma ancoragem que lhe permita dar um outro sentido para sua vida. E tal dependência não é sinônima de que ela irá abandonar seu filho ou mesmo submetê-lo a situações de maus tratos. Não é possível fazermos tais equações.

Mariana Mauricio, Nosso Filho, 2012

Há, para além dos ideais sociais e do imaginário da boa relação entre uma mãe e seu filho, um real que nenhuma decisão jurídica pode regular. Não quero com isso dizer que o recurso à lei não seja necessário e útil em muitos casos, mas é preciso que isso seja considerado em cada caso. Penso que devemos e podemos fazer uma aposta de que uma mãe que adote seu filho e deseje cuidar dele possa se autorizar a fazê-lo.

CIEN Digital: Pensando, especialmente desde a proposta do CIEN, o que você poderia dizer sobre o trabalho de outras disciplinas nesta época de excessos? Por exemplo, os professores ou os trabalhadores da área da saúde, saturados por demandas institucionais, saberes, objetos (inclusive drogas lícitas): quais as consequências para as crianças e adolescentes?

Francesco Clemente, Arrival, 2013

Cristina Drummond: Realmente, estamos atravessando um tempo onde a interface entre os saberes e a parceria dos profissionais que trabalham com as crianças e adolescente é fundamental. As demandas de sucesso e de  boas respostas muitas vezes não dão  lugar para que as particularidades dos sujeitos sejam consideradas.

Estamos mais do que nunca fragilizados com a violência, a desorientação, o tédio, a falta de inserção no campo do saber. Todos os dias escutamos situações de difícil manejo e cuja solução não está pronta, e por isso mesmo deverá ser inventada. A lei não consegue organizar um rumo para as crianças e adolescentes e as antigas soluções não funcionam.

O excesso do uso da internet, o desinteresse pelo saber, o excesso de competição, tem tornado difícil o laço entre os sujeitos e trazido à cena situações de agressividade e de dificuldade no laço. Tratar dessas múltiplas manifestações de gozo desregulado me parece ser uma tarefa que convoca a tornar cada vez mais presente a proposta do CIEN, que nos possibilita uma presença do discurso analítico muito mais efetiva no mundo, já que o que se busca é permitir que esse discurso possa orientar a leitura desse real sem lei.


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