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ENTRE-VISTA COM DANIEL ROY

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Inside and Out, 1964, Melvin Edwards. Welded steel. 12 x 8 3/4 x 5 3/4 in. Collection of Susan and David Lawrence. © Melvin Edwards
Cien Digital, setembro de 2018, por Paola Salinas

 

Cien Digital: Diferentemente do Brasil, na França o Institut de L’Énfant (I.E. – Instituto da Criança) reúne o trabalho das três redes: CIEN, CEREDA e RI3. Gostaríamos que você nos contasse um pouco como se dá a articulação entre essas três redes e quais os pontos de aproximação entre elas. O que pode ser recolhido como uma especificidade do CIEN nesse contexto? Ademais, o que uma rede pode extrair como ensinamento da outra, a saber, o que uma pode ensinar à outra?

Daniel Roy: Cara Paola, obrigado por suas perguntas para o CIEN Digital Brasil, elas me dão a oportunidade de esclarecer alguns pontos que concernem ao Instituto da Criança (I.E.). O IE foi criado por J.-A.Miller no contexto da criação da Universidade Popular Jacques-Lacan (UPJL), que deu uma maior extensão à UFORCA (as Seções Clínicas), situando-as explicitamente sob o nome de Lacan; o IE veio se juntar à UFORCA na UPJL a partir da proposta que nos foi feita por J.-A.Miller para unir as forças do CEREDA, do CIEN e das instituições do RI3 para fazer valer diante da “opinião esclarecida” a posição da orientação lacaniana concernente à psicanálise com crianças. Esse movimento não é portanto a priori, mas se constitui na eficácia de cada passo dado. Para nós, o primeiro passo foi dado por mim quando propus a J.-A.Miller organizar uma Jornada de Estudos sobre o tema “Medos das crianças”, reunindo essas mesmas forças. Nesse mesmo passo, ele compôs o comitê de iniciativa do I.E. que se ocupou de organizar essa primeira Jornada, em torno de Judith Miller, com Jean-Robert Rabanel, Alexandre Stevens e eu mesmo. Nesse mesmo tempo lógico, nos pediram para considerar a questão das publicações e cada rede decidiu colocar um fim à sua publicação específica para privilegiar a elaboração comum, o que se concretizou pela criação da coleção La Petite Giraffe, com edição Navarin, que publica as obras ligadas às Jornadas do I.E. Cada rede então atravessou uma certa forma de perda para se reunir com as outras, e isso foi, algumas vezes, duramente ressentido por alguns de nossos colegas. O desafio é aquele da psicanálise mesma, que só pode sofrer por associar-se com outros discursos, os quais têm, sem exceção, como combustível um, ou alguns, significantes-mestres. E “criança” é um significante extremamente poderoso em nossa civilização, com diversas declinações. O psicanalista que recebe crianças numa cura se depara assim com os significantes da família e suas encarnações nos pais presentes. Faz parte do trabalho dos grupos do CEREDA demonstrar, pela via do caso, a eficácia da psicanálise face às dificuldades encontradas e as saídas possíveis pela via do sintoma. O psicanalista que intervém na instituição é confrontado com a pluralidade dos discursos que acompanham a criança nas situações atuais e a invenção do sintagma “trabalho entre vários” no contexto do RI3 responde a esse real. O CIEN é, no que lhe concerne, tomado por uma outra realidade “fascinante”, aquela da infância em perigo e aqueles que o precederam neste trabalho suscitam nosso respeito; entretanto, a “ação beneficente” da psicanálise não pode ser da mesma ordem que a ajuda samaritana ou a ação militante, mesmo se ela não denuncia os semblantes.

Neste contexto a especificidade do CIEN é dar a conhecer o modo como psicanalistas participam dessas ações  com outros profissionais da infância, sem dar consistência a esses semblantes. Certamente, tanto para uns quanto para outros, a perspectiva fornecida por J-A Miller sobre o fato de o gozo ser primário ajuda muito no sentido de manter os ideais a certa distância, mas não é inútil estar entre vários para isto!

Cada rede pode ser ensinada pela maneira como os outros têm que “fazer com” o ponto de real, ao qual os praticantes se confrontam pela modalidade particular de sua ação; é por outro lado assim que uma certa “fraternidade” se estabelece entre todos nós … não é, querida Paola?

Assim, parece-me possível em cada país visar esse estilo de fraternidade, quaisquer que sejam os meios institucionais criados pela circunstância, é assim que vejo o espírito do Campo Freudiano.

CIEN Digital: Sobre o tema da Manhã de Trabalho no Brasil – O que falar quer dizer? singularidade e diferença hoje, lhe pedimos um comentário sobre dois pontos:

  1. O estatuto da palavra no CIEN, onde o principal dispositivo é a conversação. Podemos ainda considerá-la como uma ferramenta de ação em face ao que é colocado como um imperativo de satisfação?

Daniel Roy: Quando comecei a trabalhar no hospital-dia de Podensac, antes dele se tornar uma instituição associada no RI3, escrevi um breve texto intitulado: “Vamos aprender o que falar quer dizer”. E criei “reuniões de palavra” e entrevistas “entre vários.” As crianças autistas foram, então, nossos mestres, que rapidamente nos ensinaram que em primeiro lugar “falar quer gozar” e que é disso que eles tinham que se defender. O que veio a ser chamado de “conversação” em vários grupos do CIEN, entendo mais como um “convite”, feito pelos psicanalistas envolvidos com outros profissionais, para trocarem a partir de um ponto de real frequentemente desconhecido dos participantes e que escapa nos discursos O que aprendi durante os 10 anos que coordenei o laboratório CIEN na Bulgária é a importância de se fazer existir esse furo central dos discursos, lá onde se aloja o sintoma da criança, que é a nossa única bússola. Assim, estritamente falando, não há estatuto especial da palavra nos grupos do CIEN: encontra-se aí, como em todo lugar, o duplo valor da palavra, por um lado de comando e por outro lado de surpresa, e é essa última que privilegiamos, nos vários tropeços da língua. Isso às vezes leva tempo …

CIEN Digital:

  1. A criança e jovem violentos, assim como a violência direcionada a eles, são fenômenos recorrentes no cotidiano das instituições pelas quais eles circulam. A violência excluiria uma relação com a palavra? Seria isso o que está implicado no ato violento? Entendemos que não, a palavra não vem como remédio para a violência, que precisaria ser extirpada, mas qual articulação é possível a fim de que a singularidade e a diferença – subtítulo da Manhã de trabalho do CIEN Brasil -, possam ter um lugar?

Daniel Roy: A sua leitura do tema “Crianças violentas” proposto por J.-A. Miller é bastante pertinente, e faz eco à diferenciação que ele faz no texto dele de orientação, entre o que é sintoma e o que não é sintoma em relação ao ato violento. Sabemos que “a coisa violenta” existe para cada um dos seres falantes e Lacan nos ensinou a estrutura da passagem ao ato. Nas instituições onde há “em situação variável, uma relação baseada na liberdade” (Lacan J., “Alocução sobre as psicoses da criança” Outros escritos, p. 360), constatamos que as passagens ao ato são finalmente muito raras. No entanto, também fazemos a constatação de que há grupos e ideologias que estabeleceram a passagem ao ato violenta como uma lei e me refiro aqui ao final do texto de J.-A. Miller “Em direção à adolescência”[1] quando ele evoca/faz referência a “uma nova aliança entre a identificação e a pulsão, especialmente […] a pulsão agressiva”[2], dando acesso, no grupo, às panelinhas, à seita para um “eu gozo do corpo do Outro do qual faço parte”[3][3]. Como encontrar um lugar para a singularidade nesta identificação massificante e mortal? São as respostas a esta delicada questão que esperamos da próxima Manhã de Trabalho do CIEN-Brasil, para a qual envio-lhes meus votos de sucesso.


Tradução: Diva Rubim Parentoni
Revisão: Cristiana Cardoso Pittella

[1] MILLER, Jacques Alain. “Em direção à adolescência”. In: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo, Edições Eolia. Março de 2016, nº 72.
[2] Idem, p. 28.
[3] Idem, Ibidem.
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