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Crianças Amos: Resenha e considerações a partir do texto de Adela Fryd
Margarete Parreira Miranda
“Crianças Saturadas” é o tema inquietante estabelecido como eixo da VII jornada internacional do Cien, que acontecerá em setembro na cidade de São Paulo. Momentos importantes antecipam o evento e nos convocam a problematizar o “adensamento” das crianças de nossos tempos, que pelo excesso de substância gozosa insistem em deixar o Outro de fora. Testemunhamos adultos queixosos que se dizem perturbados com a “falta de limites das crianças, sua agitação e desrespeito”. Pais, professores e educadores fazem parceria com esse sintoma contemporâneo sem se implicarem, muitas vezes, na construção desses atos.
Nessas circunstâncias, tivemos acesso ao texto de Adela Fryd, “Crianças amos”. Pela precisão e clareza teóricas, associadas à pertinência junto ao tema que ora privilegiamos, compete-nos dele extrair e destacar algumas incursões favoráveis à transmissão aos participantes do CIEN. Propomos nos servir dos princípios psicanalíticos e relatos clínicos que Adela distingue em seu artigo, buscando ligá-los à extensão da psicanálise, orientados pelos ensinamentos de Miller. Este defende que embora a psicanálise aplicada não seja a psicanálise, ela é psicanálise. Adela Fryd oferta elementos para uma leitura que alcança outros espaços por onde crianças circulam sob o olhar e a voz dos adultos – escolas, abrigos, instituições jurídicas e/ou outros. A presença do psicanalista em uma relação interdisciplinar pode, muitas vezes, via uma palavra esclarecedora, um gesto ou um ato, promover deslocamentos produtores do novo, no enfrentamento das gerações.
Adela chama atenção, inicialmente, para as “crianças que são mais amos que seus pais”, ou seja, que com eles fazem paridade: Seguem autônomas e sós, fazem o que querem sem que nada as possa deter. Interroga como chegarão essas crianças à adolescência. Seu modo de não resposta tem especificidades, pois demandam ser reconhecidas pelo Outro, mas a ninguém escutam de modo particular. Crianças com um querer caprichoso, em que se impõe, segundo a autora, um gozo narcisista livre, a despeito das disposições do Outro. Mostram-se blindadas ao Outro do ensino, esquivando-se dos significantes que por ele lhes são ofertados. Afirma, também, que há uma dificuldade de alienação significante, o que termina por fazer operar uma “falsa separação” para o sujeito. Se há um embuste, a precariedade simbólica não transforma os destinos da pulsão, e o sujeito responde à pergunta pelo desejo do Outro se fazendo objeto. Presas ao falo imaginário e identificadas à fantasmática do Outro materno objetam com o corpo, já que a ausência da falta não lhes deu margem a construção de outros recursos. A autora observa que na formação do par parental, a mãe toma o filho como objeto precioso e o pai opera somente como parceiro da criança.
Os sintomas clínicos contemporâneos ganham, então, nomes como abulia, hiperatividade, inapetência e suas variantes, se instalando em vários ambientes. A freqüência desses casos os inscreve como fenômenos subjetivos de uma época. Nesse ponto de seu artigo a autora interroga: “Então, como se produz a constituição subjetiva nessas crianças?”
Abalizada em Freud e Lacan, Adela trabalha a alienação/separação do sujeito, cuja teorização permitirá maior entendimento e manejo analítico. No narcisimo freudiano, ela diz que se pode pensar na precariedade das marcas do Ideal do Eu, de onde viriam as identificações com o Outro. Liga o narcisismo freudiano ao estudo do imaginário em Lacan. Na montagem da pulsão freudiana e a organização do objeto pulsional haveria um ponto de entrecruzamento entre ambas as séries: narcisismo-autoerotismo-relação de objeto e a série da pulsão oral-anal-fálica. Para Lacan, dois objetos se agregam na organização da demanda e desejo, o olhar e a voz.
Nos argumentos de Fryd, as fantasias imaginárias das “crianças amo” persistiriam em uma especularização decidida, fazendo prevalecer a agressividade e o entrave ao trabalho entre o objeto e o ideal. O excesso de gozo pulsional, desse modo, sobressairia pela ausência do véu articulado a partir do Outro. Para a autora, Lacan trabalha duas importantes operações constitutivas da subjetividade: a alienação e a separação. Se na alienação há a fundação do Sujeito, na separação se organizaria o desejo. O recorte da pulsão somente se dá na medida em que passa pelas baterias significantes do Outro. Se há um intervalo em que o Outro não diz, é nessa fenda que poderá emergir algo do desejo do Sujeito, que interroga o desejo do Outro. E é nessa intermitência que se produz a extração do objeto a, que como resto da operação subjetiva arma a função desejante. A busca desse objeto impulsiona o deslocamento da libido, fazendo notar que a separação procedeu. A “falsa separação” a que se refere Adela, no entanto, em alusão às “crianças amos”, faz verificar uma inteligência dessas crianças em manejar os significantes do Outro, mas uma estagnação no campo do desejo, estando mais ligadas à pulsão que à fantasia.
Adela demarca importantes considerações concernentes à presença do analista, no ponto onde a separação é o problema. Sustenta que esta presença se abre para a contingência de um encontro com o Outro, onde a criança poderá localizar algo do seu estilo e de sua maneira de alojá-lo, que permitirá relançar a pulsão em direção ao novo. O desejo do analista confiado à transferência atualiza o objeto olhar e o objeto voz, com efeitos de separação sobre o excesso de gozo, que implica saturação.
Nesse momento do texto, a autora relata fragmentos clínicos do tratamento de duas crianças, colocando em evidência sua intervenção. Destaca, em ambos relatos, a importância do jogo do fort-da freudiano, como matriz da fantasia, com o qual a criança se relaciona na ausência da mãe. Toma esse jogo como orientador nos referidos casos, a partir da delimitação do real para cada sujeito. Fazer instalar a falta, a separação e aguardar que algo de cada um emirja, é ponto decisivo para Adela. Distingue ainda, que por se tratar de crianças que monologam, deve-se considerar o seu saber para que elas escutem o Outro.
A leitura do texto de Adele Fryd nos aviva reflexões. Se considerarmos os diversos espaços institucionais por onde transitam as “crianças amos”, assim, “saturadas de gozo”, podemos pensar também o conceito de transferência que se aplica aos encontros contingentes com esses Outros. Não poderia o olhar, a voz do Outro fazer presença de maneira menos ruidosa, em que se oferta o consentimento ao estilo de cada um sem, contudo, abrir mão de um dizer consequente às crianças? Estarmos atentos ao que venha despertá-las da fixidez dos sintomas, na aposta em uma posição que proteja as diferenças, poderá desembaraçá-las de seus excessos e fazer fluir a libido no campo do desejo. Essa talvez seja a essência da transmissão aos participantes do CIEN, concernidos em uma prática interdisciplinar.