Anna Aromí Gostaria de agradecer à Nohemí Brown, por embarcar nessa sua aventura, do outro…
Nota sobre o empuxo à hiperdisciplina
Hérnan Gustavo Vilar – Buenos Aires
“Se pudesse simular o mais de gozar, isso manteria muita gente entretida.”
Jacques Lacan
O Mestre “sem cabeça” da Hipermodernidade
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
Com mais de trinta anos dessa afirmação, na chamada hipermodernidade, ocorreu-me perguntar a mim mesmo que terá sido da cabeça do soberano.
Efetivamente parece-nos que o rei foi decapitado, mas, surpreendentemente, vemos surgir do corte, como se fosse da Hidra de Lerna1, três cabeças: O Mercado, A Ciência e A Técnica. A coroa foi parar, como uma carapuça, na testa de uma soberana bastante volúvel e desorientada: A Opinião Pública.
Com semelhante Corte, é oportuno pensar nas características que o ordenamento, por via do direito positivo, passa a ter, em nossos dias, dos discursos imperantes. Uma legalidade baseada em evidência, acumulação de provas que via a digitalização, já não reconhece os limites de espaço e tempo.
A transparência, esta paixão da sociedade contratual, administrada pelos meios massivos de comunicação, torna-se invisível por seu excesso.
Assim a técnica, como política de forclusão da política, apresenta-se a nós, da mão das ciências e do mercado ao saber, como uma mercadoria a mais (Obsolescência programada2 incluída), no fluxo incessante dos gadgets oferecidos na era do “capitalismo sem fricções”.
O declínio das figuras de autoridade baseadas na experiência e sua substituição por modelos simulados de gestão reproduzível são solidárias das formas mais duras de segregação.
O ordenamento pelo direito dos discursos que se ocupam da Saúde Mental apresenta, nessa época, um traço particular que me interessa destacar: trata-se das “boas práticas standards”, baseadas na evidência calculável, mensurável, previsível, reproduzível.
A produção de provas positivas conduz à proliferação de perícias e peritos: aquilo que se chamou “a inflação das especialidades”, a promoção ilimitada de “saberes especializados”.
Nós que recebemos crianças e adolescentes em nosso consultório (ou em outros âmbitos de trabalho), somos requisitados com frequência a informar à escola, às instancias oficiais, aos tribunais e, ainda, às empresas de medicina pré-pagas e obras sociais, sobre o andamento de nossos tratamentos, com que frequência atendemos aos jovens, etc.
A subordinação aos protocolos de avaliação, tal como o mapa do Império de que falava Borges, não deixa de ter efeitos no Real.
Cada vez que nos juntamos para conversar com os professores ou com os responsáveis das equipes de orientação escolar, assinam-se atas, contribui-se a engrossar um dossiê que, às vezes, tem a força de um prontuário policial. Ex–maridos que disputam a guarda dos filhos solicitam perícias sobre as crianças ou as mães. Pais que, “exercendo seus direitos de usuários” dirigem-se a nós exigindo solução para problemas em relação aos filhos sobre os quais não reconhecem pouca ou nenhuma responsabilidade. Dirigem-se ao “douto especialista” como se esse fosse um técnico em eletrodomésticos, cobrando um “conserto garantido”.
Informações são acumuladas, histórias clínicas, diagnóstico multiaxiais, que contribuem para etiquetar esses sujeitos, e, pouco a pouco, empurrá-los a uma adaptação procustiana ou à sua segregação.
Gostaria de compartilhar com vocês uma citação de Michel Foucault que especialmente chama minha atenção: encontra-se na História da sexualidade, A vontade de saber, volume I: “… em matéria de ciências sociais, o rei ainda não foi guilhotinado.”
2 – Do assistencialismo ao clientelismo.
“Onde há uma necessidade, nasce um direito.”
Eva Perón
Durante boa parte do século XX, as reivindicações sociais dos setores historicamente mais desfavorecidos, ainda no seio do chamado mundo capitalista, estiveram orientadas pelo ideal do progresso e bem estar: poderíamos situar nesse contexto uma série de políticas cujo imperativo pode ser formulado do seguinte modo – “Se é necessário, deve ser possível.” Surgiram daí o que podemos chamar de dispositivos assistencialistas, cuja crítica excede os propósitos do presente trabalho. Limitar-me-ei a realçar que na busca de soluções “para todos”, muitas vezes o público avançava sobre o privado (campanhas obrigatórias de vacinação, programas compulsivos de controle de natalidade, barreiras sanitárias, penalização do consumo de substâncias, etc.).
Com o fim da Guerra Fria e o predomínio das ideias neoliberais, o paulatino retrocesso do “estado de bem-estar social”, ocorreu a queda dos marcos reguladores, favorecendo, dessa maneira, o desaparecimento das fronteiras entre o público e o privado, à custa do “privatizado.”
Desse modo, muitas das gestões que os agentes do Estado foram abandonando ficaram nas mãos de diferentes fundações, ONGs, ou programas de “Responsabilidade Social” das empresas, que assim, aliviam sua carga fiscal.
Como muitos desses programas sociais são financiados por organismos multilaterais de crédito e, outras vezes, mediante angariação de fundos, devem garantir o sucesso e a reprodutibilidade de suas ações submetendo-as ao controle de comitês de avaliação, painéis de consenso de peritos e sustentar, por sua vez, políticas de fidelização através de associações de usuários que, muitas vezes, atuam como lobistas perante os poderes públicos.
Frequentemente encontramos na gestão pública diversas áreas que se terceirizaram: as consequências são idênticas.
Essa mudança nos modelos de gestão inverte o paradigma anterior: no mundo globalizado já não se trata de “se é necessário, é possível”. Hoje, o que é possível, deve ser necessário… já que os programas e soluções para todos se regem segundo as leis do mercado e os direitos se transformaram em direitos do consumidor.
Como a satisfação deve ser garantida, se um programa não funciona, ropõe-se outro e outro, como acontece com os planos de telefonia: o destinatário das ofertas que se superpõem, não é mais tomado como aquele de um programa de assistência, mas como cliente de um sistema.
Como bem postula a Teoria Geral dos Sistemas, todo sistema se autorregula: o problema é que essa autorregulação deixa de fora o contingente, arrasa o particular e, em seu movimento centrífugo, expulsa aquele que não se adapta. Isso vale tanto para os assistidos como para os profissionais envolvidos.
Em uma experiência recente, no sul de Buenos Aires, Beatriz Udenio e eu fomos consultados pelos responsáveis da articulação dos programas nacionais, estaduais e municipais destinados à reinserção social de menores com processos judiciais.
Em um dos casos em discussão no trabalho – de uma jovem de dezesseis anos- haviam dezoito equipes intervindo. Certamente que, mais além de algum aspecto de anedota, a jovem em questão não deixava de ser um dado estatístico, uma apresentação em Power Point. O caso número 1, uma superposição de etiquetas policiais, judiciais, policiais, sociológicas, morais, etc.
Se bem havíamos sido convocados e apresentados como “experts”, a aposta foi “nos incluir fora” dessa etiqueta, o que nos permitiu abrir uma Conversação.
Ainda que se tratasse de um grupo muito grande e muito diverso de participantes, algo do que chamamos a prática entre vários pôde acontecer, pôde situar que existe o incurável, o ineducável, o ingovernável: produziu certo alívio nas tensões imaginárias e um relançamento do trabalho.
Esburacar-nos, dessa vez usando o oximoro “Me inclui fora dessa”, precipitado de uma rica experiência do CIEN brasileiro, permite-me ilustrar o modo fecundo que, em cada um de nossos encontros, nos deixa “um pouco transformados”.
A época empurra-nos a um saber trans, hiperdisciplinar, um saber expert e assegurável, que se pode provar como “a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade”: os psicanalistas, estamos advertidos de que pela verdade se luta (se dan de a palos), que sempre é não-toda e que o saber é aquilo que cada um pode inventar com seu sintoma.
Diante desta banda de Möebius que une em um sem fim possibilidade e necessidade, o desafio é, a cada vez, dar lugar ao impossível e saber aceder-se à contingência.