Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR[1] - Karina Veiga Mottin[2] e Willie Anne Martins da…
Comentário do filme Monsieur Lazhar – O que traz Boas Novas
Margaret Pires do Couto
O filme retrata o cotidiano de uma escola canadense e nos permite acompanhar como a instituição trata um acontecimento trágico que ocorre em seu interior: uma professora se enforca dentro da sala de aula. O corpo da professora é encontrado por um dos alunos Simon (Émilien Néron) e logo em seguida por Alice (Sophie Nélisse), sua colega de classe. A diretora da escola, vivida por Danielle Proulx reúne todos os pais e diz que com ajuda da psicóloga todos irão superar este trauma. A escola tem dificuldades para encontrar alguém que substitua a professora. Bachir Lazhar, interpretado por Mohamed Fellag, um imigrante argelino, apresenta-se para o cargo e assume o comando das aulas. Esse encontro com os alunos e com a escola se revelará surpreendente.
Dos diferentes e interessantes elementos apresentados pelo filme, destacarei dois pontos que considero essenciais:
1. O modo como a escola trata o que considera “eventos traumáticos” e seu recurso à Psicologia do Trauma para dar significação ao mesmo;
2. O efeito do encontro das crianças com esse estrangeiro, o único a estranhar o discurso educativo e a maquinaria escolar produzida em torno do evento.
Primeiro ponto
Estamos na civilização do trauma. Como lembra-nos Eric Laurent(LAURENT, p.1)essa civilização do trauma é efeito da própria tentativa da ciência de fazer existir uma causalidade programada e uma determinação objetiva para todos os comportamentos humanos de modo que tudo que escape a essa programação torna-se portanto traumático. Tudo que não é programável, previsível, torna-se trauma. Por isso, o escândalo do trauma é que ele sempre escapa a toda programação. Sua irrupção produz então, o grupo dos traumatizados – vítimas de bullyng, abusados sexualmente, hiperativos, portadores de estresse pós-traumático etc.- e o empuxo à produção de sentido, ao excesso de sentido. Nessa direção, os especialistas, na maioria das vezes o psicólogo, são convocados para dar sentido àquilo que escapou ao sentido. Ele é convocado à explicar com suas matrizes interpretativas o acontecimento traumático e reconciliar o sujeito com a desordem do mundo.
Tudo isso fica evidente em várias passagens do filme tanto na insistência em convocar um especialista para tratar o trauma das crianças, ao mesmo tempo, que elas nada podem dizer sobre seu sofrimento com a morte da professora. Elas são autorizadas a falar sobre o acontecido somente nas sessões com a psicóloga. Fora dessas sessões, as marcas do acontecimento devem ser apagadas com os adultos fazendo silêncio para o que aconteceu. A fala de uma das crianças é, nesse sentido, exemplar: “os adultos acham que nós estamos traumatizados, mas eles que estão”.
Tudo isso me fez lembrar o episódio que ocorreu próximo de nós do Massacre de Realengo. O Massacre de Realengo refere-se ao assassinato em massa ocorrido em 07 de abril de 2011 na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, na cidade do RJ. Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, invadiu a escola armado com dois revólveres e começou a disparar contra os alunos presentes, matando doze deles, com idade entre 13 e 16 anos. Foi interceptado por policiais, cometendo suicídio ou morto depois. A televisão noticiou por vários dias e muitos especialistas psi foram convocados para explicar a motivação do crime. Explicações desde bullying sofrido na infância, distúrbio de comportamento, problemas familiares foram utilizados para dar sentido ao acontecimento. Um ano depois no Caderno Cotidiano da Folha de São Paulo sai a seguinte matéria sobre o ocorrido: “Alunos de Realengo tentam superar o trauma um ano após o massacre”.Um trecho da reportagem afirma que três psicólogos, dois assistentes sociais e dois professores investem em projetos lúdicos para tentar apagar as marcas deixadas pelo massacre.
Trata-se, portanto, da lógica de silenciar o inesperado. É o que nossa civilização tende a fazer com essa proliferação do sentido e generalização do trauma.
Segundo ponto
A chegada de Bachir Lazhar na escola, “o que traz boas novas”, pode ser considerada um bom encontro. Trata-se de um estrangeiro, um imigrante argelino que enfrenta problemas para regularizar sua situação como refugiado no Canadá.
Aquele que por não ser professor de profissão, porque em sua terra natal exercia outro ofício, estranho ao universo e ao discurso escolar pôde estranhar e causar estranhamento nesse espaço. Com sua presença e indagações interrogou tanto o silêncio imposto diante do trágico evento ocorrido, quanto as regras do politicamente correto que, como sabemos, na maioria das vezes servem para encobrir a ausência de regras universais que regulam as relações. É diante dessa ausência que a escola, na contemporaneidade, produz uma proliferação de regras e orientações de conduta, tais como: não pode tocar nos alunos, não se pode utilizar alguns termos, não se deve educar, apenas ensinar, alguns temas não devem ser discutidos em sala de aula etc. Portanto, o politicamente correto é fruto daquilo que declinou e que antes regulavam essas relações: a transferência e posição do professor eticamente orientado por seu desejo de ensinar.
Exatamente esse estrangeiro, marcado também pela dor de ter perdido sua família em um ataque terrorista, pode escapar a tendência de dar sentido àquilo que escapa ao sentido e à representação: a morte. É sua posição que o orienta no acolhimento do sofrimento das crianças dando espaço para que uma a uma, a seu modo e à seu tempo, encontre um jeito para alojar seu saber ou sua falta de saber sobre a morte. Suas inquietações, dúvidas, medos, angústias surgem e encontram um lugar onde podem ser ditas sem a necessidade de psicologizá-las no novelo do sentido. Ao mesmo tempo, ele não faz de sua história pessoal e de seu sofrimento enquanto sujeito elemento de identificação. Afirma que o espaço da escola é um lugar de trabalho e não um lugar de colocar nosso desespero, o que nos faz lembrar da indicação freudiana da escola como um lugar possível de tratar a tendência a destruição por meio do enlaçamento com a pulsão de vida via o saber.
Pareceu-me que Bachir Lazhar, próximo à posição de um analista, recorro novamente ao texto de Eric Laurent, nos ensina que se o analista pode ajudar um sujeito a reencontrar a palavra depois de um traumatismo, é porque ele consegue estar ele próprio no lugar do trauma. Ele pode ocupar esse lugar do insensato, de um parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o outro discurso, o do inconsciente. Desse modo, conduz o sujeito não a proliferar sentidos que gerariam mais impotência, mas o conduz a acalmar-se ao deparar-se com o impossível.