Laboratório Ciranda de Conversa – CIEN-PR[1] - Karina Veiga Mottin[2] e Willie Anne Martins da…
A infância sob controle e a Educação
Marisa Nubile1
Não há como ficar isento diante do documentário “A infância sob controle”, realizado por Marie-Pierre Jaury. Quem o assiste é convocado a tomar uma posição frente aos discursos que nele aparecem.
No meu caso, como trabalhei durante muito tempo na área educacional, uma questão logo se impôs: o documentário foi feito a partir de depoimentos de médicos, psicólogos e neurologistas. O que o educador tem a ver com aqueles discursos? Em que medida a escola é tocada pelas argumentações dos especialistas?
Não é de hoje que a Educação sofre influência de outros saberes; inicialmente da medicina, mas não só dela. A influência foi tamanha que a partir da década de 1970 muitos autores denunciaram a patologização no espaço escolar. Dentre os pesquisadores que fizeram tal denúncia encontramos, aqui no Brasil, nomes que são referências, dentre os quais podemos citar a psicóloga Maria Helena Souza Patto, a educadora Cecília Collares , a pediatra Maria Aparecida Afonso Moyses.
Patologizar é isso: centrar as causas do não – aprender em problemas da criança e da família, isentando as responsabilidades do sistema educacional. (COLLARES, 1994)
Mas, se essa patologização foi alvo de denúncia, percebo que atualmente ela se esvaziou para dar lugar a um discurso tecnicista e biologizante, alimentado pela psicofarmacologia e neuropsiquiatria em alta.
Para contextualizar o panorama atual é sempre interessante olhar para trás.
Lembremos, com Ariès (1981), que o sentimento da infância foi uma construção histórica. Na Idade Média, não havia consciência da particularidade da infância distinto do adulto e do jovem. Pessoas nasciam e logo que podiam viver sem os cuidados básicos da mãe eram incorporados na sociedade sem nenhuma distinção.
O que nos interessa recuperar aqui, é que nos primeiros tempos deste longo período que se denomina Modernidade, quando o sentimento da infância estava sendo construído, tal sentimento foi forjado a partir de um projeto de adulto que se queria saudável, letrado e produtivo.
A infância passa a ser entendida como um tempo de preparo e, dentro de seu ideário, preparo significa correção feita através de mecanismos de vigilância, disciplina, segregação e controle. A escola como instituição surge junto com esse novo sentimento de criança com o propósito de controlá-la.
Mas, o que a criança representa para que seja necessário controlá-la?
Vejamos algumas expressões do pensamento desse período:
“Só o tempo pode curar o homem da infância e da juventude, idades da imperfeição sob todos os aspectos”. (Balthazar Gratien em um tratado sobre a Educação de 1646. IN: Ariès, 1981, p. 104)
Kant em Sobre a Pedagogia no século XVIII, descreve quatro objetivos da Educação, sendo que aquele que aparece em primeiro lugar é “disciplinar, domar a selvageria humana”. (KANT, 1999, p.25)
O que podemos abstrair dessas colocações é que a criança denuncia nosso universo pulsional, – aquilo que é singular ao sujeito -, e que a Educação é chamada a ser um dos agentes capazes de regular aquilo que habita de “selvagem” no humano.
Diante disso que é percebido como anticivilizatório, o projeto da Modernidade se calcou em uma lógica vertical baseada em ideais coletivos tendo como pano de fundo o “dever absoluto, a ética do sacrifício”(Lipovetsky, 2004,p 26 ). Isso significa que a Modernidade foi pensada a partir do referencial de que o individual e o coletivo deveriam se corresponder perfeitamente. E, isto só é possível se a razão se impuser contra as paixões, se leis severas punirem os que lucram e se a Educação ensinar as crianças a dominar suas pulsões e seus vícios e se formarem graças a disciplinas estritas (TOURAINE, 1998, p 30-31).
Dentro desse ideário, a Educação foi permeada pelo saber de outras ciências que se organizaram para tentar entender a criança oferecendo referências de cuidado e moralização. É desta maneira que o saber médico auxiliou a produzir um projeto de educação e saúde, influenciou propostas pedagógicas dirigidas a moralizar e ordenar a relação entre adultos e crianças e foi usado para explicar o fracasso escolar.
Mas, não apenas a medicina influenciou a Educação. Dando um salto no tempo, no início do século XX, entra em cena a Psicologia com as escalas de inteligência. É criado um aparato científico de segregação tornando possível separar os que podiam desenvolver certa intelectualidade daqueles para quem eram indicados os serviços profissionalizantes ou especiais.
Um século depois, temos a impressão de que as premissas continuam as mesmas, como vimos no documentário A infância sob controle. O que dizer da psicóloga que, muito naturalmente, pontuava o comportamento de uma criança que colocava a mão na cabeça ou se agitava na cadeira diante da frustração no jogo, cena registrada nesse documentário?
Mas, se há um continuísmo ideológico diante daquilo que a criança representa, também observamos que novos determinantes se impõem. Em primeiro lugar, a diferença entre normal e anormal está cada vez mais estreita. Aquilo que antes era suportado pela sociedade hoje é considerado patologia. Além disso, se tempos atrás a solução encontrada para o comportamento “desviante” era a disciplina moral, hoje a solução apresentada é o uso de medicamento. Solução alardeada pelo marketing de uma indústria farmacêutica em alta.
Como esse cenário se apresenta hoje em dia no ambiente escolar?
A dissertação de mestrado da pesquisadora Renata Guarrido (2008) analisou a produção de 20 anos da revista “Nova escola”, destinada a professores. Seu objetivo foi observar como determinados temas eram abordados pela revista, dividindo a análise em dois períodos: as produções da revista de 1986 a 1996 e as de 1996 a 2006.
Uma das constatações foi a de que as informações oferecidas ao professor, especialmente no segundo período, continham fortemente uma consideração biológica como fundamento para o entendimento, tanto de certos comportamentos dos alunos, quanto para explicar o processo de aprendizagem.
Isso se refletia, por exemplo, em artigos baseados nos pressupostos da neurociência que “revelavam” como o aprendizado ocorre. Em um dos artigos destacados observamos a seguinte chamada:
Nesta reportagem, buscamos uma explicação científica para o processo de aprendizagem. A neurociência, área da medicina que estuda o sistema nervoso, está contribuindo muito para esclarecer o que acontece com o cérebro humano, desde a sua formação até o envelhecimento. Com isso, ajuda os educadores a entender o que ocorre no cérebro da criança quando ela está em contato com novas informações, como ela processa essas novidades e de que forma o aprendizado se torna conhecimento para toda a vida. (GUARRIDO, 2008, p. 87).
Como podemos observar, o funcionamento neurológico passa a ser fundamento do aprendizado e o conhecimento neurológico um subsídio necessário para o professor, comenta a pesquisadora.
Em outro artigo, o cérebro é tratado como sujeito do aprendizado: “hoje se sabe o que acontece quando ele (o cérebro) está captando, analisando e transformando estímulos em conhecimento e o que ocorre nas células nervosas…” (GUARRIDO, 2008,p. 89)
As publicações sobre TDA ou TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) são exemplos de como os comportamentos dos alunos são lidos através da lente do discurso médico. A pesquisadora conclui que comportamentos como agitação, agressividade, dispersividade, abordados muitas vezes do ponto de vista psicológico até os anos 1990, sofreram uma tradução e passaram a ser tratados, no segundo período, como sintomas de uma doença. Vejamos o artigo que faz a seguinte ressalva:
Apesar da medicina ainda não contar com dados conclusivos sobre formas de tratamento, o TDA é considerado um distúrbio psiquiátrico, portanto uma doença. (…) Uma série de tratamentos vêm sendo pesquisados, mas nada se mostrou superior à associação de remédios com acompanhamento psicológico. (GUARRIDO, 2008, p. 83).
Outro retrato da influência da visão médica e instrumental permeando o cotidiano escolar é a divulgação na Revista de um “teste de diagnóstico para déficit de atenção”, que reproduz os critérios diagnósticos presentes no DSM –IV. A ideia é a de que os professores possam detectar os sinais e, dependendo da pontuação, encaminhar o aluno para um especialista.
Quais são os efeitos desse discurso no espaço escolar?
Como nos alerta a pesquisadora, se a estimulação cerebral for transformada em técnica, “o lugar do sujeito que ensina e do sujeito que aprende fica muito próximo do maquinal” (GUARRIDO, 2008, p. 100). O papel do professor pode ser reduzido a um estimulador do cérebro!
Tal constatação nos convoca a pensar no objetivo da Educação que, para mim, longe de buscar uma apreensão asséptica e funcional daquilo que acontece no cérebro dos alunos, passa pela transmissão de certa relação com o saber. E, tal transmissão é da ordem do encontro humano onde existe sempre um ponto de impossível que escapa a toda e qualquer tentativa de previsão, até porque estamos diante de uma relação entre sujeitos e, portanto, uma relação onde algo da ordem do inconsciente escapa e escapará sempre. Isso não deixa de ser desconcertante, daí que a solução da medicalização pode se tornar mais atraente do que o tortuoso e incerto caminho do laço com o outro.
Disso resulta que, quando o não-aprendizado se vê traduzido em termos biológicos, passível de correção pelo uso de medicação, corremos o risco de uma desresponsabilização por aquilo que cabe à Educação. Ou seja, se partimos do pressuposto de que o aprendizado depende fundamentalmente de fatores neuroquímicos aquele que trabalha com a criança pode se furtar de fazer intervenções potencialmente transformadoras.
Além dessas considerações, lembremo-nos de que a patologização que esse discurso promove é fruto de classificações, como vimos no citado documentário. E, quando se classifica há nomeação: “Ele é TDA, ele é Disléxico…”. Do lado do professor, corre-se o risco dele não se relacionar com o sujeito na sua singularidade, mas com a doença. Do lado da pessoa nomeada, ela pode assumir os atributos que lhe conferem a classificação ou consagrar uma vida inteira provando, para si mesma, que tais atributos não lhe pertencem. De toda maneira, há efeitos que podem ocasionar prejuízos grandes à trajetória escolar e pessoal do sujeito.
Para concluir, é preciso ponderar que não se trata de desvalorizar os avanços científicos que contribuem, de maneira inegável, no tratamento dos sofrimentos psíquicos, nem é o caso de propalar o abandono das pesquisas biológicas. O importante é ter uma visão crítica dos efeitos de um discurso que é difundido como uma visão hegemônica daquilo que se passa no terreno da subjetividade humana. Terreno nebuloso e difícil, sempre propenso a tentativas de controle.
Como vimos, dentro do projeto da Modernidade histórica, a escola nasceu com o propósito de ajudar a regimentar aquilo que de anticivilizatório existe no humano. Para isso, ela se pautou por uma ética do controle moral usando e sendo usada pelos ideais médico-higienistas e da psicometria.
Hoje estamos vivendo uma crise de paradigmas. É fato inquestionável que as antigas balizas que forneciam um referencial para os sujeitos estão implodindo. E a vivência disso não é nada tranquila porque expõe todos a uma encruzilhada ética.
O que fazer? Reviver antigas formas de controle revestidas pela lógica do discurso capitalista? Não nos enganemos, a segregação e medicalização do espaço escolar respondem ao marketing da indústria farmacêutica em franca expansão. Mas ela só está respondendo de maneira tão “positiva” porque encontrou terreno propício para florescer. Em um momento em que as antigas amarras estão se decompondo, o cientificismo promete explicar o inexplicável e curar o incurável da experiência humana.
Diante da encruzilhada ética há aqueles que experimentam novos laços. Em Educação há experiências interessantíssimas que fazem contraponto ao universalismo do discurso que vimos no documentário. São escolas, comunidades ou pessoas que inventam diferentes e inovadoras maneiras de se relacionar com os desafios de um mundo em transformação. E eu aposto nelas!